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Revista de Educação Pública

Print version ISSN 0104-5962On-line version ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.29  Cuiabá Jan./Dec 2020  Epub Dec 01, 2020

https://doi.org/10.29286/rep.v29ijan/dez.6933 

Notas de Leitura, Resumos e Resenhas

Derrida e Nietzsche: mulher e différance

Derrida and Nietzsche: woman and différance

Silas Borges MONTEIRO1 

Dionéia da Silva TRINDADE2 

Edilma  DE SOUZA3 

1Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Coordenador do Grupo de Estudos Filosofia e Formação (EFF), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), na linha de pesquisa Cultura, Memória e Teorias em Educação; ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGPsi) e ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGF) dessa mesma Instituição.

2Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso.

3Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado de Mato Grosso. Professora na rede estadual de Educação Básica de Mato Grosso (SEDUC-MT).


Em alusão ao centenário de publicação de O nascimento da Tragédia, de Nietzsche, em 1872, Esporas: os estilos de Nietzsche foi entregue, como conferência, por Jacques Derrida, filósofo franco-argelino, já conhecido por suas obras Gramatologia e A escritura e a diferença. A ocasião foi o colóquio organizado e ocorrido no Centro Cultural Internacional Cerisy-la-Salle, na França, com o título Nietzsche, hoje? Era junho de 1972. A encomenda feita a Derrida tinha como título: La Question du Style. Neste evento, que sinalizou a retomada da leitura das obras de Nietzsche em território francês, Derrida se faz presente ao lado de filósofos como Gilles Deleuze, Jean-François Lyotard e Pierre Klossowski, entre outros.

Considerado pensador antidogmático, que persistiu na crítica ao falogocentrismo1 substanciado na tradição filosófica do ocidente, Jacques Derrida desconstrói a vontade de verdade expressa na metafísica e história da filosofia ocidental, conferindo um diferente olhar para alguns dos pulsantes tensionamentos do mundo moderno deixados por Nietzsche, os quais gravitam em torno de temas como feminidade, política e linguagem, perspectivados por Nietzsche.

Esporas: os estilos de Nietzsche, estruturado em 13 pontos, aborda treze temas que se interconectam por meio da discussão acerca da verdade incorporada no devir-mulher, são eles: A questão do estilo; Distâncias; Véus; Verdade; Enfeites; A simulação; História de um erro; Femina vita; Posições; O olhar de Édipo; O golpe de dom; Abismos da verdade; "Esqueci meu guarda-chuva". Estes, situados em meio a uma zona tensionada por indecidibilidades, ocasionadas não mais pela linguagem metafísica configurada nas polaridades, por exemplo: homem ou mulher, finito ou infinito, racional ou empírico, mas sim pela superação dessas polaridades. O ponto de conexão da interlocução entre Derrida e Nietzsche, na obra resenhada, ocorre em torno da verdade configurada no devir-mulher como proposta de desconstrução e afirmação das diferenças. Assim, na incursão deste texto, digamos profano, trazemos Derrida, leitor de Nietzsche, filósofo que nos ajuda a pensar as estruturas da linguagem e, ao desconstruí-las, criar condições de possibilidades de outras filosofias. Aliás, Derrida afirma que esse exercício deve ser chamado de "interpretação desconstrutora" (2013, p. 22).

O filósofo franco-argelino escolhe como objeto de exame e revisão o sentido dado ao texto, principalmente no ambiente conceitual do estruturalismo. A esse modo de lidar com textos e, prioritariamente, a tradição filosófica, Derrida chamou de desconstrução; como bem menciona Skliar (2008, p. 17), “Derrida (nos) propõe, então, a fazer as obras falarem desde o interior de si próprias, por intermédio de seus brancos, suas contradições, sem procurar, como ele mesmo diz, condená-las à morte”. Nesse sentido, Derrida nos convida a reconhecer o que é hegemônico e, também, o que havia sido negado numa obra filosófica. Para ele, o que está na herança da palavra e do discurso nos ajuda a recompor uma sistematização do pensamento, saindo do âmbito do discurso dominante. Esse gesto afirmativo de Derrida nos faz lembrar Nietzsche em A gaia ciência – aforismo 381: “Não queremos apenas ser compreendidos ao escrever, mas igualmente não ser compreendidos.” (2012, p. 155, grifo do autor). Assim, nas trilhas de Nietzsche, Derrida investe na criação de um estilo próprio cujo objetivo, parece ser – mais do que oferecer um sentido de seu texto e de sua filosofia – operar por um estilo-pensamento cuja tarefa é dar a pensar, com oferta de sentido, diferente de um sentido ofertado.

Segundo Derrida, a escritura é uma produção singular. As aproximações estruturadas em modelos idealizantes do texto e da linguagem ocupam pouco lugar em sua filosofia. Assim, reverá, como fez Deleuze em seu projeto filosófico, a clássica relação entre significante-significado. Derrida não compreende que um significante seja uma espécie de remetente em direção a um significado, pois um significante se dirige a outro significante, que repete o mesmo movimento indefinidamente. Nas palavras de Derrida (1973, p. 56, grifo nosso):

É preciso agora pensar a escritura como ao mesmo tempo mais exterior à fala, não sendo sua "imagem" ou seu "símbolo" e, mais interior à fala que já é em si mesma uma escritura. Antes mesmo de ser ligado à incisão, à gravura, ao desenho ou à letra, a um significante remetendo, em geral, a um significante por ele significado, o conceito de grafia implica, como a possibilidade comum a todos os sistemas de significação, a instância do rastro instituído.

E, talvez, devamos dar uma palavra aqui: em sentido comum, um rastro diz do vestígio de uma presença que não se faz mais presente. O problema, para Derrida, é que este sentido acolhe a ideia de que "uma presença" (coisa, marca, signo natural, força) produziu o rastro, tornando-o, assim, uma consequência da presença original que o produziu. Derrida dirá em sua Gramatologia: "É preciso pensar o rastro antes do ente" (1973, p. 57). Assim, o rastro não é a origem que desapareceu, mas a différance (p. 77), porque efetua o adiamento do sentido que é assumido como presença. Um rastro, retrospectivo ou prospectivo, levará a outros rastros; "[...] a origem não desapareceu [...] ela jamais foi retroconstituída a não ser por uma não-origem, o rastro, que se torna, assim, a origem da origem." (p. 75).

O livro Esporas abre com o anúncio de que Derrida falará da mulher. Ora, ele, de família judaica, nascido em um país cristianizado, teria em mente os mitos judaico-cristãos que narram ter sido a primeira mulher criada de uma parte do primeiro homem. A origem da mulher, nos mitos fundantes do ocidente, está no homem: ele é sua origem, seu centro ordenador de sentido. Quando Derrida se propõe a desconstruir o discurso-pensamento ocidental, quer pensar "antes do ente", ou seja, mulheres ou homens. Assim, o que se chama homem ou mulher são différance, ou seja, rastros de um adiamento de sentido. E sua conferência, intitulada Esporas, quis realizar isso. Como leitor de Nietzsche, Derrida dirá que a questão do estilo (encomenda feita pelo Colóquio de 1972) traz a questão da mulher: mulher como estilo. Não se trata, aqui, da mulher enquanto ente; não se trata das pessoas; não se trata dos sentidos atribuídos à mulher; interessa-lhe o significante mulher, a mulher enquanto nome.

Derrida, ao propor a desconstrução do pensamento binário, coloca em questão a filosofia ocidental que por séculos vem tornando-se o que é a partir de uma filosofia da negação, ou se é homem ou se é mulher, masculino/feminino, bem/mal, entre outras dualidades que tomaram performances em nossos cotidianos. No entanto, ao pensar a desconstrução, Derrida discute a ideia de romper com as dicotomias que objetivam a vida a desenvolver a repetição do dia a dia e propõe uma nova maneira de viver/pensar a afirmação da vida enquanto produção de experiências/sentidos.

A obra Esporas traz uma escritura da posição da mulher, a mulher como afirmação da vida, vontade de potência, e assinala a cumplicidade produzida nos textos de Nietzsche entre mulher, vida, sedução, dissimulação e pudor. Sim! A verdade também é mulher, a verdade é feminina. Mas, talvez, o maior exercício seja vencer a posição que esta mulher, aqui referida, seja uma ideia de mulher, ou uma espécie de experiência feminina; parece-nos que, aqui, Derrida pensa a mulher fora da inscrição de gênero, de cultura, mas como inauguração de marcos conceituais. Assim, a mulher como afirmação de vida opera como um golpe nos clássicos conceitos falocêntricos, logocêntricos, falologocêntricos típicos da metafísica ocidental. Devemos ter em mente que Derrida, ao eleger o conceito de phallus, se apropria em um gesto desconstrutor da linguagem freudiana. Ora, para Freud, o phallus indica o pertencimento de algo que está presente, fantasiado pelo corpo do menino, e a simultânea ameaça da perda desta presença – castração –, ao observar o corpo de uma menina. Assim, Derrida começa a desconfiar que a tremenda luta pela verdade, como posse da filosofia e a absoluta rejeição de qualquer possibilidade de perdê-la, carrega uma constituição cultural produzida em milênios, dando predominância à posse, ao mesmo tempo, encontrando como ameaça qualquer possibilidade de perda. Esta é uma dimensão do pensamento de Derrida, superficialmente apresentada aqui, que poderia ser melhor explorada a partir da leitura de Esporas, que não é o caso desta resenha. Assim, questões como o masculino ou o feminino devem ser desconstruídas, sendo este Esporas um excelente começo de investigação.

Derrida ressalta, em Esporas, a desconstrução do pensamento binário: homem/mulher, verdade/engano, afasta a centralidade da razão e desloca o pensamento do leitor para um outro modo de pensar a vida. O filósofo coloca em funcionamento o gesto filosófico de Nietzsche, que preconiza a afirmação não como oposição de uma negatividade, mas como diferença que entre liames e tramas se cria modos possíveis de ler e produzir a vida. A vida como afirmação.

Referencias

DERRIDA, Jacques. Esporas: os estilos de Nietzsche. Tradução de Rafael haddock-Lobo e Carla Rodrigues. Rio de Janeiro: Nau, 2013. [ Links ]

DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973. [ Links ]

NASCIMENTO, Evando. Derrida e a Literatura: notas de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. 3. ed. São Paulo: É Realizações Editora, 2015. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2012. [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia, ou Helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. [ Links ]

SKLIAR, Carlos. Derrida e a Educação. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. [ Links ]

1O termo phallogocentrisme é usado por Derrida, ao que nos conta, apenas em 1980 no livro La carte postalle [A carta postal, publicado em português]. Neste livro, de subtítulo: De Sócrates a Freud e além, Derrida afirma que “O falogocentrismo é uma coisa. E o que se chama o homem e o que se chama a mulher poderiam ser sujeitados a ele.” Tem em mente Freud, mas também Lacan. Esta palavra-valise criada por Derrida [reunindo falocentrismo e logocentrismo] será criada após o ensaio feito em Esporas, que lhe serve de preparação. Por isso, concordamos com Nascimento (2015, p. 196) quando diz “A dificuldade em separar logocentrismo de falocentrismo estaria em que o logocentrismo o falocentrismo no ponto mesmo em que o privilégio do phallus, no texto de Freud, por exemplo, representaria o avatar do sentido na teoria da significação.” Assim, o termo explora as significações oriundas da tradição metafísica que julga o pensamento a partir da presença, isto é, que é possível estabelecer um centro irradiador de sentido. Neste caso, esse centro é, fundamentalmente, racionalista (logocêntrico) e masculino (falocêntrico).

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