SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29Identidad-transculturación y su tratamiento pedagógico en la enseñanza media de Cuba y BrasilO deslocamento epistêmico trazido pelas DCNERER e a formação inicial de professores índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.29  Cuiabá ene./dic 2020  Epub 02-Mar-2020

https://doi.org/10.29286/rep.v29ijan/dez.7162 

Artigos

Educação Especial e Inclusão Escolar: sondando uma micropolítica que propicie práticas inclusivas

Special Education and School Inclusion: probing a micropolitics that provides inclusive practices

Rodrigo Avila COLLA1 

1Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).


Resumo

O artigo discute a Educação Especial e a inclusão escolar no contexto brasileiro. Vale-se de revisão bibliográfica que apresenta os principais avanços da legislação nas duas últimas décadas e dialoga com pesquisas recentes sobre a Educação Especial. Aborda práticas que podem favorecer os processos de ensino e aprendizagem em contextos de inclusão escolar, particularmente de educandos com necessidades especiais. Defende-se uma postura acolhedora da diferença por parte dos(as) docentes. O conceito de experiência é utilizado para fundamentar as diferenças como potências formativas. Por fim, são tecidas considerações quanto à necessidade de uma micropolítica do desejo que contribua para práticas inclusivas.

Palavras-chave Educação Especial; Inclusão Escolar; Educação para a Diferença

Abstract

This article discusses Special Education and school inclusion in the Brazilian context. It uses a bibliographic review that presents the main advances of the legislation in the last two decades and dialogues with recent research on special education. It aproaches practices that may favor teaching and learning processes for school inclusion, particularly students with special needs. It defends a welcoming attitude of the difference on the part of the teachers. The concept of experience is used to ground differences as formative powers. Finally, considerations are made as to the need for a micropolitics of desire that contributes to inclusive practices.

Keywords Special education; School inclusion; Education for the Difference

Introdução

O presente artigo se vale de uma revisão bibliográfica para discutir três aspectos relativos à Educação Especial e à inclusão escolar, a saber: 1) a política de educação especial no Brasil nas últimas duas décadas (diretrizes, plano normativo e avanços da inclusão escolar); 2) o cenário educacional para as pessoas com deficiência em relação aos serviços escolares (serviços, formação para os profissionais da educação e figuras de apoio pedagógico especializado); 3) as características das práticas pedagógicas que podem ser consideradas favorecedoras dos processos de ensino e aprendizagem em contextos de inclusão escolar, particularmente nos casos de educandos com necessidades especiais.

Para tanto, o texto é subdividindo em três seções que abordam essas temáticas. Ao longo do trabalho, são apresentados alguns avanços das políticas nacionais no que se refere à inclusão de crianças com necessidades especiais e tecidos argumentos em favor de uma educação para a diferença que perpasse também a micropolítica escolar e a postura das(os) docentes. Lanço mão do conceito de experiência para fundamentar a busca pela articulação das diferenças como potências formativas. Por fim, há as considerações finais e as referências utilizadas.

A Política de Educação Especial no Brasil nas últimas duas décadas

Um primeiro marco legal que merece ressalva é o Decreto n.º 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que visou regulamentar a Lei n.º 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispunha sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência e consolidava as normas de proteção. Note-se que essa terminologia que enfatizava a proteção caiu em desuso com o passar do tempo.

Entretanto, talvez o principal documento que, a partir de sua aprovação, passou a balizar as políticas de inclusão no Brasil seja justamente a Resolução CNE/CEB n.º 2, de 11 de setembro de 2001. O texto da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE/CEB) institui Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. O ponto estipulado pelo documento que aqui merece destaque enfatiza a necessidade de acesso universal dos alunos à escola. Segundo a resolução:

[...] os sistemas de ensino devem matricular todos os alunos, cabendo às escolas organizar-se para o atendimento aos educandos com necessidades educacionais especiais, assegurando as condições necessárias para uma educação de qualidade para todos”. Porém, o documento coloca como possibilidade a substituição do ensino regular pelo atendimento especializado. Considera ainda que o atendimento escolar dos alunos com deficiência tem início na Educação Infantil, “assegurando- lhes os serviços de educação especial sempre que se evidencie, mediante avaliação e interação com a família e a comunidade, a necessidade de atendimento educacional especializado. (BRASIL, 2001).

Isso quer dizer que os educandos com necessidades educacionais especiais não mais deveriam ter acesso exclusivamente a escolas especiais e que as instituições de ensino não poderiam, a partir de então, negar o acesso à educação regular para esses alunos. Trata-se de um grande avanço no que diz respeito à inclusão escolar, pois, para dizer o mínimo, viabiliza o acesso à educação a muitas crianças antes desassistidas, uma vez que a grande maioria das localidades do país não possuía escolas especiais.

Em 2009, a resolução CNE/CEB n.º 4 institui diretrizes operacionais para o atendimento educacional especializado na Educação Básica na modalidade da Educação Especial. De acordo com o documento:

[...] os sistemas de ensino devem matricular os alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas classes comuns do ensino regular e no Atendimento Educacional Especializado (AEE), ofertado em salas de recursos multifuncionais ou em centros de Atendimento Educacional Especializado da rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos. (BRASIL, 2009).

O AEE, nesse sentido, tem a função de complementar ou suplementar a formação do aluno de inclusão. Além disso, segundo o documento, a Educação Especial deve ser realizada “em todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, tendo o AEE como parte integrante do processo educacional.” (BRASIL, 2009).

Para Galvão Filho e Miranda (2012, p. 248), “o paradigma da inclusão consolida o Atendimento Educacional Especializado (AEE) como fator imprescindível para dar suporte ao aluno com deficiência que está na classe regular e promover condições adequadas para que ele possa ter acesso ao currículo”.

É preciso ter em mente, no entanto, que esses marcos normativos não representam ganhos somente no que concerne à acessibilidade, mas também para um gradativo processo de sensibilização da sociedade em relação às diferenças. Isso porque, como salientam Galvão Filho e Miranda (2012, p. 248), a “Educação Inclusiva, como uma dimensão fundamental do projeto global da escola, gera um processo que deve envolver e responsabilizar a toda a comunidade escolar.” O envolvimento de toda a comunidade escolar para atender a essa demanda, em outras palavras, configura um processo de socialização de pessoas que, fora de seus círculos familiares, antes recebiam cuidados apenas de especialistas. A escola e todos os membros da comunidade escolar, inclusive educandos(as), aprendem com a inclusão. É imprescindível que essa questão seja levantada, especialmente levando em conta que “que as instituições para pessoas deficientes, independentemente do tipo de deficiência, seguiram por muito tempo” um modelo de segregação e de isolamento típico de instituições totais que mantinham os pacientes reclusos – tais como hospitais psiquiátricos, asilos, etc. (Paisance, 2015, p. 232).

O documento mais recente que versa sobre o assunto é o Decreto Federal n.º 7.611, de 17 de novembro de 2011, que estabelece as diretrizes que deverão nortear as políticas do Estado, levando em conta a sua responsabilidade para com as pessoas que são o público-alvo da Educação Especial. As diretrizes são as seguintes:

I - garantia de um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades;

II - aprendizado ao longo de toda a vida;

III - não exclusão do sistema educacional geral sob alegação de deficiência;

IV - garantia de ensino fundamental gratuito e compulsório, asseguradas adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais;

V - oferta de apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;

VI - adoção de medidas de apoio individualizadas e efetivas, em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena;

VII - oferta de educação especial preferencialmente na rede regular de ensino; e

VIII - apoio técnico e financeiro pelo Poder Público às instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial. (BRASIL, 2011).

Além desses documentos que contemplam a Educação Especial e a inclusão de maneira mais global, nas últimas duas décadas também vieram à baila leis mais pontuais que ratificaram direitos e abrem caminho para que sejam propiciadas condições de acessibilidade e permanência de pessoas com necessidades especiais nas escolas. A Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002, por exemplo, reconhece a Língua Brasileira de Sinais (Libras) “como meio legal de comunicação e expressão”, bem como “outros recursos de expressão a ela associados” (BRASIL, 2002a).

A Portaria n.º 2.678, de 24 de setembro de 2002, por sua vez, aprova “o projeto da Grafia Braille para a Língua Portuguesa e recomendar o seu uso em todo o território nacional, na forma da publicação Classificação Decimal Universal - CDU 376.352 deste Ministério, a partir de 01 de janeiro de 2003.” (BRASIL, 2002b).

Por fim, houve ainda o Decreto n.º 5.296, de 2 de dezembro de 2004, que regulamentou duas leis de 2000. A Lei n.º 10.048, de 8 de novembro de 2000, prevê o atendimento prioritário às “pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida” e a Lei n.º 10.098, de 19 de dezembro de 2000, “estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências.” (Cf. BRASIL, 2004).

Em artigo publicado em 1995, Lucídio Bianchetti realiza uma competente análise histórica sobre a temática da educação especial e antevê algumas possibilidades de enfrentamento que começariam a se tornar realidades no país nos anos subsequentes.

  • A luta pela integração do deficiente, tanto na escola quanto na sociedade;

  • As possibilidades da tecnologia que praticamente indiferenciam uma pessoa considerada normal e uma com qualquer deficiência. Confiram-se o que Bacon falava no século 17: “os instrumentos igualam os homens”;

  • A gradativa desativação de um sistema especial e paralelo de ensino;

  • A superação gradativa da linguagem estigmatizada e estigmatizadora dos deficientes. (BIANCHETTI, 1995, p. 18).

Note-se que alguns dos documentos legais que foram promulgados nos últimos 20 anos apontam justamente na direção de objetivos. No que diz respeito ao último item elencado por Bianchetti (1995), é possível perceber nos próprios documentos uma mudança terminológica que se insere numa perspectiva que rompe com certos estigmas.

Cenário educacional para as pessoas com deficiência

Considerando os avanços nas políticas de inclusão no nosso país, que foram abordadas por meio de alguns marcos legais na seção anterior, podemos, atualmente, ser mais otimista quanto ao acesso à educação de pessoas com necessidades educacionais especiais e em relação ao fornecimento de condições que propiciem sua permanência nas escolas. Como mencionei anteriormente, há localidades que não possuíam uma instituição de educação especial nas proximidades e, inevitavelmente, alguns sujeitos ficavam desassistidos no que diz respeito à educação ou tinham de se descolar grandes distâncias para serem atendidos. Ademais, pessoas com necessidades educativas especiais convivem em sociedade como qualquer outra e, evidentemente, devem ter acesso em sua infância e juventude à instituição socializadora por excelência juntamente com seus concidadãos – considerados pelo senso comum normais. Para que haja uma sociedade acolhedora das diferenças – que, aliás, não se resumem apenas àquelas relacionadas a necessidades especiais, embora sejam elas o foco deste trabalho –, obviamente esse aparte não pode existir na Educação. Nesse sentido, parece-me que o prognóstico, comparado com o passado, é bastante positivo no que se refere ao cenário da Educação Especial. Isso se reflete inclusive na terminologia empregada para tratar do assunto. Os termos, hoje considerados pejorativos, deficientes ou, em alguns casos, inválidos, caíram em desuso e, em determinado momento, passou-se a utilizar a expressão pessoa portadora de deficiência. Atualmente, é mais comum o uso da expressão pessoa com necessidades especiais.

Ora, as modificações nos discursos também refletem mudanças na óptica sob a qual se vê as pessoas que eles referem. Nesse sentido, a ponderação de Eric Plaisance (2015) vem ao encontro dessa discussão. A respeito da mudança de uma perspectiva integracionista1 para uma inclusiva em relação aos alunos com necessidades educativas especiais, Paisance (2015, p.237) esclarece o cenário em que se deve pensar a educação brasileira após essa mudança:

Os tipos de ação educativa também foram progressivamente reformulados além do “especial” em termos de integração e, principalmente a partir dos anos 2000, em termos de inclusão. A mudança da educação integrativa para a educação inclusiva não é apenas um efeito da retórica modernista, pois introduz uma nova visão da adaptação: não mais uma adaptação das crianças às estruturas existentes, mas, ao contrário, das instituições educativas à diversidade de crianças, o que implica transformações em termos de acolhida e currículo para que algumas delas não se tornem “excluídos do interior”.

O marco temporal citado pelo autor coincide relativamente com o surgimento a Resolução CNE/CEB n.º 2, promulgada em setembro de 2001, no Brasil. Nessa conjuntura, é interessante também salientar esse novo aspecto do cenário educacional: a necessidade da adaptação das escolas à diversidade de crianças. De qualquer maneira, cabe destacar que é nesse contexto que se tornam possíveis experiências como a que é objeto do estudo de Soares (2010). Segundo o autor, parte de seu estudo consiste na análise de vivências ocorridas durante o “Atendimento Educacional Especializado para alunos surdos participantes de um projeto de inclusão escolar em uma escola municipal de Ensino Médio, localizada na cidade de Gravataí.” (SOARES, 2010, p. 2). O projeto do município, citado pelo autor,

[...] tem como objetivos específicos: garantir acesso e condições didáticometodológicas para que o aluno surdo se aproprie dos saberes escolares; criar espaço de inclusão dos alunos surdos egressos da Escola Municipal de Educação Especial para Surdos na Escola Municipal de Ensino Médio, em turma mista de ouvintes e surdos, com a presença de professores e intérpretes de LIBRAS; estudar e implantar adaptações curriculares necessárias de modo a assegurar a especificidade da educação intercultural e bilíngue das pessoas surdas, proporcionando ao aluno surdo o acesso e permanência no sistema de ensino; desenvolver ações e estratégias visando ao acompanhamento e à avaliação do processo de inclusão; desenvolver ações e estratégias com o propósito de difundir o uso da LIBRAS; trabalhar o português escrito como segunda língua nas modalidades leitura e escrita. (NEE/SMED, 2009, p. 10-11 apud SOARES, 2010, p. 7).

Quero destacar aqui um dos aspectos trazidos à tona por Soares (2010, p. 7): “implantar adaptações curriculares necessárias de modo a assegurar a especificidade da educação intercultural e bilíngue”. O que me parece mais interessante nesse novo cenário é a possibilidade de vivências intersubjetivas/interculturais. Nesse caso, os surdos, que comumente são considerados como tendo uma cultura específica, foram incluídos em uma classe mista com alunos ouvintes e com a possibilidade de haver um professor e um intérprete. Segundo o argumento de Soares (2010), depreende-se que não faz muito sentido que essa visão de que há uma cultura surda seja mantida. Para ele, a noção de cultura, por assim dizer, adquirida pelos sujeitos surdos não é algo estanque (que se aproxima mais do conceito de identidade), mas um conjunto de valores e hábitos que são formados de modo intersubjetivo e intercultural, isto é, em diálogo com culturas e subculturas2 diversas. A dita cultura surda, portanto, sofre influência de incontáveis traços da cultura ouvinte – se é que elas podem ser tratadas como culturas separadas. Particularmente, concordo com essa perspectiva e, nesse viés, parece-me interessante que toda educação preze pela intersubjetividade/interculturalidade e pela crítica a uma cultura dominante devoradora das culturas marginais ou dos grupelhos, como no dizer de Guattari (2011). Se há uma cultura surda, há uma miríade de outras culturas marginais – que, em qualquer caso, são integradas por diferentes sujeitos –, dentre as quais se pode incluir culturas de pessoas portadoras de outras necessidades especiais, que também são devedoras de uma cultura dominante. Esses traços culturais e relativos à subjetividade devem ser postos em diálogo e a escola é um lugar propício para isso.

Educação Especial e inclusão escolar: características das práticas inclusivas

No que concerne ao tema desta seção, gostaria de encetar a discussão pelo currículo. Quem comenta a relação entre currículo e educação especial é Vieira (2012):

Para a escolarização de alunos com indicativos à Educação Especial as teorias tradicionais produzem a ideia de que o currículo precisa ser adaptado ou flexibilizado. Flexibilizar, adequar ou adaptar no sentido de tornar o currículo mais empobrecido e sem alguns conteúdos, pois em nome das condições existenciais dos alunos acredita-se que esses sujeitos não têm capacidade de aprender. Como o currículo está pronto, é preciso forjar um currículo paralelo ao desenvolvido com os demais alunos. (VIEIRA, 2012, p. 385).

A flexibilização, bem como a invenção de um currículo paralelo, a meu ver, deveria ser uma prática comum inclusive para alunos ditos normais. A arbitrariedade dos conteúdos disciplinares e a aplicabilidade e utilidade deles há muito vêm sendo discutidas e o currículo, do modo que está estruturado, parece contribuir pouco para que os docentes consigam despertar o interesse dos estudantes pelos conhecimentos com os quais trabalham. Note-se que não se trata de adaptar o currículo, mas de torná-lo mais fluido e provedor do diálogo, mais propício à intersubjetividade. Como destaca Mantoan (2003), no viés da inclusão, a qualidade do ensino está mais relacionada a aproximar os alunos uns dos outros do que a enchê-los de conteúdos.

Ademais, como salienta Carneiro:

[...] a deficiência intelectual [creio que se pode refletir nessa direção também no que diz respeito a outras formas de necessidade educativa especial] é sempre o resultado das relações sociais vivenciadas por sujeitos que apresentam como característica primária algum comprometimento orgânico que possa limitar seu desenvolvimento cognitivo. Do mesmo modo, por sujeitos que não apresentam nenhum comprometimento orgânico, mas que, por algum motivo, não correspondem ao padrão cognitivo esperado para sua faixa etária em determinado contexto social. (CARNEIRO, 2015, p. 10).

Nesse sentido, parece-me imprescindível que as instituições propiciem condições de infraestrutura e de atendimento especializado para que os sujeitos tenham experiências inclusivas. No entanto, somente isso ainda não seria suficiente, uma vez que as vivências de alunos com necessidades especiais em sala de aula podem ser de exclusão, ou seja, as relações sociais travadas em sala de aula podem intensificar o estigma de especial, ou, na pior das hipóteses, de anormal. Faz-se necessário, portanto, que as práticas pedagógicas sejam permanentemente voltadas para o reconhecimento e respeito da diferença.

Em pesquisa publicada recentemente, as autoras Nozi e Vitaliano (2017) enfatizam a importância do papel do(a) professor(a) na inclusão. Em estudo bibliográfico em que analisaram 140 trabalhos acadêmicos, elas identificaram 222 frases aludindo à dimensão atitudinal dos(as) professores(as). A primeira das sete categorias analisadas pelas autoras é justamente a promoção, por parte das(os) docentes, do respeito à diferença. Em suas palavras:

A valorização da diferença e da heterogeneidade em sala de aula, a crença de que o aluno pode aprender e o estímulo para o seu desenvolvimento foram apontados por quarenta e um pesquisadores em sessenta e seis frases como uma atitude importante para os professores atuarem na perspectiva inclusiva. Os relatos ressaltam que a atitude positiva do professor frente à diferença é uma variável significativa para a atuação em contextos educacionais inclusivos com vistas ao combate de qualquer tipo de discriminação e em prol da valorização e do respeito à diversidade humana, influenciando o processo de aprendizagem. (Nozi; Vitaliano, 2017, p. 593).

Além da necessidade dos(as) professores(as) assumirem uma postura que acolhe diferenças e combate qualquer tipo de preconceito, as autoras salientam a importância de que a escola possua recursos variados para que possam ser utilizadas diferentes estratégias pedagógicas que, ao mesmo tempo, contemplem as diferenças e combatam a discriminação. Alguns documentos legais mencionados há pouco, que tentam suprir as necessidades de recursos para atendimento especializado, visam garantir acessibilidade aos alunos com necessidades especiais e se inserem num rol de medidas que tentam munir a escola de instrumentos para atender aos diferentes tipos de sujeitos que chegam a seus bancos e, assim, combater a discriminação. “A heterogeneidade”, afirmam Nozi e Vitaliano (2017, p. 593),“sempre esteve presente em sala de aula, porém, mascarada por procedimentos de ensino padronizados, tendo como modelo o aluno ideal”.

Há algum tempo, por sorte, idealismos (que frequentemente fundamentavam processos de padronização) vêm sendo rechaçados. Nietzsche (1844-1900) talvez tenha sido o primeiro pensador a promover uma crítica substancial à metafísica e, com ela, a qualquer forma de idealismo. Não por acaso, o pensador é a principal influência dos chamados filósofos da diferença (Foucault, Deleuze, Derrida, etc.).

O fato é que o enfoque na diversidade de modos de ser deve preconizar a riqueza experiencial/existencial/cognitiva da diferença. Conviver com surdos, por exemplo, é uma maneira de familiarizar-se com a língua de sinais mesmo sendo ouvinte, não um motivo para exclusão do surdo por parte dos alunos ouvintes. Sabe-se hoje, por exemplo, que o conhecimento de línguas variadas tende a aprimorar as capacidades cognoscitivas dos indivíduos.

Concomitantemente, a abertura de mundo (e do horizonte de compreensão do mundo) que a ênfase numa educação acolhedora da diferença representa remete fortemente ao que é entendido pelo conceito de experiência. Uma experiência é uma vivência significativa, que desacomoda, faz sair da zona de conforto, modifica o modo do sujeito de ver o mundo, logo, de ser no mundo. “A experiência na sua qualidade de tentativa subentende mudança”, escreve John Dewey (1959, p. 152), “mas a mudança será uma transição sem significação se não se relacionar conscientemente com a onda de retorno das consequências que dela defluam”. Ou seja, é na apreensão de novas significações que decorrem da experiência que se completa o ciclo experienciador como processo de transformação do sujeito. No que diz respeito ao aprendizado pela experiência, o autor afirma que “aprender da ‘experiência’ é fazer uma associação retrospectiva e prospectiva entre aquilo que fazemos às coisas e aquilo que em consequência essas coisas nos fazem gozar ou sofrer.” (DEWEY, 1959, p. 153). A convivência com a diferença, portanto, parece ser matéria-prima riquíssima para que sejam criadas condições para que se eduque pela e para a experiência – formar-se pela experiência e aprender a se lançar à experienciação. Ora, aquilo/aquele que é diferente de mim me interpela e me convoca a fazer uma leitura diversa daquela que estou acostumado a fazer e, dessa maneira, me modifica, me faz criar e recriar. Isso é experiência! Como destacam Deleuze e Guattari (2005, p. 166), “nenhuma criação existe sem experiência”. A experiência de tornar-se humano, por seu turno, se dá na intersubjetividade: entre sujeitos que criam sujeitos e os instigam à autocriação. Não por acaso, usamos com tanta frequência o verbo criar para nos referir aos primeiros cuidados e ensinamentos dedicados às crianças.

Nessa perspectiva, as práticas pedagógicas voltadas para a inclusão e com enfoque no acolhimento da diferença também devem contemplar o exercício da criatividade e da expressão, devem prezar pela construção do conhecimento e por propiciar momentos de criação/expressão por parte dos alunos, permitindo que, cada um a seu modo e com meios de expressão diversos, desenvolva sua criatividade. O exercício da expressão, ademais, é fundamental à formação da competência subjetiva de socialização e para que o sujeito se sinta pertencente a determinado círculo social. Ademais, quanto à criatividade, há algum tempo vem sendo realizada uma gama de estudos que discute, por exemplo, seu potencial no aprimoramento de habilidades cognitivas e afetivas (Cf. Fleith, 2001, p. 55).

Segundo Mantoan (2003), a própria ideia de inclusão implica uma mudança de paradigma educacional e não é possível transformar sem criar. Recriar o modelo educativo passa pela valorização das diferenças e isso requer a aposta na formação da autonomia dos alunos e no estímulo para que busquem formas para que se expressem criativa e criticamente.

Considerações Finais

O texto se propôs fazer um breve panorama do contexto brasileiro no que diz respeito à inclusão escolar, com enfoque nas sucessivas tentativas, nas últimas duas décadas, de estabelecer condições de acessibilidade e permanência das crianças com necessidades especiais nas escolas. Em alguns momentos, fiz menção ao potencial formativo que reside na experiência de conviver com as diferenças e defendi a ideia de que os alunos ditos normais, bem como a comunidade escolar como um todo, tendem a ganhar com práticas que acolham modos de ser/estar na escola antes relegados aos cuidados de especialistas em ambientes de segregação/reclusão.

O argumento defendido por Galvão Filho e Miranda (2012) de que a comunidade escolar deve se envolver em sua completude em práticas inclusivas é, aliás, corroborado por Ropoli et al. (2010, p. 8):

A educação inclusiva concebe a escola como um espaço de todos, no qual os alunos constroem o conhecimento segundo suas capacidades, expressam suas idéias livremente, participam ativamente das tarefas de ensino e se desenvolvem como cidadãos, nas suas diferenças. Nas escolas inclusivas, ninguém se conforma a padrões que identificam os alunos como especiais e normais, comuns. Todos se igualam pelas suas diferenças! (ROPOLI et al., 2010, p. 8).

Essa igualdade a que se reportam Ropoli et al. (2010) deve ser tomada aqui como uma igualdade de desejo, a partilha de um sentimento que quer produzir vias formativas que se nutram das diferenças. “A introdução de uma energia suscetível de modificar as relações de força não cai do céu”, escreve Félix Guattari (1985, p. 15),“ela não nasce espontaneamente do programa justo, ou da pura cientificidade da teoria.” Em vez disso, “ela é determinada pela transformação de uma energia biológica – a libido – em objetivos de luta social” (GUATTARI, 1985, p. 15). Como salientam Mantoan e Prieto (2006), a diferença suscita o conflito, o dissenso, e produz circunstâncias de imprevisibilidade, mas a transformação da escola passa pelo aprendizado de como lidar com essa nova conjuntura. Faz-se mister ampliar a gama de relações que devem ser consideradas com caráter pedagógico na escola. Elas não se resumem às relações professor-aluno, mas a qualquer relação interpessoal estabelecida no ambiente escolar. Nesse sentido, “cada problema deveria ser incessantemente retomado, rediscutido, sem jamais perder de vista a orientação essencial” (GUATTARI, 1993, p. 187) que teria de ser caminhar “no sentido de uma dessegregação das relações atendente-atendido”. Não se trata de negar a necessidade de atendimento especializado nem de deslegitimar a sua importância, mas de ampliar a noção de especialização para toda a instituição. Mais do que isso, a instituição atendente pode otimizar suas potencialidades aprendendo com seus atendidos e propiciando a eles a troca de experiências.

Portanto, às políticas voltadas para a acessibilidade e para a permanência de pessoas portadoras de necessidades especiais na escola devem se somar micropolíticas de desejos que unam os sujeitos em suas diferenças e, quiçá, façam com que se movam por uma mesma certeza: a de que todos têm e terão a ganhar convivendo com os diferentes. Essas políticas por vezes imperceptíveis devem começar pela postura das(os) docentes e da comunidade escolar como um todo, mas também contaminar cada sujeito em sua vida para além da escola, como um germe de desejo sempiterno propulsor da reivindicação, sabedor de que todos somos grupelhos3 e de que nos constituímos nessas pequenas lutas.

Referencias

BIANCHETTI, Lucídio. Aspectos históricos da educação especial. Revista Brasileira de Educação Especial, Piracicaba, v. 2, n. 3, p. 7-19, 1995. [ Links ]

BRASIL. CONSELHO NACIONAL DA EDUCAÇÃO. CÂMARA DA EDUCAÇÃO BÁSICA. Resolução n.º 04, de 02 de outubro de 2009. Diretrizes operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial. Diário Oficial da União, 5 de outubro de 2009. [ Links ]

BRASIL. Decreto Federal n.º 7611 de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a Educação Especial, o Atendimento Educacional Especializado e dá outras providências. Diário Oficial da União, 18 de novembro de 2011. [ Links ]

BRASIL. Decreto n.º 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm Links ]

BRASIL. Decreto n.º 5.296, de 2 de dezembro de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm Links ]

BRASIL. Lei n.º 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm Links ]

BRASIL. Portaria nº 2.678, de 24 de setembro de 2002. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/grafiaport.pdf Links ]

BRASIL. Resolução CNE/CEB n. 2, de 11 de setembro de 2001. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Diário Oficial da União, 11 de setembro de 2001. [ Links ]

CARNEIRO, Maria Sylvia C. A deficiência Intelectual como produção social: Reflexões a partir da abordagem histórico-cultural. In:37ª Reunião Anual da Anped. Florianópolis/SC, p. 1-16, 2015.Anais [...]. Disponível em: http://37reuniao.anped.org.br/wp-content/uploads/2015/02/Trabalho-GT15-4079.pdf Links ]

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2005. [ Links ]

DEWEY, John. Democracia e Educação: introdução à filosofia da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. [ Links ]

Fleith, Denise de Souza. Criatividade: novos conceitos e ideias, aplicabilidade à educação. Revista de Educação Especial (UFSM), Santa Maria, n. 17, p. 55-61, 2001. [ Links ]

GALVÃO FILHO, Teófilo Alves; MIRANDA, Theresinha Guimarães. Tecnologia Assistiva e salas de recursos: análise crítica de um modelo. In: GALVÃO FILHO, Teófilo Alves; MIRANDA, Theresinha Guimarães. (Org.). O professor e a Educação Inclusiva: formação, práticas e lugares. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 247-266. [ Links ]

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. [ Links ]

GUATTARI, Félix. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. [ Links ]

GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. [ Links ]

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Inclusão Escolar: O que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Moderna, 2003. [ Links ]

MANTOAN, Maria Teresa Eglér; PRIETO, Rosângela Gavioli. Inclusão Escolar: pontos e contrapontos. São Paulo: Summus, 2006. [ Links ]

Nozi, Gislaine Semcovici; Vitaliano, Celia Regina. Saberes de professores propícios à inclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais: condições para sua construção. Revista Educação Especial (UFSM), Santa Maria, v. 30, n. 59, p. 589-602, set./dez., 2017. [ Links ]

PLAISANCE, Eric. Da educação especial à educação inclusiva: esclarecendo as palavras para definir as práticas. Educação, Porto Alegre, v. 38, n. 2, p. 230-238, maio/ago., 2015. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/20049 Links ]

ROPOLI, Edilene Aparecida et al. A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar: a escola comum inclusiva. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2010. [ Links ]

SOARES, Carlos Henrique Ramos. Inclusão, surdez e Ensino Médio: perspectivas e possibilidades para o atendimento educacional especializado. In:VIII Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sul – Anped Sul. Anais [...]. Londrina, PR, 2010. [ Links ]

VIEIRA, Alexandro Braga. O currículo, as práticas pedagógicas e os processos de inclusão escolar: conexões possíveis. In: II Seminário Nacional de Educação Especial e XIII Seminário Capixaba de Educação Inclusiva, 2012, Vitória - ES. II Seminário Nacional de Educação Especial e XIII Seminário Capixaba de Educação Inclusiva. Anais[...], v. 01. p. 383-396.GM Gráfica e Editora: Vitória, 2012. [ Links ]

1A esse respeito conferir, por exemplo, a redação dada ao Decreto n.º 3.298, de 20 de dezembro de 1999.

2Aqui o termo subculturadeve ser entendido como o conjunto de especificidades culturais de grupos que se diferenciam do estilo de vida dominante sem se desprender completamente dele.

3Originalmente, na língua francesa, o termo usado por Guattari é groupuscule. Suely Rolnik, tradutora de sua obra, explica que, no Brasil, o termo corresponde a grupelho, nome dado aos grupos dissidentes do partido comunista na década de 1960. O vocábulo traz em si um sentido pejorativo por ser utilizado para fazer referência, mesmo pelos esquerdistas, a facções insignificantes, marginais. O que Guattari quer dizer com somos grupelhos, no entanto, é que somos todos produtos de uma multiplicidade singular, isso é, que nos constituímos a partir de uma “dimensão de toda experimentação social, sua singularidade”. Somos, cada um, um grupelho e, ao mesmo tempo, vivemos em grupelhos. Rolnik (Cf. GUATTARI, 1985, p. 18) explica que a noção de grupelho pode ser associada aos conceitos cunhados por Guattari na década de 1960: grupo sujeito como contraposição a grupo sujeitado e à ideia de “agenciamento coletivo de enunciação; e, na década de 1970, ao conceito de ‘molecular’, contraposto a ‘molar’”.

Recebido: 29 de Agosto de 2018; Aceito: 04 de Agosto de 2019

Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons CC BY-NC-SA 3.0 BR.