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Revista de Educação Pública

versión impresa ISSN 0104-5962versión On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.31  Cuiabá ene./dic 2022  Epub 30-Abr-2022

https://doi.org/https://doi.org/10.29286/rep.v31ijan/dez.7316 

Resenhas

Repensar a educação em sociedades pré-figurativas: uma leitura provocativa

Repenser l'éducation dans les sociétés pré-figuratives : une lecture provocante

1Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.


Un mundo sin adultos” é a mais recente obra do pesquisador argentino Mariano Narodowski, publicada no ano de 2016 pela Editora Debate. Especialista em história das teorizações pedagógicas, bem como de seus desdobramentos epistemológicos e políticos, neste livro Narodowski avança na composição de uma leitura provocativa acerca “dos elementos constitutivos da infância construída na modernidade para entender qual tem sido e como é atualmente o itinerário pelo qual transitam infâncias e adolescências” (p. 24). Bastante reconhecido em nosso país, o pesquisador coloca em debate questões concernentes aos sentidos da infância e da adolescência e, mais que isso, avança na produção de importantes interrogações acerca da educação contemporânea. Questões como a autoridade, o consumo, a indústria do entretenimento e o papel das famílias são colocadas sob interrogação para descrever as mutações culturais que envolvem a infância moderna e seus sinais de “extinção” que foram dimensionados no decorrer do século XX.

As reflexões desenvolvidas por Narodowski na referida obra tomam como ponto de partida uma significativa mudança acerca das questões educativas da infância, ou, mais objetivamente, um pressentimento sobre a possibilidade do fim da infância ocorrido desde os anos de 1970. Tal como discute o autor, se nos séculos passados os mistérios da vida eram preservados e transmitidos pelos adultos, atualmente estes “creem ver em novas infâncias e adolescências a chave que abrirá as portas para a compreensão das mudanças sociais recentes” (NARODOWSKI, 2016, p. 23). Tais mudanças tendem a reposicionar os sentidos de infância, juventude e também da vida adulta. Diante do enquadramento analítico exposto até aqui, o pesquisador argentino organiza esta obra em cinco capítulos, os quais apresentaremos brevemente a seguir.

O primeiro capítulo, intitulado “Quando a infância era uma carência”, propõe-se a comentar o pensamento social da antropóloga Margaret Mead, sobretudo a noção de “cultura pós-figurativa” e suas implicações possíveis para pensar a infância. O valor deste estudo, de acordo com Narodowski, encontra-se em sua profundidade e potencial heurístico para explicar as concepções de infância e de juventude que vão se desenhando no decorrer do século XX. Sob essa perspectiva, podemos afirmar que nossa cultura foi “pós-figurativa”, nos termos de Mead, uma vez que “baseava-se na construção de uma infância heterônoma e dependente e de uma condição adulta autônoma e responsável” (p. 33). Todavia, como autor explicará no decorrer da obra, essa evidente legitimidade da autoridade dos adultos – a partir de variados descritores analíticos – entrou em declínio.

Em termos pedagógicos, seja nas famílias, seja nas escolas, a infância era uma etapa da vida a ser preservada, cuidada e orientada pelas gerações mais velhas, visando sua formação intelectual e moral. Isto implicava também, com maior ou menor intensidade, um sacrifício de parte dos adultos para tornar/manter a infância educada.

Como podemos concluir com facilidade, a infância foi definida por nossa cultura como uma forma de incapacidade estrutural de uma parte da população e possui duas dimensões: por um lado, uma incapacidade operativa (não poder fazer certas coisas) e necessitar da ajuda do adulto para operá-las; por outro lado, uma incapacidade epistêmica (não chegar à compreensão completa de certas coisas) e necessitar da condução do adulto para pensá-las e compreendê-las (NARODOWSKI, 2016, p. 59-60).

Em “A obediência era um valor”, segundo capítulo, Narodowski procura explorar um pouco mais a questão da dependência infantil, posicionando-a nos termos de uma cultura pós-figurativa. Em sua perspectiva, “o mundo adulto ordenava a vida no mundo das crianças e sua decrescente dependência garantia sua futura ‘adultização’” (p. 62). A dependência sinalizava também o próprio caráter iniciático da infância, configurado pela obediência como um princípio. Um dos conceitos desenvolvidos nas últimas décadas para pensar esta questão é a “assimetria” entre crianças e adultos, amplamente difundido por correntes pedagógicas e psicológicas. Em tais condições, quando assumimos a tarefa de pensar o presente podemos constatar que estamos vivendo em um momento em que a relação de assimetria é substituída por “uma relação de equivalência entre adultos que se reconhecem reciprocamente como iguais” (NARODOWSKI, 2016, p. 79).

No próximo capítulo, que tem como título “É difícil ser adulto”, o pesquisador argentino expõe os desdobramentos do declínio da autoridade dos adultos, ao mesmo tempo em que a cultura pós-figurativa entra em crise. Mais uma vez recorrendo ao pensamento antropológico de Margaret Mead, Narodowski descreve a emergência de uma “cultura pré-figurativa”, na qual, em termos de “intercâmbio intergeracional”, neste momento são “as crianças e os jovens os portadores de bens culturais valiosos, já que seu domínio de ações e discursos foi configurado em uma nova situação – são portadores do novo porque não participam do velho” (p. 82-83). Em sociedades pré-figurativas, há uma sensível mudança na compreensão dos sentidos de infância e de juventude.

Em outras palavras, estas mudanças fazem com que as infâncias/adolescências já não sejam as mesmas. A ideia de criança dependente, obediente e heterônoma construída pacientemente ao longo de vários séculos é questionada pela valorização da infância, do jovem, da inexperiência das gerações jovens. Ser jovem (inclusive ser criança ou adolescente) já não supõe uma carência que venha a ser saldada pela correta ação formativa adulta através do passar do tempo. Mas, ao contrário, constitui uma série de atributos positivos não somente para eles, também – e isto muito especialmente – nos adultos que desejam obter uma fisionomia exterior, uma linguagem e uns gostos estéticos semelhantes aos dos mais jovens (NARODOWSKI, 2016, p. 84-85).

No quarto capítulo, intitulado “A ilusão de uma escola sem adultos”, Narodowski direciona sua reflexão para o âmbito das instituições escolares. Com a emergência das tecnologias digitais, o pesquisador argentino explora as leituras de Ivan Illich e Isaac Asimov para problematizar a possibilidade de aprendizagens individuais que se desliguem de uma ação profissional dos professores (adultos). A crise da escola, sob essa perspectiva, poderia ser justificada pelo próprio declínio das culturas pós-figurativas que delineavam as instituições modernas. Uma imagem extrema que se deriva deste cenário seria o próprio desaparecimento do professor, isto é, o desaparecimento das relações de assimetria.

Em “A contradição de ser educador na cultura pré-figurativa”, quinto e último capítulo, Narodowski caracteriza os dilemas para a profissão docente em um contexto em que as assimetrias são diluídas e a “negociação permanente” consolida-se como forma de relação entre alunos e professores. Este cenário também se complexifica à medida em que a linguagem de mercado tende a perpassar a organização do discurso pedagógico.

Vejo a necessidade de conscientizar acerca de um perigo que atravessa a profissão docente: se nossa cultura é de equivalentes generalizados, a necessidade de um outro diferente, com capacidade de transmitir e legitimidade para fazer tem rápida data de validade para converter-se em um mero mediador, um equivalente com uma função especializada na provisão de conhecimento on demand (NARODOWSKI, 2016, p. 206).

Em outras palavras, formar professores em sociedades pré-figurativas apresenta-nos um conjunto variado de novos desafios. Distanciando-se de atitudes nostálgicas ou de sedução por um futuro tecnologicamente mediado, Mariano Narodowski desafia-nos a tomar o contexto da Wikipédia - em rede, colaborativo e universal – para pensarmos sobre a escolarização de nosso tempo. Em sua perspectiva, “ao olhar para o futuro de um mundo sem adultos de uma maneira mais flexível em que a pré-condição indispensável do pensamento científico e do rigor do trabalho intelectual (inclusive da erudição) pode se articular com a construção colaborativa de conhecimento” (p. 215). Considerando a pertinência e a atualidade que se derivam da obra “Un mundo sin adultos”, recomendo-a como literatura fundamental para problematizarmos a escolarização no século XXI.

Referencias

NARODOWSKI, M. Un mundo sin adultos: familia, escuela y medios frente a la desaparición de la autoridad de los mayores. Buenos Aires: Debate, 2016. [ Links ]

Recebido: 28 de Setembro de 2018; Aceito: 02 de Julho de 2020

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