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Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.31  Cuiabá ene./dic 2022  Epub 31-Mar-2022

https://doi.org/10.29286/rep.v31ijan/dez.12692 

Artigos

Lev Semionovitch Vigotski: a atualidade de seu pensamento impõe a recuperação de sua obra

L. S. Vygotsky: the topicality of his thinking requires the recovery of his work

1Doutora em Educação. Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, atuando nas licenciaturas e no Programa de Pós-Graduação em Educação.

2Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília, mestrado e doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é pesquisador associado da Universidade de Brasília e professora do Centro Universitário de Brasília. Sua atividade de pesquisa focaliza, principalmente, os seguintes temas: conhecimento científico e conhecimento escolar, relação professor-aluno, aprendizagem e desenvolvimento, desenvolvimento psicológico atípico e deficiência mental, processos de escolarização e o significado social da escola.


Resumo

O texto apresenta informações sobre os esforços de recuperação da obra de Vigotski na Rússia, uma breve descrição e análise do conteúdo do primeiro volume das Obras Completas do autor. Apresenta a resenha sobre o teatro infantil, publicada por Vigotski em 1923, com comentários de Sobkin, o organizador do referido volume. Analisa-se a posição de Sobkin sobre as resenhas teatrais de Vigotski, nas quais há indícios da origem de algumas ideias do pensador a respeito do desenvolvimento infantil. Indica-se e discute-se o argumento a favor da recuperação de sua obra, examinando-se os principais aspectos que mantêm suas ideias atuais.

Palavras-chave Vigotski; Obras completas; Desenvolvimento; Educação

Abstract

In this text we present informations about the efforts to recover Vygotsky’s works in Russia. Also an analysis and a brief description are made on the first volume of the author’s Complete Works. As an example, it is transcribed and translated a review on childrens’ theater, published by Vygotsky, in 1923, which is commented by the editor of the volume, Wladimir Sobkin. We point out some clues of the origins of some Vygotsky’s ideas about child development. Finally, we argued that a lot more efforts must be done to recover his wholly works and to examine the most fundamentals ideas that keep his ideas actualized.

Keywords Vygotsky; Complete works; Development; Education

Preâmbulo

Há pouco mais de cem anos, em 1917, o mundo assistiu à instalação do autêntico poder de trabalhadores e camponeses na Rússia e, posteriormente, nos países que compuseram a União Soviética. As transformações foram em quase todos os campos: social, político, econômico, científico, cultural, tecnológico. O mundo seria bem diferente, hoje, caso essas transformações não tivessem influenciado outros países. O movimento revolucionário da Rússia, no início do século XX, aniquilou o regime monárquico russo que mantinha o povo na pobreza e no atraso cultural e ofereceu ao mundo inúmeras contribuições. A luta por melhores condições de vida dos trabalhadores no mundo inteiro obrigou o sistema capitalista a fazer concessões para poder sobreviver às suas crises permanentes. Nesse contexto de turbulências históricas, nasceu a teoria histórico-cultural, revolucionando a concepção de desenvolvimento humano, principalmente, na pedagogia e na psicologia.

A teoria histórico-cultural de Lev Semionovitch Vigotski foi forjada entre 1917 e 1934, ou seja, nos primeiros anos de existência da União Soviética. A vida e a obra desse pensador tão singular nos ensejam reflexões sobre possibilidades de resistirmos ao embrutecimento, ao obscurantismo, à ignorância e enfrentarmos os retrocessos em tempos de tanto ódio, de tanta intolerância.

Nos últimos anos, familiares, pesquisadores e estudiosos russos da teoria histórico-cultural têm empreendido esforços para recuperar as obras de Vigotski de acordo com os originais que, ao longo do tempo, foram preservados em arquivos da família, de colaboradores e de bibliotecas espalhadas pelos países que compunham a União Soviética. Atualmente, sabe-se que muitos escritos do autor foram censurados e, quando voltaram a ser publicados em meados da década de 1950, sofreram com as canetas de organizadores e editores de coletâneas na União Soviética. Por exemplo, os textos que constituem os volumes dasObras Escolhidas(VIGOTSKI, 1982, 1983, 1984), publicados entre 1982 e 1984, em russo, e traduzidos para o inglês e o espanhol, na década de 1990, contêm inúmeros cortes e “correções” arbitrárias, e ainda hoje são referências para muitos trabalhos acadêmicos no Brasil.

Contudo, de todas as distorções e adulterações de obras de Vigotski, nenhuma se compara ao que foi feito no livroFormação social da mente(1999), organizado e publicado originalmente nos Estados Unidos, sob o títuloMind in society,em 1978, e traduzido no Brasil no início dos anos 1980. Como já afirmado em diversos trabalhos, esse livro é atribuído a Vigotski. É o que se extrai das palavras dos próprios organizadores:

 

(...) o leitor não deve esperar encontrar uma tradução literal de Vygotsky, mas, sim,uma tradução editadada qual omitimos os materiais aparentemente redundantes e à qual acrescentamos materiais que nos pareceram importantes no sentido de tornar mais claras as ideias de Vygotsky(VYGOTSKY, 1999, p. XIV, grifos nossos).

 

Não é necessário analisar as expressõestradução editadaetornar mais claras as ideias de Vygotsky. Elas falam por si. Entretanto, uma questão merece ser problematizada. Hoje, temos à disposição várias obras traduzidas de originais fidedignos, devido a esforços empreendidos por diversas pessoas estudiosas da teoria. Apesar disso, o livroFormação social da mente,com todas as suas distorções e adulterações, ainda é o mais indicado a estudantes que dão seus primeiros passos no estudo da teoria histórico-cultural. Sem dúvida, esse livro exerceu um papel importante, que devemos reconhecer, mas, hoje, ele tem apenas um interesse histórico e novas fontes devem ser buscadas (PRESTES, 2012).

A recuperação e revisão da obra de Vigotski está em curso no mundo todo. Até mesmo um dos organizadores deFormação social da mente, o psicólogo norte-americano Michael Cole (COLE, 2009), já admitiu haver certo descuido com a tradução da obra de Vigotski no Ocidente. A título de exemplo, em seu artigo, diz que a tradução da palavra russaobutchenie,no contexto da teoria de Vigotski,não deve ser aprendizagem, como foi feito em inúmeras obras traduzidas para o inglês e outras línguas. Ainda que não haja uma palavra, em inglês – e o mesmo pode-se dizer em relação ao português -, que corresponda perfeitamente aobutchenie,Cole reconhece que seria muito mais adequado traduzi-la como instrução ou ensino do que como aprendizagem. Vale ressaltar que, no Brasil, antes mesmo do alerta de Cole, já estavam sendo desenvolvidos estudos que aprofundavam esse debate, principalmente, a respeito da tradução de conceitos importantes da teoria (ver PRESTES, 2010, 2012).

 

A recuperação de sua obra: o primeiro passo

Em novembro de 2015, durante o eventoLeituras Internacionais Vigotski, organizado anualmente em Moscou (Rússia), foi lançado o primeiro volume dasObras Completas(VIGOTSKI, 2015) de Vigotski, em russo. O referido evento contou com a presença do professor Vladimir Sobkin, que organizou e sistematizou os trabalhos de Vigotski presentes no volume, assim como elaborou e apresentou uma belíssima introdução e inúmeros comentários preciosos e criteriosos a respeito de nomes, datas e frases que aparecem nos textos do pensador soviético. O volume está dividido em quatro partes: a primeira, denominadaHamlet, contém a monografiaTragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, de W. Shakespeare; a segunda, sob o títuloArtigos sobre o teatro,traz dois artigosAnotações teatrais (cartas de Moscou) e Teatro e revolução. Na terceira parte, intituladaResenhas teatrais do período de Gomel, encontram-se 69 resenhas sobre teatro, escritas por Vigotski e publicadas em jornais e revistas da época, entre 1917 e 1923. No caso desse material, vale dizer que ele foi republicado, parcialmente, pela revistaPsirrologuitcheski JurnalNo4, de 2011, da Universidade Internacional da Natureza, da Sociedade e do Ser Humano “Dubna”, no entanto, sem as devidas e necessárias correções e revisões, um cuidado que tiveram os organizadores do volume lançado em 2015:

 

Na preparação deste volume, utilizamos o material de arquivo oferecido pela família de Vigotski, realizando conferência dos textos com os originais para eliminar os inúmeros erros gramaticais, tipográficos e equívocos factuais que continham as edições impressas provincianas daquela época (VIGOTSKI apud SOBKIN, 2015, p. 7).

 

A quarta e última parte deste primeiro volume de 750 páginas foi intitulada A psicologia científica e o teatro: apresentação do problema.Ela contém o texto de VigotskiSobre a questão da psicologia do ator. Ao final do tomo, encontram-se os detalhados comentários elaborados pelo organizador, além das referências bibliográficas, índice onomástico e índice de conceitos que colaboraram, de certa forma, com o trabalho do pesquisador. Um aspecto importante e que não pode passar despercebido é o vasto material iconográfico apresentado no volume: são reproduções de fotos e quadros de atores e autores da época, fotos de cenas de peças teatrais, cópias de manuscritos de Vigotski, entre outros. Sem dúvida, o volume é uma riquíssima fonte para todos que estudam a teoria histórico-cultural e o contexto de seu surgimento, pois proporciona uma imersão no espírito da época e possibilita reflexões sobre a atualidade.

Segundo Vladimir Sobkin (2015), as resenhas teatrais de L. S. Vigotski constituem a origem da teoria histórico-cultural, pois nelas, com muita nitidez, já são apresentados conceitos que, posteriormente, serão desenvolvidos em outros textos teóricos, quase uma década depois.

Inicialmente, merece destaque o fato de que, antes de sua total dedicação a questões teóricas e práticas da educação e da psicologia, que ocorre efetivamente com sua mudança de Gomel para Moscou, em 1924, L. S. Vigotski estava mergulhado intensamente na vida cultural da cidade em que residia. A partir de 1919, trabalhou no campo da educação, lecionando em diferentes instituições (na escola única do trabalho, na escola técnica pedagógica, em escolas técnicas profissionalizantes, em cursos superiores de qualificação profissional, em faculdades operárias e no conservatório popular), e também se envolveu com diversas atividades ligadas à cultura. Juntamente com seu primo David Vigodski, por exemplo, criou a editoraSéculos e diasque não teve vida longa. No entanto, argumenta Sobkin (2015), apesar da edição de apenas dois livros –Poemas, de Jean Móreas eOgon (Fogo), de Ilia Erenburg –, neles, já é possível perceber algumas ideias que serão desenvolvidas por Vigotski em trabalhos posteriores no campo da psicologia. Um exemplo é oManifesto do simbolismo, de Móreas:​

Em seu manifesto, Móreas toca em três questões que são importantes também para a compreensão de trabalhos psicológicos posteriores de Vigotski: a correlação entre material e forma (sentimento do misterioso e do inexpressivo); o papel do poeta como mediador (mediação, transmissor de ideias iniciais); a definição do signo verbal como o que significa o “desconhecido” e não se submete à formulação definitiva (já que o desconhecido, e isso é importante, é internamente contraditório). Notemos que esses momentos, fundamentais para o simbolismo como tendências na arte (símbolo, mediador, contradição interna), são extremamente importantes também para a concepção histórico-cultural de Vigotski (SOBKIN, 2015, p. 20).

​ Em um comentário detalhado, Sobkin apresenta reflexões para fundamentar o que afirma e cita a obraMichlenie i retch(Pensamento e fala)(VIGOTSKI, 2001) para embasar a tese que defende, referindo-se à ideia de Móreas a respeito dos signos verbais, que expressa em seu Manifesto:

Finalmente, é importante a compreensão por Móreas dos signos verbais como símbolos específicos, capazes de significar o “desconhecido”, mas significá-lo apenas aproximadamente, já que o desconhecido não se submete à formulação definitiva. Nota-se que este postulado declarado no Manifesto do simbolismo é detalhadamente discutido por Vigotski, quando analisa a relação entre significado e sentido e, referindo-se a F. Polan, destaca:“O sentido da palavra (...) representa um conjunto de todos os fatos psicológicos que emergem em nossa consciência graças à palavra. O sentido da palavra, dessa forma, é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que possui várias zonas com estabilidades diferentes. O significado é apenas uma das zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de qualquer fala, e além disso, uma zona mais estável, unificada e precisa”(VIGOTSKI, 1982, p. 346)” (SOBKIN, 2015, p.62).

Uma resenha que também colabora com a tese de Sobkin foi publicada naRevista Nach PonedelnikNo35, em 07 de maio de 1923, intituladaO detskom teatre[Sobre o teatro infantil]. Essa resenha representa um interesse especial para os estudiosos da infância, pois, segundo Sobkin, é possível perceber esboços de algumas ideias que terão lugar em discussões posteriores na elaboração de sua concepção de desenvolvimento infantil e brincadeira. Apresentamos, abaixo, a reprodução do recorte do jornal em que foi publicada a resenha e, em seguida, a tradução do texto com os respectivos comentários elaborados por Sobkin (2015) e que são parte integrante do Tomo I da Obra Completa de L. S. Vigotski, para depois fazer uma breve apreciação sobre indícios da origem de algumas ideias importantes de Vigotski a respeito do desenvolvimento da criança, apontados por Sobkin.

Fonte: Arquivos da família L. S. Vigotski

Figura 1 Cópia da resenha O detskom teatre [Sobre o teatro infantil] de Lev Vigotski publicada na Revista Nach Ponedelnik Nº 35, de 7 de maio de 1923. 

Sobre o teatro infantil

Há pouco tempo, tive a oportunidade de ver uma peça infantil. Vieram crianças e me convidaram. Crianças interpretavam uma peça que ensaiaram sob a direção da atriz A. Vassilieva.

Sabe-se que, em um espetáculo infantil, o adulto olha tanto para o público quanto para a cena e, pelo público, é possível julgar com mais facilidade se o que está ocorrendo em cena é bom e se está ou não tocando o espectador. Um dos críticos fez assim: ao invés de escrever uma resenha sobre um livro infantil, publicou a opinião do seu pequeno filho sobre o mesmo.

Então, pensei o tempo todo: seguindo esse método, seria possível publicar o que acontecia na face do público, do qual o mais velho, provavelmente, tinha um pouco mais de dez anos? Então, o tipógrafo teria que compor mais ou menos o seguinte – que interessante é o teatro infantil. Na república infantil, deve haver um subdepartamento no comissariado da brincadeira/interpretação.

A questão para o adulto é extremamente difícil e provocou uma grande polêmica na literatura pedagógica russa: as crianças devem brincar de/interpretar teatro e como devem fazê-lo. Tenho fortes dúvidas a respeito do fato de que as faces infantis tenham vantagem por causa de uma simples maquiagem e, também, em função de o único material para o teatro e a literatura infantis serem o conto de fadas meloso e a bobagem do crocodilo. Existe uma infinidade de infantilidade séria e de zombaria profunda. Olhem como a criança brinca com seriedade.

E mais: teatro para crianças ou teatro das crianças. Numa palavra, para o adulto, existe um amontoado de questões pedagógicas, artísticas, um amontoado de dificuldades e dúvidas insolúveis a respeito do que é denominado teatro infantil.

Porém, para a criança, está tudo resolvido e claro: o teatro para ela é uma brincadeira elevada (ou seja, duas vezes mais interessante) e não uma nova narrativa do conto que ela compreende sem a representação. Como é bom as crianças não se interessem por questões pedagógicas.

Desta vez, quero me juntar às crianças nessa questão. Pode ser que isso não seja muito inteligente da parte de um adulto, mas, pelo menos, é divertido. E já que é interessante (terrivelmente interessante), então, cuidem para que o teatro infantil exista (já existem livros, canções, quadrinhos para crianças), dando à criança o que ela precisa e o que lhe é possível; para que se dê mais atenção às crianças e seja melhor do que aquele espetáculo no qual eu estive e a que elas assistiam sem compreender.

Existem possibilidades externas para isso. Há tantos espetáculos quantos círculos de dramatização nas escolas. Não é preciso procurar as crianças prodígio, mas inventar e organizar uma vez, num determinado tempo, uma grande brincadeira/interpretação para as crianças. É preciso semear não apenas “a razão, a bondade, o eterno”, mas se preocupar, de alguma forma, também com o que é divertido, sem importância, interessante. Ponham sal no pedacinho de pão para a criança, senão fica insosso e seco – sal de riso e lágrimas, sal do teatro.

***

É possível, logo no início da resenha, perceber a sensibilidade, por parte de L. S. Vigotski, em relação ao teatro infantil, quando diz: “vieram crianças e me convidaram”. Além disso, como um crítico de teatro, ele chama a atenção para o comportamento do adulto quando presente numa peça de teatro infantil, alertando que “olha tanto para o público, quando para a cena”. Vale também uma análise da palavra russaigraque pode significar tanto brincadeira quanto interpretação: “as crianças devem brincar de/interpretar teatro e como devem fazê-lo”.

Sabe-se que Vigotski desenvolveu ideias importantes sobre a atividade de brincar de faz-de-conta em seu textoA brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança(1933). Nele, o autor afirma que a brincadeira de faz-de-conta é a escola da moral e da vontade, ou seja, é o campo da educação de normas da vida real. Por isso, é importante tratar com seriedade a atividade de brincadeira/interpretação da criança. Ao indagar, na resenha, “teatro para crianças ou das crianças?”, Vigotski chamava a atenção para a importância da participação da criança no processo de produção da peça infantil.

Nesse ponto, chamamos a atenção do nosso leitor para um fato de suma importância para o exame do pensamento do autor: a questão do protagonismo da criança no seu próprio processo de desenvolvimento. A criança é o ator principal de seu desenvolvimento. Por sua inegável atualidade, esse assunto é tratado a seguir.

 

Proteger a arca do tesouro

Vigotski era um homem do seu tempo e sua trajetória foi pavimentada pelo teatro, pela literatura, como também, principalmente, por sua decisão política de colaborar com o novo poder que se instalara na Rússia com a Revolução Socialista de 1917. O primeiro volume dasObras Completas(VIGOTSKI, 2015) permite o acesso às resenhas que Vigotski escreveu sobre peças teatrais a que assistiu quando era estudante, em Moscou. Ao mesmo tempo, publica textos que aniquilam qualquer dúvida sobre sua adesão sincera ao processo revolucionário russo e aos desafios que este processo impôs ao campo da educação. Além disso, vale destacar o árduo e profundo trabalho de pesquisa realizado por V. Sobkin, que já pode ser vislumbrado nos comentários elaborados para a resenha aqui apresentada.

Ainda como estudante de história e filosofia, na Universidade Chaniavski, Vigotski escreveu pequenas notas publicadas naRevista Novi Put’(Novo rumo) – da qual foi secretário técnico – com análises do contexto em que vivia a Rússia no início do século XX. Nelas, demonstrou uma visão lúcida a respeito dos fatos da época e defendeu a necessidade de adesão ao movimento revolucionário por parte da comunidade judaica à qual pertencia (PRESTES e TUNES, 2017).

Mas foi na tribuna doCongresso Russo de Psiconeurologia,em Petrogrado, em 1924, como um professor provinciano praticamente desconhecido que, ao apresentar seus relatórios sobre investigações científicas experimentais realizadas no gabinete que criou em Gomel (cidade em que residiu desde os 6 anos de idade e para a qual regressou, após formado), despertou enorme interesse por parte de especialistas. Sua fala soou, segundo uma testemunha ocular, como “raios em pleno dia de sol” e lhe rendeu o convite para trabalhar no recém-abertoInstituto de Psicologia de Moscou.

Para compreender a teoria histórico-cultural é preciso conhecer os postulados marxistas porque, ainda hoje, acredita-se que absolutamente todos os estudiosos e cientistas que vivenciaram os complexos e obscuros anos do poder de Stalin na União Soviética adotaram a linha do marxismo dogmático, negando a existência daqueles que viam com sinceridade contribuições para a ciência nos estudos de Marx.

Vigotski era um desses marxistas sinceros. Conforme testemunho de sua filha, ele rechaçou qualquer possibilidade de se valer apenas de citações da obra de Marx para ver seu trabalho reconhecido e, ao criticar a crise da velha psicologia, afirmava que desejava aprender com o método de Marx como estruturar uma ciência e como abordar as investigações da psique. “É preciso saber o que é possível e o que é preciso buscar no marxismo” (VIGOTSKI, 1982, p. 421).

 

Assim, nos anos 20, teve início a reestruturação da psicologia para pô-la em bases marxistas. Ela ocorreu numa luta ideológica intensa e, antes de tudo, no Instituto de Psicologia [de Moscou]. Muitos, nesse período, destacavam a formalidade na utilização da filosofia marxista, predominava a “fraseologia marxista” no lugar da autêntica apropriação do marxismo (JDAN, 2018, p. 431).

  

A psicologia soviética esteve, desde o início de sua trajetória, internamente ligada às novas condições econômico-sociais e político-ideológicas da União Soviética. A tarefa que se apresentava não era fácil, pois, para criar uma nova escola era preciso pensar numa nova pedagogia e uma nova psicologia fundamentadas nas ideias do materialismo histórico-dialético. Além disso, era necessário um olhar crítico para as teorias burguesas hegemônicas e não ceder às suas influências, já que a psicologia soviética destacavaa escola, a formação e a educação do novo homemcomo objetivos principais de suas pesquisas.

A atuação de P. P. Blonski, M. Ia. Bassov, L. V. Zankov, A. R. Luria, A. N. Leontiev, L. S. Vigotski se destaca no cenário científico soviético daquela época, pois em suas investigações empreenderam esforços para indicar caminhos para questões urgentes da educação de crianças e adolescentes. Lev Vigotski, como já mencionado, começa sua trajetória científica logo após a Revolução e adere de corpo e alma às tarefas apresentadas pelo novo regime no campo da educação.

Apesar de ter uma presença muito importante nos campos da psicologia e da pedagogia, no Brasil, colaborando com projetos educacionais, a obra de Vigotski ainda precisa ser recuperada e traduzida sem sofrer a deturpação feita em nome de uma possível limpeza ideológica para extirpar-lhe alguns fundamentos - principalmente, marxistas, mas não só – e torná-la mais palatável ao gosto do pensamento conservador. A maioria de suas obras chegou ao Brasil por meio de traduções ideologicamente deturpadas.

Por que recuperá-la, traduzi-la? Pelo simples fato de que ela tem algo a nos dizer, é importante em si; encontra-se na arca do tesouro que guarda nossas mais caras tradições. Ela diz respeito à nossa educação, à nossa formação, à nossa constituição como seres humanos. Ela contém uma das inúmeras chaves que podem ajudar-nos a compreender o mistério da nossa condição humana. Ela demonstra a possibilidade de se educar com vistas a formar seres humanos livres, responsáveis, solidários ou indivíduos escravos, irresponsáveis, individualistas (VIGOTSKI, 1926). Enfim, ela permite compreender que o caráter de uma pessoa se desenvolve em função da necessidade de viver em um meio histórico e social ou, como sintetiza o autor (2006):

 

O caráter é exatamente o cunho social da personalidade. É o comportamento típico da personalidade que foi petrificado, cristalizado, na luta pela posição social. É o traçado da linha principal, da linha dominante da vida, do plano inconsciente da vida, da direção vital única de todos os atos e funções psicológicas. Em vista disso, torna-se imprescindível para o psicólogo a compreensão não só de cada ato psicológico, mas também do caráter do ser humano como um todo, não apenas na relação com o passado da personalidade, mas com seu futuro. Isso pode ser denominado de direção final do nosso comportamento (p. 282-283).

 

​ No âmbito da formação do caráter, a educação apresenta-se com uma das suas mais importantes funções, ou seja, a perspectiva psicológica do futuro aponta, teoricamente, a possibilidade da educação, pois, na sociedade dos adultos, a criança apresenta-se com incompletude, frágil e inadaptada para a existência social independente. É nessa inadaptação, desconforto e fragilidade que se encontra a raiz do seu processo de desenvolvimento. Conforme diz o próprio Vigotski (2006):

 

A infância é a época de insuficiências e compensações por excelência, ou seja, da conquista de uma posição em relação ao todo social. No processo dessa conquista, o ser humano, um determinado biótipo, transforma-se em ser humano como um sociotipo, um organismo animal se converte em personalidade humana. O domínio social desse processo natural é chamado de educação. A educação seria impossível caso, no próprio processo natural de desenvolvimento e de formação da criança, não estivesse alicerçada a perspectiva do futuro, determinada pelas exigências da existência social (p. 287).

 

​ A brincadeira infantil é tratada por Vigotski como a atividade-guia inaugural no desenvolvimento do autodomínio, no desenvolvimento do comportamento moral e da vontade, como já foi dito. Essa ideia ele a tomou de Gross para quem ela seria uma forma natural de educação capaz de nos levar do velho Adão ao novo Adão. Na brincadeira, especialmente a que envolve interpretação de papéis sociais, a criança desenvolve o poder de dominar seus próprios desejos e, pela imaginação e de modo criativo, engendra a formação de novos desejos.

A brincadeira de interpretação de papéis – também chamada de faz-de-conta – é uma das invenções mais geniais da própria criança. Nela, a criança experimenta o exercício de papéis sociais para os quais ainda não tem a menor competência para executar. Ela os exercita ficcionalmente, ao tempo em que desenvolve também sua imaginação. Ela pode dirigir um carro, um ônibus, uma nave espacial; pode ir à lua, a saturno e, até mesmo, voar até a casa da vovó. Ela ainda desconhece a maior parte das complicadas regras reguladoras das ações sociais, mas pode cumpri-las, inadvertidamente, impensadamente, realizando o que sabe fazer com maestria, isto é, imitando as ações dos adultos. Ao fazer isso, vivencia, verdadeiramente, conflitos engendrados pelas regras de conduta social, regras que, na brincadeira, estão ocultas, desenvolvendo o poder de controle dos próprios desejos e impulsos. A brincadeira de faz-de-conta, atividade inventada pela própria criança, guia o desenvolvimento do autodomínio, do poder de dominar os próprios desejos e impulsos. É a criança mestre de si própria, é a criança ator de seu processo de desenvolvimento. Há que se lembrar ainda que tudo isso acontece em ambiência coletiva, isto é, em situações habitadas por outras crianças, em um meio de intensa convivência social. Assim, a brincadeira de interpretação de papéis possibilita o desenvolvimento do autodomínio, na relação de convivência, por meio do exercício real de domínio dos próprios impulsos e desejos, numa situação ficcional (TUNES, 2017; PRESTES, 2012). E por que é importante o autodomínio? Porque ele é a contenção do eu, o seu recuo, o reconhecimento da primazia do outro. É o recuo necessário que dá lugar aos imperativos éticos. Ele é a possibilidade da nossa humanidade. Eis aí a importância da brincadeira de interpretação de papéis: ela é uma das mais importantes condições inaugurais da formação ética da criança.

Na teoria histórico-cultural de Vigotski, a ideia da primazia do outro na nossa constituição psíquica, na caracterização da gênese social do nosso psiquismo aparece já no enunciado da lei geral do desenvolvimento das funções psíquicas superiores, formulada por ele (1995):

 

(...) toda função psíquica superior surge no processo de desenvolvimento do comportamento duas vezes: primeiramente,como uma função coletiva, como forma de colaboração ou interrelação, como meio de adaptação social, ou seja, como umacategoria interpsicológicae, posteriormente, pela segunda vez, como meio de adaptação pessoal,como um processo interno do comportamento, ou seja, como umacategoria intrapsicológica(VIGOTSKI, 1995, p. 307).

 

​ Constata-se, pois, que sua teoria tem incorporada como um dos seus fundamentos uma ética do inter-humano. A teoria contém uma constelação de conceitos que visam ao entendimento das condições que possibilitam o salto da condição de animal puramente biológico para a condição da existência humana, forjada nas relações de convivência com outros seres, como afirmou o próprio Vigotski. Isso não é pouco e confere a esse sistema teórico um caráter singular, ao que me parece, rarissimamente encontrado – se, de fato, o é - em outros sistemas psicológicos. A ideia de autodomínio ou de domínio das próprias funções psíquicas é o eixo central de todo o sistema. “Desenvolvimento é sempre autodesenvolvimento” para Vigotski, conforme aponta Kravtsov (2014): “Desenvolvimento é forma superior de movimento. Desenvolvimento é meio de existência da personalidade, já que nesse movimento o homem realiza a sua liberdade e a capacidade de aperfeiçoamento (p. 36).”

Ainda segundo Kravtsov (2014), Vigotski escreveu em suasCadernetas de anotação“que o maior problema da ciência psicológica é o da liberdade do homem” (p. 33). Kravtsov também indica que, dificilmente, esse conceito poderia ser o objeto direto do experimento psicológico, afirmando que sem se orientar, contudo, para esse problema de ordem superior, a psicologia corre o risco de não se realizar como ciência do homem. Diz ele: “A ação livre é a ação consciente controlada e submetida à orientação consciente que o sujeito domina. Daí decorre a conhecida tese de Vigotski – ‘tomar consciência significa dominar’” (KRAVTSOV, 2014, p. 33-34).

​ Vigotski viveu na época de gestação do nazifascismo e assistiu ao nascimento do totalitarismo na União Soviética, sentindo-o muito próximo na própria pele. O sistema teórico que construiu estruturou-se sobre âncoras ético-filosóficas e metódicas firmes e sobre ideais libertários. Por alguns escritos seus sabemos que pressentia que algo muito ruim poderia acontecer, o que, para ele, tornava ainda mais urgente a necessidade de formar o Homem Novo. Tinha plena consciência de que uma sociedade composta por homens livres poderia melhor enfrentar a ameaça totalitária que pairava no ar. Pode-se, sem dúvida, dizer que sua teoria era - e, hoje, ainda é - uma forma poderosa de resistir e lutar contra a formação de uma sociedade de zumbis, espectros de homens, autômatos sem vontade própria, sem autodomínio, que, de maneira obediente e sem qualquer discernimento, apenas difundem e banalizam o mal. Quanto há de poder reflexivo em seus princípios! Quanto há de força para resistir em suas ideias! Quanto há de atualidade em suas palavras!

Em 1934, Vigotski escreveu um dos capítulos do livroO fascismo e a Psiconeurologia. Ao final, ele faz uma análise de obras de alguns psicólogos que aderiram ao nazifascismo alemão, defendendo tudo o que era (e ainda é) o mais reacionário possível, como, por exemplo, estudos cujos títulos eramInvestigação da família e da hereditariedadeouEstudo da raça, entre outros. Ele escreveu:

 

Aproximam-se os tempos em que fica cada vez mais evidente, até mesmo para um cego que, enquanto em um sexto da Terra as pessoas lutam pela libertação de toda a humanidade, pelas possibilidades reais de formação de um tipo de personalidade superior, nova e jamais vista na história, enquanto povos humilhados e atrasados estão sendo postos na vanguarda da humanidade, no campo da burguesia, a consciência das pessoas se orienta pelos cacos da Idade Média que está sendo ressuscitada (VIGOTSKI, 1934, p. 28).

 

O mundo conheceu o que foi o Holocausto. Vigotski não chegou a vivenciar os horrores do nazifascismo, pois faleceu em 1934, ano em que escreveu essas sábias palavras, pressentindo, de certa forma, o que iria acontecer. Hoje, os cacos parecem estar, novamente, por toda parte!

 

  

Referencias

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Recebido: 29 de Junho de 2021; Aceito: 31 de Janeiro de 2022

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