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Leitura: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 0102-387Xversión On-line ISSN 2317-0972

LTP vol.36 no.74 Campinas mayo/agosto 2018  Epub 02-Ago-2019

 

Artigos

Pensar a poesia em sala de aula: reflexões didáticas para fruir o texto poético

Thinking poetry in classroom: didactic reflections for the fruition of the poetic text

Fernando José Fraga de Azevedo1 

Lilane Maria de Moura Chagas2 

Jilvania Lima dos Santos Bazzo3 

1. Universidade do Minho, Braga, Portugal.

2. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.

3. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.


Resumo

Neste texto, define-se o conceito de poesia e propõem-se reflexões didáticas sobre sua presença no ambiente escolar. Essas reflexões se fundamentam em abordagens teóricas de autores que buscam evidenciar que a linguagem poética assegura a formação do leitor por meio da atividade de fruição do texto poético. Os resultados corroboram a vertente de ensino pautada no processo de criação e experiência da poesia como arte da memória e da partilha no âmbito das culturas orais. A expectativa é contribuir para a implementação de situações de aprendizagem que levem em conta a leitura em voz alta, lida expressivamente e/ou escutada atentamente, de modo a que o estudante se possa deixar seduzir pelos usos expressivos da língua e, simultaneamente, se aproprie do saber subversivo e inventivo da palavra poética mediante interlocução intensa e mediada entre leitor iniciante, texto poético e leitor experiente.

Palavras-chave: Poesia; literatura; ensino

Abstract

This paper defines the concept of poetry and proposes didactic reflections for its presence in the classroom. These reflections are based on theoretical approaches from authors who demonstrate the evidence that the poetic language are able to assure the formation of the critical reader by means of an effective fruition activity of the poetry. The results corroborate the teaching aspect based on the process of creation and experience of poetry as an art of memory and sharing in the context of oral cultures. In view of the above, it contributes to the implementation of learning situations that take into account reading out loud, so that the student can be seduced by the expressive uses of the language and seize the inventive knowledge of the poetic word, through a work of fruition led by the intense conversation, mediated between beginner reader, poetic text and experienced reader.

Keywords: Poetry; literature; teaching

1. Introdução

Poesia é voar fora da asa.

(BARROS, 2010, p. 302)

Pensar a poesia em sala de aula é pensar modos de trabalhar a linguagem. É, sim, como afirma o poeta Manoel de Barros, uma espécie de “voo fora da asa”. Georges Jean (1995) admite que a poesia não está dependente de qualquer pedagogia no sentido restrito da palavra, nem está associada à descrição de métodos adequados para ajudar as crianças e os adolescentes a adquirirem conhecimentos mais complexos referentes ao discurso poético. Na sala de aula, ao professor caberá o papel de mediador, aquele que cria condições para partilhar e favorecer o gosto pela poesia e o aprendizado decorrente dos estudos realizados em torno do texto poético. Ademais, o mediador haverá de ensinar os conhecimentos inerentes à arte literária: metáfora, ritmo, entonação, pausa, musicalidade, entre outros aspectos. Vale lembrar que “ensinar o ato criador da arte é impossível; entretanto, isto não significa, em absoluto, que o educador não pode contribuir para a sua formação e manifestação” (VYGOTSKI, 2001, p. 325).

Cabe registrar que esta concepção de ensino acerca do texto poético resulta de uma pesquisa coletiva entre a Universidade do Minho/Braga/Portugal e a Universidade Federal de Santa Catarina UFSC/Florianópolis/Brasil4 no âmbito das áreas de conhecimento dos seus respectivos pesquisadores: Literatura, Infância e Didática. Trata-se, por isso, de um esforço coletivo e singelamente visionário para contribuir com o aprofundamento do debate sobre a função da literatura, em especial, da poesia e a necessária formação do leitor desde a infância.

Reflete-se sobre a poesia e seu ensino no interior das escolas, apontando estratégias didáticas capazes de assegurar um efetivo trabalho de fruição5, por parte do estudante, do texto poético, com base nos estudos realizados por Azevedo e Silveira (2017), Bazzo (2016), Calo (2011), Chagas (2006, 2011), Linaberger (2004), Parr e Campbell (2006), Yopp e Yopp (2006), entre outros. Destaca-se que as estratégias didáticas para criar as condições necessárias ao trabalho com o texto poético haverão de superar as perspectivas de técnicas e de métodos que tornem a leitura da poesia algo mecânico, enfadonho e desprovido de imaginação, fantasia e livres associações.

É muito importante indagar sobre os modos de interação entre o texto poético e os estudantes, sobre os significados e os sentidos atribuídos pelos estudantes na leitura do texto poético e sobre a própria fruição poética advinda dessa interação. Nesse sentido, pensar a reflexão sobre o trabalho com a linguagem poética na escola perpassa uma compreensão da complexidade dos aportes sobre a infância, educação, linguagem e a própria literatura. Como a linguagem poética transita na escola? Como as crianças, os jovens podem interagir com a poesia no espaço da escola? Como realizar um trabalho com o texto poético na escola? Quais estratégias os professores podem usar na sala de aula, sem obliterar a linguagem poética?

Pensar sobre as ações e os procedimentos norteadores da ação docente, portanto, significa qualificar ainda mais o planejamento docente - intencional, sistemático e emancipador - para favorecer o aprendizado da escuta, da leitura crítico-reflexiva do texto poético e, quiçá, da sua produção, e para assegurar uma efetiva fruição, por parte do aluno, do texto poético em sala de aula.

2. Pensar a poesia em sala de aula: por quê?

Não me adianta dizer nada,

Sabiá,

porque não nos entendemos.

Mas essa melancolia

da tua queixosa toada,

Sabiá,

bate no meu coração

como batem na água os remos

que nunca mais voltarão.

O que dizes quando cantas,

Sabiá,

tão bem se ajusta ao que penso,

que mais prefiro escutar-te.

(MEIRELES, 1994, p. 677)

A poesia é a arte de dar a um livre jogo da imaginação o caráter de um propósito do intelecto. Ao mesmo tempo, pensar a poesia em sala de aula é pensar para além da significação dos dicionários, ciente de que ela se aproxima muito mais do sentido que o leitor lhe atribui e, simultaneamente, subverte a lógica da racionalização linear, o que possibilita o processo de humanização e de desenvolvimento da capacidade criadora, inventiva e sensível.

Com a poesia, os seres humanos podem se colocar nos ministérios do mundo, na sua perplexidade, nas suas dores e nas suas belezas. O ato poético é sempre um de não conformidade com o que é predeterminado. É um dizer pelas metáforas as utopias, os estados de si, o amor, a dor, a luta, o cotidiano, os sonhos e os projetos de ser-sendo - cada um na tessitura indissociável eu-outros, ou seja, do coletivo. Para Cecília Meireles, a poesia é esse canto do Sabiá, meio queixoso, meio melancólico e simultaneamente único - tal “como batem na água os remos / que nunca mais voltarão” -, que se ajusta ao que pensamos e sentimos. Contraditoriamente, apesar do gosto amargo, encharca a alma de alegria, beleza e vitalidade, a ponto de ser ignorada sua toada triste, permanecendo-se fiel ao que se escuta.

Como já mencionado, pensar a poesia em sala de aula é pensar modos de trabalhar a linguagem. Georges Jean (1995, p. 196) afirma que “a escola da poesia é uma escola onde se brinca”, pois a “atividade poética é uma atividade que só pode realizar-se na descontracção, na alegria, no prazer”. Ao professor será atribuído o papel de mediador, aquele que cria condições para partilhar e favorecer o gosto pela poesia, aquele que ensina a contemplar aquilo que não se entende e desafia a cada um para produzir os sentidos e as diversas emoções da queixosa toada dos sabiás.

Sendo um trabalho criativo e inovador, a língua se apresenta como linguagem e como metáfora, que interroga o leitor e o conduz à descoberta de veredas interpretativas múltiplas. A poesia, para além do encantamento que suscita, pode auxiliar o leitor a conhecer e a aprender a utilizar a língua na multivalência dos seus contextos de uso e funções.

A poesia precisa, portanto, fazer parte do universo da infância. Ainda que nas escolas o vínculo do gênero poético a determinadas datas escolares, sociais ou políticas seja muito forte (Dia Mundial do Livro Infantil, das Mães, Natal etc.), a poesia não deverá existir somente em momentos associados a comemorações de épocas festivas e, muito menos, ser entendida como um mero entretenimento ocasional. A efusiva capacidade de recepção da criança, as extraordinárias manifestações emotivas e a sua potência criadora justificam plenamente a presença e o ensino da poesia dentro e fora da sala de aula (GÓMEZ MARTIN, 1993), numa base regular e com carácter sistemático.

A compreensão da urgente imersão em processos de formação literária por meio do texto poético desde a mais tenra idade, sem dúvida, haverá de impulsionar ainda mais a vivência da poesia em contextos educativos cuja finalidade seja o aprendizado das múltiplas dimensões humanas.

Ao colaborar para a implementação de propostas pedagógicas visando à promoção da aprendizagem da poesia, espera-se que os estudantes possam se apropriar do conhecimento tanto literário quanto linguístico, sobretudo porque saberão fazer uso da palavra poética em espaços complexos de linguagem, de metáfora e de questionamento acerca da sua própria constituição como seres humanos.

2.1. A Poesia é linguagem

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!

Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje esta música heroica:

do céu que venta,

do mar que dança,

e de mim.

(MEIRELES, 1994, p. 121-122)

A poesia é, acima de tudo, linguagem onde existe um jogo deliberado e intencional com o significante, o que pode gerar sentidos e significados oriundos de fontes diversas e polivalentes. A poesia deve ser fruída pelo aluno como tal, isto é, como linguagem. Significa que deve ser dada oportunidade ao aluno para que ele se possa regozijar com a materialidade sonora da linguagem, brincar com o ritmo, as rimas, os sons, as aliterações, as associações sonoras, etc. “Escuta bem: / Ah! Ah! Ah! Ah! / Ah! Ah! Ah! Ah!”. Trata-se de uma “música heroica” gestada pelo céu, pelo mar e por cada um de nós. Como se não bastasse nascer do céu, do mar e dos seres humanos, “esta música” é uma semideusa, uma mortal divinizada. É o próprio movimento poético da linguagem: sopra o vento e faz dançar (MEIRELES, 1994).

Escuta bem: ao contrário do que sucede com a linguagem quotidiana, a linguagem poética caracteriza-se por uma rejeição deliberada do princípio da economia artística, uma vez que o seu objetivo reside, em larga medida, num aumento do grau de perceptibilidade da singularização dos objetos. Destacando a sua forma em relação ao fundo da linguagem cotidiana, a linguagem poética apresenta, usualmente, uma visão inabitual ou insólita da realidade, destinando-se essa “deformação” e essa desarticulação intencional da monotonia da cadeia verbal linguística para melhor captar a atenção do leitor. De fato, se a linguagem corrente se define pela promoção de um automatismo da percepção, a linguagem poética procurará, pela escolha dos elementos lexicais, pela disposição dos vocábulos, pelas associações semânticas e rítmicas - enfim, por um cuidadoso processo de seleção e de atenta estruturação do objeto estético, anular esse processo de automatização e de generalização, valorizando, para o efeito, os elementos e os modos de construção que, pela sua alteridade, possam contribuir para uma incessante singularização do ato perceptivo.

Ler poesia ou escrever poesia na sala de aula, portanto, possibilita que o aluno maneje um instrumento linguístico em plena liberdade, com entusiasmo e alegria. A poesia mostra a língua emancipada das constrições da gramática e do uso da pontuação, por exemplo. Encoraja os jogos de palavras, as associações sonoras, por vezes inusitadas; demonstra a importância da escolha vocabular e da ordem das palavras; e possibilita ao aluno escrever criativamente.

A pesquisa teórica sobre o ensino-aprendizagem da leitura (SIM-SIM, 2009) demonstrou que é mais fácil às crianças aprenderem a ler se tiverem uma consciência fonológica dos sons da língua, isto é, se forem capazes de identificar e brincar com os sons da língua: isolar, manipular, combinar, segmentar mentalmente, e de forma deliberada, os segmentos fonológicos da língua. A interação com textos poéticos pode, como bem sublinharam Parr e Campbell (2006), auxiliar fortemente esta aprendizagem.

Recordemos, como assinalaram Selfa e Azevedo (2013, p. 56), “que la lectura y comprensión de textos poéticos favorece el desarrollo de las habilidades intelectuales y de reflexión que tiene que adquirir y potenciar un estudiante” na fase precoce da educação básica. A poesia como linguagem é concebê-la como a palavra com sentido, ou seja, impregnada de ideias, carrega uma visão de mundo, de sociedade e de sujeito. A palavra poética é, em si mesma, a palavra que desvela as relações, as estruturas e as coisas.

Finalmente, faz-se necessário ainda destacar a força vital da poesia como linguagem na forma-conteúdo de música, de melodia e de toadas que, ao se movimentar em tempos e espaços distintos, permite que cada um de nós possa, simultaneamente, dançar, ventar, escutar e transdizer as vozes da natureza, dos homens, das mulheres e das crianças. Por esta razão, a experiência da palavra poética em sala de aula favorece o ato de nascer quase-deuses, ou seja, ela consegue, por meio da forma-conteúdo, ajudar a superar as bestialidades e as vaidades dos quase-humanos.

2.2. A Poesia é metáfora

São dois rios os meus olhos,

- te juro -

noite e dia correm, correm,

mas não acho o que procuro.

(MEIRELES, 1994, p. 127)

A poesia e a linguagem literária, pela sua própria construção e funcionamento semiótico, manifestam privilegiada e ostensivamente uma função que Jakobson (1981, p. 209-248) apelidou de poética, isto é, com um aspecto intrinsecamente inovador e criador. A poesia é, com efeito, objeto de procedimentos intencionais e explícitos de intensificação, processo pelo qual a informação transmitida pela sua estrutura linguística se vê profundamente transformada por inúmeros e polissêmicos valores de ordem expressiva, afetiva, estética, etc. Integrados e interatuantes numa complexa estrutura sígnica multiestratificada, na qual o grau de predicabilidade das intersecções recíprocas tende, em função da rejeição desse princípio da economia discursiva a que nos referimos anteriormente, a complexificar-se e a tornar-se opaco, todos os seus elementos são introduzidos em diferentes sistemas de relações, visando expandir, ao máximo, a amplitude de significações potenciais dessa estrutura.

A poesia é metáfora, na acepção em que permite ler o mundo de modo afetivo, emotivo e expressivo, sugerindo e entredizendo, mais do que patenteando ou explicitando. A poesia - porque apelando ao valor mítico dos sons e dos ritmos, ao sentido da transracionalidade da linguagem, capaz de convocar determinado tipo de associações emocionais e conotativas, distintas da neutralidade objetivo-comunicativa, que ocorre no uso prático e cotidiano da língua - possibilita, com efeito, ao permitir comunicar o inefável, o imaterial e o indizível, dizer de modo bem mais amplo e expressivo.

A poesia é, muitas vezes, também metáfora visual, que propõe linhas de leitura diversificadas ao seu leitor. O estudante pode, graças à poesia visual, aprender a conjugar palavras e desenho de modo a produzir significado (BACELAR, 2001; CALO, 2011). De fato, pela metáfora criam-se olhos e rios, sendo para cada olho, para cada olhar, um rio distinto, ou seja, a poesia materializa imagens e exibe as contradições mais belas e harmoniosas que enriquecem a experiência. Eis que aí está uma das razões pelas quais os versos de Cecília Meireles, que abrem a reflexão em torno da poesia como metáfora, provocam uma enxurrada de imagens sobre os sentidos dos olhos e dos rios e, mais, sobre a relação de ambos como resultante de um envolvimento intenso, profundo e multifacetado acerca da experiência de ser-sendo quem somos, assim como da infindável busca pela atribuição de sentido da existência dos corpos viventes, transeuntes e passageiros.

Hester (1967) considera que o significado da metáfora poética se concretiza através da disputa entre os agenciamentos dos elementos aparentemente ambíguos da/na linguagem, o que promove as rupturas de significados da palavra como coisa codificada, institui e atualiza outros regimes de signos capazes de se retroatualizar em conformidade com as semióticas dos sujeitos na sua imbricação histórica e socialmente demarcada. Nesse sentido, “escutar ou ler as palavras é também começar a escrever a palavra; as sementes da configuração da escrita estão contidas na palavra oral em sua constante relação e significação” (CHAGAS, 2006, p. 188).

Esse atributo da metáfora, portanto, faz as palavras sempre novas, sempre outras e entregues ao devir, ao ser em movimento que se renova e se atualiza de acordo aos regimes de crenças e de signos de uma época, de um território. Daí decorre o poder de (re)atualização da poesia, e a sua vitalidade reside na concretização dos “olhos” que correm e correm, noite e dia, e ainda não acham o que procuram.

2.3. A Poesia é interrogação ao leitor

Se não houvesse montanhas!

Se não houvesse paredes!

Se o sonho tecesse malhas

e os braços colhessem redes!

Se a noite e o dia passassem

como nuvens, sem cadeias,

e os instantes da memória

fossem vento nas areias!

Se não houvesse saudade,

solidão nem despedida...

Se a vida inteira não fosse,

além de breve, perdida!

(MEIRELES, 1994, p. 653)

Os textos literários, apresentando uma modelização dos realia, ajudam o leitor a pensar o mundo e a interrogar as suas práticas. O que se diz ou o que se silencia são, muitas vezes, formas de refletir o mundo e acerca do mundo. Para o leitor, a compreensão da poesia expressa-se através da comparação entre esta e os seus dramas sociais, existenciais e históricos. Isto acontece porque os poemas trazem um compromisso com a razão, a verdade e o valor.

As pessoas leem poemas, pois conseguem identificar nos seus versos: sentimentos, emoções e formas de pensar o mundo que são muito semelhantes às suas formas de perceber o mundo e de o sentir. Por outro lado, esse exercício de experienciar a leitura do texto poético se torna uma necessidade, sobretudo porque a literatura organiza a experiência, promove o desencarceramento de sentimentos, emoções e visões de mundo confusos e descolados da realidade movente, ou seja, ela humaniza (CANDIDO, 2011).

Ao questionar o leitor, o texto poético se veste de uma dupla propriedade ou tarefa: denúncia e anúncio. Ao tensionar as questões sociais, existenciais e históricas, a poesia torna públicas tanto as mazelas quanto a inaudita beleza das relações entre eu-outros na vida em comunidade. O conhecimento condensado em um único verso é capaz de revoluções: “Se a vida inteira não fosse / além de breve, perdida!” (?). A poesia, portanto, interroga sobre o quê, sobre a coisa-em-si: a vida é inteira? É inteira? A vida é? E se ela fosse, além de breve, perdida? É breve? É perdida? Como seria uma vida sem montanhas, sem paredes? Como seriam os dias e as noites como nuvens e sem cadeias? Há nesse jogo poético a possibilidade de criação de imagens e aprendizados incomensuráveis. Por essa razão, a literatura fornece um contexto de pensamento profundo e de resposta pessoal; ela inspira e informa; nutre a imaginação; move a cada um dos envolvidos pela palavra poética para o riso, para a lágrima e para o agir (YOPP; YOPP, 2006).

Pela experiência da leitura em voz alta, pelo saborear dos versos e das metáforas, o leitor poderá encontrar as possíveis respostas para os tensionamentos da palavra poética. Essas respostas podem remetê-lo a possibilidades de encontro consigo mesmo e com o outro; podem colocá-lo na condição de agente de seu processo formativo e copartícipe das aventuras nessa nau chamada vida. A escola, sem dúvida, integra uma parte significativa dessa composição de passageiros. A instituição escolar haverá de criar as condições efetivas para a vivência de práticas de mediação literária capazes de transformar as tragédias em risos, e estes em comunhão da palavra, das atitudes e do projeto de ser-com-os-outros.

Se “os instantes da memória fossem vento na areia”, seríamos conduzidos não pelas memórias, mas, sim, pelo instante presente. Estaríamos, por certo, entregues ao vento, tal qual a areia que, pela sua impotência, só lhe resta acompanhar o fluxo do movimento e seguir obediente ao ritmo, à pauta e à fúria do seu comandante. Mas... somos memória também. Qual é a participação desse traço distintivo no jogo da leitura poética?

De acordo com Vygotski (2001), embora pensamento e linguagem sejam imbricados, há uma estreita vinculação entre memória e situação comunicativa (interativa) tal como se apresenta visualmente, ou seja, de certo modo, haveremos de concordar que, em se tratando de poesia, cada um de nós poderá experimentar esse estado de ser areia e de ser vento.

3. Alguns apontamentos metodológicos

Catar um por um os espinhos da água

restaurar nos homens uma telha de menos

respeitar e amar o puro traste em flor

(BARROS, 2010, p. 194)

A mediação entre aluno e conhecimento realizada pelo professor requer a apropriação de instrumentos culturais, que permitam aos sujeitos envolvidos a elaboração de entendimentos da complexidade da realidade social, das bases necessárias para o desenvolvimento individual e coletivo. Corroboramos a concepção de que a atividade do professor tem um “por finalidades”, ou seja, seus objetivos de ensino precisam materializar um conjunto de ações intencionais e dirigidas a um fim específico.

Aqui se destaca o campo da didática, seu movimento e especificidade: a atividade de ensinar e de aprender. O pensar sobre como ensinar se imbrica às demais perguntas-guia da ação docente: o por quê, o para quê, o que e a quem ensinar. Como ensinar a palavra poética, sem perder a beleza do verso e o sentido da poesia?

Ao compreender a poesia como linguagem, metáfora e interrogação ao leitor, conforme aqui discutido, o professor terá o desafio de criar situações de ensino favoráveis ao aprendizado da poesia. Portanto, ligando-se intimamente a uma arte da memória e da partilha no âmbito das culturas orais, recordando que as crianças têm, na maioria das vezes, o primeiro contato com a língua através das canções de ninar, dos trava-línguas e das rimas infantis (COSTA, 1992; NOGUEIRA, 2011), a poesia será verbalizada em voz alta, lida expressivamente e/ou escutada atentamente, de modo a que o estudante se possa deixar seduzir pelos usos expressivos, simbólicos e afetivos da língua.

A depender dos textos, os alunos podem ser convidados a ler o texto poético a diferentes vozes e/ou suscitando efeitos perlocutórios diversos (YOUNG; NAGELDINGER, 2014): ler o texto sussurrando, ou com pausas mais longas ou mais curtas ou enfatizando determinadas partes.

Uma sugestão possível para que eles compreendam e concretizem a poesia como metáfora passa por convidá-los a completar a expressão “a poesia é…”, e explorar as formulações assim obtidas. Parr e Campbell (2006, p. 36) defendem que a melhor forma de um estudante compreender e fruir a poesia é torná-lo detentor de uma capacidade de “poetitude”, isto é, torná-lo capaz de ler e de escrever poesia: “We want students to become poets in practice and see themselves as practicing poets”.

Podemos afirmar que muitas ações podem ser realizadas pelo conjunto de professores, materializadas em projetos pedagógicos sustentados por concepções de educação, de ensino e de aprendizagem que possam desenvolver o ser humano integralmente. Azevedo e Melo (2012, p. 938) destacam a importância de haver na escola espaços de partilha de poemas entre os sujeitos em diversos momentos; ressaltam ações simples que Chatton (1993) propõe e assim sugerem: “ler ou recitar um poema para os colegas, fazer gravações com recitação de poesia, discutir as ideias e as emoções de cada um face a um determinado poema”, entre outras atividades.

Essas ações são “convites” vigorosos para aprender poesia. Parafraseando Paes (1990), a aprendizagem é lúdica, e, por essa razão, quanto mais se brinca com as palavras, mais belas ficam. Ampliar espaços formativos que possibilitem o encontro com a palavra poética favorece um pensar-agir no mundo, com alternativas, sentidos próprios e apropriados. O brincar com as palavras e a imaginação criadora é um processo de ampliação de repertório; é uma experiência com a linguagem poética articulada a outras formas de manifestação da linguagem, como a música, a imagem, a ilustração, entre outras (CHAGAS, 2006). Em suma, trata-se de um aprendizado multifacetado, que exigirá disposição para uma escuta e uma fala sensíveis e atentas: “é preciso também aprender a ouvir o outro, aprender a fazer uso da pausa, aprender a respirar, aprender a olhar com atenção, interessar-se pelo assunto abordado, entre outras aprendizagens” (BAZZO, 2015, p. 68).

Ao centralizar a palavra poética, criam-se situações para os alunos imergirem em experiências desafiadoras, podendo se expressar e se desenvolver como seres humanos plenos. A escola haverá de estabelecer uma atmosfera de confiança para a partilha de sentimentos, experiências e ideias. A confiança se concretiza no momento em que há a escuta das tentativas dos estudantes de compartilhar suas compreensões em torno da palavra poética. É importante acolher as discordâncias e as divagações, porque elas podem ser motivo para voltar ao texto e conduzir uma análise mais apropriada, ou melhor, elas poderão ser os elementos favorecedores de distintas composições, o que ajudará na identificação e na elaboração de experiências e de conhecimentos diversos, complementares ou antagônicos. (YOPP; YOPP, 2006).

Diante desses apontamentos, as atividades interlocutivas e a coragem para o mergulho no (des)conhecido, território dos sentidos mais íntimos, mais secretos e que constituem os humanos em humanos serão como um trabalho de “catar um por um os espinhos da água”, isto é, um “serviço” minucioso, atento, afetivo e político, beirando o impossível. Afinal, o que são: “espinhos da água”? “uma telha de menos”? “O puro traste em flor”? Na esteira do conceito e da atitude, é preciso saber-fazer. Portanto, o professor haverá de responder a si mesmo: como “catar espinhos da água”? Como “restaurar nos homens uma telha de menos”? Como “respeitar e amar o puro traste em flor”? Ao final de suas reflexões, caberia uma última questão-síntese: seria essa a principal tarefa do professor - saber o que é, como fazer, para que e por que fazer? Em se tratando do ensino de poesia, o entredizer está amplamente franqueado. Há um incessante momento entre ele e o ato de escutar aquela que rompe, que inaugura o indizível, o impalpável e lança para o plano das possibilidades os desejos de ser e de poder-ser - perspicazes, afetivos, audaciosos, atrevidos e perigosos -: a palavra.

Considerações finais

Motivar os estudantes para a leitura de poemas é convidá-los para a evasão à rotina diária da escola. O objetivo é fazer com que cada um veja essa leitura como um processo de enriquecimento pessoal, que lhe permita descobrir aprendizagens da língua, ampliar o campo lexical e semântico, desenvolver competências leitoras e literárias e, simultaneamente, que o torne um leitor “apaixonado” ao longo de toda a sua vida. Esse trabalho de sensibilização para o estudo da poesia só poderá existir se os professores levarem para a sala de aula textos considerados bons, isto é, semanticamente ricos, que possam estimular intelectualmente os seus alunos; que desenvolvam a imaginação, através das diferentes formas de ver o mundo; que lhes proporcionem novas aptidões vocabulares; que sejam adequados aos seus desejos, necessidades e interesses, assim como aos seus níveis de cognição e de compreensão.

Ao interagir com a poesia, o leitor desenvolve e consolida competências linguísticas, cognitivas e estratégias de compreensão; familiariza-se com a linguagem conotativa e metafórica; estimula o imaginário; alarga conhecimentos culturais e mergulha no grande universo da sensibilidade e dos afetos. Ele se humaniza. E, por essas razões, há que reivindicar o lugar deste gênero literário na formação da educação literária das crianças e dos jovens.

Ensinar aos estudantes o fascínio pela poesia supõe, desde logo, que o professor seja, ele próprio, um bom leitor de poesia, que conhece e lê amiudadamente, que sabe escolher textos, que os partilha regularmente em sala de aula. Nela, vida e poesia remetem-se uma a outra, sem distinção entre si. Em ambas, está latente a força misteriosamente criadora, ainda que se encontrem em condições desfavoráveis para manifestação.

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4. Tal ação interinstitucional se tornou possível por meio de intercâmbio no Estágio Pós-Doutoral, o que vem possibilitando uma articulação entre os docentes pesquisadores de ambas as universidades para realizar atividades de pesquisa, ensino e extensão.

5. Bazzo (2016) propõe uma discussão sobre se a literatura consiste em trabalho de fruição ou pretexto para o ensino-de. Segundo a autora, a fruição envolve um trabalho intenso de interações e processos de aprendizagem que, concebendo a literatura como arte e um bem inalienável para humanizar, promove também estudos sobre suas marcas linguísticas, estilo, temas e formas composicionais.

Recebido: 21 de Junho de 2017; Aceito: 27 de Maio de 2018

E-mail:fernando.uminho@gmail.com.

E-mail:lilanemoura@gmail.com.

E-mail:jilvania.bazzo@ufsc.br.

Fernando José Fraga de Azevedo é Professor Associado com Agregação da Universidade do Minho, do Instituto de Educação, Departamento de Estudos Integrados de Literacia, Didáctica e Supervisão e membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança.

Lilane Maria de Moura Chagas é Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina, do Centro de Ciências da Educação, Departamento de Metodologia do Ensino. Tem experiência na área de Educação, com ênfase no Ensino Fundamental e Educação Infantil, atuando principalmente nos temas: formação do leitor, literatura infantil, narrativas cotidianas e literárias, alfabetização, letramento, didática.

Jilvania Lima dos Santos Bazzo é Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina, do Centro de Ciências da Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação, Departamento de Metodologia do Ensino. Tem experiência em Formação de Professores, atuando e desenvolvendo pesquisas nos seguintes temas: educação e linguagem, literatura e ensino.

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