SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31Decree No. 10.502/2020: the "new" Special Education policyHistory of Education in images: Representations of children in São Leopoldo /RS in the Early Century XX author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Revista de Educação Pública

Print version ISSN 0104-5962On-line version ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.31  Cuiabá Jan./Dec 2022  Epub Oct 13, 2022

https://doi.org/10.29286/rep.v31ijan/dez.12405 

Artigos

Geografia da infância, justiça existencial e amorosidade espacial

Childhood geography, existential justice and spatial lovingness

Jader Janer Moreira LOPES1 
http://orcid.org/0000-0003-3510-8647

1Graduado em Geografia. Doutor em Educação. Universidade Federal de Juiz de Fora.


Resumo

Esse artigo tem por objetivo abordar o espaço geográfico como um elemento essencial da vivência humana. Reconhece que, se não há vidas fora do tempo, não há vidas fora do espaço e os bebês e as crianças não são externas a esse processo, o que nos permite falar em geografias que envolvem a infância em sua pluralidade. Aporta-se na vivência espacial de bebês e crianças como uma de suas singulares formas de existir e, com isso, assinala por uma relação de amorosidade e de justiça, onde o espaço e suas diferenças sejam considerados.

Palavras-chave Infâncias; Diferenças Espaciais; Justiça Existencial; Amorosidade Espacial

Abstract

This paper aims to approach geographic space as an essential element of human experience. It recognizes that if there are no lives outside of time, there are no lives outside of space and babies and children are not external to this condition, which allows us to speak in geographies that involve childhood in its plurality. It is based on the spatial experience of babies and children as one of their unique ways of existing and, with this, points to a loving and justice relationship, where space and its differences are considered.

Keywords Childhood; Spatial Differences; Existential Justice; Spatial Loveliness

Parte 01: Palavras e espaços

“Sofremos mais um dia no vagão. Mas, só de saber que estávamos em terras russas e rodeados por pessoas russas, ficávamos tão confortados, que isso nos fazia esquecer de todos os percalços da viagem. Eu e meu marido estávamos tão alegres e felizes que perguntávamos um ao outro: será verdade que, finalmente, estamos na Rússia? De tão insólita que nos parecia a realização de nosso antigo sonho” (DOSTOIEVSKAIA, 1999, p. 158).

Começar um texto requer mergulhar em muitas escolhas. Toda escrita é sempre um encontro no qual precipitamos em nossas vivências para delas fazer emergir todas as histórias e geografias que nos compõem. Ao mesmo tempo, Bakhitn, Volochinov, Medvedev1 e todos que compartilham as concepções desse Círculo (obras diversas) nos ensinaram que toda palavra é sempre uma resposta a algo dito, pois os vocábulos vivos são sobras e estilhaços das fronteiras humanas. Escrever é esse entre-lugar (BAHABAH, 2013) onde oceanos de vozes se fundem! Abismos constantes.

Sempre tive, como um dos princípios, trazer registros de trabalhos que fazem parte de minha formação nestes anos de pesquisas na área da Geografia da Infância. Um campo de investigação que se iniciou na minha vida, ao encontrar as crianças em comunidades da Zona da Mata Mineira e todas as relações de cuidar e educar que se estabeleciam com elas nessas comunidades.

A Zona da Mata Mineira aparece descrita por Orlando Valverde em uma publicação de 1958, em que o autor já mostrava as grandes modificações ocorridas na região:

uma das características atuais da paisagem da Zona da Mata é a falta de matas. Por toda parte, o homem substituiu o manto escuro das florestas pelo pasto claro e aveludado do capim gordura. A floresta não serve nem mais para distinguir a Zona da Mata de qualquer das regiões vizinhas (VALVERDE, 1958, p. 5-6).

É nessa paisagem que encontramos uma outra comunidade: a Colônia do Paiol, uma localidade com poucas ruas, mas cujas vivências são intensas. Os mapas e as imagens a seguir ajudam a entrar na paisagem local.

Fonte: Acervo GRUPEGI.

Mapa 01 Minas Gerais no Brasil 

Fonte: Acervo GRUPEGI.

Mapa 02 Zona da Mata em Minas Gerais 

Fonte: Acervo GRUPEGI.

Imagem 01 Colônia do Paiol 

Fonte: Acervo GRUPEGI.

Imagem 02 Colônia do Paiol 

Fonte da Imagens: Acervo GRUPEGI.

Imagem 03 Colônia do Paiol 

Nessa comunidade, hoje na busca de reconhecimento por seu título de quilombola, espaço, tempos, narrativas, objetos, natureza e todos os elementos que se configuram como artefatos da cultura se encontram nas relações com os bebês e as crianças, criando uma geografia dos cuidados peculiar e que forjam singularidades nas relações de cuidar e educar, como expresso em trabalhos anteriores:

[...] as práticas de cuidar na infância também são frutos de encontros geracionais e vão se modificando à medida que percorrem diferentes geografias e histórias, forjando-se como posses de diferentes localidades onde são práticas. Por isso, podemos falar em uma Geografia dos Cuidados, uma vez que essas ações sociais são frutos de redes humanas que as construíram e retornam constituindo novas dimensões (LOPES; FERNANDES, no prelo).

Os cuidados que envolvem os processos de educação e, claro, desenvolvimento de bebês e crianças são manifestações das espacialidades locais, constituídas por redes simbólicas criadas por cronotopias (BAKHTIN, 2014)2. Essas existências e possibilidades nos permitem falar em uma Geografia da Infância.

Em trabalhos diversos, temos definido a Geografia da Infância como um campo de estudos, pesquisas e produção de conhecimentos e saberes que busca compreender as crianças, suas infâncias através do espaço geográfico e das expressões espaciais que dele se desdobram (ou definidos também como categorias, conceitos), entre os quais podemos destacar, por exemplo, a paisagem, o território, o lugar, mas também, como temos explicitado, é o desejo de compreender as geografias das crianças, uma vez que essas possuem lógicas próprias e que denotam formas autorais de ser e de estar no mundo.

Este texto, reconhecendo essa íntima formação que posiciona as pessoas e os espaços geográficos em suas imanências, pretende refletir sobre alguns argumentos que reconhecemos como essenciais na compreensão dessas alteridades geográficas da vida humana, declarada nas palavras de Anna Grigorievna Dostoievskaia na epígrafe que compõe esta primeira parte.

Parte 02: Argumentos e espaços

É, eu me sentia encurralada. E o meu coração me pedia para sair dali. Sentia que tinha acabado o meu tempo no Limoeiro. Que me adiantava ficar no sítio, me aguentando a ferro e fogo, sem recursos, mulher sozinha, nova? Qualquer um podia tentar pôr a minha pessoa debaixo da mão.

Mas esse meu desejo de ir embora não tem nada a ver com o meu amor pela casa e pela terra: aqui nasci e me criei. Acontece que sempre chega a hora de largar ninho. Do pinto quebrar a casca e pular do ovo.

O mundo lá fora era grande e eu não conhecia nada para além das extremas do nosso sítio. E tinha loucura por conhecer esse mundo.

Quando menina, ainda, saía pela mata com os moleques, matando passarinho de baladeira, pescando piaba no açudinho, usando como puçá o pano da saia. Mas, depois de moça, a gente fica presa dentro das quatro paredes de casa. O mais que saí é até o quintal para dar milho às galinhas, uma fugidinha ao roçado antes do sol quente, trazer maxixe ou melancia, umas vagens de feijão verde. O curral é proibido [...].

(Raquel de Queiróz em Memorial de Maria Moura, 2002, p. 45-6)

Como enunciado anteriormente, a Geografia da Infância assume que as atividades humanas ocorrem num tempo histórico, mas também em espaços forjados nas relações sociais, econômicas e políticas. Afirma-se, assim, que todas as pessoas possuem uma dimensão histórica, marcada por diferentes temporalidades que se cruzam e possuem também uma dimensão geográfica, criada por diversas espacialidades que se expressam em paisagens, territórios, lugares, regiões, redes, entre outras.

Isso nos leva a assumir alguns argumentos em relação ao espaço geográfico. O primeiro deles é que o espaço é uma categoria fundamental da existência e vivência humana. Os bebês e crianças humanas nascem num mundo de linguagem, que envolvem artefatos da cultura, mas também palavras humanas. Nascem, assim, em espaços forjados pelas linguagens outras que emergem em formas de muitas paisagens, de diferenciados territórios, de múltiplos lugares, de profusos delineamentos espaciais, de onde parte seu desenvolvimento.

Aceitamos que o desenvolvimento é marcado pela confluência entre a filogênese (a história de uma espécie animal), a ontogênese (o desenvolvimento do indivíduo dentro da espécie) e a sociogênese (a cultura de um grupo), que permitem as singularidades de cada um de nós. E isso não acontece em um espaço meramente físico, onde as formas se erguem como objetos sem significados, tradicionalmente alçados pelas experiências sensório-motoras e pela maturação biológica, mas em espaços que são pujantes linguagens, que são dados, vedados, proibidos, liberados, coibidos!

Desde o nascimento, as crianças, enquanto sujeitos sociais, co-constituidoras da cultura, estão nesse processo, pois nascem em estreitos contatos com os outros, capazes de se identificar com seus co-específicos, capazes de aprendizagens culturais. Como seres de linguagens e forjados na linguagem, suas consciências têm sua origem em palavras outras, que abrigam muitas linguagens, entre elas, as espaciais. A literatura está repleta de passagens que evidenciam essas situações, como na narrativa de Maria Moura, personagem feminina de Raquel de Queiróz (obra citada), ou nas lembranças de José Lins do Rego presentes em Meus Verdes Anos (2011):

Tanto me contaria a história que ela se transformou na minha primeira recordação da infância. Revejo ainda hoje a minha mãe deitada na cama branca, a sua fisionomia de olhos compridos, o quarto cheio de gente e uma voz sumida que dizia: — Maria, deixa ele engatinhar para eu ver. Pus-me a engatinhar pelo chão de tijolo e a minha mãe sorria e eu ouvia o choro convulso da minha tia (REGO, 2011, p. 19).

A experiência espacial nunca é, por si só, uma experiência meramente física, de recursos puramente sensórios, em busca de escalas a serem percorridas. Nenhuma criança desloca-se em planos supostamente métricos. Sempre são feitas caminhadas na cultura e em todos os constrangimentos que essa forja em nós e que nós impetramos no meio social também.

Massey (2008, p. 29) nos lembra que o espaço: [...] é a esfera da possibilidade da existência da multiplicidade (...)” onde “distintas trajetórias coexistem, é a esfera da possibilidade da existência de mais de uma voz” (Idem). Para ela:

sem espaço não há multiplicidade, sem multiplicidade não há espaço. Multiplicidade e espaço são co-constitutivos. Precisamente porque o espaço é o produto de relações-entre-relações, que são práticas materiais necessariamente embutidas que precisam ser efetivadas, ela está sempre num processo de devir, está sempre sendo feito – nunca finalizado, nunca se encontra fechado (MASSEY, 2008, p. 29).

Na mesma obra, Massey, ao reconhecer que as formas de se imaginar o espaço nos leva a ter ações específicas sobre ele, a desenvolver concepções e epistemologias, identifica o caráter político da linguagem. Harvey (2001) recorda que a instauração do que chamamos de “Modernidade” elegeu outras relações com o espaço e tempo, fundando uma perspectiva de metricidade, geometrias possíveis de serem calculadas em suas extensões e localizações, pontos fixos e bases físicas, que são emolduradas em “representações” cartográficas e validadas como verdades que se espraiam nas narrativas universais e únicas.

É o/um momento marcado pelo cisma do tempo e do espaço, pelo recorte do humano sobre a espacialidade (e não na espacialidade), em que o sujeito rompe com seu objeto (que agora passa para a sua condição de contemplação), pela perspectiva da interação (e no apagamento da unidade), os binarismos se materializam como lógicas a serem seguidas (norte e sul, leste e oeste, noite e dia, natureza e cultura, entre muitos outros). As vozes na história passaram a ser vistas e ouvidas como uma sucessão de eventos, sem simultaneidades e sem experiências de coetaneidades. O tempo linear passa por um espaço também linear e toda a humanidade caminha em busca de uma redenção alocada num futuro a ser alçado, cujo passado deixa de existir e o presente se torna um lampejo fugas, instâncias a serem superadas (LOPES; BARENCO, 2016).

Harvey (2001, 2015), Edward Soja (2006) e outros (mesmo que de forma indireta como Massey – obra citada) falam em uma “virada espacial”, apontam para a necessidade de conceber novas formas de olhar a condição espacial e seu encontro com a vida humana, com o ser/estar no social e no natural.

Uma virada que, para nós, é marcada por outros argumentos que se fundem aos já expressos até aqui e se encontram com os postulados que temos seguido em nossos trabalhos no campo da Geografia da Infância, com as crianças e com suas vivências espaciais, calcadas em pedagogias libertadoras (de Paulo Freire e suas obras diversas) e insumissas (como aponta Patrícia Medina Malgarejo, 2015) e que, ao serem assim desenhados, creiam na liberdade e criação infantis; não aprisionem as lógicas e autorias infantis em teorias prévias, mas em potências de diálogos; não reduzam a capacidade de criação infantil em um mundo de fantasia, reconhecendo a grande capacidade de abstração das crianças (comumente confundida com as perspectivas evolucionistas, de um concreto para um abstrato, de um menos para um mais, entre outros) e , sobretudo, tenham em sua centralidade a permissão de se estabelecer uma relação COM as crianças e não somente para as crianças.

Assim, falamos de um sujeito que nasce em sua precariedade ontogenética e, ao ser atravessado por outros planos genéticos de desenvolvimento (filogênese/sociogênese), a precariedade passa a ser um ganho qualitativo, pois se torna abertura para o outro/a, para potentes aprendizagens e contatos de instrução que possibilitam o desenvolvimento, as transformações, as metamorfoses instituintes da humanização. E, nesse movimento, temos o espaço como uma das múltiplas linguagens em que estamos imersos desde o nascimento.

Parte 03: Justiça existencial e amorosidade espacial

Raimundo levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal e ganhou o morro. Aí começaram a surgir as coisas estranhas que há na terra de Tatipirun, coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto. Sentiu uma grande surpresa ao notar que Tatipirun ficava ali perto de casa. Foi andando na ladeira, mas não precisava subir: enquanto caminhava, o monte ia baixando, baixando, aplanava-se como uma folha de papel. E o caminho, cheio de curvas, estirava-se como uma linha. Depois que ele passava, a ladeira tornava a empinar-se e a estrada se enchia de voltas novamente. (Graciliano Ramos em A Terra dos Meninos Pelados, 1939, p. 02)

Por que é importante para nós a questão da autoria infantil? Essa é uma questão que já levantamos em outro texto (LOPES; MELLO, 2017) e, lá mesmo, traçamos algumas palavras que buscam configurar nossos argumentos:

Temos disponíveis para nossas ações e estudos, um conjunto de conceitos que a nosso ver se referem ao protagonismo infantil, que é nossa perspectiva em relação às crianças e seus processos. [...]Os conceitos desenvolvidos, a nosso ver, respondem parcialmente às demandas de estudos, e precisam ser problematizados [...]Aqui cabe defender que a escolha pela noção de autoria deve-se a sua proximidade com o conceito de vivência [...] e pela [...] indissociabilidade das atividades éticas na formação do pensamento e da ações infantis no mundo (LOPES; MELLO, 2017, p. 33-4).

A virada espacial trazida anteriormente e que envolve para nós uma virada epistemológica nas concepções que invadem a vivência das crianças com os espaços geográficos, puxando-nos para além de sua dimensão física e métrica, associamos, também, as grandezas ética e responsiva (BAKHTIN, 2012) para com as lógicas e autorias infantis.

Esse encontro nos coloca, necessariamente, em outras perspectivas espaciais na relação com as crianças e nas relações entre saberes e seres. A coetanidade passa a ser uma escolha epistêmica e nos remete a assumir que estar em locais diferentes no espaço não necessariamente significa criar hierarquias espaciais, mas diferenças constitutivas que transformam, alteridades. Boaventura de Souza Santos (obras diversas), falando-nos em epistemicídios, em monoculturas do saber, entre tantas outras concepções, afirma na impossibilidade de pensar em uma justiça cognitiva em pensamentos tão abissais como os que nos acompanham, pois,

como produto do pensamento abissal, o conhecimento científico não se encontra distribuído socialmente de forma equitativa — nem poderia estar, uma vez que o seu desígnio original foi converter este lado da linha em sujeito do conhecimento e o outro lado em objeto de conhecimento. As intervenções no mundo real por ele propiciadas tendem a servir aos grupos sociais que têm maior acesso a esse conhecimento. Enquanto as linhas abissais continuarem a ser traçadas, a luta por uma justiça cognitiva não terá êxito caso se apóie apenas na idéia de uma distribuição mais equitativa do conhecimento científico. Além do fato de que tal distribuição é impossível nas condições do capitalismo e do colonialismo, o conhecimento científico tem limites intrínsecos quanto ao tipo de intervenção que promove no mundo real. Na ecologia de saberes, a busca de credibilidade para os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimento científico. Implica simplesmente a sua utilização contra-hegemônica. Trata-se, por um lado, de explorar a pluralidade interna da ciência, isto é, as práticas científicas alternativas que têm se tornado visíveis por meio das epistemologias feministas e pós-coloniais, e, por outro lado, de promover a interação e a interdependência entre os saberes científicos e outros saberes, não-científicos (SANTOS, 2007, s/p).

Em outro texto, Santos (2016) aponta [...] que não há justiça global sem justiça cognitiva global, isto é, as hierarquias do mundo só serão desafiadas quando conhecimentos e experiências do Sul e do Norte puderem ser discutidos a partir de relações horizontais. Inspirados e corroborando com suas ideias, ao nos aproximarmos das condições éticas e responsivas com o ser e estar das crianças, falamos também em uma justiça existencial. Uma justiça que reconheça as crianças como pessoas criadoras de cultura, criadoras de espaços geográficos, muitas vezes negados e negligenciados por nossas lógicas adultas, pelos egocentrismos adultos e pelas próprias condições adultocêntricas das sociedades.

Essa justiça só é possível se pensarmos em geografias com as crianças, em geografias que respeitem seus espaços desacostumandos (LOPES, 2014; 2018) como potência de criação do novo e não algo que deve ser negado em nome de um vir a ser, em linhas de desenvolvimento únicas em direção a um mundo adulto.

Essa é, para nós, a grande virada espacial, nossa luta política nesses anos de trabalho com as crianças, com os bebês! Junta-se, portanto, a uma justiça existência, uma amorosidade espacial para com o outro/a e, nesse caso aqui, para com as crianças.

E de que amorosidade estamos falando (que também nos permite falar em uma amorosidade espacial com as crianças)? Não estamos aqui falando dos perigos do amor expressos por Geraldi (2016), em seu texto de mesmo nome no qual reconhece os perigos do amor à arte, quando “[...] “o amor às formas na expressão estética” (GERALDI, 2016, p.4) levam “ao formalismo, ao hermetismo, ao descompromisso” (idem); os perigos do amor à ciência que “estamos acostumados, chamada de moderna, [que] se caracterizou por três grandes princípios: a universalidade, objetividade e preditibilidade, excluindo de seu mundo o sujeito, o espaço e o tempo” (Ibidem, p.5) e aos perigos do amor à vida, a religião e sua moral que pode ser tornar cego, que “pretende impor uma ‘normalidade’” (Ibidem, p. 9) e que são “amores egoístas” (idem).

Falamos de uma amorosidade que é a defendida pelo próprio Geraldi, ao trazer suas veredas de amorização e afirmar que essa “é um processo de contínuo dar-se aos outros para se fazer único e irrepetível, apondo nossa assinatura responsável na estética, na ciência e na vida” (Ibidem, p. 10) e ainda que no “[...] mundo da vida, onde as relações se constituem, a amorização se abre para além de nós próprios [...](Idem).

Reconhecemos que é a amorosidade do outro que nos torna humanos, que nos toca no humano. Para nós, o “amor é uma categoria ética, [...] Diz respeito a nossa não indiferença, à escuta ativa [sensível] e dialógica com o outro, todos mediados pelo mundo” (LOPES; MELLO, 2017, p. 149). É, nos meandros desse ato responsivo, no encontro com as crianças e com suas formas singulares de viver os espaços geográficos e com eles forjar outros tempos históricos que se situa a defesa de uma amorosidade espacial.

A amorosidade espacial é, por fim, o desejo que as crianças e seus saberes espaciais possam descolonizar nossos seres, nossas subjetividades, tão aprisionados por nossas lógicas únicas/universais e, como pequenos e intensos bárbaros, permitam fazer fluir por nossos corpos, vozes, cognição, emoções e afetividade outras espacialidades: de vozes silenciadas, caladas e subalternizadas.

Referencias

BAKHTIN, l M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2.ed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. [ Links ]

BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: A Teoria do Romance. Tradução Aurora Fornoni Bernardini et al. 7. São Paulo: HUCITEC, 2014. [ Links ]

BHABHA, H. K. O local da cultura. tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. [ Links ]

DOSTOIEVSKAIA, A. G. Meu Marido Dostoievski. Tradução: Zoia Ribeiro Prestes. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. [ Links ]

GERALDI, J. W. Os perigos do amor. In: Bakhtin em pesquisa: o III Encontro de estudos bakhtinianos. Revista ALEPH, ano XIII, nº 25, p. 1-11, maio de 2016. [ Links ]

HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2001. [ Links ]

LOPES, J. J. M. Geografia e Educação Infantil: espaços e tempos desacostumados. Porto Alegre: Mediação, 2018. [ Links ]

LOPES, J. J. M.; MELLO, M. B. de. "Tinha cebola desmaiada": Bakhtin e o pesquisar com. In: Bakhtin em pesquisa: o iii encontro de estudos bakhtinianos. Revista ALEPH, ano XIII, nº 25, p. 260-268, maio de 2016. [ Links ]

LOPES, J. J. M.; MELLO, M. B. de. Autorias Infantis: processos intermodais de criação In: ARAÚJO, Vania C. de. (org) Infâncias e Educação Infantil. Curitiba: CRV. 2107. [ Links ]

LOPES, J. J. M; FERNANDES, M. L. B. Geografia das Infâncias, Geografia dos bebês, das crianças e dos jovens e a Geografia dos cuidados: veredas de coetaneidade e da alteridade. In: LOPES, Jader Janer M; FERNANDES, Maria Lídia. B.; TEBET, Gabriela. Geografia das crianças, dos jovens e das famílias: temas, fronteiras e conexões. No prelo. [ Links ]

MASSEY, D. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2008. [ Links ]

MELGAREJO, P. M. Pedagogías insumisas Movimientos político-pedagógicos y memorias colectivas de educaciones otras en América Latina. México: Juan Pablos Editor, 2015, [ Links ]

MELLO, M. B.; LOPES, J. J. M. Formação como movimento alteritário. In: MORAES, Jacqueline de Fátima dos S.; ARAÚJO, Mairce da S.; CARVALHO, José Ricardo (org.). Leitura e escrita na escola e na formação docente: experiências políticas e práticas. Curitiba; CRV, 2017. [ Links ]

QUEIROZ, R. Memorial de Maria Moura. São Paulo: Siciliano, 2002. [ Links ]

REGO, J. L. do. Meus Verdes Anos. Rio de Janeiro: José Olympio. 2011 [ Links ]

SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002007000300004Links ]

SILVA , J. L. B. da, & CARVALHO , J. do P. F. de. Entrevista com Jader Janer Moreira Lopes. Olhares: Revista do Departamento de Educação da Unifesp, vol, 2, nº 2 , p. 301-334, 2014. [ Links ]

SOJA, Edward W. Geografias pós-modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. [ Links ]

VALVERDE, O. Estudo regional da Zona da Mata de Minas Gerais. In: Revista Brasileira de Geografia, ano XX, nº.1, janeiro-março de 1958. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1958_v20_n1.pdf Links ]

1Falo aqui dos autores: Mikhail Bakhtin (1895-1975), Pavel N. Nikolaevich Medvedev (1892-1938) e Valentin Nikilaevič Volochinov (1895-1936). Ver referências bibliográficas ao final.

2Lembremos que Bakhtin cria o conceito de cronotopo que seria a “interligação fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas” (BAKHTIN, 2014, p.211) e ainda que os “cronotopos podem se incorporar um ao outro, coexistir, se entrelaçar, permutar, confrontar-se, se opor ou se encontrar nas inter-relações mais complexas (Idem, p. 357).

Recebido: 18 de Maio de 2021; Aceito: 18 de Julho de 2021

Creative Commons License Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons CC BY-NC-SA 3.0 BR.