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Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.31  Cuiabá ene./dic 2022  Epub 29-Jun-2022

https://doi.org/10.29286/rep.v31ijan/dez.13382 

Artigos

Paulo Freire: contribuições para insurgências e resistências

Paulo Freire: contributions to insurgencies and resistances

1Doutora (2003) e mestre (1999) em Educação: Currículo, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), com pós-doutorado (2007) em Filosofia e História da Educação, pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); bacharel e licenciada em Letras - Português e Inglês (1985), pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Professora Associada do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); professora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIFESP.

2Doutora e Mestre em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com Pós-doutorado em Educação pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa-PT. Licenciada em Pedagogia, foi professora da Educação Básica por 17 anos. É professora associada do Departamento de Didática da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Gestão e Avaliação da Educação Pública - ambos da UFJF, e Professora do PPGEdu - UNIRIO.


Resumo

O artigo apresenta as vivências de duas professoras na gestão de Paulo Freire como secretário municipal de educação de São Paulo, mostrando o papel capital das premissas freirianas nos processos formativos das pesquisadoras. A pesquisa formação busca apresentar, por meio das aludidas vivências, conceitos freirianos basilares em suas práticas profissionais e nos estudos desenvolvidos pelos grupos de pesquisa por elas liderados. Conclui que ações educacionais (re)fundamentadas sob o prisma freiriano situam-se como importantes instâncias de insurgências e resistências à perspectiva instrumental, na luta por uma educação emancipadora e solidária, tornando o inédito viável uma utopia possível.

Palavras-chave Educação Freiriana; Formação de Professores; Experiência

Abstract

This paper presents the experiences of two teachers during Paulo Freire as a municipal secretary of education in São Paulo, showing Freirean premises in the training processes of the researchers. The formation research presents, through those experiences, considerations about Freirean concepts in their professional practices and in the studies developed by the research groups they lead. It concludes that educational actions (re)founded under the Freirean prism are important instances of insurgencies and resistance to the instrumental perspective, in the struggle for an emancipatory and solidary education, making the viable unprecedented a possible utopia.

Keywords Freirean Education; Teacher Training; Experience

Introdução

No presente artigo trazemos uma pesquisa formação (JOSSÔ, 2004) oriunda das vivências de ambas as autoras, na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME-SP), em distintas funções, nas escolas municipais, ao longo da gestão de Paulo Freire à frente da aludida secretaria de educação. A gestão freiriana iniciou-se em 1989 com Paulo Freire e Mário Sérgio Cortella deu continuidade a ela até 1992. Cumpre lembrar que a gestão de Paulo Freire aconteceu no período de redemocratização do nosso país, que em 1984 venceu o golpe de 1964 e promulgou a Constituição de 1988. Relatamos nossas vivências como professoras de ensino fundamental I (segunda autora) e II (primeira autora). Em ambos os casos, nossa experiência como profissionais integrantes do quadro do magistério da SME-SP foi absolutamente marcante e se reverbera no exercício da nossa trajetória profissional, no campo da pesquisa em educação e da docência no ensino superior, em universidades públicas federais. Cada um dos relatos explicita tanto as experiências pessoais e profissionais de cada uma das autoras, quanto aspectos importantes e inovadores de uma gestão democrática e formativa. Optamos, portanto, por trazer dois relatos de um mesmo período, em que as políticas públicas e o projeto de gestão da SME-SP convergem. Algumas narrativas se aproximam e outras se distinguem, em respeito à singularidade das nossas vivências. Vamos a elas.

Como tudo começou: vivências freirianas

Nosso contato inicial com a prática freiriana se deu nos anos de ingresso, respectivamente, em 1990, como professora de Português (primeira autora) e em 1992, como professora de Ensino Fundamental I (segunda autora) da SME-SP. Ambas ingressamos nesta rede de educação à época da então prefeita Luiza Erundina, tendo Paulo Freire à frente da pasta da Educação. Foram muitas as contribuições de Paulo Freire para o fortalecimento de uma rede de educação de qualidade social (CONAE, 2022). Dentre elas, chamamos atenção para algumas que, imbricadas, assumiram um papel nuclear na política educacional freiriana, no município de São Paulo, entre 1989 e 1992.

A primeira contribuição articula-se ao fortalecimento da gestão democrática (SANTOS, SALES, 2012). Em respeito à gestão escolar, a política educacional primou pela reativação dos conselhos escolares, de modo a garantir participação efetiva dos estudantes e suas famílias e mobilizou os/as professores/as a participar da gestão e, por conseguinte, a construir a autonomia na escola (SANTOS, SALES, 2012). No tocante à gestão de sistema de ensino, essa gestão democrática e participativa consubstanciava-se como elemento inerente à organização dos órgãos centrais (Coordenadoria dos Núcleos de Ação Educativa - CONAE, em substituição à Diretoria de Orientação Técnica - DOT) e regionais (Núcleos de Ação Educativa - NAE, em substituição às Diretorias de Ensino). Bakhtin (2003) há muito nos ensina que a linguagem é eivada de questões ideológicas. Não à toa a gestão freiriana optou por alterar a nomenclatura desses órgãos.

A segunda contribuição da proposta educacional freiriana para a educação de qualidade social (CONAE, 2022) vinculava-se à superação da precarização do trabalho docente (SAMPAIO, MARIN, 2004). Até então era histórica a assimetria entre as escolas centrais e as periféricas. As primeiras tendiam a contar com um corpo docente estável, muitos deles lotados nas escolas há anos e, por essa razão, com fortes vínculos com a comunidade escolar. As escolas periféricas tendiam a contar com um corpo docente mais volátil, formado em grande parte por professores admitidos em caráter temporário, que a cada ano tinham que assumir aulas em escolas distintas e, em um mesmo ano letivo, percorriam duas ou três escolas para integrar sua jornada de trabalho. A condição precarizada (SAMPAIO, MARIN, 2004) de trabalho dos professores temporários não lhes oferecia a oportunidade de criar fortes vínculos com a comunidade escolar. Com vistas a tal superação, SME-SP implantou remunerações diferenciadas, de acordo com a localização da escola e com a jornada de trabalho adotada pelo/a professor/a, para reverter a assimetria entre as escolas centrais e periféricas e entre os turnos de trabalho docente (diurno e noturno).

A terceira contribuição diz respeito à implantação de uma política de formação continuada de professores/as em serviço (NÓVOA, 1995), em atenção aos desafios que se lhes apresentam no cotidiano de cada escola. Nessa perspectiva, os/as professores/as passaram a receber por uma jornada de trabalho, que integra aulas e horas atividade de trabalho coletivo na escola, proporcionais ao número de aulas ministradas. Como secretário da educação, Freire e seu grupo deram início a uma reforma curricular, que pretendia consolidar a SME-SP como uma rede voltada ao enfrentamento da “educação bancária” (FREIRE, 1981) e à implementação de ações educacionais engajadas com o empoderamento e a emancipação dos sujeitos sociais em formação, em uma perspectiva autoral e solidária. Segundo Franco, logo no início de sua gestão,

Paulo Freire passou a discutir, com sua equipe de trabalho e com as universidades, a proposta da política de educação que pretendia implementar na cidade. Para tanto, percorreu escolas em todo o município, falou com vários funcionários, professores, gestores, agentes escolares, supervisores escolares, assim como com estudantes e familiares. (FRANCO, 2014, p. 107)

O patrono da educação brasileira resolveu, então, investir na viabilização de uma escola pública que fosse popular e democrática. E assim o fez, e mostrou que é possível ser um secretário que não se tranca em gabinete, mas que habita as escolas. Por meio de cartas de intenções, muito diálogo e "mão na massa", ele e sua equipe materializaram as mudanças, em textos e em atos:

A escola como um espaço de ensino-aprendizagem será então um centro de debates de ideias, soluções, reflexões, onde a organização popular vai sistematizando sua própria experiência. O filho do trabalhador deve encontrar nessa escola os meios de auto-emancipação intelectual independentemente dos valores da classe dominante. (FREIRE, 1991, p. 16).

A reforma curricular ergueu-se em meio à seguinte tríade: Currículo, Avaliação e Interdisciplinaridade, pretendendo superar a histórica ruptura entre ensino fundamental I e II, que data da época em que as crianças oriundas do antigo primário se submetiam a um processo seletivo, no antigo exame de admissão ao ginásio. Com a LDBEN 5692/1971, essa cisão seria supostamente arrefecida, com o fim do primário e ginásio e com o início do ensino fundamental I e II, mas na prática muito pouco foi alterado.

A literatura do campo há muito aponta que diversas crianças apresentam dificuldade em continuar na escola, em função da mudança drástica do modus operandi entre o Ensino Fundamental I e II. No ensino fundamental I há uma figura central no âmbito da docência (a regente da turma), que trabalha diversos conteúdos curriculares (é polivalente) e naturalmente já vai fazendo uma ponte entre suas aulas que exploram os diversos conceitos, além de ampliar os tempos de aprendizagem, de modo a proporcionar às crianças a vivência do tempo pessoal e subjetivo. No ensino fundamental II, a criança precisa lidar com muitos docentes, cada qual com sua liberdade de cátedra e premido/a pelo rigor do tempo cronológico de 45 ou 50 minutos por aula, ficando a cargo do/a estudante estabelecer as relações entre os diversos campos do conhecimento.

Atenta a tal problemática há muito apontada pelos estudos do campo (SÁ BARRETO, MITRULIS, 2001), a gestão freiriana propôs a retomada do ensino fundamental em ciclos. Desta vez, três ciclos, a saber: ciclo I (do primeiro ao terceiro ano), ciclo II (do quarto ao sexto ano), ciclo III (sétimo e oitavo ano). Para tal, os docentes realizavam cursos de formação continuada na escola, na Jornada de Trabalho Integral (JTI), tendo, assim, a possibilidade de conversar com seus pares sobre a almejada integração. Pela primeira vez, docentes do ensino fundamental I e II trabalhavam conjuntamente, ao longo de todo o ano letivo, tanto na escola quanto regionalmente (nos NAE - Núcleo de Ação Educativa). Para que os ciclos funcionassem a contento, a avaliação proposta era a formativa (LUCKESI, 1984). Assim sendo, a criança ia de um ano para outro munida de um prontuário individual, em que o docente relatava por escrito e em detalhes ao seu companheiro de trabalho do ano vindouro os avanços e as dificuldades da criança. A maioria das mudanças desenvolvidas nesta gestão se fundamenta nos princípios e pressupostos da educação freiriana, como ficará claro ao longo do texto. A ousadia da gestão, somada ao compromisso com uma educação pública democrática e de qualidade socialmente referenciada (CONAE, 2022) fez com que Freire e sua secretaria criassem três jornadas de trabalho: Jornada Básica (JB), em que os docentes dedicavam 18 horas de trabalho semanal; Jornada de Tempo Parcial (JTP), posteriormente alterada para JEA (Jornada Especial Ampliada), abrangendo 20 e depois 25 horas semanais; Jornada de Tempo Integral (JTI), posteriormente assumida como JEI (Jornada Especial Integral), correspondendo a 30 horas semanais, “das quais 2/3 com atividades docentes e 1/3 com atividades extraclasse”, segundo artigo 54 da Lei 11.229/92 (SÃO PAULO, 1992). Tais jornadas alteravam os proventos dos professores, de acordo com o número de horas aula da jornada de sua opção. Cada docente poderia optar pela jornada de trabalho que mais lhe interessasse. Como a JTI/JEI tinha uma remuneração consideravelmente elevada e permitia o acúmulo com outras escolas (públicas ou privadas), boa parte dos docentes optou por esta jornada de trabalho e passou a participar dos processos (trans)formativos propostos pela gestão de Paulo Freire. Vale lembrar que a SME estava, antes de Freire e da Prefeita Luiza Erundina (PT), sob a austera gestão do então prefeito Jânio Quadros, cujas perspectivas voltadas à educação seguiam linhas muito diferentes desta.

Tais propostas fomentaram intenso investimento nos processos de formação continuada docente, por meio do que foi denominado como Grupos de Formação. Essa prática tinha suas bases no que Freire (1991) chamou de 'círculos de cultura', que compreendem os ambientes formativos como espaços de subjetivação. Os participantes destas ambiências são construtores da cultura e, portanto, por sua atuação e implicância, podendo transformá-la. Esta concepção também integra as críticas freirianas às aulas conservadoras que ele chamava de educação bancária (1981), cuja ênfase se dá em especial na forma e no conteúdo.

Os Grupos de Formação ocorriam semanalmente em cada uma das escolas municipais e eram assumidos pelos coordenadores pedagógicos. O processo era integrado: SME, universidades e escolas. De forma sintética, o processo formativo se dava do seguinte modo: as equipes da secretaria municipal de educação, em parceria com as Universidades (USP, PUC-SP e UNICAMP), formavam os coordenadores pedagógicos das escolas, por meio de encontros semanais ou quinzenais com as equipes de SME que, por sua vez, também se formavam com as universidades em tela. Nas escolas, os coordenadores pedagógicos desenvolviam a formação continuada em contexto com seus grupos de professores/as. Os/as professores da JTI/JEI eram convocados a participar, conjuntamente (ensino fundamental I e II), uma vez por semana, desse processo formativo, pois tal processo era parte integrante desta jornada de trabalho. Os demais, em regime de JTP/JEA e JB, eram convidados a participar. Além da formação na escola, os professores do ciclo II (docentes do último ano do ensino fundamental I e dos dois primeiros anos do fundamental II) também tinham cursos de formação em âmbito regional, com apoio da equipe pedagógica do NAE de sua lotação. Como professoras da rede, tivemos o privilégio de participar deste tipo de formação continuada, em contexto (PINTO, 2016), sendo que uma de nós - considerando a atuação como professora e como coordenadora pedagógica - experienciou ambas as instâncias complementares de formação. O diálogo com os pares da escola possibilitava uma formação em contexto (PINTO, 2016), atenta às singularidades dos estudantes e da comunidade escolar atendida pela escola. De acordo com Pinto, a formação em contexto é:

[...] promovida na e pela própria escola. Trata-se de ações específicas, tomadas a partir das necessidades e das demandas identificadas no cotidiano de cada escola. Esta modalidade de formação docente exige uma estabilidade da equipe diretiva e do corpo docente para que ocorra efetivamente um enraizamento dos processos formativos no âmbito do PPP das escolas. (PINTO, 2016, p. 30-31).

Este processo formativo era assumido pelas coordenações pedagógicas de cada escola que, por sua vez, eram formadas no NAE e, portanto, permitiam um excedente de visão (BAKHTIN, 2003), no diálogo com companheiros que atuavam em outras escolas e que, portanto, traziam reflexões emanadas de outras circunstâncias. Para que tudo isso fosse possível, foi proposto às escolas elaborar seus projetos políticos pedagógicos (PPP) a partir do conceito de interdisciplinaridade (FAZENDA, 2011), para que os estudantes pudessem atribuir sentido e significado aos conteúdos de ensino, percebendo as relações entre as diversas áreas do conhecimento, por meio da vivência de projetos pedagógicos interdisciplinares. Nesse contexto, uma das instâncias que colaboravam para a sistematização dos projetos interdisciplinares de algumas poucas escolas era a utilização do, então, laboratório de informática educativa, que se erguia em meio à perspectiva teórica construcionista do matemático e pesquisador do MIT (USA) Seymour Papert, tendo na figura do Professor Orientador de Informática Educativa (POIE, hoje POED – Professor Orientador de Educação Digital) o professor mobilizador dos projetos que faziam uso deste laboratório. Tais escolas não representavam a rede como um todo, pois àquela época havia poucas delas com laboratório de informática educativa, já que o projeto se encontrava na fase piloto. Todavia, a proposta de integração das tecnologias digitais à prática docente sob o viés construcionista de Papert (com quem Freire estabeleceu profícuo diálogo, sobretudo à época desse projeto piloto) marcou profundamente nossa percepção da potência desses artefatos culturais para processos educacionais freirianos, em insurgência à utilização desses mesmos artefatos culturais em conformidade com a educação bancária (FREIRE, 1981).

Importante reiterar que Freire e seus colaboradores também pretenderam superar a dicotomia entre as escolas centrais e as periféricas, em que as primeiras eram normalmente compostas por equipe gestora e corpo docente titulares, lotadas há muito na escola e, por essa razão, com fortes vínculos com a comunidade escolar. A seu turno, as periféricas costumavam contar com equipe gestora e corpo docente substitutos e/ou admitidos em caráter temporário, promovendo, então, alta rotatividade e dificultando a continuidade de projetos pedagógicos e de propostas de docência e de formação. Dito de outro modo: os admitidos neste contrato de precarização do trabalho docente (SAMPAIO, MARIN, 2004) tinham que percorrer várias escolas para cumprir sua jornada de trabalho e a cada ano tinham que assumir aulas em escolas diferentes. Esta volatilidade os impedia de participar dos cursos de formação continuada nas escolas e fragilizava o estabelecimento de vínculo com a comunidade escolar. Diante desse cenário e com o propósito de reverter essa assimetria, a gestão de Freire propôs que os professores das escolas semiperiféricas recebessem um abono salarial de 30% e os das escolas periféricas, de 50%, a partir do seu salário. Esta política fez com que as escolas periféricas recebessem mais docentes com estabilidade e aumentassem os vínculos com a comunidade, dada a permanência na escola. O abono de 30% ou 50% somado à jornada JTI/JEI oferecia aos docentes que atuavam nas escolas periféricas da cidade remuneração muito acima do mercado, além de excelentes condições de trabalho. Tais mudanças, bastante radicais e transgressoras para a época e, diríamos, para a atual conjuntura, transformaram o contexto das escolas paulistanas, trazendo desdobramentos positivos (ABE, CHIEFFIM, 2021) na qualidade da educação e da formação dos/as docentes e das equipes gestoras da SME-SP.

Nossas trajetórias no magistério da SME-SP, à época da gestão de Paulo Freire, foram primordiais para acolhermos as premissas freirianas como basilares em nossa prática profissional, como pesquisadoras no campo da educação e professoras em universidades públicas federais, bem como nos estudos desenvolvidos pelos grupos de pesquisa sob nossa liderança.

Vivência freiriana de uma professora do ensino fundamental I – SME-SP

Difícil precisar o momento que demarca o processo de transformação docente, em que momento se inicia. Mas, se tiver que escolher um período cujas ocorrências foram decisivas na constituição da docência, a segunda autora do presente artigo elege a vivência em que teve o privilégio de integrar, os Grupos de Formação, como professora dos anos iniciais do ensino fundamental I da SME-SP. Eram os primeiros anos da década de 1990 e a segunda autora deste artigo, com vinte e cinco anos, acabara de ingressar, via concurso público efetivo, como professora de uma escola municipal de ensino fundamental (EMEF), na periferia da cidade de São Paulo. Estava muito feliz e cheia de sonhos. A escola, situada no bairro do Grajaú, periferia da Zona Sul de São Paulo, localizava-se numa travessa após a décima quarta lombada da rua principal (foi assim que a secretária me explicou ao telefone). Possuía uma equipe gestora muito comprometida com a comunidade. Mal sabia ela que aquele seria um dos melhores e mais importantes anos do resto da sua vida, como docente. Todos/as nós, professores/as da "rede", sabíamos que a SME-SP tinha Paulo Freire, o famoso educador, à frente da secretaria de educação e que muita mudança havia ocorrido nesta gestão. Mesmo com a saída de Freire em maio de 1991, com a cadeira de secretário assumida pelo professor Mário Sérgio Cortella, a maioria da equipe permaneceu e o projeto teve continuidade. Dentre os quatro eixos, implantados durante aquela gestão, que tinha Luiza Erundina, do Partido dos Trabalhadores (PT) como prefeita, destacamos um que está diretamente ligado ao presente relato: eixo 3. Qualidade da Educação – construir coletivamente um currículo interdisciplinar e investir na formação permanente do pessoal docente (FRANCO, 2014). Apesar da segunda autora do texto já atuar como professora desde os dezoito anos, passando pela educação infantil e pelo ensino fundamental, aquela era sua primeira experiência como docente na educação pública - espaço que a acolheu ao longo da maior parte da sua vida escolar - e estava diante de um dos mais potentes projetos de formação docente que viria experienciar.

A gestão de Paulo Freire havia transformado as docências por meio de um projeto ousado e excepcionalmente insurgente, pois ele e sua secretaria cocriaram mudanças que incidiram positivamente sobre a melhoria da qualidade da educação como um todo e, fortemente, na carreira docente, ponto de reflexão do presente relato. Ao ingressar no serviço público, neste contexto e cenário, a segunda autora teve diversos pontos de impacto.

Primeiro: como professora de uma escola localizada muito distante do centro da cidade, teve um acréscimo de 50% em seus provimentos - como explicitado anteriormente na apresentação das políticas desta gestão - pois havia incentivo e valorização do/a docente para atuar na periferia da cidade, em locais de difícil acesso e, portanto, até então pouco escolhidos pela maioria dos/as professores/as. Com isso, o salário destes profissionais, que já estava significativamente valorizado pela gestão de Paulo Freire, ganhava, merecidamente, mais esse reconhecimento. Segundo: a jornada de trabalho docente também teve impacto significativo no seu processo de formação, uma vez que optou pela JTI (Jornada de Tempo Integral), também conhecida por JEI (Jornada Especial Integral). Lembramos que nesta jornada garantia-se a formação permanente, por meio de projetos e formação continuada obrigatória nos Grupo de Formação. Terceiro: formação continuada para equipes de gestão das escolas e para professores. De acordo com Franco,

A formação permanente era realizada nos “grupos de formação”, organizados pelas equipes dos NAES, formadas pelas equipes da Diretoria de Orientação Técnica (DOT) e da Universidade, junto com os professores, quando ocorria a reflexão sobre a prática, em palestras, cursos, congressos e atividades culturais. (FRANCO, 2014, p. 114).

Como já dito, todo esse processo se constituiu nas escolas, por meio das JTI/JEI, no que ficou conhecido por Grupo de Formação. Estes grupos ocorriam em encontros semanais, de aproximadamente duas horas-aula de duração, em que a coordenação pedagógica assumia, junto com os docentes, os processos de formação continuada de professores. Hoje compreendemos tais ambiências formativas como embriões das escolas formadoras. Segundo Freire (1979, p. 15), a “[...] conscientização não pode existir fora da 'práxis', ou melhor, sem o ato ação – reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens.”

É muito importante pontuar a coerência entre o desenho e a prática desenvolvidos por esta secretaria com os preceitos freirianos. Mais uma vez, nosso patrono da educação brasileira e então secretário da educação da maior cidade brasileira mostrou que é possível mudar o contexto, que somos produtores de cultura e que a utopia, que para ele é realizável, assume-se como o que ele chamou de inédito viável (2015a). Esta ideia aparece pela primeira vez na obra Pedagogia da Autonomia (FREIRE, 2015a) e tem sido recuperada por sua segunda esposa, a Profa. Ana Maria Freire (2015, p. 278). O inédito-viável implica a coragem de, diante do que parece impossível, antever a possibilidade de criação do novo. Considerando o cenário da época (1989-1992), em que a superação de situações-limites provoca atos-limites, o feito desta gestão foi a prática do inédito viável e tivemos o privilégio de vivenciar/experienciar esse processo.

[...] o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que antes foi novo e se fez velho e se “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se ensina e se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente. A “dodiscência” – docência-discência – e a pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas requeridas por esses momentos do ciclo gnosiológico. (FREIRE, 2015, p. 30).

Essa dodiscência, que integra professores/as, estudantes, conhecimento/pesquisa como impossíveis de fragmentação/cisão, traz para os dias de hoje o que temos questionado e tensionado sobre o desequilíbrio dos protagonismos / protagonistas, que ora estão com o/a docente, ora com o/a discente. Esse processo foi denominado de mediação partilhada por Bruno:

A mediação partilhada traz a possibilidade de materialização da parceria entre professor e estudantes. Sem perder de vista a especificidade do papel que cada um desses atores exerce no processo de aprendizagem, esse tipo de mediação abre espaço para que a produção do conhecimento seja coconstruída; para que o processo de mediação possa ser assumido por um parceiro (estudante) que tenha condições para fazê-lo em uma situação específica. (BRUNO, 2021, p. 127).

Este conceito se coaduna com o de inédito viável e com a experiência por meio da qual formamo-nos nesse período. No Grupo de Formação, a segunda autora do artigo viveu experiências e aprendizagens com uma coordenadora a quem afirma dever boa parte do que hoje sabe/é: Izabel Brioche. Uma mulher/educadora maravilhosa, que a despertou para a prática da amorosidade freiriana na formação docente em serviço. Brioche a ensinou que formar professores é formar os seres humanos e se ajudamos a formar um ser humano melhor ele/ela se tornará um pai, uma mãe, um filho, uma filha, um namorado/a, um amigo, uma amiga, um professor, uma professora, uma pessoa melhor. Para Brioche, este processo não pode se limitar a estudos de textos didático-pedagógicos. Os grupos de formação eram semanalmente aguardados, quase como um processo terapêutico. Em 2021, a segunda autora entrevistou Izabel Brioche, no formato online, e alguns excertos serão partilhados aqui. Para Brioche, a formação de coordenadores de que ela participava era realizada semanal ou quinzenalmente nos NAE, em grupos. O grupo ao qual ela se vinculava era coordenado por uma educadora chamada Malu - que pertencia ao Departamento de Formação da Secretaria de Educação. De acordo com Brioche, “Uma coordenadora chamada Malu que tinha essa questão de formar o ser humano para além do professor. Era ela quem trabalhava esse lado formativo, dessa forma”. Brioche explica que, apesar de todos/as os/as formadores/as receberem orientação/formação das universidades, cada um/a tinha seu estilo, valorizava mais um determinado aspecto formativo.

Um dos formatos utilizados nas formações foi o “grupo de formação”, que bebia um pouco dos círculos de cultura. Os professores falavam das suas práticas e a partir desse olhar elegiam-se temas para estudar, que depois voltávamos para a prática. Tinha todo um ritual, com lanche, que criava um momento de acolhimento para estabelecer vínculos e dar coragem para os educadores externarem os seus dilemas pedagógicos. A metodologia foi muito reconhecida pela rede. (CHIEFFI, 2021, s/p).

Além disso, cada coordenador também tinha o seu jeito de trabalhar com os Grupos de Formação nas escolas, considerando também contextos tão diversos. Todo esse processo imprimia uma singularidade aos grupos e às formações. Os Grupos de Formação com Brioche lidavam, de modo especial, com aspectos afetivo-emocionais, junto aos cognitivos. Ela, que tinha formação também em psicanálise e naturopatia holística, desenvolveu um trabalho muito integrado: corpo, mente, afetos e cognição. A cada encontro os docentes eram supreendidos/as por convites para dançar, cantar, criar/declamar poesias, para rodas de conversas sobre temas pedagógicos e pessoais. Liam textos didático-pedagógicos, mas em todos os encontros eram desafiadas/os a trabalhar seus afetos, as relações com pares, consigo, com os estudantes. Como Brioche disse na entrevista: "a gente ia mais alegre pras formações [...] e é diferente quando a coordenadora sabe o que se passa com seus professores".

O trabalho era tão importante e prazeroso, que as mudanças em cada um/a era perceptível para o grupo que vivenciava experiências transformadoras. Todos/as eram vistas/os em suas subjetividades, não somente professores/as. Afora tais aspectos formativos, a coordenadora também cita que a valorização salarial nesta gestão fez toda a diferença: "nunca tínhamos sido tão valorizados e isso incluía também os agentes escolares, secretários escolares, ou seja, toda equipe, todos/as os/as profissionais da educação". Sem dúvida, uma gestão como essa, que valoriza de fato a educação em sua complexidade e junto a todos os profissionais, coloca em prática o que é educação democrática, de qualidade e formativa. Após a aposentadoria de Izabel Brioche, muitos dos docentes deram continuidade ao grupo de formação na residência da coordenadora, uma vez por semana e, assim, complementavam a formação que ocorria na escola. Segundo seu relato, até hoje este grupo existe com o nome de MECONSIN (Melhora Constante e Incessante). Ao término da gestão de Freire, as propostas foram cessando, a desvalorização dos profissionais da educação foi sendo retomada, mas muitos de nós, docentes, continuamos em luta com a força da formação que tivemos e que Freire nos mostrou ser possível na prática: formação continuada em contexto (PINTO, 2016) ou apenas: grupos de formação.

Tais ensinamentos/experiências foram marcantes e ficaram evidentes nas muitas vivências e práticas, como docente e pesquisadora. A partir de 1995, a segunda autora deste artigo passou a atuar como formadora de professores para o uso pedagógico dos computadores na SME e, a partir dessas experiências desenvolveu, no mestrado, a pesquisa que gerou o conceito de Linguagem emocional (BRUNO, 2021): entrelaçamento entre emoção e razão como um meio, um processo intencional de trabalhar com as emoções, integradas às linguagens (conversação), para a promoção de encontros e de aprendizagens. A segunda autora narra uma dessas vivências, em que colocou a mão em cima da mão de um colega professor para que ele se sentisse seguro ao mexer no mouse (sim, tínhamos e usávamos mouse naquela época). Tal ato abriu um campo operacional que permitiu à formadora afetar esse colega. Quando foi trabalhar e pesquisar a educação a distância, em 2000, estas experiências de afeto, junto com as memórias das cartas e bilhetes de sua infância e juventude, ressignificaram a compreensão do que hoje se entende por cultura digital (BRUNO, COUTO, 2019): construção de múltiplas possibilidades de relação com o outro, com o conhecimento, com o mundo, com a mediação de artefatos e dispositivos digitais e em rede. Tais ideias, presentes também em Freire, são atemporais, nos atravessam e nos constituem quando as integramos à nossa vida, à nossa existência e à nossa docência.

Freire já nos alertava para isso: "Tenho a impressão de que o melhor que posso dizer, no começo da minha reflexão em torno desse problema, é: uma das coisas mais lastimáveis para um ser humano é ele não pertencer a seu tempo. É se sentir, assim, um exilado de seu tempo". (FREIRE, 1984, p. 14). E é desse modo que nos constituímos como docentes e pesquisadoras, hoje atuando na universidade pública. Reafirmamos a importância de que as políticas públicas se voltem à valorização da educação e dos educadores. Só assim conseguiremos mudar nosso país e as experiências que trazemos neste texto mostram caminhos e possibilidades.

Vivência freiriana, como professora de Português no ensino fundamental II – SME-SP

Em fevereiro de 1990, a primeira autora deste artigo foi chamada a assumir o cargo de professora titular de Português no ensino fundamental II, em uma escola da SME-SP sediada em uma região periférica da zona oeste da cidade. O primeiro impacto da visão educacional freiriana já se deu logo no início, pois, ao assumir o cargo em uma escola da região periférica da cidade de São Paulo, soube que sua remuneração teria um acréscimo de 50%, conforme anunciado no início do artigo, em alusão às políticas da gestão de Paulo Freire, à frente da pasta da rede pública de educação no município de São Paulo.

A política educacional implantada na gestão de Paulo Freire previa que, para além dos programas e cursos de formação em serviço realizados nos órgãos centrais ou regionais, os professores tivessem a garantia de seu processo formativo sob a tutela dos/as coordenadores/as pedagógicos/as da(s) escola(s) onde atuavam, considerando a importância da formação em contexto (PINTO, 2016), já que professores e coordenadores estão imersos no cotidiano de uma dada escola. Portanto, os aspectos conceituais trabalhados na formação docente seriam tematizados, com vistas à problematização dos desafios que se lhes apresentavam, no cotidiano da escola onde trabalhavam. Como podemos observar, os princípios da interação dialógica (FREIRE, 2013) - investigação temática (levantamento das questões mais candentes da escola), tematização do conhecimento articulada à realidade vivida, problematização do conhecimento - foram fundantes na proposta de formação docente erguida em meio à práxis. A proposta de reorganização curricular foi pensada com base na gestão democrática, em que todos os atores da comunidade escolar são chamados a elaborar o projeto político pedagógico (PPP) da escola, com base nos desafios e nas potências da escola e seu entorno. Dentre outros elementos, o PPP erguia-se em meio a uma tríade conceitual.

A primeira vertente da tríade referia-se à implantação da avaliação formativa (LUCKESI, 2005; HOFFMANN, 2004), que considerava, entre outras coisas, um tempo ampliado para avaliar o estudante, para além de um ano letivo, com a proposta de ciclos já relatada. A aposta era trazer os professores dos diversos campos do conhecimento que atuassem junto a estudantes do quinto ano, em programas de formação conjunta com professores do quarto ano, para mitigar este histórico hiato educacional. Esse processo formativo realizava-se em nível local, nas escolas, capitaneado pelos/as CP e regional, nos NAE. Foi muito marcante a formação realizada no NAE 4, junto a professores de inglês e português do ensino fundamental II e a professores que ministravam aulas na quarta série do ensino fundamental I. Tudo girava em torno dos processos de alfabetização e letramento e a primeira autora deste artigo aprendeu sobremaneira com seus/suas colegas de ambos os ciclos de aprendizagem. Como já dito, os processos formativos se desdobravam nas escolas, pois continuávamos a discussão com nossos/as colegas, tendo como centralidade as circunstâncias da escola onde trabalhávamos.

A segunda vertente da tríade que amparou a proposta de reorganização curricular freiriana foi o investimento na autonomia das escolas para construir seu projeto político-pedagógico (PPP), em atenção às circunstâncias da escola, suas dificuldades, seus desafios e as potências da comunidade que a entorna para propor formas de superação. A autonomia da escola era uma condição inédita e amparada na proposta de empoderamento (FREIRE, SHOR, 1986) da comunidade escolar, para conduzir o processo educacional em uma perspectiva autoral. Nesse movimento empoderador freiriano, calcado na dimensão coletiva (e não individual), a equipe gestora recebia cursos de formação continuada sobre gestão democrática, para construir o PPP na escola, em bases democráticas e participativas, mediante escuta de todos os atores sociais que fazem parte da escola: professores, gestores, funcionários, estudantes e comunidade. O acento nas ações coletivas com vistas ao empoderamento de um dado grupo social - no caso, a comunidade escolar - é pedra basilar na proposta freiriana de empoderamento (FREIRE, SHOR, 1986). O conceito freireano de empoderamento ergue-se em meio à construção da autonomia dos grupos sociais. Freire percebia a potência do empoderamento, na sua dimensão coletiva, na medida em que, desse modo, poderia se constituir como frente de luta e, por conseguinte, como instância capital à promoção das transformações sociais, mediante ações organizadas de insurgências e resistências. É o que podemos perceber no excerto a seguir, retirado da entrevista de Paulo Freire a Ira Shor:

Mesmo quando você se sente, individualmente, mais livre, se esse sentimento não é um sentimento social, se você não é capaz de usar sua liberdade recente para ajudar os outros a se libertarem através da transformação da sociedade, então você só está exercitando uma atitude individualista no sentido do empowerment ou da liberdade. (FREIRE, SHOR, 1986, p. 135).

A primeira autora recorda dos dossiês elaborados pelos/as estudantes (cada qual com cerca de quatro páginas). Estes dossiês eram ainda mais detalhados, quando se tratava dos estudantes que vinham da quarta série (atual 5o ano), para que a ruptura entre ensino fundamental I e II fosse atenuada, como já dito. Os dossiês discentes eram objeto de discussão entre os/as professores/as do ano em vigor e os/as professores/as que viessem a assumir o estudante no ano seguinte. Essa discussão colegiada era possível graças à nova jornada de trabalho (como já mencionado), que previa não só a remuneração das aulas, mas também deste trabalho coletivo, tão fulcral na proposta educacional freiriana. Todos/as foram impactados/as por este processo de discussão e decisão colegiada sobre os rumos da escola, em meio aos desafios que se lhes apresentavam. Um legado que a primeira autora até hoje carrega consigo, como professora e pesquisadora no campo da educação, em uma universidade pública federal.

O campo da Educação de Jovens e Adultos - EJA, tão caro a Paulo Freire, também foi um dos sustentáculos da proposta educacional freiriana na SME-SP, entre 1989 e 1992. Além de abrir as escolas à noite para receber este alunado, como bem lembra Chieffi (2021), SME-SP criou o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), afeito à educação não formal ofertada pela sociedade civil, em igrejas, associações de bairro etc., como pontuado por Chieffi (2021). Desta época, a primeira autora do artigo guarda a experiência marcante, como assistente de direção de uma escola municipal, de apoiar e acompanhar as ações educacionais no campo da EJA desenvolvidas em uma igreja da zona sul de São Paulo. A vivência compartilhada junto a professores e estudantes da EJA atuantes no MOVA foram tão marcantes que desde 2012, como professora de uma universidade pública federal no estado de São Paulo, ela tem assumido a preceptoria dos residentes em EJA, nas escolas-campo vinculadas ao Programa de Residência Pedagógica do curso de Pedagogia da universidade, implantado a partir do convênio de cooperação técnica entre a universidade e a secretaria municipal de educação da cidade que abriga o campus universitário onde funciona o curso de Pedagogia. Além de assumir a preceptoria dos residentes, na modalidade EJA, ela está no segundo mandato da coordenação da Residência Pedagógica em EJA e as premissas educacionais freirianas são basilares nos processos formativos dos residentes. Estes foram os anos dourados da SME-SP, pois a gestão de Paulo Freire de fato instaurou na pasta de educação paulistana o conceito de “inédito viável” - citado anteriormente -, como ensinam Freire (2015b) e Boff (2014):

A concretização do ‘inédito viável’, que demanda a superação da situação obstaculizante – condição concreta em que estamos independentemente de nossa consciência – só se verifica, porém, através da práxis. Isso significa, enfatizemos, que os seres humanos não sobrepassam a situação concreta, a condição na qual estão, por meio de sua consciência apenas ou de suas intenções, por boas que sejam [...] Mas, por outro lado, a práxis não é a ação cega, desprovida de intenção ou de finalidade. É ação e reflexão. (FREIRE, 2015b, p. 221-222).

Paulo Freire mostra a história e a existência humana como feixe de possibilidades e virtualidades que podem, pela prática histórica, ser levadas à concretização. Daqui nasce a esperança histórica, aquilo que ele chama de ‘inédito viável’, vale dizer, aquilo que ainda não foi ensaiado e é inédito, mas que pode, pela ação articulada dos sujeitos históricos, vir a ser ridente realidade. (BOFF, 2014, p. 113).

Passadas três décadas, as premissas educacionais freirianas a têm acompanhado, nas pesquisas por ela desenvolvidas e no quadro teórico de referência do grupo de pesquisa sob sua liderança, que integra docentes e estudantes de graduação (iniciação científica) e de pós-graduação em educação (mestrado, doutorado e pós-doutorado) sob sua orientação. No tocante à extensão, ela concebeu e ofertou, em colaboração com doutorandos sob sua orientação, o curso de extensão universitária “Paulo Freire, interação dialógica e empoderamento”. O curso foi ofertado em abril e maio de 2021 e está vinculado ao Projeto Forma, da UAB da universidade pública federal onde atua. As premissas educacionais freirianas também se fazem presentes na docência por ela desenvolvida na graduação - licenciatura em Pedagogia - sobretudo nas discussões realizadas na disciplina eletiva “Paulo Freire, inclusão digital e empoderamento: questões para a educação básica”. Como podemos observar, Paulo Freire é figura basilar em sua trajetória pessoal e profissional, como docente universitária e pesquisadora no campo da educação.

O que as vivências freirianas nos ensinam?

No presente artigo apresentamos uma pesquisa formação (JOSSÔ, 2004) que emana das nossas vivências, como professoras da educação básica, na gestão de Paulo Freire, à frente da secretaria municipal de educação de São Paulo, entre os anos de 1989 e 1992.

Nossa vivência profissional à época - que nos deu o privilégio de entrar em contato com as premissas educacionais freirianas e vivê-las na prática, como professoras da SME-SP -, pode ser considerada um “momento charneira” (JOSSÔ, 2004): um divisor de águas no nosso processo formativo, no campo da docência e da pesquisa. Essa experiência e o saber dela emergente (BONDÍA, 2002) foi tão impactante na nossa trajetória profissional, que nos impulsionou a realizar nossos estudos pós-graduados no Programa de Educação: Currículo da PUC-SP, respectivamente em fevereiro de 1998 (primeira autora) e 2000 (segunda autora), onde Paulo Freire atuou como docente e pesquisador por 17 anos, até o ano do seu falecimento, em 1997. Desnecessário dizer o quanto nossa formação acadêmica, em nível de pós-graduação stricto sensu deu-se em meio a uma atmosfera fortemente marcada pelos princípios ontológicos e gnosiológicos de Paulo Freire, inclusive com a prospecção do que viria a se tornar a Cátedra Paulo Freire, com a Professora Dra. Ana Maria Saul à testa de tal empreitada.

A presente pesquisa formação (JOSSÔ, 2004) aponta para o quanto as ações educacionais (re)fundamentadas sob o prisma freiriano situam-se como importantes instâncias de insurgência e resistência à perspectiva educacional instrumental. Ao reduzir a educação à formação para o mercado de trabalho, a perspectiva instrumental, denominada por Freire de educação bancária (1981), assume um caráter funcionalista, impositivo, conforme às demandas mercantis, com acento nos conteúdos de ensino e em processos formativos aligeirados e planificados. Na vertente radicalmente oposta à perspectiva instrumental, (re)fundamentar as ações educacionais com base nos pressupostos ontológicos e epistemológicos de Paulo Freire significa militar em prol do fortalecimento da perspectiva educacional autoral, culturalista, emancipadora e solidária. Significa ir ao encontro da conscientização, por meio da pedagogia situada, da educação dialógica, que pensa a aprendizagem a partir das condições reais de cada grupo e concebe a linguagem como prática social. Práticas educacionais (re)fundamentadas sob o prisma freiriano são potentes para empoderar os sujeitos sociais para as necessárias insurgências e resistências, sobretudo no atual momento histórico!

Hoje, com a experiência da pandemia de covid-19, como discutido no SemiEdu 2021 (UFMT) - A educação no digital: a pandemia covid-19, democracias sufocadas e resistências – muitos/as de nós compreendemos que o digital e em rede, além de nos possibilitar contato com o outro e com o mundo, nos ajuda a entender que temos a responsabilidade de lutar, freirianamente, por tudo em que acreditamos, para uma educação gratuita, acessível e de qualidade socialmente referenciada (CONAE, 2022) para todos e todas. As insurgências e resistências trazidas no título do texto do artigo nos convocam a atos conscientes, coerentes (com pensamos e falamos) e cotidianamente compromissados com a educação que queremos. Sem negar a potência da mídia digital para veicular o discurso do ódio, de narrativas negacionistas e de cunho fascista e nazista, é imperativo estarmos atentos para as contradições a todo e qualquer fenômeno social. Junto com o risco do recrudescimento da barbárie, a mídia digital traz consigo uma potência para a transformação social, no sentido humanizante do termo. A cultura digital pode nos fortalecer nesse sentido, por ampliar nossos campos de atuação: chegamos a muito mais pessoas, de diversos países, a mais dados científicos, a múltiplas culturas e ideias. Com isso - uma vez que estejamos transformados e sejamos integrados à cultura freiriana, com práticas de conscientização, coerência, amorosidade e realizadores/as do inédito viável como a utopia do possível -, poderemos, na escola, na universidade, de forma autoral, coletiva, colegiada, democrática e ativista, dar nossa contribuição para melhorar a educação, a formação docente e para humanizar a sociedade.

Face ao atual cenário político brasileiro, de recrudescimento de segmentos sociais reacionários - que defendem políticas neoliberais, em meio a narrativas fascistas e negacionistas fortemente veiculadas pela mídia digital - seguimos “esperançando” (FREIRE, 1992) no exercício da carreira docente, como professoras e pesquisadoras em universidades públicas federais, procurando honrar em nosso exercício profissional a máxima “Educação como prática da liberdade” (FREIRE, 1999). Paulo Freire: ontem, nosso secretário de educação municipal de São Paulo; hoje, o patrono da educação brasileira! Paulo Freire, ontem, hoje e sempre!

Referencias

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Recebido: 04 de Fevereiro de 2022; Aceito: 09 de Março de 2022

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