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Leitura: Teoria e Prática

Print version ISSN 0102-387XOn-line version ISSN 2317-0972

LTP vol.36 no.74 Campinas May/Aug 2018  Epub Aug 02, 2019

 

Artigos

Práticas de leitura e escrita na educação infantil: o texto como unidade de sentido

Reading and writing practices in child education: the text as a unit of sense

Keylla Rejane Almeida Melo1 

Antonia Edna Brito2 

1. Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil.

2. Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil.


Resumo

O presente texto é resultado de pesquisa narrativa, de abordagem qualitativa, intitulada “Os usos da leitura e da escrita na Educação Infantil”, realizada em dois Centros Municipais de Educação Infantil do município de Teresina-PI, envolvendo oito interlocutoras que, a partir da escrita de diários de aula, refletiram sobre suas práticas de leitura e de escrita com crianças, na faixa etária de 3 a 6 anos de idade. O estudo buscou responder: Quais os usos da leitura e da escrita na Educação Infantil? Constatou-se, entre outras questões, que o texto não vem sendo trabalhado como prática social de usos da leitura e da escrita, aparecendo, na maioria das vezes, como pano de fundo para trabalhar mecanicamente essas habilidades linguísticas.

Palavras-chave: Educação infantil; linguagem escrita; gêneros textuais

Abstract

The present text is a result of narrative research, qualitative approach, entitled “the uses of reading and writing in child education”, held in two Municipal Centers of early childhood education of the city of Teresina-PI, involving eight speakers, from daily writing class, reflected on his reading and writing practices with children, from 3 to 6 years old. The study sought to answer: what are the uses of reading and writing in early childhood education? Among other things, it was found that the text not being worked as social practice of uses of reading and writing, appearing mostly as a backdrop to work mechanically these language skills.

Keywords: Early childhood education; written language; text genres

Introdução

A Educação Infantil é espaço e tempo, por excelência, de desenvolvimento da linguagem. A linguagem expressa das mais diferentes formas: corporal, musical, plástica, oral, escrita. Nesse tempo e espaço, é importante que múltiplas linguagens sejam contempladas no cotidiano do trabalho com as crianças, levando-as a estabelecer interações contínuas com seus pares, com os adultos, com os objetos e com a natureza. Nas brincadeiras, possibilidade rica de interação e recriação da realidade, as diversas linguagens entrelaçam-se para significar a situação criada/vivenciada pela criança. É, portanto, a linguagem, mediadora das interações e das brincadeiras, possibilitadora da apropriação do mundo pelas crianças, na constituição de suas identidades.

Sem desmerecer o importante papel que desempenha cada uma das linguagens no processo de desenvolvimento e de aprendizagem infantis, contemplamos, neste estudo, a linguagem escrita, entendida como as habilidades de leitura e de escrita, que se situam dentro do processo geral de constituição da linguagem (ABAURRE, 1988), e que têm como objetivo a inserção do sujeito em uma cultura letrada.

Nessa perspectiva, partimos do seguinte problema: quais os usos da leitura e da escrita na Educação Infantil? Para tanto, estabelecemos como objetivo geral da pesquisa investigar os usos da leitura e da escrita na Educação Infantil. Visando atender a nosso objetivo, optamos pela pesquisa narrativa como método de investigação e, como procedimentos de produção de dados, diários de aula escritos pelas professoras interlocutoras da pesquisa, observações das turmas e análise documental das propostas pedagógicas das instituições pesquisadas.

Neste artigo, analisamos, mais especificamente, o trabalho realizado pelas interlocutoras da pesquisa em relação à linguagem escrita, enfatizando o tratamento que dão ao texto. Para tanto, fundamentamos nossa discussão em estudiosos como Foucambert (1994); Goulart (2007); Santos (2007); Valdez e Costa (2010), que pontuam a importância da variedade de tipos e gêneros textuais no processo de apropriação da linguagem escrita pelas crianças, bem como dos suportes nos quais esses textos são apresentados para um trabalho focado na leitura e na escrita como práticas sociais.

Dessa forma, apresentaremos, na primeira seção, o percurso metodológico da investigação e, na segunda, a análise de dados produzidos em relação à utilização de textos pelas professoras no processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita na Educação Infantil. Concluímos que a utilização de textos na Educação Infantil tem servido, na maioria das vezes, como desculpa para se trabalhar a mecânica do ler e do escrever.

Metodologia

Como modalidade de pesquisa qualitativa, a pesquisa narrativa colocou-se como metodologia de investigação científica viável para atender aos objetivos do estudo, na medida em que fornece elementos importantes para interpretar mais qualitativamente a realidade estudada, possibilitando descrever objetiva e subjetivamente os fenômenos, não somente no ponto de vista do pesquisador, mas, sobretudo, a partir do que os interlocutores narram.

Assim, utilizamos os diários de aula (ZABALZA, 2004), a observação e a análise documental das propostas pedagógicas das instituições pesquisadas como procedimentos de produção de dados. Os diários de aula escritos sistematicamente pelas professoras, duas vezes por semana, em dias variados, e a observação in loco de suas práticas buscaram compreender os saberes práticos que embasam sua atuação, dentro dos contextos nos quais esses saberes se materializam. E a análise documental, associada à observação e à escrita dos diários, foi o ponto de partida para a pesquisa empírica propriamente dita, pois, por meio dela, conseguimos olhar as práticas de leitura e de escrita a partir das orientações teórico-metodológicas norteadoras do trabalho nas instituições de Educação Infantil pesquisadas.

Os dados produzidos nas narrativas e nas observações foram descritos, organizados e classificados em temáticas que emergiram à medida que os fomos analisando. E foram interpretados de modo a responder a nosso problema inicial de pesquisa e complementados pela análise documental das propostas pedagógicas das escolas.

A opção por tal modo de análise coaduna-se com o pensamento de Souza (2006), segundo o qual as categorias de análise das narrativas devem emergir da própria análise dos dados produzidos. Por isso, iniciamos as análises desde o início da escrita dos diários e das observações para, ao final, construir uma interpretação geral dos dados produzidos.

A pesquisa foi realizada em dois Centros Municipais de Educação Infantil - CMEI -, do município de Teresina-PI, e teve como interlocutoras oito professoras, todas titulares de turma, com, pelo menos, dois anos de experiência na Educação Infantil e formação em nível superior. Três delas atuavam em turmas de Maternal, e as outras cinco, em turmas de 1.º e 2.º períodos.

O texto como unidade de sentido: gêneros e tipologias textuais

Atualmente, as discussões em torno do processo de aquisição da leitura e da escrita pelas crianças trazem a importância de privilegiar o texto como unidade de sentido, considerando uma nova visão, de que a língua só existe a partir da interação social. Dessa forma, os elementos isolados que compõem essa língua não têm sentido em si, mas combinados, formando um todo comunicativo, expressivo, dentro de um contexto específico. Nessa perspectiva, o ensino-aprendizagem da leitura e da escrita a partir do texto torna-se mais significativo para o sujeito aprendente.

A análise das propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil pesquisadas permite-nos afirmar que as orientações quanto ao trabalho com a linguagem escrita nas duas escolas tomam o texto como possibilitador da compreensão do sistema de escrita. Nesse sentido, os relatos iniciais de algumas professoras, registrados nos diários de aula, demonstram que, pelo menos no campo discursivo, as professoras compreendem essa importância do texto na rotina diária de suas práticas pedagógicas, conforme pode ser constatado nos excertos a seguir:

Nesse sentido, uma das formas de aquisição da leitura e da escrita, como já ressaltei, é ensinando por meio de projetos interdisciplinares que abordam uma temática significativa com ênfase nos textos nos quais os alunos poderão perceber as relações entre letras, sílabas e palavras. (Prof.ª Francisca)

A escola dispõe de um grande acervo de livros, e isso é muito positivo, já que, quanto mais portadores de texto oferecidos aos alunos, melhor será seu desempenho na aquisição da leitura e escrita, por possuírem diversidade de conteúdo de aprendizagem. Nesse contexto, se pretendemos formar leitores, não podemos esquecer que os alunos, ao iniciarem a educação infantil, já têm conhecimento sobre linguagem escrita adquirido no meio onde vivem. Cabe à escola oferecer um ambiente rico em estímulos, já que a mesma é um espaço privilegiado onde os alunos têm a oportunidade de ter contato com diversos portadores de texto, como: jornais, revistas, cartazes e assim formar bons leitores. (Prof.ª Cleia)

Então é de suma importância que os pequenos estejam diretamente em contato com textos, livros, para que sejam estimulados no que diz respeito ao desenvolvimento da linguagem oral e escrita, já que a sociedade preza por essas habilidades. (Prof.ª Concita)

Se nossas análises se resumissem aos relatos iniciais, poderíamos inferir deles que as professoras proporcionam, diariamente, às crianças, momentos de fruição da leitura de textos diversos em diferentes suportes, com destaque, inclusive, ao bom acervo de livros que as escolas possuem. No entanto, na prática, as observações e os relatos frequentes das professoras mostram-nos aspectos bem diferentes do que elas afirmam em seus depoimentos iniciais. Essa desconexão entre o discurso e a prática de muitas professoras leva-nos a citar considerações de Oliveira-Formosinho (2007) de que, embora atualmente se apresente como natural que os professores assumam o discurso das propostas que conduzem a uma transformação construtiva no fazer pedagógico, a realidade pedagógica continua a mesma.

Nas práticas observadas em diário de uma das professoras, nem mesmo detectamos momentos de utilização do texto. Porém, na maioria das práticas, o texto aparece cotidianamente, diferenciando-se, entre as práticas, os tipos e os gêneros textuais trabalhados, os suportes (prevalecendo o cartaz) e as finalidades do trabalho. No entanto, não percebemos um cuidado com a seleção de textos sociais variados em seus respectivos suportes nem com um trabalho de fruição do ler. Valdez e Costa (2010, p. 173), salientando a importância da leitura diária de histórias para as crianças da Educação Infantil, alertam que “[...] contar histórias é uma tarefa simples, porém, exige preparação”.

Nessa perspectiva, os dados produzidos nos levam a afirmar que o texto está, de uma forma geral, presente nas aulas das professoras interlocutoras, com o intuito de trabalhar a aquisição da leitura e da escrita pelas crianças. No entanto, há um tempo determinado para este recurso didático que, na maioria das práticas, serve para introduzir temas de trabalho e para apresentar/revisar letras, sons, famílias silábicas. O foco, na verdade, não é o texto, mas o que se deseja trabalhar a partir dele. Os excertos a seguir revelam esse tipo de utilização do texto em algumas turmas pesquisadas.

Em seguida, foi feita a leitura apontada do texto “Amor de Mãe”. Conversamos bastante sobre o texto e, com a ajuda das crianças, circulamos no texto, todas as vezes que aparecia, a palavra mãe. (Prof.ª Concita)

Fizemos a leitura e a interpretação oral do textinho “Cuidando dos dentes”. As crianças falaram uma série de cuidados que devemos ter com os nossos dentes. Foi feito o estudo da palavra dente [...]. (Prof.ª Concita)

Depois desse diálogo, apresentar o texto em cartaz: LIXO NO LIXO, fazer a leitura apontada, identificar: título, nome do autor. Pedir que as crianças identifiquem a palavra LIXO no texto, chamar uma criança ao quadro para circular a palavra encontrada. (Prof.ª Laiane)

Momento de leitura do dia:

  • apresentação da letra da música “Mamãe Querida” em cartaz;

  • leitura apontada do texto pela professora;

  • leitura apontada do texto com as crianças;

  • destacar no texto a palavra mamãe;

[...].

(Prof.ª Cleia)

[...] foi apresentado um cartaz com o texto intitulado de A sementinha [...] daí eles foram estimulados a lerem o texto do cartaz, começando pelo título. A leitura do mesmo foi feita sem o auxílio da professora por alguns alunos e só depois todos os alunos fizeram a leitura coletiva do texto do cartaz. (Prof.ª Cleia)

Apresentei a música no quadro, cantamos e, em seguida, fizemos uma leitura, apontando as palavras e identificando as palavras terminadas em ÃO [...]. (Prof.ª Jeysa)

Esses são apenas alguns fragmentos que trazem o texto como desculpa para o desenvolvimento de temáticas relacionadas a bons hábitos de vida, por exemplo, e/ou para o destaque de palavras cujo objetivo é trabalhar sons, letras, famílias silábicas. Vale apontar que muitos desses textos, inclusive, já vêm prontos da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC), tanto que são trabalhados em todas as turmas, simultaneamente, como os citados nos fragmentos a seguir:

Dando continuidade, foi feita a leitura apontada do texto “Mamãe Querida”, logo após foi distribuída entre algumas crianças as letras que compõem a palavra “Mamãe” (alfabeto móvel) para podermos formar a palavra [...]. (Prof.ª Concita)

Em seguida, apresentar o cartaz com a música: “Mamãe Querida”. Fazer a leitura apontada do texto e logo em seguida fazer questionamentos: qual é o título do texto? Quem escreveu o texto? Convidar uma criança para identificar no texto a palavra MAMÃE. (Prof.ª Laiane)

[...] e em seguida foi fixado no quadro um cartaz com a letra da música [“Cabeça, ombro, joelho e pé”]. No momento da leitura, as crianças foram estimuladas a lerem o texto sem auxílio da professora e também com auxílio, destacando sempre o nome das partes do corpo. Ao serem retiradas do texto, foi feito o estudo dessas palavras. (Prof.ª Cleia)

Essa música [“Cabeça, ombro, joelho e pé”] foi copiada no quadro, lida e cantada de forma coletiva, escolhemos a palavra corpo para ser estudada. (Prof.ª Concita)

Vemos a predominância do cartaz como suporte de apresentação dos textos, apesar de, nos relatos iniciais, a maioria das professoras destacar a importância de variar esses suportes. Se, na atualidade, acreditamos que o ideal é desenvolver uma prática alfabetizadora numa perspectiva de letramento, não basta trabalhar textos sociais sempre em cartaz, mas é preciso ter o cuidado de apresentar às crianças os textos em seus suportes de origem, como, por exemplo, o livro de poesias, a notícia no jornal, os textos informativos nas enciclopédias, a literatura infantil no livro.

No tocante especificamente à literatura infantil, o que muitos relatos das professoras nos trazem é o destaque do acesso a um bom acervo de livros nas escolas, pela implementação de programas do Governo Federal, como “Uma biblioteca em cada escola”, e por projetos adquiridos pelo próprio governo municipal, como o “Paralapracá”, que tem como um de seus recursos didáticos um baú cheio de livros de literatura infantil. Na escola B, principalmente, temos boas práticas narradas pelas professoras e observadas pela pesquisadora de trabalho com esse gênero textual, pois o que constatamos foi exatamente uma certa predominância da literatura infantil, sobretudo na turma de Maternal, o que não presenciamos com tanta ênfase na escola A. Segundo Valdez e Costa (2010, p. 171), houve avanços inegáveis no aumento e na qualidade da literatura infantil, no acesso às obras literárias, na conscientização de sua importância para a infância, mas ainda “[...] predomina certa dificuldade em promover um amplo contato das crianças com a literatura infantil”.

Todos esses argumentos apontados pelas autoras estão presentes nos relatos das professoras, porém, entre as duas escolas, há diferenças na utilização dos textos literários: enquanto na escola B existem projetos de literatura infantil, na escola A, apenas algumas leituras bem pontuais foram constatadas. A seguir, apresentamos trechos dos diários das professoras da escola B, que traduzem bem essa predominância do trabalho com os textos literários.

Nesta segunda-feira [27/05], a recepção das crianças foi com vários livros sobre as mesas, para que pudéssemos introduzir o assunto de hoje que é LITERATURA. Cada aluno, depois de ter folheado vários livros, pedi que escolhessem o que mais tinham gostado, fizemos uma roda e cada criança contou sua história de sua forma, foi livre e engraçado. Percebi que algumas crianças têm uma sequência lógica dos fatos, outras não. (Prof.ª Jeysa)

Nesta terça-feira [29/05], retomamos a aula passada, com a história da BRANCA DE NEVE. Fizemos a roda de conversa e um aluno recontou a história, no momento em que os outros, por orientação, fizeram silêncio para ouvir. Assim, trabalhamos a percepção oral e a percepção auditiva. Em seguida, passamos para a parte de leitura e escrita das palavras relacionadas com a história [...]. (Prof.ª Jeysa)

Projeto Literatura

[27/05] Propusemos essa temática com o objetivo de desenvolver a imaginação e a criatividade dos alunos por meio das histórias infantis e despertar na criança o interesse pela leitura desde a infância, promovendo também a aprendizagem por meio do conhecimento de histórias [...] Em seguida, propusemos a contação da história dos “Três Porquinhos”, onde propiciamos o comentário da mesma, identificando os personagens, o local onde aconteceram os fatos e o reconto da história oralmente. (Prof.ª Francisca)

Consciente de que a criança precisa ouvir histórias para o desenvolvimento da aprendizagem e ampliar o vocabulário e a capacidade de interpretar, hoje [03/06] propiciamos aos alunos a leitura do conto do PINÓQUIO. A leitura foi feita por uma professora, em voz alta, com outra turma de 2º período, na qual os alunos ouviram, questionaram e fizeram algum comentário. (Prof.ª Francisca)

Em seguida, entramos na aula [27/05]. O nosso tema é “O Encanto das histórias infantis”, que se diversifica de acordo com cada turma, ou seja, o professor escolhe o tema da história a ser trabalhada. Na nossa turma o tema foi “Os três porquinhos”.

Fizemos uma leitura da história. Depois, dialogamos com as crianças com algumas perguntas, estimulando a linguagem oral. (Prof.ª Ana)

Hoje [22/06], foi realizada a leitura da fábula “A Galinha dos ovos de ouro”. A leitura foi feita coletiva, na rodinha, com o auxílio dos dedoches dos personagens da história.

Depois fizemos a contagem da história e de todos os elementos e personagens vistos pelas crianças.

Foi realizada uma atividade de leitura visual das figuras da história e de seus respectivos nomes. (Prof.ª Ana)

As duas professoras do 2.º período destacam o trabalho com a literatura infantil apenas como parte do Projeto Literatura e em outros momentos bem pontuais, buscando uma maior variação dos gêneros textuais trabalhados. Porém, a professora do Maternal destina um momento da rotina diária para a literatura infantil, sendo, portanto, incipiente a abordagem com outros gêneros. Em todas as práticas observadas em que as professoras destinaram um tempo para a leitura de livros de literatura infantil, percebemos o encantamento das crianças com as histórias. Dessa forma, reiteramos o importante papel que desempenha a literatura infantil na formação global da criança (VALDEZ; COSTA, 2010). E a leitura diária constitui uma atividade prazerosa, que contribui sobremaneira para o seu desenvolvimento.

No entanto, se nosso propósito é oferecer às crianças o desenvolvimento da leitura e da escrita, voltado para a inserção competente do sujeito na cultura letrada, não basta o trabalho com a literatura infantil, pois abordar uma diversidade de gêneros textuais em sala de aula torna-se condição necessária para se alfabetizar na perspectiva de letramento. Poucos relatos apontam para um trabalho que leve à compreensão do gênero em estudo, de sua estrutura; à produção de novos textos; a simulações de usos sociais. Goulart (2007) alerta que, para a aprendizagem da língua escrita, é preciso que se leia muito para as crianças, para que elas compreendam as diferenças entre oralidade e escrita. Apenas as professoras Laiane e Jeysa relataram práticas nessa perspectiva, mesmo que em apenas um único registro, como transcrito a seguir.

Acolhida com a contação da história “Onde está a minha mãe”. Logo depois, ainda na rodinha, questionamentos sobre a história [...] Logo após distribuí papel para confeccionarmos um cartão para a mamãe. As crianças ditam e com ajuda delas escrevo no quadro.

As crianças transcreveram o que haviam construído coletivamente e desenharam ao lado o presente que desejam presentear suas mães. (Prof.ª Laiane)

O conteúdo hoje é: POEMA (música da apresentação dos alunos para a Festa Junina).

Iniciamos a aula cantando a música completa, em seguida apresentei apenas uma estrofe da música em forma de cartaz, fizemos leitura coletiva apontando as palavras do texto.

Depois fizemos questionamentos sobre o tipo de texto, dizendo a eles o que se refere, interpretamos a estrofe e fiz algumas perguntas orais, como: Quais palavras se repetem? O texto fala de quê? Você já ouviu essa música? [...]. (Prof.ª Jeysa)

As professoras cujos relatos citamos aqui, apesar de não terem se detido no trabalho minucioso com os gêneros, pelo menos dedicaram um momento no planejamento à produção ou à reflexão sobre a estrutura, diferenciando-se, nesse momento, de uma prática em que o texto serve apenas como desculpa para trabalhar letras e sílabas isoladas e formação de novas palavras com a mesma família silábica ou com o mesmo som inicial. Sobre a utilização de textos no processo de aquisição da leitura e da escrita, concordamos com Foucambert (1994), quando repudia o fato de os textos serem simplificados para atender às possibilidades atuais do aprendiz. Verificamos, na maioria das práticas, a predominância de textos criados com o fim específico de levantar temáticas para discussão, como saúde bucal, corporal, ambiente, ou trabalhar/reforçar unidades da língua escrita. Os textos a seguir, coletados a partir das observações das práticas, exemplificam bem essa situação de uso do texto.

[Observação da prática da Prof.ª Concita, em 04/06/13]

O LIXO

TODOS PODEM AJUDAR A FAZER

DA TERRA UM LUGAR MAIS

LIMPO PARA SE VIVER.

PODEMOS SER MAIS CUIDADOSOS

COM O LIXO.

GRANDE PARTE DO LIXO PODE SER

RECICLADA.

[Observação da prática da Prof.ª Cleia, em 02/07/13]

A SEMENTINHA

CHEGOU A HORA DE PLANTAR

A LINDA SEMENTINHA

VOU COBRI-LA COM A TERRA

PARA ELA NÃO FUGIR

CHEGA A CHUVA PRA MOLHAR

A TERRA E A SEMENTINHA

VEM O SOL COM SEU CALOR

PARA CUIDAR DA SEMENTINHA

A SEMENTINHA VAI BROTAR

E MOSTRAR UMA FOLHINHA

E A PLANTINHA CRESCEU, CRESCEU

CARREGADA DE FOLHINHA.

Na prática da Prof.ª Concita, o texto foi utilizado para abordar a temática lixo. O trabalho se resumiu a uma conversa de alguns minutos com as crianças sobre a referida problemática social. A aula, na verdade, desenvolveu-se em torno do reforço das letras “L” e “X” (reconhecimento das letras, formação de novas palavras e identificação das letras em revista). A prática da Prof.ª Cleia com o texto sobre a germinação seguiu uma perspectiva diferente: ela dedicou mais tempo para a discussão sobre o tema, incrementando com música e dança e atividades de escrita. Pode ser observada no texto a palavra “plantinha” previamente destacada, tendo em vista que esta já estava determinada pela professora para ser estudada.

Em relação especificamente à qualidade dos textos, verificamos a simplificação destes, conforme pontua Foucambert (1994). O primeiro texto traz informações soltas, pouco conectadas entre si. O segundo traz um vocabulário no diminutivo, com a intenção de infantilizar, subestimando o poder de compreensão das crianças. No entendimento de Morais (2006, p. 8), “[...] a iniciação na escrita alfabética através de falsos textos, ‘preparados especialmente para alfabetizar’, tende a produzir alunos que ‘traduzem’ letras em sons e vice-versa, mas que têm várias limitações na capacidade de produzir e compreender os textos de circulação social”. Por isso, prezamos a seleção cuidadosa de textos que trabalhem os diversos gêneros, tanto sua estrutura quanto sua produção, e que retratem os materiais escritos que circulam socialmente.

Mais uma vez ressaltamos a importância de que sejam trazidos para dentro das salas de aula textos reais, de variados gêneros, para que as crianças compreendam os propósitos sociais que cada texto encerra para a compreensão do que a linguagem escrita representa. Nessa perspectiva, “[...] não faz sentido ensinar formas textuais que não apresentam nenhuma função social e que só existem dentro dos muros da escola” (SANTOS, 2007, p. 18). A realidade é rica em variedades textuais, e é possível empregar um tempo para a sua vivência. Não basta, em uma única oportunidade, apresentar às crianças um poema e dizer que ele é formado por versos que, juntos, formam estrofes. É importante dedicar alguns dias para esse trabalho, pois é dessa forma que a criança poderá vivenciar esse gênero textual, refletindo sobre sua estrutura, sobre os propósitos para os quais é produzido, em que contexto é utilizado.

Não desconsideramos, pois, a importância de, a partir do texto, serem destacadas palavras para o reconhecimento de vogais, consoantes, sons, sílabas e formação de novas palavras. O que questionamos é a pouca ênfase à interpretação do texto em si, à estrutura do gênero e à produção de textos, para a compreensão de tal gênero para seu uso social. Dessa forma, embora as práticas de ensino da leitura e da escrita partam de textos, alguns acabam por se transformar “[...] em textos exclusivamente escolares sem qualquer referência textual extra-escolar [...]. Nessa perspectiva, a forma do texto independe das práticas sociais, é isenta de qualquer pressão comunicativa e é tomada como historicamente invariável” (SANTOS, 2007, p. 15). Textos que servem para qualquer fim, em qualquer situação, sem a preocupação de apresentar a linguagem como atividade de interação social, mas como decifração mecânica do código. Conforme nos diz a referida autora, o texto visto simplesmente como um conjunto de unidades linguísticas: palavras, frases, períodos.

Reconhecemos, portanto, um avanço nas práticas de leitura e de escrita que consideram o texto como unidade de sentido para a compreensão da língua escrita. No entanto, sem a real compreensão das bases que fundamentam a utilização de textos com funções sociais para o ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, os textos acabam sendo tomados, então, como objetos de uso, mas não de ensino (SANTOS, 2007). Isto é, o gênero não é trabalhado para a compreensão do contexto no qual é utilizado, do seu propósito social, da sua estrutura linguística, mas resume-se a ser citado, de forma muito pontual, e a isso se seguem outros ensinamentos.

Ressaltamos, assim, ser importante que o docente considere como esse texto deve servir para esse fim, sem que seja preciso limitar as possibilidades que cada gênero textual possui para usos sociais competentes da linguagem escrita. Pelo menos no campo do discurso, as professoras interlocutoras da pesquisa reconhecem essa importância, porém, acreditamos que uma formação continuada que problematize tanto os textos que são utilizados quanto o tipo de trabalho que pode ser desenvolvido a partir deles, levando os docentes a uma reflexão crítica nesse aspecto, poderá contribuir de forma relevante para o redimensionamento das práticas de leitura e de escrita. Dessa forma, as crianças poderão se apropriar dos textos de forma reflexiva, e não por simples imitação, sem uma compreensão real dos seus propósitos sociais.

Considerações finais

Constatamos a complexidade de alterar as práticas pedagógicas sem mudanças consistentes na compreensão dos fenômenos sociais, como é o caso do processo de apropriação da linguagem escrita pelas crianças na Educação Infantil. Sem embasamento teórico, as professoras desconfiam da importância de utilizar textos nesse processo, mas esbarram na impossibilidade de ampliar e inovar suas práticas, pelo fato de não compreenderem efetivamente as finalidades dessa utilização.

Portanto, o texto aparece como forma de camuflar práticas cristalizadas: usa-se o texto para fazer exatamente o que se vem fazendo há tempos. É preciso perguntar, então: como a leitura e a escrita assumem seu papel de inserir competentemente o sujeito em uma cultura letrada, se tais habilidades não são trabalhadas como práticas sociais? O texto aparece e logo é esquecido para dar lugar a letras, sons e palavras isoladas.

Acreditamos ser importante problematizar essa questão com as professoras, refletir sobre suas práticas e buscar, coletivamente, estratégias de trabalho com o texto que levem as crianças a compreender as funções sociais do ler e do escrever, fazendo uso da linguagem escrita a partir da simulação de usos reais.

Referências

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Recebido: 05 de Julho de 2017; Aceito: 25 de Setembro de 2017

E-mail:keyllarejane@yahoo.com.br.

E-mail:antonedna@hotmail.com.

Keylla Rejane Almeida Melo é graduada em Pedagogia (Universidade Estadual do Piauí), tem Mestrado em Educação (Universidade Federal do Piauí) e é doutoranda em Educação (Universidade Federal de Uberlândia). É professora/pesquisadora da Universidade Federal do Piauí. Tem experiência na área de educação, tanto na docência quanto na gestão, com pesquisa nos seguintes temas: Educação Infantil, Educação do Campo, Formação de Professores, Saberes e Práticas Docentes. Bolsista CAPES.

Antonia Edna Brito é graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Piauí, tem Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Piauí e Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É professora/pesquisadora da Universidade Federal do Piauí. Tem experiência na área da Educação Básica e do Ensino Superior, com pesquisa nos seguintes temas: Alfabetização, Educação Infantil, Ensino, Formação de professores, Saberes Docentes e Prática Educativa.

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