Introdução
Os estudos da criança e da infância comungam da ideia de dar visibilidade às crianças enquanto atores sociais, o que por vezes se configura como uma perspectiva desafiadora para os(as) pesquisadores(as) adultos(as) já que requer o respeito às particularidades das crianças como sujeitos ativos e de direitos. O diálogo que a Sociologia da Infância tem construído com as outras áreas de estudo vêm abrindo o caminho para viabilizar essas investigações sob uma ótica mais interdisciplinar. Nesse sentido, a participação infantil em pesquisas sugere que novos olhares se configurem para atribuir reconhecimento à escuta atenta às interpretações trazidas pelas crianças (Natividade; Coutinho, 2012), a fim de destacar seu protagonismo e romper a ideologia de que a criança é aquela que não tem fala (Souza, 2008).
Uma pesquisa realizada por Lucas e Rausch (2010) indica que as considerações feitas a partir do olhar do adulto sobre a criança são frequentes nos trabalhos acadêmicos, mesmo quando envolvem as próprias produções infantis. As autoras percebem que as análises giram em torno das falas dos professores, e as falas das crianças, quando aparecem, ficam soltas no texto. Resultados como estes nos mostram a necessidade de se entender a criança como sujeito, e não apenas como objeto de pesquisa.
Conforme Ariès (2006), nem sempre a criança foi compreendida como um ser com características distintas e necessidades específicas, sendo esse pensamento em torno da criança e da infância uma construção social. Prout e James (2015) analisam a construção social da infância e afirmam que as concepções sobre as crianças e sua posição na sociedade resultam de processos sociais, culturais e históricos. Os autores enfatizam a importância de considerar as crianças como agentes sociais ativos e capazes de construir e redefinir seus próprios significados e papéis na sociedade.
Esses referenciais evidenciam o contexto histórico, cultural e social ao discutir o conceito de infância e destacam a transformação das práticas em relação à criança ao longo do tempo. É nesse enredo que Sarmento (2012) situa a infância como uma categoria social que remete para o conjunto de representações e práticas sociais relativas às crianças, às suas características, necessidades e direitos. James e James (2015), também exploram a construção social da infância e realçam que as concepções e práticas relacionadas à criança mudaram de acordo com os diferentes contextos.
Além disso, Qvortrup (2018) e Qvortrup et al., (2020), abordam a infância como um campo de estudo multidisciplinar e buscam compreender as experiências, as relações e as construções sociais infantis em situações diversas. Nessa dimensão, a infância é reconhecida como um constructo socialmente construído e vivenciado ativamente pelas crianças, bem como se destaca que essa categoria social é moldada pelas diferentes estruturas culturais e sociais que a cercam.
É por essa razão que se torna importante considerar que a infância não é vivida do mesmo modo por todas as crianças, por isso, é necessário levar em conta a pluralidade de situações disseminadas na vivência cotidiana dessa categoria social. Soma-se a esse entendimento, os diferentes conceitos de infância construídos ao longo do tempo. Assim, em função de múltiplas perspectivas, podem ser encontradas variadas ‘infâncias’.
Neste trabalho, aborda-se a construção da infância, ou melhor, das infâncias em um contexto de globalização e expansão tecnológica em escolas da rede pública situadas na capital de Pernambuco, de maneira a valorizar a originalidade das perspectivas das próprias crianças. Essa investigação, além de se embasar nos estudos da infância, se fundamenta na Teoria das Representações Sociais (TRS) (Moscovici, 2007), que pondera que o sujeito, ao agir sobre o meio social, ao mesmo tempo influencia e sofre influência desse meio. Dessa interação, ocorre a produção de representações sociais que são os sentidos compartilhados coletivamente que guiam e justificam comportamentos.
Prout e James (2015) destacam que estudar a infância a partir da perspectiva das próprias crianças é essencial para entender como elas interpretam e negociam as representações e práticas sociais em seu contexto específico. Ao ouvir as crianças e encorajar suas vozes, é possível obter insights sobre suas necessidades, desejos, preocupações e aspirações, que podem direcionar para a criação de políticas e práticas mais inclusivas e sensíveis às crianças.
Considera-se neste trabalho que as representações que as crianças têm de si mesmas orientam suas ações e podem ter se modificado a partir do contato mais intenso entre elas e as tecnologias1. Por esse ângulo, a reconfiguração do espaço educacional em função da tecnologia digital requer um olhar mais abrangente, envolvendo constantemente novas formas de ensinar e de aprender, condizentes com o paradigma da sociedade do conhecimento. Neste espaço reconfigurado, encontra-se a criança, que sofre influências desse contexto na caracterização de sua identidade.
No geral, o estudo das representações sociais elaboradas por crianças está inserido em um movimento acadêmico mais amplo que busca escutá-las e promover suas perspectivas, considerando-as como participantes ativos na própria construção social da infância. Essa abordagem tem enriquecido o conhecimento e promovido mudanças nas práticas educativas voltadas para as crianças de forma a reconhecê-las como sujeitos posicionados e com voz (Nicola, 2016; Fonseca; Nicola, 2017; Bona; Costa, 2020)
Em face do exposto, indaga-se se a forma como a tecnologia vem transformando os paradigmas sociais e educacionais, fazendo com que os indivíduos recorram à integração dos recursos tecnológicos na vida cotidiana, tem influenciado na maneira como a criança se representa socialmente na contemporaneidade. Diante disso, é pertinente a realização de investigações que permitam que crianças se posicionem, para que possamos compreender as experiências que elas vivenciam.
Para tal, este trabalho é construído mediante uma reflexão sobre a relação da criança com a tecnologia, em especial as tecnologias digitais, em uma perspectiva de compreender a vivência e a manutenção das relações interpessoais em um cenário de expansão tecnológica. O tópico seguinte versa sobre a Teoria das Representações Sociais, que sustenta a proposição da investigação aqui realizada. Subsequentemente, são apresentados os itinerários metodológicos percorridos e os resultados advindos das duas etapas que integram a construção dos dados da pesquisa. Por fim, são traçadas as considerações finais.
A relação da criança com as tecnologias: algumas perspectivas
É perceptível que concepções sobre a infância variam historicamente, assim como o fato de que as crianças estão em contínua mudança e transformação. Em função disso, os processos de socialização infantil motivam preocupações nos círculos acadêmicos, pedagógicos e familiares. Tendo em vista as especificidades de uma abordagem pós-moderna, que destaca a importância das vozes marginalizadas e subalternas, buscando ampliar a diversidade de perspectivas e defender a pluralidade de identidades e discursos, a criança não só tem o direito de ter sua opinião levada em consideração, como também tem competência para ser um informante confiável (Kellet, 2016; Prout, 2010). É nesse sentido que a Sociologia da Infância evidencia a necessidade de abordagens que rompam com relações de dominação etária, superando a ênfase dada apenas à visão do adulto.
Corsaro (1997) entende as crianças como responsáveis por suas infâncias, ou seja, são capazes de tomar decisões e influenciar o ambiente social em que estão inseridas. Essa perspectiva reconhece o poder das crianças como construtoras de suas próprias práticas culturais, em contraste com uma visão tradicional que considerava as crianças como objetos passivos das influências dos adultos. Assim, é importante conhecer as crianças para entender a sociedade nas suas contradições e complexidades, já que são as melhores fontes para o entendimento da infância. Contudo, em sua caracterização, precisamos considerar os diferentes contextos que originam as diversas infâncias vivenciadas pelas crianças.
As crianças que vivenciam este século, o XXI, a depender do meio social e cultural em que se inserem, convivem com o acesso livre aos mais variados recursos digitais, como os computadores, os tablets, os smartphones e, principalmente, a internet. Os efeitos dessa aproximação envolvem tanto os de cunho positivos quanto negativos. Assim, as crianças possuem facilidade e um rápido aprendizado quanto ao uso das tecnologias, inclusive no desenvolvimento de habilidades cognitivas (Taborda, 2019). Todavia, ainda é um pouco polêmica a questão da influência da tecnologia na vida social da geração Z2, especialmente ao se considerar que as tecnologias digitais medeiam as relações interpessoais cultivadas na sociedade através dos mecanismos de trocas de mensagens instantâneas e do compartilhamento de rotinas em vídeos e imagens.
Segundo Ravasio e Fuhr (2013), a ideia construída sobre brinquedos, sempre associados às crianças, foi sendo modificada, uma vez que, mediadas pelas tecnologias, as crianças deixam de conduzir as brincadeiras. Utilizando-se de recursos como “poderes”, “habilidade” e “conquistas”, as crianças buscam se projetar nos personagens, criando uma realidade virtual. As autoras supracitadas ainda argumentam que as imagens reproduzidas na tela aprisionam a criança e interferem diretamente na sua experiência infantil, o que poderia ser determinante para provocar a passividade corporal e uma quebra na formação da imaginação e do desenvolvimento criativo.
Por isso, é válido inferir que as tecnologias a que hoje ascendemos se configuram como modificadoras das formas de relacionamento das crianças com a informação e a comunicação. “Neste ponto, as transformações do brincar, das brincadeiras, a interação com o outro, as refeições e infinitos modelos de compartilhamento do mundo infantil, foram se modificando e favorecendo novos cenários” (Bona et al., 2020, p. 46-47).
Portanto, a cultura digital estabeleceu transformações nas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) e, por consequência, nas relações sociais, possibilitando que toda a sociedade compartilhe dos avanços das tecnologias. Esses avanços trazem, então, perspectivas de construções que contribuem para novas experiências e novas formações no ambiente digital. Interessamo-nos, assim, em tentar compreender a cultura digital na vivência das crianças e de adolescentes que crescem dentro desse novo cenário, próprio da era da informação.
Buscamos entender se a criança, ao crescer nesse meio de tantas informações, tem, como consequência, a modificação do ser criança na sociedade contemporânea. Dessa forma, para analisar de que maneira as mudanças sociais causadas pelo impacto das tecnologias têm influenciado na concepção de criança e na sua relação com a dimensão tecnológica na sociedade, nos apoiamos no referencial da TRS, que traz, em sua proposta, a concepção de um sujeito que pensa, age, atualiza os objetos sociais, transforma e é transformado pela sociedade, em um contexto determinado. Essa teoria leva em consideração, “ao mesmo tempo, a atividade do sujeito sobre o mundo e, reciprocamente, da ação do meio, empírico e social, sobre o indivíduo” (Maia, 2001, p. 85).
A Teoria das Representações Sociais no embasamento desta pesquisa
Tendo sua origem no campo da Psicologia Social, a TRS tem contribuído, de maneira efetiva, para a discussão teórica de pesquisas que objetivam apreender os muitos processos e significados atribuídos pelo ser humano à sua participação no mundo. Em função dessa característica, a TRS enfatiza um tipo de conhecimento que tem sua gênese nas práticas sociais e que, consequentemente, fomenta os aspectos da vida cotidiana dos mais variados grupos. Portanto, a referida teoria pode ser entendida como a forma sociológica da Psicologia Social (Alexandre, 2004).
Moscovici (1978) compreende que a representação social está relacionada à organização do conhecimento, que possibilita o acesso inteligível das atividades humanas a um grupo em relação a um objeto social determinado. Corroborando essa definição, Jodelet (1984) explicita que as representações sociais são expressões do conhecimento prático que orientam a compreensão do contexto social em que se vive. A partir disso, a comunicação e o compartilhamento se tornam características importantes para a consolidação da representação dos determinados grupos sociais, já que é por meio do conhecimento compartilhado que as condutas serão orientadas por uma justificativa comum que expõe a realidade social vivenciada e define as identidades dos indivíduos (Ribeiro; Cruz, 2013).
Para Jodelet (2001), o social intervém na formação individual da representação pelo contexto em que as pessoas estão inseridas, pela comunicação que se estabelece entre elas, pela matriz cultural e pelos valores ligados aos grupos específicos. Sob esse prisma, o estudo das representações sociais tanto indica modos de pensamento sobre os objetos sociais como coloca em evidência o modo como o sujeito se define quanto a esses objetos, visto que essas representações são teorias do senso comum, através das quais realidades sociais são interpretadas e construídas (Jodelet, 2001; Moscovici, 2007).
Conforme Moscovici (2003), para desvelar as ideias compartilhadas pelos grupos que regem as condutas, estuda-se tais representações, suas propriedades, suas origens e seu impacto. Defendemos que conhecer as formas contemporâneas da concepção de criança e infância significa apreender não só como a criança é percebida, mas como ela atua em nosso mundo. Partimos, então, do pressuposto de que as concepções de criança se apoiam em concepções de ser humano, de mundo, de valores e de normas vigentes na sociedade, em um determinado momento (Almeida; Cunha; Santos, 2004). Nesse sentido, buscaremos não apenas apreender como a criança é representada, mas também como ela mesma se representa especificamente na sociedade contemporânea, marcada por uma dimensão tecnológica digital da informação.
Acreditamos que, se o desenvolvimento tecnológico transforma as relações sociais e, consequentemente, o contexto escolar, ele também influencia as representações sociais nele existentes, uma vez que estas são definidas como uma dimensão da própria sociedade enquanto mediada pelos aspectos afetivos envolvidos.
Em razão da característica atribuída às representações sociais como orientadora das práticas, Abric (1994) propõe ao estudo dessas representações uma abordagem estrutural. Esse estudo deve compreender a presença de diversos processos e eventos como constituintes normativos e funcionais do conteúdo da representação social, sendo esta permeada por diferentes dimensões e hierarquias. Nesta investigação, adotamos o viés da abordagem estrutural das representações sociais, que sustenta, teoricamente, a existência de um núcleo central que provê as conexões existentes entre os elementos periféricos da representação.
Metodologia do trabalho
Esta pesquisa adotou a perspectiva de colocar em evidência o discurso das crianças sobre as experiências que vivenciam, para que pudéssemos compreender o que é ser criança, bem como as representações sociais das crianças relacionadas à infância na sociedade contemporânea. A investigação se caracteriza como qualitativa e objetivou compreender as representações sociais compartilhadas por estudantes de escolas públicas sobre a criança e a infância na sociedade contemporânea. O estudo teve como participantes 100 crianças na faixa etária de seis a onze anos, oriundas de duas escolas públicas de Recife/PE. Destacamos que foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco com o CAAE 66793617.3.0000.5208 e seguiu todas as recomendações éticas em sua coleta.
O itinerário metodológico se constituiu em duas etapas, em que uma serviu de subsídio para organização do roteiro da etapa seguinte. Diferentes instrumentos utilizados em cada etapa permitiram o acesso aos sentidos que circulam em torno da infância, analisando como eles são construídos e organizados no atual contexto social, marcado pela presença da tecnologia digital da informação. Assim, os procedimentos envolveram testes de associação livre de palavras, entrevistas e grupo focal. Cada etapa com seu instrumento, procedimentos e análise estão apresentados na Figura 1. Vale ressaltar que todas as etapas foram iniciadas e concluídas antes da pandemia.
Na etapa 1, tivemos como colaboradoras crianças entre seis e onze anos - 50 estudantes de cada uma das duas escolas. Ambas as instituições de ensino são públicas e localizadas em bairros centralizados na cidade do Recife. Sendo uma delas, uma escola de grande porte da rede estadual de ensino, bem estruturada e com acesso a aparatos digitais na instituição. A outra, apesar de também estar situada em um bairro central, é uma escola de porte menor e integra a rede municipal de ensino. Portanto atende a uma quantidade de alunos menor que a anterior, não possui recursos digitais para uso dos alunos e sua estrutura não apresenta adequação.
Esta etapa consistiu na construção de questionário com o teste de associação livre de palavras, seguido de hierarquização e aplicado por meio de entrevistas individuais fechadas, para a identificação do campo semântico das representações sociais mediante os termos indutores ‘criança’ e ‘tecnologia e criança’. Solicitamos que a criança citasse cinco palavras que lhe viessem à mente quando escutasse o termo indutor. Além disso, requisitamos a escolha e a justificativa da palavra que, dentre aquelas associadas ao termo indutor, o participante achava mais representativa. Para a análise dos dados, apoiamo-nos na análise de conteúdo de Bardin (2001) e utilizamos o software Iramuteq, que viabilizou a construção da análise prototípica, que nos mostra como a representação está estruturada.
Na etapa 2, realizamos grupos focais para a coleta e a validação dos dados anteriores. Participaram desse momento 20 crianças que estiveram na etapa 1, organizadas em dois grupos de 5 integrantes em cada escola: 1º grupo: crianças de seis a oito anos; 2º grupo: crianças de nove a onze anos. A discussão foi iniciada em torno das palavras mais frequentes obtidas na primeira etapa, sendo conduzida de forma que os participantes discutissem sobre o que foi levantado na etapa anterior. A partir disso, a mediadora do grupo focal propôs algumas questões referentes ao ser criança para que o debate prosseguisse. Os grupos focais foram gravados em vídeo e, em seguida, transcritos, para análise.
Resultados e discussão
A associação livre de palavras é considerada, por Abric (1994), um instrumento que permite a atualização de elementos implícitos ou latentes mascarados nas produções discursivas. Por sua vez, possibilita acessar mais rapidamente os elementos que constituem o campo semântico do objeto estudado. Neste trabalho, discutiremos apenas os resultados das respostas obtidas através do estímulo-indutor criança, visto que o outro termo indutor foi utilizado com a intenção de compreender as relações semânticas.
Diante disso, buscamos identificar e caracterizar a estrutura da representação social de criança. Para tanto, realizamos a análise prototípica, que é uma difundida técnica de levantamento dos elementos e de sua hierarquia estruturante na representação social. O Quadro 1 apresenta o resultado da análise prototípica, no qual a frequência (F) se cruza com a ordem média de importância (R) dada pelos sujeitos às evocações feitas.

Fonte: Gerado a partir do Software Iramuteq.
Quadro 1 Resultado da análise prototípica das evocações quando usado o termo indutor criança.
As palavras que constam no primeiro quadrante, no qual se encontram as evocações de maior frequência e a ordem de evocação inferior à média geral das evocações, são estudar, felicidade e amizade. A distribuição de frequências sugere que, possivelmente, essas palavras indicam o Núcleo Central (NC) da representação social do grupo.
O NC é diretamente determinado pelas condições históricas, sociológicas e ideológicas, sendo, portanto, fortemente marcado pela memória coletiva do grupo e pelo sistema de normas ao qual ele se refere. O estudar na história da criança brasileira demonstra as mudanças sociais aqui vivenciadas (Gouvêa, 2003). Essa perspectiva histórica revela o quanto, estudar foi e é significativo na sociedade, de modo que se configura uma cobrança dos sistemas familiar e social. Acreditamos que, em razão disso, estudar aparece no NC da representação do grupo. As justificativas das crianças para a importância dada a esse termo elucidam o que discutimos:
Participante (c94F113): Criança tem que estudar porque, quando crescer, tem que ser alguém na vida.
Participante (c63M10): é importante, mas nem todos têm essa oportunidade.
Participante (c82M11): estudando é que alguém pode trabalhar e ganhar muito [dinheiro] como um bom médico.
A amizade, independentemente da idade, possibilita efeitos positivos em toda a vida, sendo este um outro termo que aparece na zona central. Ter amizades na infância estimula o desenvolvimento de algumas características, como sociabilidade, autonomia e altruísmo. Além disso, reduz comportamentos negativos. Durante a socialização entre um grupo de amigos, a criança aprende a se virar sozinha, fazendo concessões que não ocorrem na presença dos pais, mas são vistas, por exemplo, na escola, que é um ambiente com princípios estabelecidos para uma boa convivência. Assim, o surgimento do sentimento de felicidade torna-se inevitável, pois estar bem com quem está ao redor proporciona à criança um ambiente agradável que lhe transmite bons sentimentos.
Essas palavras constituintes da zona central – estudar, felicidade e amizade – parecem retratar elementos normativos, já que compõem uma dimensão social e estão diretamente conectadas ao sistema de valor de cada indivíduo (Abric, 2003). Afirmações como criança tem que estudar, criança tem que ser feliz e crianças têm que ter amigos elucidam melhor a normatividade desses termos.
Os elementos periféricos entram na composição da representação por constituírem sua parte operatória. Para Abric (2000), o sistema periférico (SP) é a concretização do NC em termos realísticos, isto é, os elementos periféricos atuam como esquemas organizados pelo NC. Nessa direção, observamos que o NC identificado – constituído pelos termos estudar, felicidade e amizade – agrupa sentidos norteadores de ações que, por sua vez, aparecem no primeiro SP: brincar, correr, bola, alegria, entre outros. A identificação dos elementos da periferia nos permite vislumbrar a representação social aparecendo no cotidiano dos sujeitos.
As palavras que parecem abordar os aspectos tecnológicos, como jogar, jogos, celular e tablet, aparecem já no quadrante inferior esquerdo, que representa a zona de contraste. Segundo Oliveira et al., (2005), essa zona comporta elementos que caracterizam variações da representação em função de subgrupos, sem, no entanto, modificar os elementos centrais e a própria representação, ou seja, denotam mudanças ou transição de uma representação social.
Já na segunda periferia (último quadrante), temos, ainda, mais uma referência aos artefatos tecnológicos pela palavra videogame, que, por sua vez, materializa os termos jogos e jogar, elucidados na zona de contraste, o que dá ao quarto quadrante a função operatória da estrutura da representação.
A presença dos elementos tecnológicos na zona de contraste e na segunda periferia validam que os aparatos digitais não têm o mesmo significado para todos os grupos. De modo, que é o uso que se faz delas que lhes dá sentido. No caso, no estudo realizado, e a partir dos dados construídos compreende-se que tecnologias sempre desempenharam um papel importante na sociedade, e os atores sociais ao usarem-nas, tecem redes comuns de significados em torno delas.
Autores como Belloni (2009) e Bona e Maia (2012) também concordam que as tecnologias são transformadoras das ações e comportamentos das crianças sendo, portanto, consideradas responsáveis pela transformação das relações sociais, funcionamento mental, concepções básicas de conhecimento, influenciando no significado da infância e na concepção que as crianças têm de si mesmas.
Para confirmação desses elementos e melhor apreensão dos dados, a segunda etapa da pesquisa foi de extrema importância. Nela, aprofundamos as informações advindas da etapa anterior por meio de discussões provocadas em grupos focais, visando a entender, de maneira mais ampla, como se estabelece essa relação entre os artefatos tecnológicos e as representações sociais de criança, ou seja, compreender o ser criança na contemporaneidade.
O interesse pelo uso do grupo focal no campo das representações sociais reside no fato de que ele, de certo modo, simula as conversações espontâneas pelas quais as representações são veiculadas no cotidiano (Sá, 1996). A conversa em grupo permite a explicitação de formas de pensar e de agir dos sujeitos no meio em que vivem e, nesta pesquisa, serviu como processo de realimentação dos dados e do conteúdo que tomou forma no processo da investigação.
Corroborando os dados construídos na primeira etapa – em que os aparatos digitais apareceram apenas na zona periférica da estrutura da representação na análise prototípica –, os resultados obtidos aqui trazem o cotidiano como elemento funcional do discurso. Isto é, ao pensarem sobre o que é ser criança, os participantes elencam particularidades daquilo que vivenciam e, a partir desse processo, constroem seus conceitos e definições acerca de si. Por conseguinte, construímos um diagrama no qual é possível visualizar como se estabelecem essas construções (Figura 2).

Fonte: Elaborado pelas autoras.
Figura 2 Diagrama das construções analisadas a partir do Grupo Focal.
A Figura 2 mostra que o corpus de análise foi organizado a partir de 3 unidades de registro: tecnologia, diversão e estudar. Cada uma dessas unidades apresenta várias unidades de contexto, que são palavras ou frases que dão sentido à unidade de registro à qual pertencem. Já os impulsionadores tratam das palavras que surgiram dos discursos das crianças e expressam como o participante se relaciona com a unidade de registro.
A unidade de registro identificada como estudar, foi aquela que figurou como um dos elementos nucleares dos discursos, sendo, mais uma vez, sublinhado e ratificado por configurar um eixo importante na representação. Entretanto, vale considerar que o contexto em que as crianças estavam inseridas – uma vez que o grupo focal aconteceu em ambiente escolar – pode ter tido forte influência no destaque dado para o lugar ocupado pelo estudo nas falas.
Todavia, durante as conversas que se entrelaçaram nos grupos, foi possível destacar também, uma cobrança dos sistemas familiar e social, que parecem refletir uma memória coletiva. A percepção da cobrança externa é nítida para as crianças, como é possível notar nas seguintes afirmações:
Participante (FbG²10): [...] isso vem muito de dentro de casa, de que os pais dizem para as crianças estudar porque isso diz muito do futuro dela, pra ela ter mais conhecimento, ser alguém no futuro. Mas no brincar ela se diverte e pode ter a infância [sic].
O peso que carrega a expressão ser alguém na vida tem implicações inimagináveis, e a cultura vigente continua a propagar a ideia de que educação tem a ver com o que se faz para conseguir melhores cargos e salários, visando a uma boa colocação social. Há outras inúmeras razões que dispensam a real essência de ensinar e aprender e que se distanciam, cada vez mais, de considerar a educação como um esforço contínuo e progressivo para alcançar o conhecimento.
A frase estereotipada, dita banalmente por pais e demais adultos, constrói conceitos de educação na mente da criança que dificilmente são reconstruídos no decorrer de sua trajetória escolar. Ademais, é necessário considerar que estamos lidando com crianças que vivem uma fase de descobrir o outro e de se perceber como seres sociais, o que está intimamente relacionado a aspectos de sua fase de desenvolvimento ainda não finalizada. Logo, relacionar o teor do brincar e de se divertir à responsabilização que advém do estudo para a competição para o trabalho, em vez de se apresentar como caminho para construir conhecimento, parece oferecer confusão para a criança, colocando o estudar como algo imperativo em suas vivências e em suas projeções de futuro – sem considerar o presente.
A próxima unidade de registro a aparecer no discurso dos participantes é diversão. Essa unidade surge em decorrência da pergunta o que é ser criança?. Nesse momento, os participantes trazem elementos coletivos, expressando a ideia de que, ao refletir sobre o ser criança, elas possuem uma perspectiva dessa fase da vida e, por isso, não apresentam falas individualistas.
A coletividade expressa nas falas das crianças é explicada por Foucault (2002), quando este afirma que o sujeito é produto de processos de subjetivação que são entendidos como aquelas conexões em que um ser humano é ligado a outros seres humanos. O que se destaca, no entanto, é que as falas proferidas não têm conotação de cuidado, mas de companhia a pessoas que estão por perto e que são indispensáveis para atender a uma necessidade do momento em que se vive (por isso, o verbo impulsionador é precisar).
Outro importante detalhe apreendido é que a unidade de registro diversão, em certo ponto, se conecta à unidade de registro tecnologia (ver construção na Figura 2). Nesse ponto, ao falar sobre sua própria diversão, seu momento de lazer, a criança a relaciona a aparatos digitais com bastante frequência. Já quando a diversão é abordada em uma situação que envolve as crianças de forma global, e não apenas ela, o ponto de partida é o coletivo, e, neste momento, surgem falas que remetem à fase em que vivem, e a necessidade da manutenção de relações sociais como amigos, familiares, pets. Isso apenas só foi evidenciado quando analisamos o discurso das crianças em situação de interação, provocada pelo grupo focal. Consideramos esse achado um avanço em relação à análise realizada apenas pelos termos e palavras evocadas em uma associação livre, sem a qual esse fato talvez não fosse percebido.
Na unidade de tecnologia, como o próprio termo sugere, aparecem as atividades que as crianças indicam gostar mais de realizar. As atividades indicadas por elas se relacionam em especial, ao celular, uma vez que a maior parte das atividades enunciadas podem ser realizadas com esse aparato digital, como ficar no Whatsapp, escutar música, tirar foto e redes sociais. Além disso, a espontaneidade das respostas, visto que os artefatos tecnológicos apareceram sem qualquer indução, nos leva a refletir sobre o impacto dessas ferramentas no cotidiano das crianças.
Mesmo que não apareçam de maneira direta em suas representações, é importante notar como a tecnologia tem estado presente e até mesmo substituído, silenciosamente, hábitos tradicionais importantes para o desenvolvimento da criança, a saber o desenvolvimento afetivo, cognitivo e social (Paiva; Costa, 2015).
No mundo virtual, em especial nos jogos eletrônicos e redes sociais, amizades reais e brincadeiras tradicionais são substituídas por hábitos reclusos que isolam o prazer da diversão. Entretanto, é necessário considerar que o uso das tecnologias pelas crianças não apresenta apenas conotação negativa. Em vez disso, são relatados, pelas próprias crianças, os benefícios do uso dos aparatos digitais.
Ao serem questionadas sobre o que é ser criança, as referências partem do brincar. No entanto, a tecnologia, de maneira sutil, começa a mudar esse discurso. É possível validar esta constatação em um fragmento transcrito de um grupo focal:
Participante (FbG¹08)4: ser criança é a pessoa brincar, aproveitar que ainda é criança, que depois cresce e fica maior [...]
Participante (FbG¹08): é que agora tem muita criança que não gosta mais de brincar, tudo agora e te... tec... logia, ah, não sei.
Mediadora: te o quê?
Participante (FbG¹08): tecnologia.
Mediadora: e o que é isso de tecnologia?
Participante (FbG¹08): é essas coisas eletrônicas, celular, computador, um monte de coisa.
A discordância entre os participantes sobre o que é ser criança, trazendo a tecnologia como elemento que precisa ser considerado, é a evidência de que estes objetos têm influenciado na maneira como a criança se autodefine vivendo em um contexto de expansão tecnológica, pois conforme colocado por Ribeiro, Ribeiro e Santos (2023, p.106) o autoconceito é uma “construção teórica que um indivíduo faz sobre si mesmo a partir do seu convívio com o meio social” este, tem um papel fundamental no processo de aprimoramento humano.
Considerações finais
Os dados construídos e levantados no trabalho nos levam a identificar o caráter não universal das infâncias, uma vez que, movidas por diferentes culturas, as crianças criam e recriam diversos olhares acerca de si. Tais características aparecem nas formações de subgrupos na estrutura da representação social. No entanto, a formação do NC da estrutura revela e sustenta que a representação social de criança compartilhada pelo grupo gravita ao redor de termos (como estudar) que refletem uma responsabilização social, bem como dos que revelam aquilo que as move (como felicidade e amizade).
A partir das experiências apresentadas nos grupos, podemos tecer inferências sobre o que é ser criança no século XXI. Sabemos que, a cada nova geração, os choques culturais em relação à geração anterior se tornam mais evidentes. Se, para crianças de gerações passadas, era comum crescer brincando na rua – com brinquedos, muitas vezes, construídos por seus avós –, para as crianças do presente século, a brincadeira muda de forma e de espaço, mas não deixa de ser brincadeira. Mesmo repaginado o brincar permanece na essência infantil, remetendo à ideia de leveza e diversão. A diferença é que essa diversão passa a ser associada a elementos tecnológicos que parecem diminuir a mensagem de coletividade das brincadeiras antigas.
Ainda que submersa em um contexto de grande abundância dos artefatos tecnológicos, os aparelhos tecnológicos parecem não interferir diretamente na estrutura da representação social. Todavia, por terem aparecido na zona de contraste, evidenciamos que se tornaram elementos constantes no cotidiano do grupo, o que pode indicar uma possível e futura mudança no discurso das crianças sobre si, acarretando alterações nas representações sociais desses sujeitos.
Concluímos, finalmente, que a realização dos grupos focais foi essencial para compreender as evocações apreendidas na primeira etapa da pesquisa e para cercar o objeto, de modo que somente a partir desse olhar detalhado pudemos perceber que tecnologia, diversão e estudar refletem o cotidiano de parte da geração atual. Nesse sentido, ser criança, para o grupo participante, é poder carregar a leveza da infância através do brincar e do se divertir, usufruindo de artefatos que lhe são mais atraentes pelas diversas possibilidades que apresentam sem deixar de lado o comprometimento imposto pelo estudo, que é visto como o caminho para o sucesso futuro. Podemos afirmar que, nas representações sociais de criança compartilhadas pelos participantes, a coletividade se caracteriza pela diversão, e esta, por sua vez, integra o brincar e traz um significado de necessidade de convívio com outro ser humano, o que é indispensável para atender a especificidade do momento em que vivem.















