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Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.31  Cuiabá ene./dic 2022  Epub 24-Oct-2022

https://doi.org/10.29286/rep.v31ijan/dez.13780 

Artigos

Formação de leitores: proposta pedagógica a partir da análise dos determinantes presentes no conto “O poço” de Mário de Andrade

Reader training: pedagogical proposal from the analysis of the constituent determinants in the short story “The Well” by Mário de Andrade

Gislaine Gomes Granado SANCHES1 
http://orcid.org/0000-0002-9602-487X

Sandra Aparecida Pires FRANCO2 
http://orcid.org/0000-0002-7205-744X

1Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina — PR — Brasil. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina (PPEdu-UEL).

2Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina — PR — Brasil. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL).


Resumo

Este trabalho objetiva analisar os determinantes constituintes na obra "O poço" e demonstrar que o trabalho pedagógico com a Leitura Literária desenvolve o pensamento e o senso crítico. Como metodologia utilizou-se a pesquisa bibliográfica com abordagem crítico-dialética, qualitativa, com aproximações ao Materialismo Histórico e dialético, destacando os determinantes psicológico, econômico, trabalho e educacional. Como resultado, verificou-se que o trabalho com os determinantes oferece uma imersão ao texto, gerando novas possibilidades de interpretação e compreensão da obra. Além disso, o ato de ler desenvolve o pensamento, dá condições para o leitor entender a realidade, perceber e refletir sobre as injustiças sociais.

Palavras-chave Educação; Leitura Literária; Formação de Leitores; Trabalho Pedagógico

Abstract

This academical work aims at analyzing the constituent determinants of "The Well" and demonstrating that the Literary Reading develops thinking as well as the critical sense. The methodology used was bibliographic research with a critical-dialectical, qualitative approach, with approaches to Historical and Dialectical Materialism, emphasizing psychological, economic, work, and educational determinants. As a result, it was found, that the work with those determinants provides an immersion in the text, creating new possibilities of interpretation and understanding of the work "The Well". Furthermore, the reading develops thinking provides conditions for the readers to understand their reality, perceive and reflect on social injustices.

Keywords Education; Literary reading; Readers training; Pedagogical work

ntrodução

A sociedade se consolidou com base na leitura e escrita, meio pelo qual ficam registrados a história e os conhecimentos que servem para dar continuidade à humanidade. Por essa razão, a leitura é considerada de uso social. A leitura faz-se o caminho necessário para entender as múltiplas determinações da realidade (política, história, social, religiosa etc.) visto que os livros carregam a cultura humana. O ato de ler consiste em um processo essencial para que o indivíduo possa obter esses conhecimentos, elementos que contribuem para a formação do ser social.

A escola exerce um papel relevante na formação de leitores, sendo assim, carece trabalhar com a Leitura literária fazendo com que o aluno se sinta motivado a ler e que essa ação se torne uma necessidade constante. O ato de ler deve ser ensinado de maneira que o aluno compreenda os significados dos enunciados e estes tragam sentido à leitura. Franco et al (2019, p. 250) afirmam que:

[...] o trabalho no contexto escolar com a Leitura Literária pode ser um agente mediador, pois permite ao leitor transitar entre diversos contextos históricos, sociais e culturais e partir deste realizar uma (re)construção subjetiva dos valores e da realidade posta de forma crítica, ressaltando a particularidade da universalidade daquele período.

Nesse sentido, o aluno tem a possibilidade de entender aspectos históricos e relacioná-los ao seu contexto cultural percebendo semelhanças e contradições da sociedade. Conforme Marx (1978), a compreensão da realidade se dá por meio do movimento dialético do pensamento, partindo do que é simples ao mais complexo, ou seja, para o autor é necessário olhar além da aparência das coisas, buscando analisar, pela abstração, sua essência e, assim, chegar à síntese, ao concreto pensado. Esse movimento do pensamento não é natural ao homem, por essa razão o aluno precisa da mediação do professor. Por conseguinte, a Leitura Literária favorece a apropriação da cultura e o desvelamento da realidade, pois por meio dela pode-se aprender a história e cultura humana e, portanto, compreender o mundo.

Merett e Franco (2019) explicam, com base em pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro (2012) sobre o comportamento leitor do brasileiro, que somente metade da população é considerada leitora, e que o professor encontra dificuldades para trabalhar com obras literárias pela crescente ampliação do acesso rápido e fácil das mídias digitais, as quais requerem breves leituras para a compreensão e quase nenhuma escrita. Desse modo, afirmam que “os alunos mostram um desinteresse quando uma obra literária é levada para sala de aula com o fim de ser lida, interpretada e relacionada à realidade.” (MERETT; FRANCO, 2019, p. 329).

De acordo com Bajard (2007) a introdução da leitura na vida do aluno não é mais unicamente função da escola, ela passou a ser iniciada pela família devido a amplitude de livros de literatura dedicados à infância e à juventude nas últimas décadas. No entanto, o acesso aos livros e, consequentemente, o incentivo à leitura vindo de casa ainda faz parte da rotina de poucos, dado que em nosso país a desigualdade social não permite tal ação em todos os lares.

Diante desse cenário, alguns alunos trazem à sala de aula conhecimentos prévios sobre textos literários e outros não. Cabe ao professor conhecer as necessidades e interesses de seus alunos e elaborar um planejamento que vá além do que eles já sabem a fim de desenvolver competências referentes ao ato de ler. O trabalho com temas atuais que fazem parte do cotidiano dos alunos ajuda com que eles se sintam motivados a se engajarem nas aulas e aprenderem.

Frente aos desafios impostos à educação escolar, consideramos propício o trabalho pedagógico com o gênero literário conto, pela razão de sua escrita ter uma menor densidade se comparado a outros gêneros como novelas e romances. O conto tem origem na narrativa oral, no período em que a linguagem escrita ainda não estava desenvolvida. Suas histórias eram instáveis, posto que ao utilizar somente a memória para o dizer, o contador por vezes esquecia algum fato, acarretando modificações no enredo. Após a invenção da escrita as histórias passam a ser conservadas na íntegra (ALMEIDA, 2015).

Teixeira et al. (2011), com base em Gotlib (2004), afirmam que a estrutura narrativa do conto é breve, pois o texto deve conter apenas as informações relevantes ao desfecho, a linguagem do conto necessita ser objetiva, concreta, com metáforas que podem ser compreendidas de imediato.

Basicamente, o conto é uma narrativa que gravita ao redor de um único conflito, que, no geral, se apresenta com uma ordem; o conflito gera uma "desordem" e a solução desse conflito favorável ou não, faz retornar à "ordem" agora com ganhos e perdas. O conto, geralmente, apresenta um problema e uma “solução” (TEIXEIRA et al., 2011, p. 7).

De modo resumido a situação inicial, o desenvolvimento e a situação final do conto apresentam e criam expectativa e tensão, aspectos que envolvem o leitor na trama. Ao estudar Cortázar (2006), Almeida (2015) revela que no conto, real ou imaginário, o autor faz um recorte da realidade, com certo limite, mas com intensidade. O propósito é despertar no leitor, além da literariedade, a reflexão.

O elemento significativo do conto parecia residir principalmente no seu tema, no fato de se escolher um acontecimento real ou fictício que possua essa misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para além dele mesmo, de modo que um vulgar episódio doméstico [...] se converta no resumo implacável de uma certa condição humana, ou no símbolo candente de uma ordem social ou histórica (CORTÁZAR, 2006, p. 153 apud ALMEIDA, 2015, p. 38, grifo do autor).

Com essa breve explanação sobre o gênero conto, supomos que o trabalho pedagógico envolvendo seu uso pode ajudar a formar leitores, pois a narrativa com temas próximos ao real, tem a função de despertar o interesse e envolver o leitor. Nesse sentido, o professor como mediador, tem o papel de ajudar o aluno a fazer a análise dialética do conto, iniciando do geral ao particular, ou seja, da aparência a essência, a fim de que assimile sua a particularidade e totalidade desenvolvendo o pensamento concreto (MARX, 1978).

Nessa conjuntura, pretendemos nesta pesquisa apresentar uma proposta de prática pedagógica com a Leitura Literária, meio pelo qual o professor pode utilizar como base para que os alunos desenvolvam a capacidade de reflexão crítica, para que percebam a realidade de maneira diferente do senso comum, sendo capazes de opinar e agir no meio social com consciência. A proposta constitui no ensino da Leitura Literária a partir da análise de seus determinantes. Com esse intuito, trouxemos como exemplo o conto "O poço", do escritor Mário de Andrade (1893 - 1945).

“O poço” faz parte de um compilado de textos escritos pelo autor intitulado “Contos Novos” publicado em 1947, após sua morte. “Contos Novos” consiste em 9 narrativas curtas. Fazem parte da coletânea os contos: “Vestida de preto”, “O ladrão”, “Primeiro de maio”, “Atrás da Catedral de Ruão”, "O poço", “O peru de Natal”, “Frederico Paciência”, “Nelson” e “Tempo da camisolinha”. A maioria das narrativas traz personagens que vivem situações de conflitos recorrentes da sociedade capitalista.

A relevância de ler Mário de Andrade corresponde à cultura nacional marcar presença em muitas de suas obras. O autor exerceu forte influência na literatura moderna do país com seus livros “Paulicéia Desvairada”, “A Escrava que Não É Isaura” e “Macunaíma”. No ano de 1922, participou como um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna. Além disso, Mário de Andrade possuía múltiplos talentos, foi poeta, escritor, cronista, romancista, crítico de cinema, músico, fotógrafo e figura atuante nas áreas de gestão e política cultural. (ENCICLOPÉDIA, 2020).

A justificativa para este trabalho consiste na relevância do conto para a cultura brasileira, por essa razão, a obra literária “Contos Novos” faz parte da “Lista de obras para os Vestibulares da Universidade Estadual de Londrina (UEL) de 2021 e 2022”. Desse modo, o trabalho pedagógico com literatura no Ensino Médio além de preparar o aluno para os vestibulares, ajuda-o a ampliar sua visão de mundo e a refletir sobre a sociedade, estimulando a capacidade de senso crítico.

Diante do exposto, o objetivo deste trabalho foi analisar os determinantes constituintes na obra "O poço", a fim de demonstrar que essa forma de análise pode ser uma possibilidade de trabalho pedagógico com a Leitura Literária. O estudo da literatura com uso dos determinantes tem o potencial de levar o aluno a compreensão do texto em seu todo, de perceber aspectos além do texto, e, a partir de então, refletir sobre a realidade posta criando ou ressignificando conceitos e sua percepção de mundo.

O trabalho está ancorado na perspectiva do Materialismo Histórico e Dialético e na Teoria Histórico-Cultural. Para efeito didático, foi feita uma divisão entre os determinantes psicológico, econômico, trabalho e educacional, os quais foram usados para a análise do conto. No entanto, na perspectiva crítico-dialética essas unidades são as sínteses das múltiplas determinações, fazem parte de um todo, assim sendo, em alguns momentos ficou impossível separar um determinante do outro. Antes de demonstrar a proposta pedagógica de análise da obra, na qual o professor tem a possibilidade de se inspirar para efetivar sua práxis docente, foi necessário conceituar a Leitura Literária e seu papel na formação do leitor.

Leitura Literária e Formação do Leitor

Sabemos que o objetivo da escola é transmitir os significados culturais historicamente produzidos para o aluno a fim de que ele desenvolva capacidades humanas. A vida em sociedade exige que os indivíduos compreendam a sua realidade para que possam participar dela com consciência e autonomia.

A Leitura Literária tem importante papel no processo de ensino-aprendizagem, porquanto por meio da ficção recria situações do cotidiano social, que pode ser real ou imaginário, permitindo ao aluno vivenciar situações que não viveu, extraindo delas conceitos que podem ser usados no mundo real (SILVA; SILVA, 2019).

Cada obra literária nasce em determinado momento histórico e com isso trazem em seus enunciados conceitos culturais que vão ser disseminados por várias gerações. Coelho (2000, p. 27) ao se referir sobre a literatura reconhece que ela possibilita “conhecer a singularidade de cada momento da longa marcha da humanidade em sua constante evolução. [...] conhecer os ideais e valores ou desvalores sobre os quais cada sociedade se fundamentou (e se fundamenta)”. Nesse sentido, o aluno ao ler obras produzidas em outro contexto histórico, social e cultural se apropria dos significados culturais daquela época, e pode fazer uma aproximação com a cultura de sua vivência. Esse é o caso da obra que analisamos, “O poço”. Nela o aluno é capaz de perceber que um contexto histórico diferente do seu traz acontecimentos que ainda hoje se repetem e entende que alguns deles precisam ser mudados e superados para que todos os homens possam viver com respeito e dignidade.

Arena (2010), com base nos ideais bakhtinianos, defende que para o sujeito se apropriar da cultura e, por conseguinte, atribuir sentido aos enunciados presentes em um texto, não basta apenas ler, é preciso fazer relações contextuais entre o autor, a obra e o leitor. Isto quer dizer que durante o ato de ler o leitor pode utilizar seus conhecimentos prévios para compreender o enunciado, ou seja, “[...] aproximar, relacionar e fazer dialogar dois contextos culturais: o de um — o do leitor — e o do outro — o do autor” (ARENA, 2010, p. 22). O ato de ler consiste em uma relação dialógica que o leitor faz com o enunciado e o autor (SILVA; SILVA, 2019).

Buscamos realizar esse movimento dialógico na análise dos determinantes na obra “O poço”, entendendo o contexto cultural na qual a obra foi escrita para compreender a mensagem que o autor quis transmitir. Ao compreendermos a mensagem do autor e relacionarmos ao nosso contexto cultural podemos perceber as semelhanças e diferenças das questões sociais que envolvem as épocas. Este ato se faz "necessário para a evolução do processo de leitura com atribuição de sentido” (ARENA, 2010, p. 21), para a apropriação dos significados culturais e para a humanização.

Todo escrito transmite uma mensagem, implica uma comunicação, nessa lógica, o trabalho com os determinantes possibilita um diálogo entre o texto e o leitor, o que garante uma compreensão ampliada do texto. O aluno se aprofunda na mensagem do autor, lê nas entrelinhas, deste modo, a leitura não é superficial, pode-se ler além da aparência, ler a essência da obra. Ao se trabalhar com os determinantes o professor proporciona um espaço de leitura com uma dinâmica que busca promover a participação dos alunos, oportuniza liberdade para que eles dialoguem, deem sugestões, ouçam e sejam ouvidos. Ademais, é uma rica motivação para a formação de leitores.

Conforme Silva e Silva (2019, p. 99) “leitura e compreensão, é saber extrair do texto tudo que ele tem a oferecer, ser capaz de refletir, argumentar e reavaliar”. Podemos deduzir, portanto, que pela relação dialógica o leitor aprofunda seu conhecimento de mundo, percebe a diversidade da cultura humana, desenvolve seu pensamento e reflexão, formando uma consciência crítica em relação à sociedade.

O ato de ler é uma atividade cultural complexa, logo, exige atividades significativas que gerem no aluno motivo, interesse e a necessidade de realizá-las. Desse modo, defendemos que a ação docente deve organizar, intencionalmente, práticas educativas para a efetivação do ato de ler capaz de promover o desenvolvimento humano.

Proposta de Análise dos Determinantes na Obra "O poço"

Com o intuito de formar leitores, é indispensável realizar um trabalho pedagógico de modo que os alunos compreendam o que leem e percebam a obra em sua totalidade. Logo, a análise dialógica dos terminantes contribui para formar o leitor proficiente e crítico.

Os determinantes na corrente materialista revelam os fatores ideológicos contidos na palavra, ressaltando dessa forma a mensagem que o autor objetiva passar ao leitor ao escrever, ao mesmo tempo que possibilita dar materialidade a obra e as temáticas que são tratadas pelo autor. Esse processo somente é possível com o uso das contradições, da dialética, que possui como ponto de partida a realidade exposta e as adversidades [...]. Observar os determinantes e compreendê-los possibilita relacioná-los com os conteúdos científicos historicamente apropriados pelo homem, assim como, subsequentemente, aos fatos, objetos e fenômenos da realidade (GALVÃO; FRANCO, 2019, p. 1251).

Retomamos que foram usados para a análise do conto os determinantes psicológico, econômico, trabalho e educacional. Essa classificação permitiu: compreender o contexto social da época em que o conto foi escrito e a influência que exerceu nos sujeitos das diferentes classes; a mensagem que o autor quis transmitir (supostamente), ou seja, entender a totalidade da obra, e sua proximidade com os dias atuais.

No conto "O poço", Mário de Andrade faz uma crítica social às formas desiguais e as injustiças existentes entre as classes da sociedade brasileira. O autor era um observador da vida cotidiana e buscava retratá-la em suas obras. "O poço" tem como personagens principais o fazendeiro Joaquim Prestes e seus operários. A obra relata o autoritarismo do patrão sobre seus operários, colocando a vida deles em risco ao obrigá-los a entrarem em um poço para resgatar sua caneta-tinteiro que havia caído dentro dele.

O contexto histórico-social da obra situa-se no interior da cidade de São Paulo, a qual despontava à industrialização e à modernização no início do século XX. Tal desenvolvimento surgiu como resultado da economia cafeeira, que gerou enormes riquezas na capital paulista e nas novas cidades do interior. No entanto, tal modernização evocava para a melhoria da vida das elites, mas que contraditoriamente, buscava manter para os trabalhadores o mesmo patamar de pobreza e ignorância. “No contexto em que foi produzido o conto de Mário de Andrade, a sociedade brasileira estava centrada na família e na autoridade pessoal do grande proprietário “que tudo absorvia”, padrão que advinha da tradição rural e escravista.” (GEBRA, 2009, p. 45).

O enredo configura o conflito de classes em que, por um lado, encontra-se o patrão burguês que deseja a todo custo demonstrar autoridade e poder sobre seus operários, por outro lado, têm-se os trabalhadores, como são alienados sentem-se na obrigação de agradar o patrão realizando todos os seus mandos, mesmo que estes tragam riscos as suas próprias vidas.

Acerca do determinante psicológico, "O poço" traz a descrição da personalidade dos personagens e para pensarmos em sua constituição partimos dos pressupostos do Materialismo Histórico e Dialético e da Teoria Histórico-Cultural. De acordo com Marx e Engels (1982, p. 14), “não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”, em outras palavras, o homem é resultado das suas relações sociais e econômicas. A qualidade dessas relações condiciona o “ser” do homem, permite, ou não, a humanização. Entretanto, é pelo trabalho que, ao longo da história, o homem se humaniza, domina e transforma a natureza a favor de suas necessidades. No processo de trabalho, a atividade vital humana é materializada ou objetivada.

Ancorados nessa linha de raciocínio, os precursores da Teoria Histórico-Cultural argumentam que as características biológicas do homem não são suficientes para que ele desenvolva todas as capacidades humanas, logo, o homem não nasce humano. Desde o nascer o homem precisa se apropriar dos conhecimentos objetivados historicamente na cultura por seus precedentes para tornar-se um ser social, isto é, humano (LEONTIEV, 1978).

Para que a apropriação ocorra, o sujeito deve agir em seu meio, realizando uma atividade que o faça internalizar as objetivações da cultura. Essa atividade tem que ser mediada pelos membros mais experientes que com ele convivem no meio social e com os instrumentos e signos culturais presentes nesse meio. Nesse processo, ele desenvolve suas capacidades, habilidades, aptidões, atitudes e valores, que o levam a superar os limites biológicos e a apropriar-se dos significados culturais que historicamente foram desenvolvidos (MILLER; ARENA, 2011). São por meio das relações sociais, na interação com o meio e pela atividade material realizada que o sujeito se desenvolve e nesse processo regula sua consciência, personalidade e individualidade tornando-se um ser particular (MARTINS, 2015).

Nesse contexto, percebemos que os determinantes psicológicos de Joaquim Prestes e de seus operários são caracterizados pelas suas relações econômicas e sociais. O conto relata que o fazendeiro Joaquim Prestes era de pouco riso, mal-humorado, vaidoso, avarento, perfeccionista, autoritário e ficava irritado se o desobedecessem. “Joaquim Prestes era assim. Caprichosíssimo, mais cioso de mando que de justiça, tinha a idolatria da autoridade" (ANDRADE, 2016, p. 40). O fazendeiro nasceu em uma família rica, foi patrão desde moço, nunca precisou de trabalhar. Suas condições materiais o levaram a aprender na relação familiar, a dar ordens, a mandar e desmandar nos camaradas.

O texto apresenta expressões psicológicas de Joaquim Prestes que remetem às práticas abusivas de autoritarismo e opressão que fazia a seus operários como: “endurecido”, “mandava”, “impassível”, “berrava, fulo de raiva”, “falava ríspido, dando a lei”, “cioso de mando”, “idolatria da autoridade”. As expressões citadas demonstram explicitamente o abuso de poder atribuído ao patrão por força da relação de trabalho, reflexo do período de escravidão, o qual havia sido abolido em apenas algumas décadas atrás. Os maus tratos atribuídos aos “camaradas” apontam a exploração psicológica e moral proveniente de um sistema hierárquico ao qual quem é detentor dos meios de produção tem a certeza que nunca há de faltar mão de obra barata para realizar seu trabalho, enquanto ele desfruta das benesses do capital.

Para Gebra (2009, p. 47) no conto Mário de Andrade fez de Joaquim Prestes referência a figura de Getúlio Vargas (à época governante do Brasil), “ambos regem seu comportamento com autoritarismo, com mando, com resquícios ainda do patriarcalismo oligárquico e com força de dinamismo e transformação das estruturas sociais e econômicas.” No decênio em questão, estava em trâmite no Estado o processo de construção das legislações trabalhistas, podemos supor que, o autor estando a par dos debates, talvez, quisesse com o conto demonstrar as mudanças que ainda se faziam necessárias.

Retomando o enredo, o conto relata que Joaquim Prestes não queria mais tomar água da geladeira, por isso mandou seus operários construírem um poço para retirada de água a ser utilizada na casa de descanso do pesqueiro. Os operários não tinham experiência em construir poços, contudo o patrão mandou que eles o fizessem, pois, para o fazendeiro chamar um especialista custaria muito dinheiro. Joaquim Prestes representa o capitalista, o qual visa uma vida de regalias, mas com poucos gastos.

Ao observar o andamento da construção, o fazendeiro deixou cair sua caneta-tinteiro dentro do poço. Irritado ordenou que os operários a resgatassem. Com medo de contrariar o patrão e desapontá-lo, “Albino foi correndo [chamar os operários para ajudá-lo]. Os camaradas vieram imediatamente, solícitos [..]. Pra eles era evidente que a caneta tinteiro do dono não podia ficar lá dentro” (ANDRADE, 2016, p. 45). Nessa passagem apreendemos o determinante psicológico dos operários. Notamos que também são influenciados por suas condições de vida. No capitalismo o trabalhador geralmente tem a ideia de que o patrão não deve ser desagradado, porquanto é ele quem lhe “dá” um salário para que tenha condições de sobrevivência. Essa ideia aliada ao desemprego estrutural, atuam no psicológico dos trabalhadores desenvolvendo sentimentos de inferioridade e submissão, o que os levam a fazer tudo o que o patrão manda, mesmo não sendo a função deles e nem gratificados pelo serviço prestado a mais. “E todos muito descontentes, rapazes de zona rica e bem servida de progresso, jogados ali na ceva da maleita. Obedeceram, mandados, mas corroídos de irritação” (ANDRADE, 2016, p. 41).

No sistema capitalista, o trabalhador para poder sobreviver vende sua força de trabalho para o dono da produção, transformando-se em mercadoria. Nessa relação de compra e venda entre patrão e empregado, percebemos no conto que Joaquim Prestes se coloca como superior aos operários, os vê como mercadoria, como coisa, não consegue perceber nos trabalhadores a essência humana.

O mal da sociedade moderna se caracteriza pelo apego aos bens materiais, o qual é mais valorizado que a vida de uma pessoa. Com essa concepção de vida, o patrão, Joaquim Prestes, usa de métodos coercivos de gestão, estipulando ordens com autoritarismo, não demonstrando sentimentos de empatia, sendo insensível ao sofrimento dos operários que arriscam suas vidas para recuperar a caneta-tinteiro, ou seja, um objeto supérfluo.

Joaquim Prestes estava árido. Dera nele aquela decisão primária, absoluta de reaver a caneta-tinteiro hoje mesmo. Pra ele, honra, dignidade, autoridade não tinha gradação, era uma só: tanto estava no custear a mulher da gente como em reaver a caneta-tinteiro (ANDRADE, 2016, p. 48).

O conto se desenrola na tensão entre os operários para resgatar a caneta-tinteiro e a pressão do patrão para que ela seja retirada do poço o mais depressa possível. A obra nos mostra que todos os operários sentiam medo do patrão que andava armado e tinham terror do poço que podia desmoronar. Sentiam-se envergonhados, culpados, fracassados e com remorso por não terem terminado a construção do poço antes do previsto. Da mesma forma, sentiam-se humilhados por serem tratados como “negros” (ANDRADE, 2016, p. 48).

No entanto, no desenrolar da história o autor traz uma intrigante descrição da personalidade de Joaquim Prestes. Mesmo o fazendeiro se mostrando ser um homem duro de sentimentos, comprava remédios para um de seus funcionários, Albino, que era fraco e doente, sem descontar do salário. Teríamos aqui um sentimento de compaixão, ou o patrão fazia isso para se auto-exaltar? Silva (2019, p. 3) argumenta que “[...] o que ocorria era uma troca de favores. Albino cedia sua força de trabalho e o fazendeiro comprava seus remédios”. Isso explica o porquê de Albino ser o operário mais submisso, além de todos os sentimentos já citados ele sentia a necessidade de retribuir ao patrão o “favor” de ter um emprego e “ganhar” os remédios que precisava e para recompensá-lo propôs-se a recuperar a caneta.

A respeito do determinante econômico, sabemos que o sistema capitalista visa ao lucro e à acumulação de riquezas com base no trabalho assalariado e na propriedade privada dos meios de produção da vida (MARX, 1978). A busca excessiva do acúmulo de capital faz com que a concentração de renda fique em posse de uma pequena parcela da população, enquanto a maioria é mal remunerada e desvalorizada. A desigual relação entre capital e trabalho incrementa as desigualdades sociais e a perda de valores humanos.

No início do conto, o autor evidencia o poder econômico da classe dominante a qual Joaquim Prestes fazia parte. Ele era um rico fazendeiro que gostava de inventar “moda”. Na região onde vivia foi o pioneiro na introdução do automóvel que trouxe da Europa, do cultivo de abelhas e na criação de pesqueiros, onde a trama se desenrola. Juntamente, possuía casas, colecionava chapéus e era patrão de sete operários. Na descrição da casa de descanso do pesqueiro notamos, na passagem abaixo, o quanto era luxuosa:

Que outro fazendeiro se lembrara mais disso! Pois o velho Joaquim Prestes dera pra construir no pesqueiro uma casa de verdade, de tijolo e telha, embora não imaginasse passar mais que o claro do dia ali, de medo da maleita. Mas podia querer descansar. E era quase uma casa-grande se erguendo, quarto do patrão, quarto pra algum convidado, a sala vasta, o terraço telado, tela por toda a parte pra evitar pernilongos. Só desistiu da água encanada porque ficava um dinheirão. Mas a casinha, por detrás do bangalô, até era luxo toda de madeira aplainada, pintadinha de verde pra confundir com os mamoeiros, os porcos de raça por baixo (isso de fossa nunca!) e o vaso de esmalte e tampa (ANDRADE, 2016, p. 41).

Joaquim Prestes possuía muitos bens materiais e boas condições de vida, proporcionadas pelas suas riquezas adquiridas pelo sistema econômico da sociedade capitalista. Contraditoriamente, enquanto o patrão é dono de grandes porções de terras, dos meios de produção e mantém para si a maior parte das riquezas produzidas proporcionando-lhe uma vida de luxo, seus operários vivem na miséria, condição revelada na descrição das suas roupas esfarrapadas e principalmente nas condições sub-humanas às quais trabalhavam.

Na época em que a história se passa, a maioria das pessoas da classe trabalhadora morava em vilas, cortiços ou porões. Nessas habitações era comum a divisão coletiva do uso da cozinha e das instalações sanitárias (CORDEIRO, 2003). Supomos pela leitura da obra e pelo momento histórico em que o conto acontece, que os operários do fazendeiro moravam em habitações semelhantes a essas, pois é consequência da má distribuição de renda do sistema capitalista. O empregador compra a força de trabalho e o tempo do trabalhador e é ele quem diz qual é o valor da força de trabalho do empregado. Como o capitalista busca o lucro, o salário, geralmente, não condiz com o valor real do trabalho, o que lhe permite maior acúmulo de capital e impõe aos trabalhadores um salário que não supre as necessidades básicas da vida.

Neste cenário, adentramos o que diz respeito ao determinante de trabalho. No conto fica evidente o autoritarismo na relação entre patrão e empregado, as condições cruéis de trabalho e o estado de alienação e submissão dos operários. A obra relata que as condições meteorológicas eram desfavoráveis para o trabalho da construção do poço. “Batera um frio terrível esse fim de julho [...] umas chuvas diluviais alagavam tudo, o couro das carteiras embolorava no bolso e o café apodrecia no chão” (ANDRADE, 2016, p. 41). Aliás, o trabalho era insalubre e havia o perigo dos camaradas serem contaminados pela maleita. Apesar do frio e do risco de o poço desmoronar, Joaquim Prestes insistia em recuperar a caneta-tinteiro, explorando e humilhando os operários. Os camaradas subiram e desceram várias vezes ao poço, em uma delas podemos observar a exploração e opressão da classe trabalhadora e o sofrimento aos quais estavam sendo submetidos, incompatíveis com a dignidade humana.

Albino apareceu na boca do poço. Vinha agarrado na corda, se grudando nela com terror, como temendo se despegar. Deixando o outro operário na guarda do cambito, José com muita maternidade ajudava o mano. Este olhava todos, cabeça de banda decepando na corda, boca aberta. Era quase impossível lhe aguentar o olho abobado. Como não queria se desagarrar da corda, foi preciso o José, “sou eu, mano”, o tomar nos braços, lhe fincar os pés na terra firme. Aí Albino largou da corda. Mas com o frio súbito do ar livre, principiou tremendo demais. O seguraram pra não cair. [...] Levou as mãos descontroladas à boca, na intenção de animar os beiços mortos. Mas não podia limitar os gestos mais, tal o tremor. Os dedos dele tropeçavam nas narinas, se enfiavam pela boca, o movimento pretendido de fricção se alargava demais e a mão se quebrava no queixo. [...] (ANDRADE, 2016, p. 51).

De acordo com Marx (1978), ao vender sua força de trabalho, sua atividade vital, para atender a sua necessidade de sobrevivência, o homem torna-se alienado. “O homem deixa de ser dele [trabalho] o sujeito, convertendo-se em seu objeto” (MARTINS, 2015, p. 50). Em outras palavras, o homem não mais trabalha para sobreviver, mas sobrevive para trabalhar.

No processo de trabalho alienado, o trabalhador não tem condições de se apropriar dos objetos de sua produção e do processo de produção, isto é, o trabalhador não tem acesso aos bens que ele mesmo produz. Desse modo, há um esvaziamento ou empobrecimento das objetivações culturais pelo trabalhador. Segundo Martins (2015, p. 48), Marx defende que esse tipo de trabalho é somente uma “aparência do trabalho”, o qual desumaniza o homem.

Ainda de acordo com Martins (2015), Marx explica que o fundamento para o trabalho alienado é a propriedade privada dos meios de produção, o que gera um sistema de exploração e escravização do homem. A modernização do trabalho por meio da industrialização diminuiu a oferta de emprego, aumentando em grande escala o número de trabalhadores desempregados. Esse cenário e a busca por sobrevivência propicia que o trabalhador se submeta a formas injustas de trabalho, sem ter ciência de sua condição de explorado. Trabalhando de forma alienada o homem perde sua liberdade, não tem condição de buscar melhorias para mudar sua realidade.

No trecho supracitado refletimos uma analogia que ainda na atualidade, mais de 70 anos após sua publicação, continua representando a classe trabalhadora: a escassez de emprego faz com que o trabalhador se mantenha “agarrado” a seu emprego, mesmo se este não é suficiente a sua sobrevivência ou traz riscos a sua saúde, “se grudando [nele] com terror, como temendo” o desemprego. É preciso que haja mudanças nas formas de divisões do trabalho as quais acarretem a ampliação da oferta, para que o trabalhador tenha oportunidade de se “desagarrar” da opressão manipuladora e possa “fincar os pés na terra firme”, isto é, entrar e se manter ativo no mercado de trabalho de maneira digna, justa, igualitária, com satisfação, a fim de tornar-se um cidadão pleno.

No desenrolar do conto, um dos operários chamado de madruço começa a refletir sobre a situação humilhante de trabalho a qual estava exposto. Ele entende os danos que aquela atividade poderia gerar à sua saúde, o risco de morte e o quanto estava sendo explorado. Destarte, madruço pede demissão, mesmo sabendo da dificuldade de conseguir outro emprego e que não receberia uma remuneração pelos anos dedicados a trabalhar para o fazendeiro.

[...] poço quase seco agora, o magruço que já vira um bloco de terra se desprender do rebordo, chegada a vez dele, se recusara descer. Foi meio minuto apenas de discussão agressiva entre ele e o velho Joaquim Prestes, desce, não desce, e o camarada, num ato de desespero se despedira por si mesmo, antes que o fazendeiro o despedisse. E se fora, dando as costas a tudo, oito anos de fazenda, curtindo uma tristeza funda, sem saber. E Albino, aquela mansidão doentia de fraco, pra evitar briga maior, fizera questão de descer outra vez, sem mesmo recobrar fôlego. Os outros dois, com o fantasma próximo de qualquer coisa mais terrível, se acovardaram. Albino estava no fundo do poço (ANDRADE, 2016, p. 51).

O clímax da obra apresenta o determinante educacional. Notamos que “o magruço, que sabia ler no jornal da vendinha da estação” foi o único a se rebelar contra o trabalho humilhante (ANDRADE, 2016, p. 47, grifo nosso). Por necessitar trabalhar para sobreviver muitos sujeitos deixam de frequentar a escola, ficando alheios à sociedade. De acordo com Marx (1978), o sistema capitalista reduz as necessidades do trabalhador apenas àquelas que o mantêm vivo, nega a ele o contato com atividades da cultura que promovam prazer, que permita-lhe aprender, pensar e expressar-se. Nega-se ao trabalhador a humanidade.

A educação, quando intencional, possibilita ao indivíduo entender sua realidade e perceber as injustiças sociais. Os conhecimentos adquiridos na escola desenvolvem o cognitivo e o social, aprimorando capacidades, competências e valores. A escola desempenha um papel fundamental na formação do cidadão crítico e consciente que seja capaz de contribuir para a construção de uma sociedade justa.

A caneta-tinteiro representa um status de superioridade que os trabalhadores viam no patrão. Eles a consideravam como um instrumento "místico, servindo pra escrever sozinho” (ANDRADE, 2016, p. 54). Observamos que os empregados não sabiam ler nem escrever, exceto madruço que sabia apenas ler. O desconhecimento das objetivações da cultura leva os trabalhadores a considerarem que o patrão era uma pessoa culta, por isso superior a eles, digna de respeito e estima.

Joaquim Prestes era alfabetizado, possuía uma biblioteca, sabia tudo sobre abelhas, carros e falava alemão. Todavia, a educação que o fazendeiro recebeu não o humanizou, não possibilitou que ele desenvolvesse sentimentos de empatia, respeito e solidariedade, ao contrário tornou-o presunçoso. Para o fazendeiro, a caneta-tinteiro representava um bem material supérfluo, mas que o colocava em situação elevada de poder em relação aos camaradas.

No desfecho do conto, após a discussão com madruço, Joaquim Prestes, por um breve momento, reflete sobre seu papel como patrão e percebendo o sacrifício dos trabalhadores, findou o serviço, por aquele dia.

Dois dias depois o camarada desapeou da besta com a caneta-tinteiro. Foram levá-la a Joaquim Prestes que, sentado à escrivaninha, punha em dia a escrita da fazenda, um brinco. Joaquim Prestes abriu o embrulho devagar. A caneta vinha muito limpa, toda arranhada. Se via que os homens tinham tratado com carinho aquele objeto, meio místico, servindo pra escrever sozinho. Joaquim Prestes experimentou mas a caneta não escrevia. Ainda a abriu, examinou tudo, havia areia em qualquer frincha. Afinal descobriu a rachadura. [...] Jogou tudo no lixo. Tirou da gaveta de baixo uma caixinha que abriu. Havia nela várias lapiseiras e três canetas-tinteiro. Uma era de ouro (ANDRADE, 2016, p. 54).

Com essa última passagem Mário de Andrade termina o conto mostrando que na sociedade capitalista ocorreu uma mudança de valores, criou-se um modelo de socialização com base nos ideais de valorização do “ter” ao invés do "ser''. Houve a perda de valores fundamentais à humanidade. O objetivo do capitalismo é o lucro e para isso uma série de recursos são usados para que os indivíduos aumentem o seu consumo, muitas vezes sem necessidade. Um processo articulado pelo sistema capitalista influencia as pessoas a adquirir bens materiais, o que faz com que se sintam mais importantes do que as que pouco possuem. Os sujeitos se importam em obter bens, riquezas e esquecem da essência humana. À vista disso, há uma fragilidade nas relações entre os sujeitos.

No conto, além do exposto, a exploração da classe trabalhadora pode ser observada nos trechos: “Bem... é continuar todos na casa, vocês estão ganhando”, “sem censura aparente, perguntou aos camaradas se ainda não tinham ido trabalhar”, “levou a mão ao revólver”, “o trabalho continuava infrutífero, sem cessar”, “é isso mesmo!... cachaceiro!... Dispa-se mais depressa! Cumpra seu dever!...”. Nesses trechos o autor retrata o sistema capitalista, o qual busca a todo custo aproveitar ao máximo a mão de obra do trabalhador, a mais-valia, sem ter importância as circunstâncias em que elas sejam extraídas, ainda que em detrimento da saúde e do bem-estar do trabalhador. As exigências, a pressão psicológica e a grande concorrência para conseguir um emprego torna mais fácil a manipulação do trabalhador que acredita ser o único responsável pelo sucesso ou fracasso de sua condição econômica fazendo com que aceite em silêncio as precárias condições de trabalho, a baixa remuneração e nenhuma valorização.

Assim como sugere o título do conto, “O poço”, este tem boca, mas não fala, do mesmo modo os trabalhadores são silenciados, os discursos hegemônicos tentam calar sua voz de luta a melhores condições de trabalho e remuneração com a falsa ideia de que para sair do fundo do poço, isto é, para se ter uma ascensão econômica com melhores condições de vida é necessário somente o esforço individual, a meritocracia. No conto o autor deixa explícito uma mensagem de repúdio à exploração da classe trabalhadora e declara com a voz do narrador: “[...] Botando a culpa nos operários, Joaquim Prestes [representando o sistema capitalista] como que distrai a culpa de fazê-los trabalhar injustamente.” (ANDRADE, 2016, p. 48).

Quase um século após a publicação da obra “O poço”, as relações de poder e injustiças sociais continuam presentes na sociedade. Esse quadro pode ser mudado, segundo Marx (1978), para isso é necessário a constituição de uma nova base econômica e a transformação da sociedade, com uma nova formação de consciência voltada a valores sociais. Faz-se relevante que os sujeitos busquem garantir formas de participação democrática nas decisões políticas em todas as áreas voltadas ao bem-estar da população. Mudar os valores sociais é um processo que demanda tempo e educação. Logo, o papel da escola torna-se imprescindível na formação do ser social, possibilitando ao aluno apreender conhecimentos que superem os conceitos do senso comum, avançado no processo de constituição de cidadãos críticos, éticos que refletem sobre as injustiças sociais postas na sociedade e tenham condições de atuarem nela conscientemente.

Diante do exposto, defendemos que o trabalho pedagógico com Leitura Literária a qual verse sobre a realidade social ajuda o aluno a refletir sobre as desigualdades, dessa forma, ele pode compreender que essa condição social pode ser mudada se insistirmos em buscar meios de superação, com a valorização universal dos seres humanos.

Considerações Finais

Verificamos que a obra "O poço", retrata as contradições do sistema capitalista, gerador das desigualdades sociais, perpassadas no início da urbanização do interior da cidade de São Paulo na década de 1940. O autor ilustrou esse momento histórico com questões que envolvem a luta de classes na sociedade brasileira. Joaquim Prestes, o patrão, representa o capitalista, que vê o empregado como simples mercadoria. Os operários, por sua vez, representam os trabalhadores em uma tímida luta pelos direitos trabalhistas.

O trabalho pedagógico com a Leitura Literatura e a análise dos determinantes presentes na obra permite ao professor criar um espaço de diálogo, interação e aprendizado revelando uma concepção de mundo que transmita valores, desconstrua preconceitos e proporcione aos alunos a humanização.

A análise dos determinantes possibilita o conhecimento de questões que estão implícitas no texto. Há uma diversidade de análises que podem ser feitas além das mostradas neste trabalho, por exemplo: política, histórica, estética, afetiva, religiosa etc. O trabalho com os determinantes oferece uma imersão ao texto, por meio da leitura, do estudo e da pesquisa, gerando novas possibilidades de interpretação, sentido e significado da obra com base em atividades que resultem na reflexão e compreensão. Além disso, fomenta e incentiva a leitura.

É possível fazermos paralelos entre a obra e os dias atuais, apesar de hoje termos leis que regulamentam o trabalho dando mais segurança e garantias ao trabalhador, o trabalho exaustivo, as relações abusivas e opressoras continuam ocorrendo. A leitura e análise da obra permite em sala de aula a discussão e reflexão de aspectos que possam desenvolver novos pensamentos sobre a realidade.

Em virtude dos aspectos abordados, alcançamos nosso objetivo de demonstrar que a análise dos determinantes presentes em uma obra pode ser uma possibilidade de trabalho pedagógico com a Leitura Literária, com o intuito de formar leitores. Assim, afirmamos que o ato de ler tem relevância na formação do pensamento e compreensão da realidade, oferece condições para o leitor perceber as injustiças sociais, refletir e poder agir em seu meio com consciência.

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Recebido: 02 de Maio de 2022; Aceito: 09 de Agosto de 2022

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