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Revista de Educação Pública

versão impressa ISSN 0104-5962versão On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.31  Cuiabá jan./dez 2022  Epub 18-Out-2022

https://doi.org/10.29286/rep.v31ijan/dez.12165 

Artigos

Arte e fotografia no contexto escolar indígena a partir da Pedagogia Histórico-Crítica

Art and photography in the context of indigenous school from the perspective of Historical-critical Pedagogy

Ana Paula Maciel Soukef MENDES1 
http://orcid.org/0000-0002-0802-2111

Maria Cristina da Rosa FONSECA DA SILVA2 
http://orcid.org/0000-0003-1571-9176

Maria Lucila  HORN3 
http://orcid.org/0000-0001-6794-2834

1Doutora em Ciências Humanas

2Doutora em Engenharia de Produção, vinculada à UDESC

3Doutora em Educação


Resumo

O presente artigo discute sobre arte e fotografia no contexto da escola indígena, sob a perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC), reconhecendo a fotografia como uma forma de expressão artística capaz de despertar a criatividade, a criticidade e o desejo de ação sobre o mundo. As imagens fotográficas também são utilizadas pelos indígenas como estratégia na luta por direitos. O artigo apresenta um breve relato de uma experiência desenvolvida na Escola Itaty, localizada na Terra Indígena Guarani Morro dos Cavalos, na cidade de Palhoça - Santa Catarina, que teve como foco a construção de um acervo visual indígena.

Palavras-chave Fotografia; Escola; Povos Indígenas; Pedagogia Histórico-Crítica

Abstract

This essay is about art and photography in the context of the indigenous school, from the perspective of Historical-Critical Pedagogy. Photography is recognized as a form of artistic expression that involves creativity, criticism and transformation of the world. Photographic images are also used by many indigenous people as a strategy in the fight for rights. The article presents a brief report of an experience developed at the Itaty School, located in Morro dos Cavalos, Palhoça - Santa Catarina, focused on the construction of an indigenous visual collection.

Keywords Photography; School; Indigenous people; Historical-Critical Pedagogy

Introdução

A necessidade de dominar os conhecimentos sócio-históricos produzidos pela humanidade e, assim, travar as lutas necessárias frente à cultura ocidental, talvez seja um dos motivos para alavancar a criação de escolas indígenas. No entanto, essas escolas nascem trazendo em si um desafio, como dominar os conhecimentos da cultura não-indígena e, ao mesmo tempo, fortalecer e valorizar as tradições culturais e étnicas? A formação de professores indígenas e a concretização de uma educação diferenciada apresentam-se como possibilidades de desenvolvimento de uma outra perspectiva de escola, uma escola emancipadora que possa ampliar a compreensão sócio-histórica acerca das culturas e, ao mesmo tempo, alimentar as formas de luta e as resistências frente ao projeto capitalista de exploração das vidas e dos territórios.

Compreendemos que é com base na necessidade de organizar-se para o enfrentamento das opressões que se dá o desejo não só por formalizar uma escola para as crianças indígenas, mas também por ocupar as universidades e outros espaços, e assim, fortalecer os movimentos indígenas, inclusive no âmbito da arte institucionalizada. Essa ocupação vai muito além das escolas, no entanto este é o recorte escolhido para o artigo e sobre o qual nos centraremos.

Fazemos esse preâmbulo para ressaltar nosso ponto de vista crítico ao sistema que opera na lógica de expropriação não só de bens materiais, como também de bens culturais. Neste cenário, a arte e a fotografia são entendidas, por nós, como elementos capazes de materializar o enfrentamento a partir de uma experiência estética diferenciada do modo dominante, constituindo-se como uma expressão e, ao mesmo tempo, um documento, no binômio arte e vida. Esse movimento de acesso às tecnologias precisa ser refletido e apropriado pelas comunidades indígenas, mas não sem perder a crítica ao consumismo e à proliferação da indústria cultural.

Antes de entrar no tema propriamente dito, é preciso dizer que um único artigo não dá conta de toda a diversidade de elementos culturais envolvidos na temática. Entretanto, nosso objetivo é produzir reflexões que possam ser fonte para debates sobre um assunto tão importante e, ao mesmo tempo, tão escasso no campo da arte e educação - um debate que, quando aparece, é eivado de preconceitos e generalizações.

A partir do referencial teórico da Pedagogia Histórico-Crítica, o presente artigo enfatiza a relevância da fotografia enquanto processo criador no contexto escolar indígena. Discute-se a importância das tecnologias nas realidades contemporâneas dos povos indígenas e a relevância destes instrumentos nas lutas por direitos e territórios. Conclui-se, a partir de experiência de campo realizada por uma das autoras, que a fotografia permite o olhar crítico e transformador das relações e vivências dos alunos, assim como o fortalecimento de processos culturais e identitários.

Reflexões críticas sobre as tecnologias

A fotografia está cada vez mais presente nas escolas regulares dos centros urbanos. Nas cidades, o acesso às tecnologias de TV e telefone vem crescendo ao longo das últimas décadas e, mais recentemente, os smartphones popularizaram o fazer fotográfico entre os alunos. Estudos como os de Souza (2020), Rodrigues (2013) e Freitas (2012), de matrizes sócio históricas, debruçaram-se sobre a imagem digital, móvel ou fixa, e sobre a fotografia no ensino de arte e na formação de professores. No entanto, nenhum deles se dedicou diretamente ao ensino de arte e fotografia em escolas indígenas, podendo-se constatar, em breve pesquisa, que há carência de estudos neste campo específico.

Costa (2010) desenvolve um estudo na comunidade indígena de Suruí-Aikewára, situada na região do Araguaia, no Pará. Segundo a autora, a proximidade da comunidade com os centros urbanos facilita o acesso às tecnologias, propiciando algumas vezes o acesso a equipamentos como filmadoras, câmeras fotográficas e também à internet. A autora pontua que essas tecnologias são vistas por integrantes da comunidade como uma forma de registro de sua história, seus costumes e hábitos, perpetuando sua cultura e guardando a participação dos mais velhos por meio de registros audiovisuais.

Em outra produção, Pedrosa et al. (2017) relatam estudo realizado junto às comunidades Arara-Karo e Gavião-Ikolen, localizadas na Terra Igarapé Lourdes (Ji-Paraná/Rondônia). Os pesquisadores acompanharam a implementação de redes tecnológicas nas escolas da comunidade e trabalharam com pesquisa-ação diretamente com os professores indígenas, desenvolvendo uma formação continuada e colhendo as experiências realizadas por professores.

Observou-se que, nos artigos analisados, os pesquisadores evidenciam as contribuições das tecnologias, no entanto, não se debruçam especificamente sobre as dificuldades de acesso, falta de manutenção de redes, assim como a qualidade dos equipamentos disponíveis para as comunidades. Fonseca da Silva e Schlichta (2016), ao tratarem do Projeto Laptop na Escola, que envolveu 19 escolas urbanas da Região Sul do Brasil, apontam as dificuldades do uso de equipamentos tecnológicos no âmbito educacional, e as inúmeras limitações com que estas experiências se realizam. Os inúmeros percalços, assim como a falta de prioridade a esses projetos, muitas vezes inviabilizam o objetivo de ampliar a experiência estética e o desenvolvimento de novas leituras de mundo nos alunos.

No texto O que dizem (e pensam) os índios sobre as políticas de inclusão digital?”, os pesquisadores Tatiane Klein e Nicodème Renesse descrevem a realização de um evento na Universidade de São Paulo, intitulado 1º Simpósio Indígena sobre usos da Internet, que contou com a participação de mais de 24 indígenas, vindos de 16 comunidades de 13 estados brasileiros. Através de depoimentos dos participantes, os autores contextualizam as realidades tecnológicas de algumas aldeias.

Kumaré Ikpeng relatou que, quando a internet chegou ao Posto Pavuru, no Parque Indígena do Xingu, apenas médicos e enfermeiras que prestavam serviço para a Funasa tinham acesso à rede. Mais tarde, uma iniciativa da Secretaria da Educação (MT) trouxe uma conexão à escola, ampliando o acesso. Segundo Kumaré, o uso prioritário da internet entre os Ikpeng é na educação, possibilitando a realização de pesquisas e evitando que os jovens devam sair das comunidades para estudar. Em julho de 2011, os Ikpeng lançaram o seu próprio site (KLEIN; RENESSE, 2018, n.p.).

Outro depoimento:

Lucas Benite, Guarani Mbya vindo do Angra dos Reis (RJ), é o coordenador de um projeto de audiovisual em sua aldeia e destacou o papel dessas tecnologias para que os índios possam estudar: “Hoje em dia a gente não está dependendo dos brancos”. Mas reiterou as preocupações de Takumã Kuikuro com a sustentabilidade da tecnologia (KLEIN; RENESSE, 2018, n.p.).

A sucessão de depoimentos apresenta, em cada comunidade, as condições de acesso e manutenção dos usos das tecnologias, onde aparecem também as limitações e dificuldades, tal como na região do rio Uaupés.

Vindo do povoado de Iauaretê, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM), Elizeu Nascimento Pedrosa, do povo Piratapuya, relatou que a internet foi levada para a região do rio Uaupés pela Fundação Bradesco, que criou um Centro de Inclusão Digital, inaugurado em 13 de junho de 2008. Entretanto, devido às dificuldades de transporte e aos custos, a internet somente foi instalada um ano e meio depois, no final de 2009. Atualmente, o Centro já permite que estudantes acessem a rede e façam pesquisas, ainda que faltem acessórios como fones de ouvido e webcams para realizar o projeto de escola virtual (KLEIN; RENESSE, 2018, n.p.).

Os depoimentos reafirmam a importância da comunicação digital e do acesso às tecnologias no contexto indígena, porém cabe destacar também a existência de problemas e entraves neste processo, que são amplificados, muitas vezes, pelas dificuldades de acesso geográfico aos locais, pela instabilidade política e territorial que muitos povos enfrentam, assim como pelas situações de expulsão, violência e ameaças a que muitas terras indígenas estão submetidas. Uma realidade que interfere na vivência escolar dos alunos, na atuação dos professores indígenas e na execução de projetos.

A PHC, a fotografia e as perspectivas históricas da imagem dos povos indígenas

A Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) foi idealizada por Dermeval Saviani como uma pedagogia dialética e emancipatória. O autor aponta que a PHC, para se concretizar, atua com três principais tarefas: a identificação das formas através das quais se expressa o saber objetivo produzido historicamente; a conversão do saber objetivo em saber escolar, de tal maneira que se torne compreensível aos alunos; e o provimento de meios para que os estudantes não apenas assimilem o saber objetivo, mas que entendam seu processo de produção.

A PHC tem suas bases filosóficas no materialismo histórico-dialético e no pensamento marxista, posicionando-se em prol de um conhecimento que leve à transformação social. Por isso mesmo as tecnologias são apreendidas de maneira crítica, pensando-se em como determinados usos tecnológicos podem contribuir para a legitimação e para a manutenção do sistema capitalista. Para o Ensino de Arte, a partir do viés crítico, a fotografia possui objetivos expressivos e estéticos que estão para além do uso cotidiano que fazemos das câmeras fotográficas, esses objetivos perpassam pela criticidade, pela criação artística e pela problematização do próprio entorno. Ampliar a visão de mundo a partir da estética fotográfica requer partir da prática social, desenvolver o processo educativo e reexaminar a prática social, ressignificando-a.

Por exemplo, na perspectiva crítica, pode-se dizer que a fotografia do artista e etnógrafo Edgar Corrêa Kanaykõ, da etnia Xakriabá, parte da leitura de seu contexto a fim de contribuir para a luta e para a organização de seu povo. Através das imagens produzidas pelo fotógrafo, podemos encontrar aspectos que corroboram com a fotografia como forma de apreensão crítica dos conhecimentos produzidos pela humanidade, pois em seu trabalho vemos refletido não apenas o desejo de manutenção e preservação da cultura frente ao projeto de expansão capitalista, mas encontramos também a própria fotografia como estratégia de resistência, ou seja, a tecnologia apreendida de maneira consciente e humanizadora, além de suas características estéticas, como objeto artístico.

Em entrevista concedida ao Boletim UFMG, intitulada “Olhar que atravessa a lente”, de Teresa Sanches, o fotógrafo explica seu contato com a fotografia e sua visão sobre o poder das imagens.

Sou Edgar Kanaykõ, do povo Xakriabá. Moro na terra indígena Xakriabá, no município de São João das Missões, no Norte de Minas. Meu interesse pela fotografia e audiovisual surgiu do próprio interesse da comunidade, quando, nos anos 2000, viu chegar a energia elétrica e, com ela, equipamentos como televisão, rádio e a câmera fotográfica. Desde então, a fotografia, que inicialmente foi vista como um perigo – pela desconhecida influência que poderia exercer sobre nossa cultura –, passou, aos poucos, a ser conhecida e percebida também como instrumento de luta e resistência (SANCHES, 2020, p.04).

Na perspectiva da PHC, é importante aos indígenas conhecer e acessar não apenas as suas tradições e culturas, mas também os conhecimentos e produções de outras culturas, para desenvolver as ferramentas de luta necessárias na contemporaneidade, sendo a escola o principal caminho para acesso a estes conhecimentos. A fotografia, inserida no contexto escolar, se apresenta também como uma ferramenta potencial para a problematização do mundo.

Refletir sobre a utilização dos meios digitais e audiovisuais como estratégia de luta e manutenção das vidas indígenas exige um olhar crítico também para/com as tecnologias, e exige compreender a historicidade da relação entre os brancos, os povos indígenas e a produção de imagens - uma relação atravessada por questões bastante marcantes de violência e exploração.

Já desde os primeiros contatos entre europeus e indígenas teve início a produção de imagens sobre os povos nativos, principalmente através de desenhos e esboços feitos pelos viajantes. Estes primeiros registros, que nutriam todo um imaginário europeu acerca do Novo Mundo, transitavam entre a exotização e a romantização e/ou demonização do universo indígena, visões que foram amplamente reproduzidas e tornaram-se centrais na construção de um olhar sobre este “outro”.

Muitas destas primeiras imagens colocavam os povos indígenas como seres desprovidos de humanidade, ou como povos em um estágio de desenvolvimento social absolutamente primitivo. Estes registros ainda hoje seguem presentes em muitos materiais didáticos escolares, sem a devida contextualização e problematização, reproduzindo e reafirmando imageticamente uma inferioridade dos povos originários, apresentados como povos pertencentes ao passado.

Com o advento da fotografia no século XIX e o início do uso da câmera fotográfica para registro em campo, as imagens não deixaram de refletir o pensamento da superioridade europeia. Considera-se que as primeiras imagens fotográficas sobre povos indígenas habitantes do território brasileiro foram feitas na década de 1840, pelo fotógrafo Thiesson, um daguerreotipista francês, do qual se conhecem poucas informações. Mas sabe-se que ele chefiou uma expedição à Amazônia e foi autor das imagens de dois indígenas - um homem e uma mulher - pertencentes aos povos denominados, então, botocudos (MOREL, 2001).

No entanto, é interessante destacar que estas primeiras imagens não foram feitas em território brasileiro, mas na Europa, para onde os dois botocudos foram levados, muito provavelmente de maneira forçosa, com intuito de serem investigados pelos cientistas franceses. Em 1843, eles foram tema de um debate realizado no Institut de France cuja discussão centrava-se no questionamento dos cientistas europeus se os dois indígenas deveriam ser estudados como seres humanos ou não.

Os dois indígenas tiveram todas suas características físicas analisadas e registradas, conforme o ideal científico antropométrico em vigor no período. No entanto, apesar de todos os registros feitos, não se tem informação de qual foi o destino dos dois - não se sabe para onde foram levados, nem se voltaram para suas famílias. Deles restaram apenas cinco imagens perdidas e o registro de violência e sujeição que a fotografia, instrumento da ciência e da objetividade naquele período, eternizou.

Grande parte dos registros fotográficos feitos sobre os povos indígenas no século XIX partem dessa falsa perspectiva da câmera fotográfica como instrumento exemplar da objetividade científica. Junto às fotografias se incluíam ferramentas de medição antropométricas, como em muitas imagens do fotógrafo Marc Ferrez. Para Kossoy (2007), a antropometria era usada para comprovar cientificamente as características físicas dos diferentes povos, porém, na prática, serviu para a legitimação de uma ideologia colonialista de superioridade racial. “Esse projeto pseudocientífico era umbilicalmente ligado ao programa colonialista: evidenciar através do chamado “testemunho” fotográfico as diferenças físicas que caracterizavam uma pretensa “inferioridade” deste outro perante o homem branco” (KOSSOY, 2007, p. 60). Ressalta-se que para dominar o território indígena, era preciso desqualificar esses povos, para deslegitimar seu domínio sobre a terra e o que havia abaixo dela. Essa prática ainda é recorrente no capitalismo atual.

Ao longo do século XIX e início do século XX o conteúdo fotográfico produzido sobre os povos indígenas se caracterizou, majoritariamente, por imagens que transitavam entre o exótico e uma primeira tentativa de produção de documentos etnográficos. Mas é com a Comissão Rondon que o caráter de documentalidade ganhara força (TACCA, 2011).

A Comissão Rondon foi a grande responsável pelos registros de imagens e informações dos povos indígenas no Brasil durante o início e meados do século XX. Fernando de Tacca, em “A Imagética da Comissão Rondon” (2001) identifica três principais recortes/intencionalidades que podem ser percebidos no acervo visual construído pela Comissão. O primeiro momento identificado pelo autor, antes dos anos 20, registra os povos indígenas como selvagens, reforçando um suposto caráter exótico destas sociedades. O segundo momento, anos 20 e 30 principalmente, mostra um indígena “pacificado” e “dócil”, disposto a permitir-se “civilizar”. Já o terceiro momento mostra um “indígena civilizado”, ou seja, dominado, segurando símbolos nacionais como a bandeira do Brasil.

Embora o acervo imagético da Comissão Rondon demonstre, de fato, uma preocupação maior com a investigação etnográfica e científica, ainda assim reflete claramente aspectos políticos e ideológicos presentes no imaginário colonizador, como nos aponta Tacca (2001). O olhar sobre este “outro” espelha também um olhar sobre o território como algo a ser dominado e conquistado.

Ao longo do século XX também veremos um despertar de outras formas de registro, momento em que alguns fotógrafos passam a utilizar a câmera como um instrumento de luta para a garantia dos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas. Nesse sentido vale citar os nomes, por exemplo, de Claudia Andujar, Maureen Bisilliat, Nair Benedicto, entre outras. Mas é principalmente no século XXI que vemos surgir em maior volume a presença de fotógrafos indígenas, que dão um outro sentido à produção fotográfica e passam não apenas a dar visibilidade às suas realidades e lutas, mas também a registrar e eternizar as histórias e os aspectos mais importantes constituintes da percepção de seu povo, partindo de outras estéticas e propósitos.

O uso das mídias digitais e da fotografia pelos povos indígenas atualmente tem contribuído para um processo de pluralização das imagens e narrativas, narrativas estas que, como vimos, foram historicamente enviesadas por um olhar violento e colonialista. Hoje há uma percepção e uma possibilidade, ainda que restrita, de ocupação deste espaço audiovisual por outras (cosmo)visões e de utilização da câmera fotográfica como ferramenta de luta cultural.

A nosso ver, o investimento na formação estética de estudantes indígenas dentro e fora das comunidades, pode auxiliar a compreensão das condições históricas de produção da opressão e seus desdobramentos nas formas simbólicas de reprodução dessa desigualdade na produção artística.

Os meios audiovisuais e as culturas indígenas

Em “As literaturas indígenas e as novas tecnologias da memória”, Daniel Munduruku discorre sobre a importância das tecnologias no contexto indígena atual, afirmando que assim como a memória e a cultura estão em constante atualização, também estão as suas formas de preservação e manutenção. Segundo o autor, as tecnologias passaram a ser, na contemporaneidade, um instrumento importante na atualização da memória dos povos que sempre usaram a oralidade como meio de transmissão dos conhecimentos, ou ainda, uma maneira de preservar aquilo que o autor chama de tradição. “Hoje uso o computador, a internet, as câmeras, as tecnologias para expressar antigas convicções. Sei que o faço como um instrumento que sou, utilizado pelas mãos invisíveis da Tradição” (MUNDURUKU, 2018, p.189).

Especialmente sobre a produção audiovisual, Krenak (2020) reconhece uma proximidade que o filme é capaz de estabelecer com o aspecto da oralidade que marca as tradições dos povos indígenas. Segundo ele, é possível falar de uma convivência pacífica entre o modo de filmar e o modo de contar histórias dos povos que não têm a tradição da escrita, podendo-se pensar, a nosso ver, em uma proximidade de linguagem.

Sobre as produções audiovisuais indígenas, vários projetos, dentre eles o Vídeo nas Aldeias, tem se construído como um caminho possível para a preservação e atualização das histórias e memórias dos povos originários. Criado em 1986, o Vídeo nas Aldeias trata-se de uma proposta de produção audiovisual construída da parceria entre diversas etnias, assim como com cineastas não-indígenas, com objetivo de fortalecer aspectos culturais. O projeto realiza, desde os anos 80, oficinas audiovisuais em diversos territórios, e tem contribuído para formar cineastas indígenas em diferentes regiões do país. Dentre alguns dos cineastas Guarani formados pelo projeto estão Ariel Ortega, Jorge Morinico e Germano Beñites, que juntos produziram o filme Mokoi Tekoá Petei Jeguatá – Duas aldeias, uma caminhada (2008), dentre outros trabalhos.

Aqui também é importante destacar o trabalho poético e cinematográfico que vem sendo desenvolvido por Patrícia Ferreira Yxapy, professora e cineasta Guarani, também formada pelo projeto Vídeo nas Aldeias e criadora do Coletivo Mbyá-Guarani de Cinema. Em sua filmografia estão as produções As Bicicletas de Nhanderu (2011), Desterro Guarani (2011), TAVA, uma casa de pedra (2012), Mbya Mirim (2013), No caminho com Mario (2014), Teko Haxy - ser imperfeita (2018), Nhemongueta Kunhã Mbaraete (2020). Em suas produções, a cineasta discute especialmente os temas da espiritualidade e da cultura Guarani. Também navega por estes temas Alberto Alvares, cineasta, professor e tradutor Guarani, ganhador de diversos prêmios, que tem dentre suas produções os filmes O Último Sonho (2019), Guardiões da Memória (2018), Lágrima do Diamante (2017), A Dança Sagrada (2017), Tembiapo Regua (2017), dentre muitos outros. Em seu texto “Da aldeia ao cinema: o encontro da imagem com a história”, o cineasta aponta que:

Atualmente, o cinema Guarani é uma ferramenta importante para as comunidades contra a expulsão e exploração de terra, na luta pelo direito, reconhecimento e valorização do nosso modo de viver. A mídia, na maioria das vezes, nos projeta de forma estereotipada e romantizada. Porém, quando invertemos o ponto de vista da câmera e produzimos nosso próprio registro, transmitimos ao mundo nosso olhar. Deixamos de ser “caça”, e nos tornamos caçadores. Nós, Guarani, resistimos e lutamos desde o ventre de nossa mãe. A sabedoria dos mais velhos, nossa fonte de conhecimento, nos fortalece para seguirmos adiante (ALVARES, 2018, p.7).

O pesquisador Pedro Portella, em sua dissertação de mestrado intitulada “Essa máquina não caiu do céu” pontua aspectos interessantes da produção cinematográfica indígena. Portella, que ministrou oficinas de produção audiovisual para diferentes povos, em algumas ocasiões a convite do Projeto Vídeo nas Aldeias, aponta em seu trabalho aspectos culturais que atravessam o modo de compreender e produzir imagens. Entre o povo Huni Kuin, por exemplo, alguns dos participantes das oficinas passaram a considerar importante o uso da medicina da floresta Nixi Pae (Ayahuasca) antes da filmagem, como uma forma de conseguir mirar corretamente. Nas palavras do autor, é possível dizer que “para os ameríndios, o processo cinematográfico é em si xamânico, e que, durante uma oficina de formação audiovisual, é impossível dissociar o xamanismo do ato de filmar” (PORTELLA, 2014, p. 55).

A partir deste exemplo percebe-se o modo como os aspectos culturais impregnam os fazeres artísticos como um todo, sejam eles de criação audiovisual, fotográfica ou diferentes formas de expressão artística. As produções indígenas também revelam o aspecto da historicidade, especialmente da historicidade da luta indígena – algo que, a nosso ver, a marca com um caráter de resistência e luta, algo que também foi possível encontrar no projeto fotográfico desenvolvido por nós.

Experiência fotográfica na Aldeia Itaty e a educação indígena

Foi partindo desta perspectiva da fotografia como uma forma de luta e valorização sociocultural que se constituiu um projeto de oficinas de produção fotográfica junto à comunidade Guarani, localizada na cidade de Palhoça – SC, Tekoá Itaty - Terra Indígena Morro dos Cavalos, que se encontra há décadas em processo de luta pela demarcação de seu território. A fotografia, neste contexto, apresenta-se como um importante instrumento de visibilização da realidade enfrentada.

A experiência fotográfica foi conduzida por uma das autoras. Neste artigo procuraremos apenas destacar alguns aspectos específicos desta vivência e estabelecer relações entre o fazer fotográfico e sua relevância dentro do contexto escolar indígena. Para tanto, contextualizamos brevemente a comunidade e o modo de vida e educação Mbyá-Guarani.

A Terra Indígena Morro dos Cavalos está localizada na cidade de Palhoça - SC, em um território cortado pela BR-101 entre os quilômetros 231 e 235. Trata-se de um território de 1.988 hectares, ocupado tradicionalmente pelo povo Guarani. Registros antropológicos e arqueológicos atestam a passagem e a presença indígena no local desde tempos remotos. O processo de demarcação desse território teve início em 1993, quando pela primeira vez foi montado, pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), um grupo técnico para avaliação do local.

Desde que se iniciou, o processo de demarcação teve muitos avanços e muitos retrocessos, pois o local é alvo de fortes interesses de terceiros e de setores imobiliários, que freiam os trâmites legais para atender às demandas do capital. Passadas quase três décadas, a demarcação ainda segue sem uma conclusão definitiva, porém já se encontra em etapa final. A comunidade aguarda a realização da sexta etapa, de homologação, que consiste na assinatura por parte do presidente da república, situação que daria a comunidade posse plena das terras.

Todo este tempo tem sido marcado por muita luta e mobilização, assim como por ameaças e violências contra os indígenas residentes no local. Por estar cortada pela BR-101, a aldeia fica mais exposta e vulnerável a ataques. Tal como inúmeras outras terras indígenas, o Morro dos Cavalos vive um cenário de incertezas e conflitos, sofrendo fortes pressões de cunho político e econômico. No entanto, esta é uma luta que as lideranças há décadas levam em frente, pois para o povo Guarani seu território não é negociável. Dentro da cosmovisão deste povo, as tekoás, traduzidas como aldeias, são espaços sagrados e insubstituíveis, que possuem marcas das passagens de seus ancestrais e permitem a conexão com Nhanderu, Deus criador.

A visão de mundo Guarani se estrutura a partir do chamado Nhandereko. Frequentemente traduzido por pesquisadores como ethos, modo de vida, modo de ser, o Nhandereko é um grande sistema de pensamento que inclui preceitos religiosos, alimentares, territoriais, de convivência e organização social, englobando as noções centrais que alicerçam a cultura (ROSE, 2010). O Nhandereko tem como uma de suas características o reconhecimento da terra como parte do ser/cultura, assim como da indivisão homem/natureza e a indivisão dos saberes, o que se reflete profundamente no pensamento educacional Guarani e no funcionamento da escola na aldeia.

A comunidade conta com uma escola, a Escola Itaty, que possui atualmente todo o quadro docente formado por professores indígenas. A professora de Artes da escola, Mirim Gonçalves, em entrevista concedida a uma das autoras, explica que no universo Guarani é muito difícil criar uma separação rígida entre as disciplinas do contexto escolar, pois os diferentes campos de conhecimentos estão interligados a partir da cosmologia. Segundo a professora, o desenvolvimento das disciplinas nesta escola é pensado dentro da coletividade, tendo um tema principal como guia, que norteia o trabalho durante todo o ano letivo e para todos os professores. Ou seja, as artes não são pensadas isoladamente, mas em diálogo com tudo o que acontece na realidade dos alunos e no contexto da escola.

Além das formas tradicionais de arte Guarani, a professora também ensina aos alunos as artes não-indígenas, pois considera que estes conhecimentos são muito relevantes na realidade atual.

Gonçalves (2020) comenta que, no modo de ensino tradicional Guarani, o aprendizado é essencialmente construído por meio da observação e do contato com a natureza, e que “os alunos gostam mais das aulas ao ar livre, nas quais podem percorrer o espaço da aldeia” do que das aulas dentro das salas. Estas observações feitas pela professora nos permitem adentrar em reflexões mais profundas sobre algumas dificuldades de adaptação da educação indígena frente a um sistema educacional não-indígena dominante que, muitas vezes, surge como uma imposição.

Historicamente, o modo tradicional da educação Guarani sempre se deu através da oralidade. Por meio das narrativas orais das histórias e mitologias, os mais velhos ensinavam aos mais jovens, e assim o conhecimento se perpetuava, sendo a Opy (Casa de Reza) o espaço privilegiado deste processo de compartilhamento dos conhecimentos. No entanto, a partir do momento em que se tem início a obrigatoriedade da existência de escolas dentro das aldeias, inicia-se também uma luta de muitas comunidades para que não se perca o modo tradicional de ensino e para que a escola, de alguma maneira, possa se adaptar às particularidades do modo de ser de cada povo.

Existem diversos parâmetros legais que respaldam o ensino diferenciado dentro das terras indígenas. A Constituição Federal de 1988 em conjunto com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) garantem aos povos indígenas o direito a uma educação escolar específica, diferenciada, intercultural e bilíngue/multilíngue, que respeite os modos de vida e organização de cada povo, sendo dever dos Estados e municípios a execução e garantia deste direito.

No entanto, o modo como estas escolas se estruturam na prática nem sempre condiz com as garantias constitucionais. As experiências das escolas indígenas em território brasileiro abarcam uma pluralidade ampla e diversificada de realidades - que incluem desde aquelas com Planos Políticos Pedagógicos (PPP) próprios e que funcionam apenas com professores e diretores indígenas, até escolas que se organizam como qualquer outra escola urbana não-indígena, sem considerar nenhuma das particularidades educacionais da etnia.

Em seu Trabalho de Conclusão de Curso para a Licenciatura Intercultural Indígena da UFSC, Kerexu Yxapyry (2015), importante liderança Guarani no estado de Santa Catarina, pesquisou sobre estas diferentes realidades educacionais indígenas no estado. Em sua visão, as escolas indígenas enfrentam grandes desafios, dentre eles um dos maiores é a organização de um plano pedagógico que simultaneamente respeite as particularidades culturais do povo e, ao mesmo tempo, seja aceito pelas secretarias de educação, abarcando também saberes sistematizados que possibilitem o diálogo desses grupos sociais e os demais povos e culturas.

No trabalho acima mencionado, a pesquisadora relata a história da luta do Morro dos Cavalos na busca pela garantia de uma educação diferenciada. Segundo Yxapyry (2015), houve uma longa trajetória para que o plano pedagógico proposto fosse aceito pela Secretaria de Educação, um processo que teve início em outubro de 2006 e só finalizou em 2012. Atualmente, a Escola Itaty funciona de maneira diferenciada, baseando-se nas particularidades da etnia Mbyá-Guarani, e incluindo quatro principais eixos: a oralidade Guarani; a predestinação (concepção de que a criança é a manifestação de outra dimensão astral); as questões de gênero Guarani e a política local, levando também em conta os conhecimentos não-indígenas e a importância de ter acesso a estes para garantir a sobrevivência e o fortalecimento da luta indígena.

O projeto de fotografia

O projeto de fotografia surgiu como uma proposta de oficinas articuladas à escola, porém fora do período regular de aulas, e abertas para todos da comunidade que quisessem aprender. A maior parte dos interessados foram as crianças e os jovens da escola. Cerca de 15 alunos participaram ativamente das oficinas e alguns outros participavam esporadicamente. O projeto buscou pensar como a fotografia poderia contribuir no contexto escolar, principalmente no que diz respeito à valorização das histórias e memórias e ao fortalecimento da luta e da emancipação a partir da problematização crítica do mundo.

As oficinas foram realizadas quinzenalmente durante todo o segundo semestre de 2014, sempre no período da tarde, geralmente começando no início da tarde e finalizando ao entardecer, para que houvesse tempo para produzir sem pressa e para debater sobre a experiência ao final. A cada encontro realizava-se inicialmente uma breve conversa, para buscar entender o que, para eles, seria importante fotografar. Dentre os temas escolhidos estiveram: artesanato, espiritualidade, luta territorial, meio ambiente, dentre outros. Alguns temas como espiritualidade e luta territorial foram motivados por ocasiões específicas que estavam acontecendo na aldeia, como por exemplo o encontro de anciões e lideranças espirituais e as manifestações pela homologação do território, que incluíam o fechamento da rodovia BR-101. Nestes momentos específicos, quando a aldeia estava mais movimentada, era possível notar a grande importância que os alunos davam para a fotografia e o engajamento que ela proporcionava.

Já no primeiro encontro do projeto ficou evidente um desejo dos alunos de levar as oficinas para fora do âmbito de sala de aula, empreendendo o processo de aprendizagem no caminhar pelo território. Este desejo deles foi respeitado e mostrou-se muito produtivo. Porém, sempre ao final dos encontros, após as caminhadas, retornávamos para a escola para fazer este debate crítico das imagens, procurando identificar não apenas seus aspectos técnicos de manipulação da luz, enquadramento, composição, mas também os aspectos simbólicos que atravessavam as imagens, por exemplo: quais aspectos culturais estavam presentes; o que as imagens revelavam sobro o modo de vida Guarani; como a luta territorial aparecia, ou não; quais os aspectos mais sutis que poderiam evidenciar a resistência Guarani; e, especialmente, de que forma aquelas imagens se diferenciavam de outras em seu aspecto crítico. Estas sessões de discussões mostraram-se muito importantes, pois além de colocarem em evidência o caráter de construção da realidade inerente à prática fotográfica, também possibilitaram aos alunos a reflexão acerca da transformação da percepção/olhar não apenas do autor, mas também do espectador, que a fotografia é capaz de proporcionar.

Para além das oficinas, também foram realizadas algumas outras atividades ao longo do projeto, por exemplo a visita ao laboratório de fotografia analógica da Universidade do Estado de Santa Catarina. Nesta visita, os alunos puderam conhecer e vivenciar o processo analógico através da produção de imagens pin-hole – feitas dentro de uma pequena lata de alumínio e posteriormente reveladas pelos próprios alunos. Outra saída do projeto foi para a montagem de uma exposição na Aldeia de Piraí, no interior de Santa Catarina, em parceria com o Instituto de Estudos Latino-Americanos, da Universidade Federal de Santa Catarina. Nesta ocasião, os alunos do projeto selecionaram várias de suas imagens para compor a exposição.

Embora grande parte das atividades e oficinas do projeto tenham sido realizadas em 2014, mesmo após este período alguns encontros, mais esporádicos, continuaram acontecendo. Durante os encontros de anciões, semanas culturais guarani e atividade abertas aos não-indígenas, realizou-se também oficinas de produções de imagens, especialmente ao longo de 2015 e 2016. Oficinas estas que reuniram alguns alunos já participantes, mas também outros novos, visto que há grande mobilidade nas aldeias guarani.

Esta vivência na Terra Indígena Morro dos Cavalos resultou na construção de um acervo fotográfico da aldeia, e através destas imagens foi possível entender alguns aspectos importantes de como os alunos pensam e produzem fotografias e qual a relevância social das imagens para a comunidade. Aqui destacaremos três pontos principais.

Um primeiro aspecto relevante trata-se do modo como a fotografia, enquanto expressão artística, permite o despertar da criatividade, do interesse e do desejo de observação e ação no mundo, algo que ficou evidente nos alunos do projeto, que demonstravam muito interesse em registrar suas tradições e sua realidade. A linguagem visual da fotografia como observação do entorno estabelece ligações com o próprio modo de ser/viver que orienta a percepção de mundo Guarani. O observar é parte do processo tradicional de aprendizagem Guarani, e por isso pode-se dizer que há um diálogo entre o fazer fotográfico e alguns aspectos culturais importantes. Da observação parte-se também para a ação, pois a fotografia é também intervenção sobre mundo e criação. O projeto mobilizou diferentes formas de observar e interagir, através do uso da tecnologia, integrando-as como parte de um processo de aprendizagem relevante e crítico para o contexto escolar.

Tendo como pressuposto o viés crítico, a vivência buscou trazer o conhecimento de como a tecnologia, por vezes, é utilizada de maneira a reforçar o status quo. Porém, sendo ferramenta de criação, também permite espaço para a problematização do mundo e para a transformação social. Este aspecto esteve refletido, por exemplo, na seleção que os alunos fizeram para a exposição, na qual buscaram enfatizar o processo de luta territorial, usando a imagem como forma de evidenciar seu contexto e também mobilizar outras pessoas e entender e se aproximar da luta por direitos.

Para a Pedagogia Histórico-Crítica este é um aspecto importante, a forma como os saberes (neste caso um saber técnico e artístico) se transforma em estratégia de rompimento da alienação que marca a sociedade do consumo. Para que isso aconteça é necessário a compreensão da realidade e das condições sociais e materiais que a mantém, cabendo à experiência educativa (em nosso caso, à experiência fotográfica) a abertura de um caminho possível para a superação do senso comum, chegando-se ao que, para o materialismo dialético, seria a consciência filosófica.

Um segundo aspecto importante a se destacar sobre a experiência fotográfica desenvolvida é que as imagens produzidas pelos alunos trazem diferenças com relação às imagens produzidas pela mídia e/ou por fotógrafos não-indígenas, pois são imagens feitas no interior da própria cultura, disso resulta uma maior proximidade no modo de retratar (proximidade entre os alunos e, destes, com seu território), assim como no modo de abordar certos temas, rompendo alguns estereótipos que são recorrentes no universo não-indígena. É claro que, sobre isso, há que se considerar que a mediação por um professor não-indígena também influi nas imagens resultantes, mas, ainda assim, é possível perceber nas imagens certas diferenças conceituais e estéticas.

Também cabe ressaltar uma terceira característica que desponta na análise das fotografias produzidas pelos alunos: trata-se dos aspectos identitários que atravessam e emergem das imagens. A partir do acervo construído, pôde-se inferir que os alunos indígenas, nas imagens que produzem, buscam valorizar aspectos de sua história e identidade. Por exemplo, os espaços da aldeia onde escolhem fazer as fotos, os ornamentos, as pinturas e os instrumentos com os quais querem ser fotografados, colocam em evidência um desejo de valorização do modo de ser Guarani e destacam aspectos importantes do pertencimento étnico, assim como códigos e símbolos partilhados e valorizados no interior da cultura.

Deste aspecto, podemos inferir que boa parte da produção de imagens é feita pensando que aquele que irá receber a imagem saberá compreender seus códigos, ou seja, pensa-se em um receptor que domine e compartilhe dos códigos culturais ali presentes - um receptor Guarani. Este dado é bastante relevante pois nos leva a inferir que, seja a tecnologia fotográfica “externa” ou não à cultura, ela sempre é apropriada de um modo particular. Trata-se, assim, de uma fotografia Guarani, produzida e entendida a partir de uma cosmovisão específica, com intencionalidades e códigos que fogem, muitas vezes, à compreensão do não-indígena.

Para o fotógrafo indígena Vherá Poty (2015), a produção artística Guarani é uma maneira de transmitir através das gerações as memórias ancestrais e as histórias do convívio com os seres da mata, além de ser uma forma de manter vivo o fazer e o ensinar que sustenta a tradição deste povo.

A fotografia desponta então como uma estratégia de manutenção da vida e uma ferramenta de valorização da história e memória indígena, o que nos leva à compreensão da relevância deste conhecimento técnico e artístico no âmbito da escola. Se a escola indígena é hoje também um front na luta, é preciso que este front esteja munido com as armas utilizadas na contemporaneidade, sendo a imagem certamente uma delas.

Nesta perspectiva, trazemos este depoimento de Marcos Karaí Morreira, professor e seguidor do legado espiritual Guarani, em entrevista concedida durante a realização do projeto de fotografia:

Vou falar um pouco aqui sobre a importância de alguns instrumentos, instrumentos que são utilizados hoje na realidade que estamos vivendo. Essas ferramentas são muito significantes para nós, porque elas, na verdade, são veículos de comunicação da nossa história, da nossa vida [...] e uma dessas ferramentas é a questão da fotografia. A fotografia é um instrumento que a gente utiliza bastante hoje, ela ajuda a divulgar tudo que a gente passa, o que a gente vive […]. Também ajuda a mostrar o verdadeiro alicerce que são os mais velhos, os anciões, por poder mostrar a expressão deles, como eles estão hoje, como eles se sentem, para poder um dia mostrar para seus netos, bisnetos que virão, deixar como material didático, material de memória (MORREIRA, 2016, n.p.).

Para Krenak (2021) é possível evocar a imagem como um recurso a ser utilizado tanto na experiência educativa quanto na mobilização daquilo que as comunidades creem ser importante, mas, alerta o filósofo, trata-se de um recurso que deve ser utilizado criticamente.

Vale destacar neste contexto que não apenas as tecnologias e mídias tem se apresentado como uma ferramenta de luta, mas a própria educação tem sido entendida como uma ferramenta de transformação. Por exemplo, o processo de inserção cada vez maior dos indígenas nas universidades tem contribuído fortemente para a resistência e sobrevivência destes povos no mundo contemporâneo, pois conhecendo o modo e o funcionamento da sociedade não-indígena, é possível buscar maiores garantias e estratégias de sobrevivência.

Esta perspectiva nos remete à visão educacional expressa por Saviani em “Escola e Democracia” (2008), pois para o autor conhecer os princípios norteadores da sociedade burguesa dominante é uma condição necessária para que a sociedade não-hegemônica possa construir uma visão crítica que permita o rompimento destes mesmos princípios. Em sua visão, a sociedade não hegemônica não pode se libertar se não dominar aquilo que os que os dominadores detêm.

Considerações finais

Segundo Saviani (2008) para que alcancemos uma educação verdadeiramente emancipatória é necessário a construção de uma teoria da educação que capte criticamente a escola como um instrumento de superação do problema da marginalidade. Em suas palavras:

Lutar contra a marginalidade por meio da escola significa engajar-se no esforço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível nas condições históricas atuais. O papel de uma teoria crítica da educação é dar substância concreta a essa bandeira de luta de modo a evitar que ela seja apropriada e articulada com os interesses dominantes (SAVIANI, 2008, p. 26).

E é neste sentido que acreditamos na importância de que as escolas indígenas se estruturem a partir de uma perspectiva crítica, fazendo para isso uso de diferentes recursos, entre eles a arte e a fotografia, como caminhos possíveis para uma abordagem emancipatória e democrática no contexto escolar.

Resgatando a visão de Vigotski (1998), para quem a arte emprega essencialmente material extraído da vida cotidiana, dando-lhe uma configuração distinta, que é capaz de produzir nos indivíduos sentimentos que estão para além das emoções e percepções ordinárias, gostaríamos de finalizar este artigo reafirmando a potência da arte e da fotografia como formas de emancipação e liberdade, não apenas por permitirem a expressão de diferentes vozes e grupos, mas porque são capazes de atuar como mecanismos de percepção crítica do mundo, e, assim, fortalecer a resistência e a luta dos povos oprimidos.

Tendo a escola um papel central na perspectiva histórico-crítica, acreditamos que é por meio do trabalho dos professores em sala de aula que se faz possível um ensino e um aprendizado cada dia mais humano e questionador, que coloca como problema central a injustiça e a desigualdade social. A partir do recorte escolhido para este texto - o uso da fotografia no âmbito da escola indígena - reiteramos a importância de materializar no mundo experiências estéticas e artísticas diferenciadas do modo dominante, que emerjam como vozes dissonantes e resistentes de povos que sobrevivem a um violento processo de expropriação e exploração do capital.

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Recebido: 11 de Abril de 2021; Aceito: 10 de Abril de 2022

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