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Revista de Educação Pública

versão impressa ISSN 0104-5962versão On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.31  Cuiabá jan./dez 2022  Epub 29-Jun-2022

https://doi.org/10.29286/rep.v31ijan/dez.13388 

Artigos

Morte, Educação e Tecnologias: uma experiência formativa com estudantes de Computação

Death, Education and Technologies: a formative experience with Computer Science students

1Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação - PPGE da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT, grupo de pesquisa Laboratório de Estudos sobre Tecnologias da Informação e Comunicação na Educação - LêTece e Dados Além da Vida - DAVI. Mestre em Educação (PPGE/UFMT), pós-graduada em Educação e Diversidade e Docência no Ensino Superior pela UNEMAT e graduada em Pedagogia e Letras/Inglês pela Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT. É professora efetiva da educação básica - Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso (SEDUC/MT) na E.E José Alves Bezerra no município de Porto dos Gaúchos/MT.

2Possui graduação em Bacharelado em Informática pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1995), Especialização em Avaliação Educacional pela Universidade Federal do Mato Grosso (1998), Mestrado em Ciências da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997) e Doutorado em Ciência da Computação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com estágio na Universidade de Coimbra, em Portugal (2008). Possui experiência tanto docente quanto administrativa e possui publicacões nas áreas de Ciência da Computação e da Educação. Atualmente é Professor Associado II do Instituto de Computação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, professor do Programa de Pós-Graduação em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a inovação (PROFNIT), pesquisador do Laboratório de Ambientes Virtuais Interativos (LAVI) e Laboratório de Estudos sobre Tecnologias da Informação e Comunicação na Educação (LeTECE).

3Bacharel em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Maringá (1998), mestre em Ciência da Computação pela Universidade Estadual de Campinas (2001) e doutora em Ciências - Informática pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2009). Professora Associada da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no campus de Curitiba. Autora dos livros infantis "A vida de Ada Lovelace" e "Ada Lovelace: a condessa curiosa". Faz parte do Comitê Gestor do Programa Meninas Digitais (SBC) e da Comissão de Educação da SBC. Coordena o projeto de extensão TIChers e compõem a coordenação do LAPIC - Laboratório de Práticas Integrativas e Complementares da UTFPR-CT.


Resumo

Neste artigo temos o objetivo de refletir sobre o percurso formativo de estudantes da disciplina de Tópicos Especiais em Engenharia de Software de uma universidade pública, a partir de uma proposta pedagógica que contemplou estudos acerca da engenharia de software para web a partir de temas do domínio de legado digital pós-morte. Para tanto, foram coletados dados, por meio de observação participante, análise documental e questionário virtual. No estudo, identificamos que a experiência foi positiva tanto para aquisição de conhecimento sobre engenharia de software quanto para reflexões sobre a importância dos sistemas computacionais para gerenciamento de legado digital.

Palavras-chave Educação; Morte; Legado Digital; Web Social

Abstract

In this article we aim to reflect on the formative path of students in the discipline of Special Topics in Software Engineering at a public university, based on a pedagogical proposal that included studies on software engineering for the web based on themes in the domain of postmortem digital legacy. To this end, data were collected through participant observation, document analysis and a virtual questionnaire. In the study, we identified that the experience was positive both for the acquisition of knowledge about software engineering and for reflections on the importance of computer systems for digital legacy management.

Keywords Education; Death; Digital Legacy; Social Web

Introdução

Com a pandemia de Covid-19 todos os setores da sociedade começaram a ser reorganizados em virtude das restrições sanitárias, diversos serviços de atendimento ao consumidor começaram a ser oferecidos remotamente, compras online e sistemas delivery foram incentivados, sistemas educacionais nos diferentes níveis e etapas de educação se re-organizaram para continuar as atividades - a distância, remotamente, híbridas, flexibilizadas ou com outras nomenclaturas. A educação, inclusive foco de discussão no Seminário de Educação, em sua 29ª edição (SemiEdu 2021), intitulado: “A educação no digital: a pandemia Covid-19, democracias sufocadas e resistências” reflete sobre os modos de fazer a educação e o papel do digital como estruturante dessas novas práticas.

Neste contexto de mudanças, chamamos a atenção para a temática da morte, que passou a ser evidenciada diariamente com os números crescentes de vítimas da pandemia. O medo da morte passou a fazer parte do cotidiano aliado a notícias frequentes da perda de uma pessoa próxima (TREVISAN; MACIEL, 2020). Nas redes sociais passamos a visualizar a morte, a encontrá-la em nomes conhecidos e desconhecidos, sendo que dados produzidos por pessoas falecidas continuaram a circular na rede (TREVISAN et al., 2021).

A morte, sempre presente, mas temida, silenciada, interdita nas discussões, está presente também no espaço escolar, nos pensamentos e sentimentos de estudantes e docentes muitas vezes enlutados, que mesmo diante dessa dor lacerante precisavam continuar com as atividades e retomar a normalidade da vida rapidamente para não serem excluídos no ideário capitalista de nossa sociedade.

Tendo em vista a continuidade dos dados póstumos e a contribuição de sua permanência para os processos de lutos, há necessidade de reflexão sobre morte em ambientes educacionais (TREVISAN; MACIEL, 2020; KOVÁCS, 2021) e do desenvolvimento de sistemas gerenciadores de legado digital que possam dar o melhor destino a todas as informações que a pessoa constituiu durante a vida e que após sua morte passam a constituir seu legado digital (YAMAUCHI et al., 2021; MACIEL, 2021). Acreditamos que seja fundamental que profissionais em processo formativo na área de tecnologia vivenciem reflexões sobre a morte e suas implicações na construção de sistemas, assim tornando-os aptos a desenvolverem soluções socialmente conscientes. Assim, questionamos, seria possível, a partir da temática da morte, que estudantes ampliem suas reflexões no processo formativo para além de questões técnicas? Quais seriam as repercussões na vida e formação de cada estudante?

Diante disso, o objetivo desta pesquisa é refletir sobre o percurso formativo de estudantes da disciplina de Tópicos Especiais em Engenharia de Software (TEES) de uma universidade pública, a partir de uma proposta pedagógica que contemplou a construção de conhecimentos acerca da engenharia de software para web a partir de temas do domínio de legado digital pós morte.

A pesquisa, consiste em um estudo de abordagem qualitativa, cuja técnica de coleta de dados envolveu a observação participante no transcorrer da disciplina. Realizou-se ainda, análise documental do plano de ensino e das atividades produzidas pelos estudantes que consistiram na análise e elaboração de sistemas para web social. Ao final da disciplina foi aplicado um questionário virtual aos estudantes matriculados com o objetivo de compreender a percepção acerca do processo formativo vivenciado.

Em se tratando da estrutura do artigo, inicialmente são discutidos alguns aspectos teóricos envolvendo morte e tecnologias. Em seguida apresentamos reflexões sobre os processos de formação nos cursos da área de tecnologias e a possibilidade de incorporação da temática da morte. Na sequência detalhamos a metodologia em que estabelecemos algumas discussões à luz dos dados coletados, para em seguida apresentamos os resultados e as discussões, bem como, algumas problematizações a respeito da inserção da temática da morte no processo formativo em análise. Por fim, são apresentadas as considerações finais e as referências.

O lugar da morte na tessitura da vida em rede: constituição e destinação do legado digital

Vivenciamos na contemporaneidade diferenciadas relações entre vivências no cotidiano físico, concreto, e as novas possibilidades de relacionamentos humanos em cenários digitais. Construímos identidades e interações online, com cadastros, postagens, compartilhamentos, armazenamento de conteúdos e mídias na nuvem, entre tantas outras possibilidades. Entre as informações na rede, não fornecemos apenas dados nos sistemas, mas por meio das redes sociais, por exemplo, forjamos uma exposição voluntária de toda uma gama de atividades cotidianas que realizamos, de onde estamos, do que compramos, dos encontros com pessoas, expressando opiniões, reflexões, desabafos, entre outros tipos de ações e sentimentos postados que ficam à disposição de quem estiver interessado. Realizamos neste texto uma tentativa de compreender os efeitos póstumos resultantes de tais vivências e interações na construção de nossos ativos digitais, que após a nossa morte, constituirão, nosso legado digital.

Conforme Carroll e Romano (2011), um legado digital é a somatória de todos os ativos digitais que você deixa para os outros. Com a transposição das nossas vidas para o digital, cada vez mais esses ativos tendem a constituir parte do nosso legado.

Na nossa vida física também vamos consolidando uma grande quantidade de bens, com valor econômico ou não, que vão constituindo nosso legado. Entretanto, mudanças na nossa vida já estão ocorrendo há algum tempo e, hoje, uma significativa parte dos nossos objetos físicos estão no digital. Para Carroll e Romano (2011), nosso conteúdo digital apresenta um grande potencial de registrar a vida. Assim, a cultura digital passa a fazer parte do nosso cotidiano, sendo as tecnologias imbricadas em nossas vidas de uma maneira única, potente e com forte dependência entre nossa identidade real e virtual. Se há vida, há morte e neste passo reside a necessidade de maiores discussões no espaço escolar, no qual formam-se cidadãos para agir na sociedade.

Essas questões nos fazem perceber outros contextos, o de lidar com as memórias e com a permanência desses conteúdos em rede. Em alguns casos, já é possível demonstrar ainda em vida a manifestação de vontade em relação a seus dados após sua morte, já existem empresas especializadas na administração, exclusão ou manutenção de ativos digitais (MACIEL, 2021). Também já existem discussões acerca da inteligência artificial, que promete a continuidade da “existência” após a morte (GALVÃO; MACIEL, 2020).

Para Maciel e Pereira (2013, p. 20), “O valor da informação digital é inegável e a responsabilidade por esses dados deve ser discutida à luz do legado digital, para que possamos escolher se nossos objetos digitais devem ser legados ou não”. Assim, precisamos compreender a importância de repensar nossa relação com a constituição de um legado digital e compreender melhor a lacuna entre as noções de vida e morte e as implicações de dados póstumos, principalmente em ambientes digitais.

A morte na educação e nos cursos de tecnologia

A morte traz consigo um potencial que nos permite aprender que podemos viver melhor, tal compreensão se dá quando assumimos como parte da existência sua presença constante e a partir da perspectiva de finitude reavaliamos os variados temas e valores que perpassam nossas vidas (KOVÁCS, 2021; ARANTES, 2016).

O tema da morte surge como fundamental para o despertar das consciências, para que o assunto seja abordado e considerado como natural. Embora diversos autores reafirmem a necessidade de uma educação para a morte (KOVÁCS, 2021; TREVISAN; MACIEL, 2020), ela continua velada em ambientes educacionais, persistindo assim, uma lacuna no tratamento desta temática.

Kovács (2021) problematiza o tema da morte e sua presença em contextos educacionais, enfatizando que a abordagem da morte ainda é vista com surpresa. Segundo a autora, as pesquisas mostram que a morte não é vista como tema a ser considerado. Também não há consenso entre quem propõe sua inclusão, seja como tema nas disciplinas, ou como espaço de acolhimento, discussão ou reflexão quando da ocorrência da morte com estudantes e/ou docentes.

Ribeiro (2015) afirma que se deve considerar o fato das tecnologias utilizarem seu potencial de armazenamento de memória para trazer a presença do ausente, personificar uma existência ou um tempo ido. Nessa perspectiva, também é preciso considerar que ao interagir na Web social e em comunidades virtuais, pessoas, sentimentos e ativos estão conectados, gerando, assim, um legado digital que dura além da vida física e da vida corporal. Em cursos da área de tecnologia, a temática da morte pode contribuir com as reflexões sobre o tema enquanto fenômeno histórico e cultural, reconfigurado no contexto da cultura digital.

Corroboramos com Oliveira, Wagner e Gasparini (2020) que afirmam que no ensino de computação é fundamental que exista uma abertura de pensamento e uma interação com outras áreas do conhecimento, compreendemos que para o sucesso dos profissionais no mercado é necessário ir além das competências técnicas. Diante disso, acreditamos que seja fundamental, que os cursos de formação em tecnologia incorporem estudos envolvendo a temática da morte e possibilitem uma discussão sobre questões existenciais, para além, de conceitos e capacitação para o mercado de trabalho. Neste sentido, a obra didática que trata de Computação e Sociedade, em um dos seus capítulos, Tecnologias associadas ao pós-morte” (Maciel et al., 2020, p. 224), convida docentes e estudantes à discussão da temática com vistas a:

Ter uma visão geral dos diversos aspectos interdisciplinares relacionados ao pós-morte; reconhecer conceitos básicos relacionados a tecnologias associadas à morte; entender os diferentes serviços associados a sistemas computacionais que estão sendo disponibilizados e/ou pesquisados para esse domínio; e identificar alguns dos sistemas que existem atualmente voltados para o contexto da morte ou do pós-morte.

Assim, abordar esse conteúdo nos currículos pode contribuir para que os estudantes lidem melhor com as situações de finitude e adotem um olhar crítico na percepção de sua responsabilidade na construção da existência humana e a compreensão da morte em uma perspectiva tecnológica, os direcionando para uma reflexão sobre memórias e legados digitais, incorporando tais questões em sua atuação profissional, em especial, no desenvolvimento de sistemas.

Caminhos metodológicos

A pesquisa realizada é do tipo exploratória e está fundamentada na abordagem qualitativa (DENZIN; LINCOLN, 2006). A coleta de dados ocorreu por meio de observação participante no transcorrer da disciplina. Realizou-se ainda, análise documental do plano de ensino e das atividades produzidas pelos estudantes que consistiram na análise e elaboração de sistemas para web social. Ao final da disciplina foi aplicado um questionário virtual aos estudantes matriculados.

A observação participante foi realizada durante a disciplina de Tópicos Especiais em Engenharia de Software na Universidade Federal de Mato Grosso. A disciplina foi ofertada por meio da utilização de tecnologias da informação e comunicação, por meio de Ambiente Virtual de Aprendizagem em consonância com a Resolução Consepe nº 32 de 08 de julho de 2020 que dispõe sobre a regulamentação da flexibilização de componentes curriculares em caráter excepcional e temporário para o ensino de graduação no período de suspensão das atividades presenciais em decorrência da pandemia de Covid-19.

A disciplina foi ofertada em dois blocos, possibilitando que o estudante pudesse solicitar o cancelamento de matrícula do componente curricular ofertado flexibilizado a qualquer momento sem prejuízo à sua integralização do curso ou ao seu coeficiente de rendimento. A organização por blocos, possibilitava ainda, que os discentes que solicitaram o cancelamento de matrícula no 1º bloco fossem rematriculados no 2º bloco ou na eventual oferta no modo presencial (UFMT, 2020b). Diante disso, o bloco 1 foi ofertado durante o período de agosto a dezembro de 2020 e o bloco 2 durante o período de março e abril de 2021, ambos referentes ao semestre letivo 2020/1. Os blocos, contaram com a participação de diferentes estudantes. No bloco 1 concluíram a disciplina 27 estudantes e no bloco 2, 11 estudantes.

O estudo inclui a análise documental do Plano de Ensino para contextualizarmos a proposta da disciplina e as atividades realizadas. Ao final da disciplina foi aplicado um questionário elaborado através do Google Forms e enviado a todos os estudantes matriculados na disciplina pelo Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) e grupo de WhatsApp. Tivemos um retorno de 20 (74,07%) respostas de estudantes do bloco 1 e 08 (72,72%) respostas de estudantes do bloco 2, destes, 5 estudantes não concluíram a disciplina, sendo 3 do bloco 1 e 2 do bloco 2. Os dados do questionário nos guiaram na observação sobre a percepção dos estudantes acerca do processo formativo vivenciado, mas também, consideramos relevante identificar se as desistências dos estudantes tiveram alguma relação com a temática da disciplina, assim, as respostas dos estudantes desistentes foram relevantes para a análise dos dados.

Para análise dos dados utilizamos a triangulação metodológica que, segundo Duarte (2009), consiste na utilização de diferentes perspectivas em uma mesma investigação. Na apresentação e análise dos dados, para manter a identidade dos estudantes, estes foram nomeados da seguinte forma: a letra B seguida da numeração 1 ou 2 indicando o bloco em que o estudante cursou a disciplina (B1 para Bloco 1 e B2 para Bloco 2), após um traço indicamos numeração sequencial dos estudantes. Exemplo: Estudante do Bloco 2 de número 5, foi denominada B2-5.

Ressaltamos que todos os cuidados éticos em relação à pesquisa foram observados e estão em posse dos pesquisadores o consentimento livre e esclarecido de todos os participantes. Este estudo faz parte de uma das ações do projeto de pesquisa DAVI (Dados Além da Vida), do Instituto de Computação da Universidade Federal de Mato Grosso que possui aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Área das Ciências Humanas e Sociais da UFMT sob o número CAAE: 64403416.6.0000.5690.

Olhando para os resultados

Nesta seção apresentamos, inicialmente, uma caracterização da disciplina em tela, demonstrando alguns pontos do Plano de Ensino e das atividades realizadas. Na sequência, apresentamos reflexões acerca da observação participante e dos resultados do questionário aplicado buscando evidenciar as repercussões na vida e formação estudantil possibilitadas pelo processo formativo.

Percurso Formativo: A disciplina de Tópicos Especiais em Engenharia de Software

A disciplina Tópicos Especiais em Engenharia de Software faz parte da estrutura curricular dos cursos de Ciência da Computação e Sistemas de Informação, com carga horária de 60h/aula. É uma disciplina optativa que tem como pré-requisito a disciplina de Engenharia de Software (UFMT, 2004; 2008).

Pelas restrições impostas pela pandemia de Covid-19 todas as atividades foram realizadas com apoio de sistemas computacionais interativos: encontros síncronos e atividades assíncronas realizadas via AVA. Os encontros síncronos se constituíram de espaços para interação com os estudantes, momento em que foi realizada a exposição dos conteúdos, apresentação das atividades programadas e esclarecimento de dúvidas. Além dos encontros síncronos foram disponibilizados no AVA conteúdos em slides, vídeoaulas e referências bibliográficas.

Conforme a ementa da disciplina, fica a critério do professor definir conteúdos e referências, desde que envolva inovações tecnológicas decorrentes de pesquisas recentes. Dessa forma, o objetivo principal da disciplina é complementar áreas do conhecimento já abordadas anteriormente ou ainda apresentar aplicações específicas que são objeto de pesquisa recente (UFMT, 2004; 2008).

Diante disso, o professor responsável pela disciplina definiu como objetivo para este semestre letivo, contribuir com a construção de conhecimentos acerca da engenharia de software para web. Para tanto, trabalhou fundamentos teóricos e práticos da engenharia de software, abordando conceitos, métodos, técnicas e ferramentas relacionadas à engenharia web, bem como conceitos sobre modelagem e avaliação para a web social. O exercício da engenharia para a web deu-se por meio de projeto prático nas áreas de web social e no domínio do legado digital pós-morte (UFMT, 2020a).

A temática foi incorporada tendo em vista a necessidade de pensar em dispositivos que ofereçam recursos para destinação de legado digital e por ser uma discussão em ascensão na área de tecnologia. Além disso, é preciso considerar a carência de recursos disponíveis no mercado para gerenciamento de legado digital, sendo essa, uma área cada vez mais promissora (ÖHMAN; FLORIDI, 2017; MACIEL et al., 2020).

Ressaltamos que não se tratou de pensar na morte e no morrer em seus aspectos biológicos, pois isso acarretaria um deslocamento do foco de discussão da disciplina e seus objetivos. A discussão foi realizada buscando reconhecer a morte como um processo inerente à existência humana e nesse sentido avaliar como essa discussão interfere no trabalho de profissionais da tecnologia à luz do legado digital deixado pelos usuários. As reflexões ocorreram a partir de três tipos de aplicações, são elas:

- Memoriais Digitais: são aplicações nas quais é possível prestar homenagens para pessoas que faleceram. Em geral, há um perfil do indivíduo e, em torno dele, há a possibilidade do registro de homenagens de diferentes formas. (MACIEL, 2020).

- Sistemas gerenciadores de legado digital:oferecem serviços que incluem, entre outros, registro de senhas, comunicações póstumas, repasse de bens para usuários (de contas online e de bens digitais). Existem soluções integradas a sistemas já existentes (como oGoogle Inactive Accounts) e soluções dedicadas ao gerenciamento de legado (MACIEL, 2020).

- Sistemas para serviços ligados aos rituais da morte: são fornecidos por empresas que prestam serviços funerários, ofertando desde guias para planejamento de rituais de despedida até obituários online. Algumas oferecem serviços de velórios e homenagens online. Podem incluir integração com tecnologias em cemitérios (MACIEL, 2020).

Dos 28 estudantes que responderam ao questionário, 25 (89,28%) afirmaram nunca ter estudado sobre a morte em algum contexto de formação e foram unânimes em afirmar sobre a necessidade de reflexão sobre a temática. Identificamos ainda que 20 (71,42%) nunca haviam pensado sobre o destino dos seus dados digitais após a morte, essa reflexão foi realizada por apenas 8 (28,57%) participantes da pesquisa. Observamos ainda que somente 6 (21,42%) estudantes afirmaram que no desenvolvimento de sistemas, na elaboração de políticas de uso e privacidade, já haviam considerado a necessidade de abordar o destino dos dados em caso de detecção de morte de um usuário.

Os dados apresentados acima evidenciam o quanto a temática da morte e sistemas para gerenciamento de dados póstumos e legado digital estão distantes dos estudantes. Assim, a disciplina contribuiu para proporcionar reflexões acerca da necessidade de refletir em vida sobre o destino desses dados, para que estes, após a morte do usuário não fiquem perdidos ou causem a família desgostos e/ou transtornos em lutas judiciais pelo acesso.

Em relação a disciplina, o estudante B1-10 afirma que “pude perceber que precisamos levar em conta a morte de um usuário de nosso sistema e com isso devemos estar preparados, com políticas e termos de uso que abrangem essa temática”. Percebemos assim, que a discussão foi relevante para a percepção desta necessidade.

O estudante B2-4 comenta que “hoje temos muitos problemas judiciais sobre isso, trabalhar esse tema e otimizar a vida das pessoas, nesse caso, contribuirá bastante socialmente”. De fato, pela ausência de destinação de bens e ativos digitais nos sistemas, muitas famílias após a morte do usuário precisam entrar com processos judiciais para conseguir o acesso, tendo em vista a ausência de regulamentação. No que se refere a transmissão de legado digital, projetos de Lei estão tramitando na Câmara e Senado na busca pela regulamentação da matéria (BEPPU; MACIEL, 2020). Nessa perspectiva citamos ainda análises desenvolvidas por Beppu e Maciel (2020, p. 1) sobre a “possibilidade de aplicação dos princípios e fundamentos da lei de proteção de dados como matriz axiológica para o tratamento do legado digital, em consonância com o ordenamento constitucional pátrio”.Na atual conjuntura da legislação brasileira sobre o tema, contemplar aspectos volitivos (MACIEL; PEREIRA, 2013) acerca da destinação do legado digital nos termos de uso dos sistemas poderá evitar transtornos posteriores.

Percurso Formativo: Análises e reflexões realizadas

Para que os estudantes tivessem contato com esse tipo de sistema com um olhar reflexivo e formativo, foi orientada como atividade inicial a análise de um sistema existente nessa área. Para tanto, deveriam ser realizadas pesquisas, escolher um sistema e, a partir dele, elaborar um relatório de análise de formato livre, todavia contemplando a análise dos atributos dos sistemas para web (PRESSMAN; LOWE, 2009). Tal análise foi apresentada em aula síncrona com a participação de todos os estudantes, assim, além de analisarem um sistema, tiveram contato com as demais análises realizadas pelos colegas. Foram analisados pelos estudantes os sistemas apresentados no quadro 1.

Fonte: elaborado pelos pesquisadores a partir dos dados da pesquisa (2021)

Quadro 1 Análise de sistemas existentes 

Embora a atividade solicitava que os estudantes escolhessem um sistema a partir dos três tipos de aplicações, foco de estudo na disciplina, alguns estudantes analisaram um sistema de cada tipo, realizando assim, três análises. Ficou perceptível no dia das apresentações a curiosidade desses estudantes em aprofundar na temática e compreender como funcionavam os sistemas.

Além dos tipos de aplicações foco de estudo na disciplina (memoriais digitais, sistemas gerenciadores de legado digital e sistemas para serviços ligados aos rituais da morte), também foram apresentados pelos estudantes o “Apart of Me1” que consiste em um jogo, que pode ser classificado como empático (PINHEIRO et al., 2021), voltado para crianças com o objetivo de ajudar o jogador a superar a perda ou o processo de estar próximo a perder alguém. O “Miigen2” que pode ser considerado um memorial digital, mas também é caracterizado por constituir uma cápsula do tempo, diante da possibilidade de converter fotografias com etiquetas de voz. No site existe a indicação de objetivo de ajudar pessoas a lembrar os momentos especiais de sua vida em um momento em que sua memória está falhando. Outro sistema apresentado foi o “Replika.ai3” que foi fundado com a ideia de criar uma Inteligência Artificial com que os usuários pudessem estabelecer uma conversa, compartilhando seus pensamentos, sentimentos, crenças e experiências, diante dessa possibilidade, tem contribuído com as situações de luto, em que pode ser simulada uma conversa com um usuário falecido.

No dia das apresentações surgiram muitas reflexões acerca dos sistemas e sobre a morte, e consequentemente, sobre a necessidade de enquanto profissionais da área de tecnologia refletir sobre legado e dados póstumos. Ficou evidente que era um assunto novo para os estudantes que argumentaram que nunca haviam refletido sobre legado digital.

Um dos estudantes, em sua atividade escrita, argumenta que quando conheceu o tema da disciplina não teve uma relação muito positiva “acreditei que não era um assunto saudável, e que era mórbido demais, porém, ao refletir um pouco eu notei que o legado está em minha vida e cultura que consumo” (B1-32). O estudante apresenta uma reflexão pessoal abordando o quanto percebeu que a morte está presente em seu cotidiano, questões que não eram observadas antes de entrar em contato com essa temática. Recordou-se também de ter acessado o sistema Orkut, antes de ser desativado, para observar postagens de conhecidos falecidos que utilizavam a rede social.

Outra questão que destacamos foi a forma como os estudantes conduziram as análises, nos relatos apresentados e nos registros escritos observamos que houve o interesse para além de conhecer os objetivos do sistema, envolveu também verificar seu funcionamento e sentimentos que emergiram em tais utilizações.

Ao final da disciplina os estudantes precisavam entregar um projeto de aplicações elaborado a partir de temas no domínio da morte que estavam sendo estudados na disciplina e que já haviam sido realizadas pesquisas sobre sistemas já existentes. Poderiam ser desenvolvidos para a web ou para a web social em dispositivos móveis. Para a elaboração do projeto prático os estudantes deveriam se organizar em grupos de até cinco integrantes e iniciar os estudos acerca dos conteúdos e modelos disponibilizados pelo professor (PRESSMAN; LOWE, 2009), em seguida, pensar na proposta e identificar em que tipo se enquadra a aplicação web, metas informacionais e aplicativas e perfil inicial dos usuários, além do projeto de navegação, interação estética e de interface e pesquisa de mercado e análise de viabilidade. Foram elaborados e apresentados 11 projetos na disciplina, descritos no quadro 2.

Fonte: elaborado pelos pesquisadores a partir dos dados da pesquisa (2021)

Quadro 2 Projetos Práticos elaborados durante a disciplina 

Na justificativa pela escolha dos temas, observamos que os grupos que optaram pelo desenvolvimento do projeto prático do tipo memoriais digitais levaram em consideração o valor emocional destes e a necessidade de manter as lembranças de pessoas falecidas (B1-10, B1-4).

Os grupos que optaram pelos sistemas de gerenciamento de legado digital, afirmaram que a escolha se deu devido à preocupação com os dados dos usuários, principalmente quando envolvem investimentos, algo que pode ser traumático para os familiares resolverem após a morte, assim, acreditam que esses sistemas, podem ser um diferencial para instruir os herdeiros quanto as vontades do falecido (B1-17, B1-19, B1-13). O estudante B1-15 afirma também que a escolha se deu pelo fato de que “deveria existir uma melhor forma de gerenciar os bens digitais das pessoas uma vez que estes podem ser tão valiosos quanto bens físicos”. Também levaram em consideração o interesse e curiosidade sobre o funcionamento desses sistemas (B2-7). E além disso, foi mencionado pelos estudantes que é uma oportunidade pouco explorada pelo mercado de sistemas (B2-6), contribuindo para reforçar a percepção de B2-1 que afirma que “gestão de legado digital é o futuro” (B2-1).

Um dos grupos do B2 elaborou o projeto prático “Cripto Legado” que pretende ser objeto de transmissão (criptoativos) após a morte do usuário. Os estudantes deste grupo abordaram uma reflexão acerca da necessidade de tais sistemas mencionando o falecimento do romeno Mircea Popescu, um dos maiores proprietários de bitcoins do mundo, ele morreu em junho de 2021 e levou consigo as chaves para acessar uma fortuna estimada em US$ 2 bilhões (cerca de R$ 11 bilhões) em criptomoedas que, agora, pode ficar num limbo para sempre (BBC NEWS, 2021). Maciel et al. (2020) cita a necessidade de pensarmos a possibilidade mercadológica e em expansão das tecnologias blockchain em sistemas gerenciadores de legado digital, dada a conotação patrimonial e econômica dos ativos digitais.

Em relação aos sistemas para serviços ligados aos rituais da morte, os estudantes argumentaram que tal escolha se deu “diante do atual momento que a sociedade está passando, há de se pensar em alternativas que permitam às pessoas participarem desse processo, seja acompanhando o rito por câmeras, seja por mensagens de despedida” (B1-11). Outro fator determinante pelo grupo foi que é uma área ampla, inovadora e que há muito a ser explorada devido à falta de serviços com essa abordagem (B1-20, B1-6, B1-14).

Morte e tecnologias: percepções do processo formativo pelos estudantes

Consideramos que os resultados da disciplina alcançaram os objetivos mediante avaliação dos projetos apresentados pelos estudantes. Entretanto, nos interessa nesta pesquisa, compreender também, a percepção dos estudantes acerca do processo formativo envolvendo a temática. Essa percepção buscamos compreender a partir das respostas no questionário aplicado com perguntas abertas e fechadas, as quais detalharemos os resultados a seguir.

Os estudantes que responderam ao questionário possuem idade entre 21 e 48 anos (bloco 1) e 21 e 38 anos (bloco 2), sendo 17 (85%) do gênero masculino e 3 (15%) do gênero feminino (bloco 1) e 8 (100%) do gênero masculino (bloco 2). Participaram da pesquisa 18 (90%) estudantes do curso de Bacharelado em Sistemas de Informação e 2 (10%) do curso de Ciência da Computação no bloco 1 e 2 (25%) estudantes do curso de Bacharelado em Sistemas de Informação e 6 (75%) do curso de Ciência da Computação no bloco 2. Desses estudantes, desistiram da disciplina ao longo do processo formativo 3 (15%) estudantes no bloco 1 e 2 (25%) estudantes no bloco 2, os demais concluíram a disciplina de Tópicos Especiais em Engenharia de Software e foram aprovados.

Em relação a discussão em grupo, 8 estudantes (28,57%) afirmaram que durante o planejamento do projeto prático houve divergências de opiniões acerca da avaliação do sistema devido a crenças sobre a morte. Também 12 (42,85%) estudantes afirmaram que os participantes do grupo discutiram acerca de suas concepções ou concepções dos futuros usuários do sistema sobre a morte, pós-morte, tabus ou crenças durante a realização dos trabalhos em grupo. Percebemos assim, que a discussão ocorreu para além das aulas síncronas, mas perpassou por toda a realização da atividade, levando os estudantes a se depararem com opiniões e crenças diversas. Essas crenças são oriundas muitas vezes a partir de religiões, dos estudantes, 19 (67,85%) acreditam em Deus e em vida após a morte e 9 (32,14%) não acredita em Deus e em vida depois da morte. Dos que acreditam e praticam constantemente ritos, são de religiões católica (11), espírita (2) e evangélica (1).

É preciso considerar que embora tenhamos um evento comum a todos, a morte, temos diversas crenças e conceitos diante desse aspecto da vida humana, assim, todas as abordagens precisam levar em consideração o respeito a essa diversidade. Maciel e Pereira (2013) realizaram uma pesquisa com especialistas em engenharia de software e evidenciam como os tabus e crenças limitam a reflexão sobre a modelagem de artefatos voltados para o legado digital pós-morte. Assim, promover espaços de discussão em âmbito formativo pode contribuir para a ampliação de espaços de debate sobre questões de religião, gênero e etnia, e assim, permitir que os estudantes desenvolvam a prática de em suas aplicações respeitarem a diversidade cultural existente e que não adotem soluções simplistas e/ou que não atendam de fato aos usuários.

Os estudantes evidenciam em seus relatos a compreensão sobre a relevância da temática, como por exemplo, B2-7 ao afirmar que considerou a disciplina “uma perspectiva nova em relação ao futuro, o que provocou bastante reflexão sobre questões pós morte. Vi que existem dificuldades para lidar com diversas questões após a morte de uma pessoa, e que as ferramentas de gerenciamento de legado digital são bem úteis. É algo que acho interessante de ser conversado com familiares e amigos”.

Observamos também que falar da morte e refletir sobre o legado trouxe à tona sentimentos e uma contextualização da realidade, de forma, que a partir dessa discussão os estudantes começaram a refletir sobre as pessoas com as quais convivem e o quão importante para o processo de elaboração do luto é a manutenção de seus dados digitais. Nesta perspectiva B2-3 afirma que “é um tema bem delicado que faz a gente pensar muito sobre a vida e aprofundar melhor nessas questões”. Para Kellehear (2016, p. 13) “estudar o morrer é como olhar para uma poça de água”. Segundo o autor, temos a possibilidade de olhar para o morrer, ver a pessoa que nos tornamos e enxergarmos para além do que existe na superfície, podemos olhar nossa identidade.

O estudante B1-3 afirmou que “ao mesmo tempo por se tratar de tema relativamente mórbido, ele também impulsiona nosso lado empreendedor principalmente na detecção de oportunidades de negócios nessa área, mas como foi discutido no desenvolvimento do trabalho, além de considerar o lado operacional, nós devíamos também se atentar ao lado humano pela compaixão ao evento trágico e às pessoas envolvidas, principalmente familiares”.

Existe a necessidade de refletirmos sobre o destino de nossos dados em vida, diante disso, o estudante B1-17 afirma que “hoje estamos produzindo mais do que nunca, um volume gigantesco de dados. Qual será o desfecho disso já que em teoria, caso os dados não forem descartados a tendência é só crescer sem limite”. Öhman e Watson (2019) realizaram uma projeção rigorosa do acúmulo de perfis no Facebook pertencentes a falecidos e concluíram que centenas de milhões de perfis de mortos serão adicionados à rede apenas nas próximas décadas, e que o número de mortos pode ultrapassar o número de vivos antes do final do século, dependendo de como evoluem as taxas de penetração de usuários globais. O estudo, todavia, foi feito antes da pandemia, que certamente tem impactos quantitativos sobre as projeções.

Ao analisarmos a eficácia da disciplina buscamos compreender o que os estudantes refletiram sobre o desenvolvimento de projetos a partir desta temática. Diante dessa questão, o estudante B1-7 afirmou que “no desenrolar do projeto, eu pude perceber que essas ideias são bem interessantes e relevantes, como os casos dos memoriais digitais que nesse contexto de pandemia estão sendo criados para prestar homenagens as vítimas”. O estudante B1-1 relata que “o sentimento se resume a inovação, é uma área que ainda não foi muito divulgada e que possui muitas vertentes interessantes”. O tema embora tenha dado a impressão inicial de que não possibilitaria discussões acerca de sistemas computacionais, serviu de base para motivar os estudantes, nessa área em expansão, como afirma B1-11 “achei um tema peculiar, porém interessante, pois possibilitou a abertura para a discussão do assunto em ambientes computacionais.

Também buscamos analisar a percepção dos estudantes diante da temática da morte para os estudos na disciplina, tivemos como relatos: “acabou sendo mais interessante do ponto de vista de desenvolvimento das funcionalidades de memorial e compartilhamento do que inicialmente pensamos” (B2-2), “acho que foi extremamente válido justamente por se tratar de um assunto pouco abordado oportunizou realmente praticar os conceitos, surpresa ao deparar com o tema, interesse ao desenvolver o protótipo” (B2-6), “Foi emocionante trabalhar com um tema sensível desses, lidamos com vários aspectos diferentes” (B2-1).

Pedimos que os estudantes citassem pontos fracos da disciplina, 07 estudantes (B2-3, B2-5, B1-2, B1-8, B1-12, B1-11, B1-10) não observaram pontos fracos específicos, B2-2 relatou que “não saberia dizer, talvez o conteúdo me pareceu focado em uma temática só”, já B2-1 abordou como ponto fraco a disciplina ter sido ofertada no formato online e 04 estudantes (B2-7, B2-5, B2-3, B1-1) abordaram que deveriam ter sido realizados mais encontros síncronos.

Embora alguns estudantes mencionam como ponto fraco o formato online e a quantidade de encontros síncronos, o estudante B2-8 menciona que “a disciplina foi ministrada com maestria. Os professores auxiliaram muito nas dúvidas que surgiram no decorrer do semestre”, além disso, outros estudantes apontaram como pontos positivos a interação e comunicação realizadas pelo professor durante a disciplina, entre os relatos estão, “interação do professor com os alunos” (B1-2), “atenção com os alunos” (B1-8), “dúvidas respondidas prontamente” (B1-12), “alunos sempre atualizados tanto pela plataforma da faculdade quanto via WhatsApp” (B1-5), “a didática, a proximidade do professor e a atenção com os alunos foram os diferenciais de outras matérias. Isso faz com que os alunos se interessem mais pela matéria, do que simplesmente jogar conteúdo na plataforma e dar prova” (B1-19).

No quadro 3 percebemos que para ambos os grupos a temática foi relevante, e demonstra a percepção dos alunos sobre a importância de realizarem as discussões no âmbito da formação.

Fonte: elaborado pelos pesquisadores a partir dos dados da pesquisa

Quadro 3 Percepção sobre a escolha da temática da disciplina (morte) 

A experiência contabilizou 5 estudantes (bloco 1 e 2) que não concluíram a disciplina e por motivos diversos desistiram do processo formativo, entretanto também foram convidados a responder o questionário, interessava-nos compreender se a temática influenciou nessa desistência e a percepção desses estudantes sobre o processo formativo. Dos cinco estudantes, tivemos o retorno do estudante B1-4, no qual identificamos que a temática teve influência em sua desistência, ele afirmou que “a parte do curso que aborda as técnicas de produção de um projeto foi totalmente satisfatória. O tema, para mim, foi muito forte e emocionante pelo fato de ter vivido a infeliz experiência de ter perdido vários entes queridos nessa fase da pandemia o que de certa forma me impediu, por falta de inteligência emocional, dar continuidade ao projeto (momentos de muita comoção). Acredito que eu possa aproveitar os conhecimentos obtidos em outro momento do curso [...] Talvez fosse oportuno trabalhar o projeto em homenagem ao nosso ente querido, mas não tive controle emocional para abordar o tema de forma equilibrada” (B1-4).

Ressaltamos a importância de realizar um diagnóstico inicial para identificar alunos que estejam passando por luto recente, para contemplar abordagens diferenciadas para que a disciplina, ao invés de trazer pesar, possa contribuir para a retomada do equilíbrio da vida e a ressignificação da ausência do ente falecido. Tavares (2014) aborda que uma das grandes dificuldades para a assimilação da perda é que “no lugar de nos encaminharmos para cuidarmos da dor da perda, que é o luto, ficamos apegados à falta”. Assim, chegar a aceitação e a retomada da vida após uma situação de luto requer que sejam vivenciadas etapas.

A dor de perder não precisa ser sinônimo de amargura. É algo que nos atinge, nos deixa impactados, feridos, abatidos e não tem, necessariamente, que nos derrotar. A dor também oferece a oportunidade de mergulho interior, levando à revisão de valores, projetos e propósitos de vida. É um esforço, uma luta, aceitar o que não podemos mudar. A grande ultrapassagem é desenvolver a capacidade de transformação dentro de nós mesmos, sem nos trapacearmos. (TAVARES, 2016. p. 15)

Dos estudantes que concluíram a disciplina, não aprovaram a temática os estudantes B1-5 e B1-18, que afirmam respectivamente “na minha opinião, o tema sobre morte é algo pouco chamativo se olharmos os diversos temas que poderiam ser explorados em relação a Sistemas Web”, “é um tema difícil de ser trabalhado, em especial pelo fato de termos tido muito pouco tempo para estudo do assunto e também pelo atual cenário que estamos passando. Lembrar da morte me faz lembrar das pessoas que perdemos”. O estudante B1-18 sugere para as próximas edições da disciplina “abrir espaço para discussão sobre os temas ofertados para o projeto prático”.

A percepção dos estudantes B1-5 e B1-18, são resultado do tabu e do medo instituído em nossa sociedade. O próprio estudante B1-18 ressalta sua percepção acerca do tabu ao afirmar que “essa não é uma área tão explorada, ainda existe um tabu acerca do assunto morte”. Tal abordagem pode ser compreendida como uma tentativa de não refletir sobre a temática, considerando-se a dificuldade na sociedade atual em falar sobre perdas e a relação entre morte e sofrimento.

É preciso considerar que, conforme Kovács (2021), a morte faz parte do funcionamento biológico do ser humano, então, por mais que algumas pessoas possam disfarçá-lo e negá-lo, ninguém fica imune. A ideia da morte gera medo, morbidez e parece sempre ser um evento traumático, assim, passa a ser vista como uma inimiga que precisa ser combatida e passamos a evitá-la. Esse sentimento ocorre pois não somos ensinados a conviver com ela, e então, passamos a vida com medo da morte. Nosso organismo cria um mecanismo de barreira e proteção, achando que ao não mencionar, não sofreremos. Ao nos depararmos com a morte de outras pessoas também nem sempre sabemos como agir.

Conforme Arantes (2016) “a vida vivida com dignidade, sentido e valor, em todas as suas dimensões, pode aceitar a morte como parte do tempo vivido assim, pleno de sentido” (ARANTES, 2016, p. 34). Não é por não falar que ela não acontecerá e não iremos nos deparar com ela. Vivenciamos ao longo da vida a perda de um ente próximo. Se adquirirmos a capacidade de perceber isso e acompanhar a morte daqueles que estão ao nosso lado, os sustentando ao invés de nos escondermos, chegaríamos à nossa morte muito mais conscientes.

Considerações Finais

O tema da morte é um tema sensível ao ser abordado e ainda não existe um consenso de como abordá-lo em ambientes educacionais, entretanto, a concordância acerca da relevância dessa discussão é unânime entre pesquisadores da temática. Em tempos de pandemia, a morte adquiriu ainda, outros contornos, afetando as vidas pessoais e com caráter social.

No que se refere às discussões sobre morte, educação e tecnologias, vemos uma necessidade no que se refere aos profissionais em formação para que sejam desenvolvidas reflexões que subsidiarão a futura prática profissional, tendo em vista, a quantidade de dados póstumos que ficam nos sistemas após a morte dos usuários e que precisarão de um destino. Também, é preciso considerar, que essa destinação, possui grande potencial para contribuir nos processos de elaboração de luto pelos familiares e amigos do usuário falecido.

O desenvolvimento desta pesquisa nos levou a perceber que a discussão da temática foi muito bem aceita pelos estudantes, possibilitando reflexões que integraram os conceitos (conteúdo das disciplinas) e questões existenciais a partir de uma didática que prioriza análises de questões do cotidiano da vida e do desenvolvimento acadêmico/profissional. Assim, reforçamos a relevância da abordagem da temática nos currículos na área de tecnologias, o que pode ser feito em projetos de disciplinas. Como limitações na pesquisa citamos a quantidade limitada de tempo que a disciplina contou para realização das atividades e discussões do tema e a necessidade de realização de diagnósticos iniciais sobre a abordagem do tema com estudantes.

Diante do exposto neste texto, reforçamos a potencialidade da temática da morte em ambientes educacionais, potencializando as discussões e reflexões que nos levem a perceber os limites entre vida e morte, suas repercussões em ambientes digitais, e assim, reverbere na ressignificação da vida dos estudantes e em sua atuação profissional de forma a perceber as implicações dos dados póstumos na construção de sistemas.

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Recebido: 04 de Fevereiro de 2022; Aceito: 09 de Março de 2022

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