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Revista de Educação Pública

versão impressa ISSN 0104-5962versão On-line ISSN 2238-2097

R. Educ. Públ. vol.32  Cuiabá jan./dez 2023  Epub 28-Dez-2023

https://doi.org/https://doi.org/10.29286/rep.v32ijan/dez.13588 

Artigos

Ocupe as Ruínas: ensaio sobre a educação em Direitos Humanos nas ocupações estudantis em 2015/2016

Occupy the Ruins: essay about the Human Rights educations in student occupations in 2015/2016

Vânia Virgens Almeida NASCIMENTO1 
http://orcid.org/0000-0002-9447-1326

Scarlett Giovana BORGES2 
http://orcid.org/0000-0001-7733-5245

Rodrigo Manoel Dias da SILVA3 
http://orcid.org/0000-0001-8501-5903

1Doutoranda em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e integrante da linha de Pesquisa “Educação, História e Políticas”.

2Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

3Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Brasil (2012). Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado na linha de pesquisa Educação, Desigualdades e Inclusão. Integra também o corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da mesma instituição).


Resumo

Nesse ensaio, analisamos as ocupações estudantis das escolas públicas no Brasil, entre 2015 e 2016, em relação ao seu potencial transformador do cotidiano escolar. A Educação em Direitos Humanos é evidenciada, nesse contexto, como vivência e reflexão acerca dos ideais democráticos de cidadania e de justiça social, proposta na ressurgência da práxis educativa. Consideramos que as ocupações estudantis, em sua capacidade comunicativa, colocaram em pauta e em prática a Educação em Direitos Humanos, tomando a escola e a mídia como ruína de seu próprio processo institucional.

Palavras-chave Educação; Educação em Direitos Humanos; Ocupações Estudantis; Ocupar Ruínas

Abstract

In this essay, we analyze the student occupations of public schools in Brazil, between 2015 and 2016, about their transformative potential in school everyday life. Education in Human Rights was evidence in this context as an experience and reflection on the democratic ideals of citizenship and social justice proposed in the resurgence of educational praxis. We consider that student occupations, in their communicative capacity, put Human Rights Education on the agenda and put into practice, taking the school and the media as the ruin of their institutional process.

Keywords Education; Human Rights Education; Student Occupations; Ruins Occupy

Ocupe Fukushima – e todas aquelas ruínas em que ainda devemos viver. Ocupar é dedicar-se ao trabalho de viver juntos, mesmo onde as probabilidades estejam contra nós. É recusar – e também se recuperar. Se quisermos viver, devemos aprender a ocupar até os espaços mais degradados da vida na Terra. Nossa raiva é necessária. Sem isso, nós definhamos (Tsing, 2019, p. 87).

Introdução

Ocupar as ruínas é um convite expressivo - aberto e insolúvel - para olhar o que se (des)gasta e se perde, o que se passa e permanece pela continuidade e firmeza nas suas composições, trajetórias e plenitude de sentidos, ainda que sombrios e desviantes. A narrativa empreendida pela antropóloga Anna Tsing (2019), na sua obra Viver nas ruínas, é um alumbramento às suas experiências no cotidiano de pesquisa em que as ações ferais e benéficas do homem clamam por ocupar novas compreensões e (re)ligações para transformar as experiências, os encontros, os ritmos e as histórias de vida também deflagradas nas ruínas dos processos formativos.

A discussão sobre as multiespécies da paisagem em face ao desafio dos debates do Antropoceno, proposta por Tsing (2019), acrescenta uma nova perspectiva à reflexão acerca da separação analítica entre a natureza e a cultura no pensamento ocidental. Frente aos movimentos sociais contemporâneos, reconhecemos também novas formas de (re)existência que fogem à lógica hegemônica e transformam os espaços enquanto ruínas de seu propósito institucional.

O presente ensaio propõe a aproximação conceitual das ocupações estudantis brasileiras de 2015 e 2016 e da Educação em Direitos Humanos, no sentido de refletir como o emaranhado de devires que compõe a escola são subvertidos e recriados pelos sujeitos das ocupações. Para isso, discutimos a literatura produzida na área da Educação em Direitos Humanos e sobre as ocupações estudantis de 2015 e 2016, destacando seus pontos de convergência e o urgente reconhecimento dos sujeitos de direitos como pessoas que têm condições de situar-se e posicionar-se diante da sociedade para nela intervir em defesa do bem comum, no sentido republicano (Silva, 2013). Como aspecto que não pode ser surripiado no trato da EDH, a formação de sujeitos de direito articula as dimensões ético-político-social e as práticas concretas em Direitos Humanos (Candau, 2007). Nesse sentido, objetivamos por meio de um estudo conceitual discutir possíveis interpretações teóricas para o tema, suleadas por perguntas que deslocam o objeto de estudo da inércia da ruína escolar para a vida que acontece em sua ocupação.

Ocupar, ocupar, ocupar... Será essa a alternativa para viver nas ruínas do processo de socialização na contemporaneidade? O que ainda devemos viver nos movimentos aparentemente esgotados em suas verdades, armadilhas e desarranjos, porém firmes em suas composições? Carecemos olhar para a circularidade de experiências e referências identitárias não reificadas? Por onde começar?

De pronto, começaremos pelas ruínas. Nosso olhar direcionado para a pesquisa em educação, detêm-nos aos significados sociais que a escolarização assume no processo de “formação integral do indivíduo e maior contato com conteúdo da cultura, expressão corporal e fortalecimento dos vínculos afetivos e de pertencimento à determinada realidade” (Marinho, 2012, p. 132). Podemos falar de uma integralidade sem nos prendermos no universalismo de uma pressuposta humanidade? Essas ruínas são o terreno da formação do (e ainda não tensionado: da) sujeito de direitos, conforme determinam os artigos 2º e 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Formar sujeitos de direitos é lei(tura) inquietante que tem escapado na sociedade democrática representativa, em que as relações se configuram - nas desigualdades e heterogeneidades – “pelo antidiálogo, pela sloganização e pela verticalidade com instrumentos da ‘domesticação’” (Freire, 2011, p. 72).

Considerando a Educação em Direitos Humanos (EDH) como processo do devir, cuja finalidade é “promover a educação para a mudança e a transformação social” (BRASIL, 2012), o que denominamos de ruínas não deixa de ser as fragmentações e destroços que construímos nas falsas separações impostas pela razão instrumental no contorno entre o novo-velho, humano-natureza, razão-emoção, opressão-libertação, indivíduo-sociedade, universal-particular. Sacavino (2008, p.94) sustenta que “ao abrirmos espaços de ação-reflexão-ação sobre os direitos humanos nas escolas, reforçamos o compromisso com a democracia e uma cidadania ativa”. Porque a cidadania é construída no interior das práticas sociais, em que as relações expressam as necessidades do momento.

Em liames, analisar os processos adentrando as ruínas, em sua dimensão contestatória, pode ser um caminho referenciado para a heterogeneidade de experiências socializadoras e seus princípios de “coerência das práticas dos atores e os espaços institucionais em que circulam” (Setton, 2005, p. 34).

Desse modo, olhamos para as ruínas ocupadas pelas e pelos estudantes, no movimento secundarista de ocupações, não em seu papel pré-estipulado, mas em sua ressurgência1, de escola a ocupação, de estudante a ocupa. Nessa abordagem, refletimos que as ocupações estudantis, ocorridas no Brasil em 2015 e 2016, possibilitaram a aprendizagem da Educação em Direitos Humanos (EDH), reinventando o espaço de socialização, ainda que em um determinado tempo, baseado em uma ontologia decolonial, ou seja, que visualiza as e os sujeitos na heterogeneidade das maneiras de existir. Revirando o que já existe para alimentar um novo processo, compreendemos que muitas das experiências das ocupações estudantis coincidem com a prática decolonizadora proposta por Andreotti et.al., (2019, p. 21, tradução nossa):

Seremos eventualmente forçados, pelo colapso gradual do sistema, a encontrar maneiras de compostar nossa “merda” histórica e sistêmica coletivamente, ou vamos acabar remando nessa “merda” enquanto destruímos nossos sistemas de suporte à vida e começamos a matar uns aos outros para proteger nosso direito de consumir o que resta. Nesse cenário, todos nós “morremos de civilização”. [...] A tarefa é ativar uma forma de convivência que desanuvia e anima nossas capacidades de confiança, humildade, generosidade, humor, (auto)compaixão, paciência e responsabilidade visceral “antes da vontade” que não depende de convicções, conveniências ou escolha.

Pela “cosmovisão europeia em que se funda a formulação dos direitos humanos, no século XVIII, os homens nascem livres e iguais”, nessa construção histórica “o ser humano autônomo e dotado de razão é reconhecido como o sujeito desses direitos. Mas essa concepção é marcada, desde sua origem, pelas exclusões de uma parte da humanidade” (NUNES, 2019, p. 64). Todavia, a Educação em Direitos Humanos vai para além da visão clássica ocidental de humanidade que se vincula a sua criação. No movimento da práxis dialética, a trajetória da EDH se constitui na inflexão das identidades pré-determinadas, colocando na roda discussões pertinentes ao direito de existir. Nesse sentido, as ruínas escolares são aliadas na complexidade de sentirpensar2 a Educação em Direitos Humanos e a socialização como movimentos de transformação, a partir da modificação das experiências escolares, proposta nas ocupações estudantis (Borges, 2018).

Para Anna Tsing (2019), a vida em ruínas, inclui aterrorizantes ações ferais ao lado de ações benéficas no imperativo de fazer (re)ligações com a natureza-cultura, com a vida-morte-vida, não escapando, portanto, dos fatores e fraturas da modernidade. Por isso, colocam-se as perguntas: Como essas ruínas nos interpelam? Há ruínas, quando a sociedade não é uma realidade objetiva e determinante? Ou aceitar as ruínas como um problema aberto e insolúvel é situar-se na continuidade da vida, quando a realidade é relacional?

Admitir as ruínas é ampliar a compreensão da paisagem social e da metamorfose do mundo, cuja “imagem da humanidade se desintegra e uma nova imagem emerge como produto e efeito colateral dos rápidos desenvolvimentos” (Beck, 2018, p. 51). Vincular, então, o movimento de ocupações estudantis e a Educação em Direitos Humanos é compreender as constantes mutações que os princípios de dignidade, igualdade de direitos, reconhecimento e valorização das diferenças e diversidades expressam de acordo com os contextos. A experiência das ocupações estudantis, por exemplo, identificou as restrições políticas que a condição adolescente apresentou a esses atores sociais (Borges; Silva, 2019). Por que não reconhecer esses estudantes como sujeitos de direitos humanos?

Ao assumirmos a ruína como recurso argumentativo, o foco desse ensaio incide, por conseguinte, em reflexões sobre o processo de constituição da circularidade das experiências, a partir do reconhecimento da pessoa como cidadão-sujeito de direitos; das trajetórias e histórias implicadas pelas interações e sociabilidades; e da reflexividade como confrontação dos saberes subjacentes e revelação pública de si. Trata-se de três desafios emergentes que incidem em práticas cidadãs que revelam compromisso com a vida, confirmando a finalidade da Educação em Direitos Humanos nos seus processos de promoção, proteção, defesa e aplicação na vida cotidiana e cidadã (Brasil, 2012).

Nesse sentido, ocupar ruínas é situar-se nos liames que engendram práticas e sujeitos para movimentos coletivos de ressurgência, “de formação de subjetividades inconformistas e rebeldes para a formação das subjetividades democráticas como elemento determinante das possibilidades de democratização da sociedade” (SACAVINO, 2008, p. 94). Assim, nos filiamos à visão de Santos e Martins (2019) acerca da necessidade de conceber os Direitos Humanos por meio do pluriverso das formas de vida. A construção de uma linguagem contra-hegemônica, que ocupe as ruínas do que são os Direitos Humanos, importa para a compreensão das “gramáticas de dignidade a partir dos diferentes sentidos do humano que emergem dos contextos que são vividos” (Santos; Martins, 2019, p. 15).

As ruínas ocupadas pelo movimento estudantil

Enquanto ato político, a Educação demanda sempre questionamentos, tais como: O quê? Para quem? Como? Para onde? Com quem? Como afirma Rocha (2018), “em tempos de ruínas, o que nos mantém vivos é justamente o que não podemos entender por inteiro, o que sempre nos escapa”. Nessa perspectiva, as ruínas não pretendem ser porta-vozes dos fracassos e saudosismos, mas de oportunidades de ressurgência de novos pactos possíveis de aberturas e potencialidades.

Nos múltiplos significados que assume, o ato de ocupar se configura, conforme o Dicionário Aurélio (Ferreira, 2004), em ações, tais como: “encher um espaço de lugar e de tempo”; “habitar”; “tomar posse de”; “exercer”; “dar trabalho”; “empregar”; “dedicar”, “consagrar”; “ser objeto do trabalho, da preocupação de alguém”; “trabalhar em”, “dedicar seu tempo a”; “gastar o tempo”; “invadir”; “conquistar”. Esses sentidos - plurais e em mutação – estão sempre relacionados com a dinâmica social e exigem, portanto, corpos e territórios, quiçá temporários.

A ação de ocupar também se configura como modo de demonstrar um descontentamento, em um protesto que interrompe o fluxo ordinário de determinado espaço. A experiência das ocupações das escolas públicas que ocorreram em 2015 e 2016, no Brasil, tomaram as escolas como ruínas e engendraram visibilidade a práticas e sujeitos no cenário político. O movimento iniciado pelas e pelos estudantes secundaristas em São Paulo, em 2015, se espalhou para diversas regiões do Brasil em 2016, ramificando o ato de ocupar, sem institucionalizar a mobilização. A forma de protesto coincidiu por inspiração e não por estrutura organizacional formalmente conectada. Reguillo (2017), na abertura de seu livro Paisajes Insurrectos, citando Cornelius Castoriadis, reflete que todo simbolismo se constrói sobre ruínas, e nessas, os movimentos contemporâneos se fazem em rede, reconfigurando as formas de resistência:

São movimentos porque um objetivo os une e buscam ser reconhecidos e escutados: são mobilizações porque se constituem por meio das práticas e buscam mobilizar outras pessoas; são revoltas porque expressam um conflito, e são insurreições porque se sublevam contra algum poder instituído. Todavia, são, antes de tudo, configurações políticas em rede. Supõem a apropriação e o uso político da internet e a criação de redes de ação coordenada on/offline. Emergem como expressões, processos e práticas que dão forma e visibilidade a múltiplos e diversos mal-estares e agravos que derivam do modelo capitalista tardio de desenvolvimento. E se caracterizam pela conexão, a vinculação e a articulação de subjetividades diversas que não haviam encontrado – no espectro da política moderna – instâncias de reconhecimento e participação (Reguillo, 2017, p. 13, tradução nossa).

A experiência da ocupação estudantil, em diversos aspectos, se configurou como prática cidadã, emergindo em um cenário onde as formas de sociabilidade declinam para o âmbito individual e a educação se configura enquanto direito num país de cidadão de papel3. Visualizar o amplo contexto das ocupações, não tem como objetivo pensar o movimento sob o ponto de vista das macros transformações, mas pela criação de possibilidades de existir. Desse modo, o movimento impressiona pela capacidade de mobilizar a mudança do entorno, ainda que, nem sempre, pelo consenso. Embora não possamos mensurar as transformações imediatas em relação à Política de Educação causada pelo movimento, as ocupações construíram experiências potentes de realização, de viver no agora a mudança almejada pelas e pelos estudantes.

Para além da ocupação física do lugar-escola, o movimento em rede sintonizou os pontos de convergência, sem apagar as marcas individuais de cada escola. Os e as estudantes reivindicaram a educação como direito, quando havia declaradas intenções de fechamento de escolas pelo poder público, à exemplo do projeto de reorganização da rede pública paulista (Goulart; Pinto; Camargo, 2017). Com sua mobilização as e os ocupas fizeram oposição à implementação da PEC 241 (EC 95/20164) e buscaram por melhorias do sistema educacional. Desse modo, as pautas mobilizadas nas ocupações tensionaram os sentidos da qualidade de ensino. Não estará a Educação em ruínas, quando ainda se clama por bibliotecas, manutenção de banheiros, classes em boas condições, segurança e qualidade de ensino?

A qualidade da educação também é pauta do Movimento Estudantil de Ocupações, identificado nas reivindicações por melhores condições físicas das escolas e no questionamento da estrutura dos sistemas de ensino. Entendemos que ao discursar acerca da qualidade da educação, as e os estudantes reconhecem a importância da experiência escolar. Assim, concluímos que o movimento não acontece porque as e os estudantes querem o fim da escola, pelo contrário, na maioria das reivindicações aparece a necessidade de se sentirem partícipes do processo de escolarização. Tal sentimento está em contraposição aos projetos neoliberais de educação, que preveem uma gestão escolar administrativa e não participativa. Desse modo, o Movimento Estudantil de Ocupações renova a esperança democrática, na luta pela concretização do direito à educação (Borges, 2019, p. 150).

Nesse devir educativo, associamos a ideia de ocupar às experiências da realidade em que o mundo operacional da vida cotidiana é o arquétipo (Schutz, 2019), pois são múltiplas as formas de lidar com o cotidiano, por isso, são múltiplas as realidades. Como ato humano, a individualidade se produz no interior de uma rede de relações e se singulariza pela busca do indivíduo por si mesmo. Destarte, a suposta dualidade entre indivíduo e coletivo não se sustenta na experiência. “Esses espaços sociais se configuram e reconfiguram de forma permanente e por diferentes vias, sendo uma delas as próprias configurações subjetivas das pessoas que compartilham práticas sociais em seu interior” (González Rey, 2012, p. 182). A escolarização, como experiência institucionalizada na qual se desenvolvem subjetividades individuais e subjetividades sociais, termos cunhados por González Rey (2012), tem suas ruínas ocupadas e seus sentidos expandidos e contraídos, à medida que, são reconhecidas as proximidades e singularidades em relação a outras escolas na construção de redes de solidariedade.

Em comum a outras ocupações realizadas na rede estadual de ensino em municípios do Rio Grande do Sul, as e os estudantes de Caxias do Sul indicam como motivação do movimento as péssimas condições físicas das escolas e as precárias condições de trabalho das e dos profissionais da educação, elementos que descreditam a qualidade da educação ofertada pelo Estado. (...) como uma resposta a esse papel político desigual, as ocupações apresentam uma nova democracia, nas experiências desenvolvidas nas escolas, que rechaça a burocracia e a manipulação dos sistemas políticos representativos e propõe a horizontalidade da participação direta (Borges; Silva, 2019, p. 1050).

Nas ocupações estudantis, ao reconhecer a precariedade de seu meio de socialização, as e os estudantes deixaram de viver individualmente as questões cotidianas, engajando a sua voz e a sua identidade na denúncia coletiva, levando a ocupação das ruínas escolares para as ruínas das mídias. Desse modo, concordamos com Costa e Santos (2017), ao afirmarem que as e os ocupas se localizaram em uma geografia política dual, uma pertencente ao espaço da escola e a outra ao espaço virtual:

Em uma análise preliminar, diríamos que se tratou de uma “dupla ocupação”: ao mesmo tempo que as escolas eram apoderadas pelos estudantes, estas mesmas, passavam a tomar as atenções da sociedade. Se, por um lado, parte da grande mídia criminalizava o acontecimento, por outro, se percebia um forte movimento de mobilização por parte das mídias alternativas, verificado pela veiculação de matérias em sites, em blogs e pelo número de publicações/compartilhamentos através das redes sociais (Costa; Santos, 2017, p. 51).

Como efeito dessas relações difusas, cabe a análise das finalidades da educação e a reconstituição do movimento de produção do conhecimento também no âmbito da escola, que não escapa ao jogo de discursos, ainda utópicos, em nome do protagonismo juvenil, da valorização das diferenças e diversidades, e de práticas pedagógicas que se autoproclamam como novas e transformadoras, nesse “cotidiano sempre o mesmo e sempre outro” (Esteban, 2013, p. 30). Em consonância, “as redes sociais são meras representações analíticas e estáticas dos contextos relacionais dinâmicos que estruturam as relações sociais, sendo imprescindível reconhecer de que forma são mobilizadas e usadas pelos indivíduos” (Marques, 2010, p.30). Tais implicações nos conduz ao ponto fundamental das ruínas que envolvem escola-rede na tarefa educadora: as formas de sociabilidade em seus contextos múltiplos e excludentes apresentam formas correlatas de "organizar” as relações sociais.

Sob o ponto de vista das reflexões de Beck (1997), na sociedade contemporânea, ao indivíduo cabe ser “o encenador da sua própria biografia e identidade, das suas redes sociais, compromissos e convicções” (Beck, 1997, p.14), assumindo papéis segmentados no interior dos grupos sociais. Parte das juventudes que integram a cultura de consumo digital desempenham com maior desenvoltura o papel de circulação entre o meio físico e virtual, na medida em que não se impõem barreiras em suas experiências entre estar online ou offline. Essa habilidade social foi posta em prática no movimento de ocupações estudantis, por meio da criação de redes sociais virtuais das escolas ocupadas. Essas páginas da web estiveram integradas ao cotidiano do movimento como meio de mobilização, divulgação, solicitação de apoio e canal de denúncia. Todavia, ao mesmo tempo em que as e os ocupas fizeram uso do ciberespaço, se tornaram acessíveis, por ele, às reações contrárias ao movimento, pois “a ocupação de um espaço virtual não isenta que os sujeitos se coloquem à parte ou blindados em relação ao mundo” (Costa; Santos, 2017, p. 52).

Nesse contexto investigativo estamos compreendendo os discursos das e dos estudantes sobre o movimento enquanto contranarrativas. Tal conceito remete às construções discursivas constituídas a partir da apropriação de linguagens plurais e multimídias em contextos midiáticos alternativos aos hegemônicos, espaços híbridos e multimodais, tais como as redes sociais online (narrativas de sites, facebook, instagram...) e offline (narrativas de entrevistas, cartazes, discursos...), marcadas pela autorrepresentação dos sujeitos, ou seja, produzidas por quem vive ou está mais próximo da história, do fato e a conta a partir desse lugar de interlocução, e, fundamentalmente, que por seu caráter crítico e político, configuram-se como uma comunicação de resistência com potencial para transformação social/cultural. Além disso, consideramos que as contranarrativas são caracterizadas por discursos envoltos em tensionamentos, por expressarem demanda e reivindicações locais e coletivas em seu conteúdo, por potencializarem a circulação de significados e representações sociais a partir do olhar de sujeitos que não tinham espaço de fala nos contextos hegemônicos e pela democratização da comunicação enquanto um direito medular ao exercício da cidadania (Ketzer, 2018, p. 16-17).

A possibilidade de construção de contranarrativas dos acontecimentos das ocupações, considerando a instituição escolar e a instituição midiáticas como ruínas dos processos civilizatórios, expandiram o espaço ocupado e levaram a outras partes a comunicação criada pelo movimento. Nessa linguagem, heterogênea e fugaz, os princípios que norteiam a Educação em Direitos Humanos são colocados em pauta e em prática dialógica, ainda que não sejam abordados diretamente como tal. Compreendemos que refletir sobre a coadunação dos temas das ocupações estudantis e da Educação em Direitos Humanos permite que o tensionamento da práxis reverbere na base política da EDH.

A Educação em Direitos Humanos nas Ocupações Estudantis

No documento das Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (Brasil, 2012), a EDH é situada historicamente, apresentada em seus princípios norteadores, e explicitada em suas formas de elaboração. Essa diretriz define a Educação em Direitos Humanos como processo sistemático e multidimensional, orientador da formação integral dos sujeitos de direitos e articulada às diversas dimensões, objetivando a formação para a vida e para a convivência. Articulada com o movimento de ocupações estudantis, a EDH se revela como uma prática social, constituinte de três modos-de-ser-sendo: na vivência prática de uma comunicação horizontal no espaço escolar; na apropriação da veiculação midiática da mobilização; e nos conteúdos contra-hegemônicos colocados em pauta nesses espaços. Nesse sentido, as ocupações fizeram ressurgir o ideal educativo de cidadania como direito humano, como produtora de justiça social (Marinho, 2012). Essa força comunicativa foi expressa tanto no espaço escolar, na socialização por meio das assembleias, aulas públicas, reuniões autogeridas, quanto no espaço virtual, no contraponto lançado aos discursos oficiais em suas criações nas redes sociais digitais.

Para tal análise, é válido e consciente rememorar todo o processo de construção da EDH, marcado por contradições e idealizações de homem, de sociedade, de escola, após as deliberadas práticas repressivas no regime da ditadura. Hodiernamente, a Educação assume a compreensão de preparo para o exercício da cidadania na Lei 9394/96, passando pela promessa de sociabilidade (Brasil, 2010), formação de consciência (Brasil, 2012) até à compressão do “agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação” (Brasil, 2018). Não obstante, numa época de políticas e economias neoliberais, as ressignificações da cidadania retornam para as abstrações do social como imperantes, ancorando-se na promessa/imposição da autonomia, “quando os indivíduos mais pressionados para serem autônomos são precisamente os que se encontram em piores condições para o serem” (Santos, 2018, p.10).

Entre essas posições, há uma riqueza de reflexões a respeito dos ideais de “formação integral”, “processo multidimensional”, “consciência cidadã”, “afirmação de valores e atitudes”, “fortalecimento de práticas sociais” que não podem por si só assegurar concepções e práticas educativas fundadas nos princípios que regem os Direitos Humanos.

Entendemos que as ocupações reforçam o papel da “comunicação como um bem medular à qualidade de vida, à justiça social, à promoção dos direitos humanos” (Ketzer, 2018, p. 111), ao compostarem as ruínas da mídia. Assim como utilizamos da visão metafórica, inspirada em Tsing (2019), da vida que rebrota com ferocidade nas ruínas da civilização, refletimos que este fenômeno também é gerado na comunicação das ocupações. Ao introduzirem uma outra finalidade à mídia social virtual, para além do compartilhamento de conteúdo, transformando em notícia os acontecimentos das ocupações, as e os estudantes criaram outro padrão informativo, mas tendo por base o conhecimento de reportar civilizacionalmente institucionalizado.

No contexto da escola, mais do que os marcos legais regulatórios ou as grades que a aprisionam, quando nos referimos ao currículo e suas interfaces, a representação dos ritos revela movimentos constitutivos do cotidiano que adquirem o status “quase sagrado” do território da escola (Dubet, 2003). Trata-se do engendramento de liturgias formativas que são transmitidas de geração em geração e que reforçam os “protocolos de interação, os modos de agir e de organizar espaços e tempos na vida escolar” (Boto, 2014, p.104). Na relação das atividades promovidas pelas ocupações, os saberes pertinentes à educação ganham novos contornos. Um exemplo dessas atividades é apresentado no cronograma de uma das ocupações acompanhadas pela nossa pesquisa, divulgado na página de Facebook da escola:

Fonte: Borges, 2018, p. 99.

Figura 1 Cronograma de Atividades Ocupação Estudantil. 

É pertinente destacarmos o status que as atividades práticas de limpeza ganham no cronograma, ocupando o mesmo espaço que as atividades intelectuais. No cotidiano escolar, normalmente, as e os estudantes não se envolvem nas atividades de higienização, mas a ocupação é uma vivência integral do ambiente escolar, se tornando fundamental a manutenção física da escola. Desse modo, é relevante o fato de as e os ocupas reconhecerem que importa limpar a escola, assim como organizar o cotidiano, promovendo assembleias, e ofertar atividades artísticas, culturais e intelectuais que se coadunam na formação desejada.

Essa práxis de comunicar a heterogeneidade dos espaços em que se produz e se troca informações, saberes e competências caracteriza o surgimento de um universo plural e diversificado (Setton, 2005, p. 342) na ação política-cultural dos e das estudantes. Esse elemento constitui uma dimensão indispensável do saber transgressor, não apenas para ser transformado em conteúdo, mas para “prover as pessoas de instrumentos para melhor ler, interpretar e atuar na realidade” (Marinho, 2012, p. 47). A comunicação das ocupações fez com que o respeito à diversidade, a participação política e à dignidade humana se incluam no cotidiano da escola, o que faz parte do debate da Educação em Direitos Humanos.

Paulo Carbonari (2011, p. 123) assevera que a produção de nova postura pedagógica requer a realização da Educação em Direitos Humanos “como construção que tomem os sujeitos desde dentro e os ponha dentro dos processos educativos como mediação para a transformação das relações”. Portanto, considerar as ruínas significa conceber a realidade social definida “desde dentro”, pelos próprios sujeitos, pois as significações sociais não são inerentes às instituições ou aos objetos tomados a si mesmos, independentemente dos atores. Os sentidos são atribuídos aos acontecimentos sociais pelos indivíduos, no decorrer de suas interações. Nessa perspectiva, um horizonte producente para a EDH é mais do que conclamar por sua execução nas agências educativas, mas produzir proposições e compromissos, a partir de como os atores que estão na prática veem o que eles constroem na perspectiva de ressurgência da cidadania entre eles/nós.

A ressurgência nas ruínas ocupadas

Perguntamo-nos: como as vivências cotidianas interferem nos processos de socialização na escola, se tornando experiências que pesem os condicionantes sociais e as trajetórias individuais ou de grupos, sem, necessariamente, a interrupção de um fluxo como com as ocupações?

Voltemos ao nosso olhar sobre as ruínas, essas marcas silenciosas que nos conectam com as formas de conduzir e organizar a vida, sustentadas pela individualização. Serão ruínas ainda intactas em suas composições? O desafio de viver nas ruínas não é, por conseguinte, voltar às velhas tradições para buscar respostas na escola e na família, mas encontrar-se com as tradições, nas suas armadilhas e arranjos, nas suas trajetórias e desejos, suas apostas. Como afirma Boaventura Santos (2010, p. 154), “não há nem conhecimentos puros, nem conhecimentos completos: há constelações de conhecimentos”.

Segundo Setton (2005), o surgimento de uma arquitetura das relações sociais com a cultura de massa sendo a difusora de uma série de propostas de socialização, impactou no monopólio que a família e a escola sempre assumiram na formação das personalidades. Tal configuração, circunstancia a particularidade do processo de socialização na contemporaneidade, na existência de outras modalidades de aprendizado (formal e informal); na reestruturação das instâncias tradicionais da educação, em função da pluralidade e heterogeneidade das informações; e para as predisposições e/ou disposições interpretativas e reflexivas dos indivíduos influenciadas por modelos de referências produzidos e vividos em contextos sociais. (Setton, 2005)

Novos princípios de socialização emergem a partir de novas formas de ser e pensar o mundo, baseadas nas regulações do Estado. Como afirma Setton (2005, p. 344), “a circularidade de novas maneiras de conceber e interpretar o mundo serão apropriadas e experimentadas de forma particular e singular...” E acrescenta que elas estão “continuamente sujeitas aos condicionantes sociais e às trajetórias individuais ou de grupos”. Como face da modernização reflexiva, Ulrich Beck (1997) aponta a individualização como forma de sociabilidade que desintegra das certezas da sociedade industrial e encontra a sua outra face na globalização.

Para Anna Tsing (2019), o conhecimento sobre como se mover pela floresta é cinético, pois exige vistas, sons e cheiros. Adentrar a floresta é imperativo. Do mesmo modo, as denúncias das ocupações sobre as formas de sociabilidade e injustiças sociais, a partir da experiência social de indignação, revelam que “as formas de envolvimento, retirada e protesto político misturam-se numa ambivalência que desafia as velhas categorias da clareza política” (Beck, 1997, p. 21). Afinal, as formas de sociabilidade se fazem também forjadas nessas relações em que as múltiplas maneiras de ser/estar no mundo são engendradas nas suas (re)ligações e nem sempre dialogam com as políticas normativas que anseiam pelo comum.

As realidades, sob o ponto de vista hegemônico, continuam a nutrir “inautênticas adesões à causa da libertação dos homens” (Freire, 2011, p. 73), quando ainda vigoram a cultura do silêncio, a monorracionalidade e a dicotomização da ação-reflexão no âmbito da escola. Por sua vez, as desigualdades sociais são um elemento funcional do sistema das sociedades modernas e ainda apresentam a dupla face de estender o direito à igualdade; e aceitar as desigualdades “desde que elas não impeçam os indivíduos de concorrer nos desafios que concernem à igualdade de oportunidades nas suas dimensões econômicas, políticas, jurídicas e escolares.” (Dubet, 2003, p. 25). Assim, o paradigma do universalismo abstrato se confronta com a experiência social do indivíduo moderno dominada pela heterogeneidade de princípios de orientação (Setton, p. 343). É o reconhecimento das heterogeneidades que remetem a diversas lógicas do sistema social.

No interlúdio de sua obra, Anna Tsing (2019, p.88) destaca como principais características do movimento de ocupação (Occupy Wall Street) “a enorme diversidade de pessoas e causas e nossa capacidade de formar conexões fortalecedoras entre continentes, culturas e espécies”. Tal convocação para a heterogeneidade e pluralidade é confrontada e designada como uma transformação cultural articulada com a passagem do universalismo para a globalização (Santos, 2010, p.143). Consoante a isso, constata-se no estudo das ocupações estudantis que “a experiência das ocupações potencializou a transformação subjetiva das e dos ocupas, possibilitando uma compreensão diferenciada acerca da educação, de seu papel social e da importância da participação política para tornar efetiva a democracia” (Borges; Silva, 2019).

Encharcadas de possibilidades formativas, as ocupações estudantis carregam consigo a potencialidade de cidadania refletida na vivência, gerando uma aprendizagem política própria desse processo. O exercício cotidiano de novos lugares de fala e de ação, seja na apropriação crítica-reflexiva dos saberes ou na experiência de outros fazeres, proporcionaram que a aprendizagem se desse como mediação de um processo formativo e autoformativo implicado, pelo caráter colaborativo e autônomo. Desse modo, como parte de uma aprendizagem política, as ocupações possibilitaram o estudo da realidade social por meio do questionamento da sociedade em sua forma e estrutura. (Borges, 2018).

Compreendemos que a pluralidade e a heterogeneidade das informações em circulação, com a nova percepção do indivíduo sobre si e sobre o mundo, instauram novas formas de afastamento entre indivíduos e grupos. Como afirma Anna Tsing (2019), em vez de simplesmente catalogar diversidade, precisamos narrar as histórias em que a diversidade emerge – isto é admitir suas formas animadas e contaminadas. Desse modo, questionamos: como o agir pessoal e coletivo podem caracterizar a cidadania numa sociedade em que os recursos são dispostos de forma desigual? A Educação em Direitos Humanos pode ser situada a serviço de uma política multicultural para desenvolver o seu papel emancipatório, como provoca Boaventura Santos?5

Compreendida igualmente como forma, as Diretrizes Nacionais da Educação em Direitos Humanos (Brasil, 2012) são movidas por forças, em graus de intensidade diferentes, que identificam discursos e tornam a EDH um campo epistemológico potente para a democracia e cidadania. Em contrapartida, mecanismos de reideologização e reinterpretação operam para que os Direitos Humanos prossigam como símbolos emancipatórios, e não “mecanismos formais de legitimação de um poder ou ideologia pan-universalista e pan-economista, como a que sujasse à atual globalização neoliberal” (Alva, 2015, p. 83).

O movimento de ocupação dos e das estudantes clamou por lutas aparentemente asseguradas nas propostas educacionais: a inclusividade dos jovens-sujeitos aprendentes como protagonistas do processo de aprendizagem e a participação política como uma das finalidades da educação. No caso da experiência escolar, o deslocamento da experiência ainda está longe de considerar o sujeito que narra, que vive, que tem história. A lógica do capitalismo continua a espreitar as desigualdades, aclarar as subjetividades e adornar as novas formas de controle, demarcando que “o movimento para a igualdade está, portanto, longe de ser homogêneo” (Dubet, 2003, p. 34).

Conjugar individualidade-subjetividade, educação-tradição, experiência- reflexividade - sob o remoto controle do capitalismo neoliberal que inabilita o Estado para atender as emergências da sociedade – se (re)definem numa dialética contraditória da Educação, o que leva a incluir a capacidade de confronto. Em adição, a suspeita de que a política de Direitos Humanos oculta paisagens e indefine horizontes só confirmam os discursos dominantes e as (pre)tensões do Estado. Ser plural parece ser premissa para encobrir os universalismos, fazendo emergir a fragilidade dos direitos humanos como gramática de dignidade humana

Em suma, quando novos projetos são instaurados na sociedade, a partir das políticas educacionais, outros ideais educativos se transformam em ruínas. E as ruínas dizem-nos dos feitos, dos dragões que aparecem no lugar dos moinhos de vento, e guardam em seu interior os acontecimentos. Não obstante, viver nas ruínas é o desafio de voltar para dentro, para os acontecimentos, em atenção especial às complexidades, para o que a cidadania requer: a “participação popular como possibilidade de criação, transformação e controle sobre o poder ou os poderes” (Benevides, 51991, p. 20). As novas formas de ser/estar/pensar o mundo serão experimentadas de forma particular e singular, ainda que condicionadas às trajetórias individuais ou de grupos.

Notas finais: ocupe as ruínas

Por que ocupar as ruínas? A ruína não é espaço-realidade como contexto ou instância da sociedade, onde a vida parece condenada em virtude da ação humana, mas é o espaço como produção humana, que engloba, como afirma Milton Santos (2014), a instância econômica e cultural-ideológica. Ali estão os processos sociais representativos de uma sociedade em um dado momento e, sem pretender uma análise expansiva, contém a possibilidade de juntar a dimensão própria da comunidade dos homens à dimensão da relação com o Universo. Trata-se do que Nancy Unger (1991) nomeou de pensamento ecológico.

Trabalhar com a compreensão de que não se aprende e nem se forma com um cérebro separado da história, da experiência, da cultura, do cosmos se configura como o exercício dos sentidos nas ruínas: conhecer o que já aconteceu e deixou o seu legado; atentar-se para as ressurgências e o que aparece com outra roupagem; escutar ecos e egos latentes para elos que se entrelaçam e se forjam; ter a sensibilidade para ver moinhos e gigantes como qualificadoras das experiências formativas; olfatar as experiências sociais; tocar nos sujeitos e nas suas experiências mais simbólicas para saborear o que é vivido e entretecido no social. Uma ressurgência entre nós.

Os Direitos Humanos são produtos culturais em territórios de luta, por isso, “fazer opções claras quanto ao horizonte que se pretende seguir é fundamental” (Candau, 2012, p. 30), ao assumir uma concepção de Educação em Direitos Humanos. Temos, de fato, aportes relevantes que contemplam o largo conjunto teórico-prático que constitui a Educação em Direitos Humanos no Brasil. Entretanto, ainda há lugares e pertinências em discutir EDH em sua interface paradigmática com as experiências individuais que se apropriam da heterogeneidade e da complexidade do mundo social.

Nesse sentido, a política educacional se apresenta como uma extensão dos processos de controle objetivo e subjetivo da organização social do capital, capaz de permear vários âmbitos da formação do ser social e a difusão do discurso de “formação do cidadão”, “educar para a cidadania”, “ordem democrática”. Tais processos de ressurgência são atributos políticos e culturais que não podem estar separados da transformação social.

As ocupações estudantis, em sua capacidade comunicativa, colocaram em pauta e em prática a Educação em Direitos Humanos, por evidenciar a precariedade formativa da educação à serviço de uma hegemonia de sujeitos e reprodução da vida. Mudando seu papel nas relações escolares as e os estudantes compostaram as ruínas, em um movimento de apropriação do espaço e expansão para além, para mídia, em uma dupla geografia de ação. Com isso, entendemos que a ambiência que encoraje as e os sujeitos a manifestar suas indagações e posicionamentos é fundamental quando se tem por projeto político-pedagógico a formação de pessoas engajadas e comprometidas com a sociedade.

Anna Tsing (2019, p. 87), como produtora de terreno, lembrou que “ocupar é dedicar-se ao trabalho de viver juntos, mesmo onde as probabilidades estejam contra nós”. Ademais, do que temos nos ocupado nesses últimos tempos? Quem se ocupa com as reflexões que falam de punhos e de poder? Como as aprendizagens sobre as ocupações secundaristas, as vivências políticas juvenis e os conhecimentos intergeracionais dos movimentos sociais adentram o currículo das escolas? A quem interessa essas ocupações e suas novas formas de sociabilidade?

Os processos se transformam em ruínas, quando estão aparentemente esgotados nas suas verdades e carecem de análises a partir de múltiplas realidades. Esse é o aspecto instigante das ruínas. É preciso considerar as perspectivas mesmo num contexto subalternizante, opressor, hierarquizante, meramente voltado para universalismos, desconsiderando “que existimos no gerúndio, que somos seres em formação e que a realidade também é um permanente vir-a-ser” (Unger, 1991, p. 56).

Em adição, ocupar a ruína é movimento que emerge de experiências revolucionárias de emancipação, por considerar o sujeito e suas histórias. Fica o convite de Anna Tsing (2019, p. 88), ao incentivar outras práticas como a de “lançar nossa fúria contra o senso comum; alcançar o que eles dizem que não podemos ter: o comum”.

Ocupemos as ruínas.

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1Termo cunhado por Anna Tsing para expandir o terreno em que os cientistas naturais, humanistas e cientistas sociais podem se engajar em discussões mais abertas para referir-se à saúde ecológica que inclui resiliência e remediação. Assume tons poéticos em contraposição a exatidão quantitativa. Ressurgência propõe renovação em sua constituição.

2Segundo Escobar (2014, p. 16), sentipensar com a terra “implica pensar desde el corazón y desde la mente, o co-razonar, [...] es la forma en que las comunidades territorializadas han aprendido el arte de vivir”.

3Expressão referenciada por Gilberto Dimenstein no seu livro “O Cidadão de Papel: a infância, a adolescência e os Direitos Humanos no Brasil” (1993), refletindo sobre o automatismo do nosso olhar para as cenas do cotidiano e para as mazelas sociais como problemas carentes de resolução. Para o autor, tirar a cidadania do papel é dever de todos.

4Ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc95.htm

5Por uma concepção multicultural de direitos humanos – Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 48, junho de 1997.

Recebido: 24 de Março de 2022; Aceito: 30 de Outubro de 2023

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