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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.24 no.50 Campo Grande jan./abr 2019  Epub 07-Maio-2019

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v24i50.1172 

Artigos

O poder da branquitude e racismo institucional: percepções sobre o acesso à diplomacia brasileira

The power of whiteness and institutional racism: perceptions on access to brazilian diplomacy

El poder de la branquitud y el racismo institucional: percepciones sobre el acceso a la diplomacia brasileña

Ahyas Siss1 

Viviane da Silva Almeida1 

1Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil.


Resumo:

O Instituto Rio Branco (IRBr), única instituição oficial de formação de diplomatas do Ministério da Relações Exteriores (MRE) brasileiro, tem registrado uma sub-representação de afro-brasileiros e de afro-brasileiras na sua carreira diplomática. Nesse sentido, Oliveira (2011) postula em seus estudos que, até 2010, apenas 0,07% dos diplomatas do IRBr eram afro-brasileiro(a)s, dado este que comprova essa sub-representação de membros desse grupo étnico-racial naquela carreira. Nesse contexto, este artigo, como parte de uma pesquisa mais ampla, buscou investigar os critérios de seleção ao cargo de diplomata, se tais critérios estão permeados pelos racismos pessoal e institucional mediados pela atualização da agenda eugênica no Brasil, bem como as impressões que os diplomatas tanto afro-brasileiros e brancos que ingressam no IRBr possuem sobre a carreira. Numa perspectiva sócio-histórica, foram levantados os enfrentamentos pelos quais os diplomatas tanto afro-brasileiros como brancos têm vivido em suas trajetórias. Trata-se de uma pesquisa fenomenológica, de análise qualitativa, na qual foram utilizados, como procedimentos metodológicos, a análise bibliográfica, a documental, entrevista semiestruturada, questionário aberto e a Análise Crítica do Discurso (ACD). A análise está elucidada nas impressões dos diplomatas sobre a carreira, de suas concepções sobre o racismo institucional e nas experiências que os diplomatas afro-brasileiros têm ao ingressarem na diplomacia.

Palavras-chave: racismo; racismo institucional; afro-brasileiros

Abstract:

The Rio Branco Institute (IRBr), the only official institution for training diplomats of the Brazilian Ministry of Foreign Affairs (MRE), has registered a sub-representation of Afro-Brazilians and Afro-Brazilians in their diplomatic career. In this sense, Oliveira (2011) postulates in his studies that, until 2010, only 0.07% of IRBr’s diplomats were Afro-Brazilian, as this proves this under-representation of members of this ethnic-racial group in that career. In this context, this article, as part of a wider research, sought to investigate the selection criteria for the position of diplomat, if such criteria are permeated by personal and institutional racism mediated by the updating of the eugenic agenda in Brazil, as well as the impressions that diplomats both Afro-Brazilians and whites who enter the IRBr have on the career. It is a phenomenological research, of qualitative analysis, in which methodological procedures were used, the bibliographic analysis, the documentary, semi-structured interview, open questionnaire and the Critical Discourse Analysis (ACD). The analysis is elucidated in diplomats’ impressions of the career, their conceptions of institutional racism, and the experiences that Afro-Brazilian diplomats have in entering diplomacy.

Keywords: racism; institutional racism; Afro-Brazilians

Resumen:

El Instituto Rio Branco (IRBr), única institución oficial de formación de diplomáticos del Ministerio de Relaciones Exteriores (MRE) brasileño ha registrado una sub-representación de afrobrasileños y afrobrasileñas en su carrera diplomática. En este sentido, Oliveira (2011) postula en sus estudios que, hasta 2010, sólo el 0,07% de los diplomáticos del IRBr eran afro-brasileños, dado que demuestra esta subrepresentación de miembros de ese grupo étnico-racial en aquella, carrera. En este contexto este artículo, como parte de una investigación más amplia, buscó investigar los criterios de selección al cargo de diplomático, si tales criterios están impregnados por los racismos personal e institucional mediados por la actualización de la agenda eugenésica en Brasil, así como las impresiones que los diplomáticos tanto afro-brasileños y blancos que ingresan en el IRBr poseen sobre la carrera. Se trata de una investigación fenomenológica, de análisis cualitativo, en la cual se utilizaron como procedimientos metodológicos, el análisis bibliográfico, la documental, entrevista semiestructurada, cuestionario abierto y el Análisis Crítico del Discurso (ACD). El análisis está elucidado en las impresiones de los diplomáticos sobre la carrera, de sus concepciones sobre el racismo institucional y en las experiencias que los diplomáticos afro-brasileños tienen al ingresar en la diplomacia.

Palabras clave: racismo; racismo institucional; afro-brasileños

1 INTRODUÇÃO

Não se pode negar que as desigualdades social e étnico-racial operem como poderosos mecanismos de estratificação social em qualquer sociedade onde elas se manifestem. É certo, também, que a sociedade brasileira possui altos níveis de desigualdades, tanto sociais como étnico-raciais, de gênero e geracionais, por exemplos. Alguns estudiosos das relações étnico-raciais brasileiras acreditam que o preconceito de classe é mais importante que o preconceito étnico-racial. Outros tantos pesquisadores, porém, postulam ser o preconceito étnico-racial tão ou mais importante que a condição de classe e que esse preconceito e o racismo concorrem para produzir e reproduzir as condições de subalternização dos afro-brasileiros frente ao grupo étnico-racial branco, político e socialmente dominante.

Os resultados de estudos importantes nesse campo desenvolvidos por estudiosos como Azevedo (1953), Fernandes (1965), Harris (1964), Pierson (1945), Telles (2003) e Wagley (1952), por exemplo, apontam na direção de que a maioria da população brasileira, tanto branca como negra, é economicamente empobrecida. Não obstante, segundo esses mesmos estudiosos, as pessoas negras (afro-brasileiras) em processo de mobilidade vertical ascendente parecem sofrer menos preconceito do que os demais membros desse grupo étnico-racial.

Daí inferirem que o preconceito existente contra os negros está baseado muito mais em distinção de classe, que em marcadores étnico-raciais, e que a discriminação se dá porque a maioria do(a)s afro-brasileiro(a)s são pobres e portadores de baixo capital educacional e não por não pertencerem à parcela branca da população brasileira, e postulam que, com o aumento do capital educacional do(a)s afro-brasileiro(a)s e com o desenvolvimento da sociedade de classes no Brasil, o preconceito e as desigualdades étnico-raciais tenderiam a desaparecer. Aqui, as desigualdades étnico-raciais parecem estar radicalmente subsumidas às desigualdades sociais, sendo entendidas “como reflexos dos conflitos de classes e os preconceitos étnico-raciais considerados como atitudes sociais propagadas pela classe dominante, visando à divisão dos membros da classe dominada”, como nos afirma Munanga (1996, p.80).

Por outro lado, os resultados de pesquisas elaboradas mais recentemente por pesquisadores como Hasenbalg (1979), Hasenbalg e Silva (1992), Henriques (2001) e Munanga (1996; 1997; 1998; 2000; 2005) apontam em sentido diametralmente oposto, permitindo facilmente se constatar a existência de barreiras étnico-racialmente seletivas que obstaculizam os processos de implementação da cidadania do(a)s afro-brasileiro(a)s, bem como de mobilidade vertical ascendente para o(a)s membros desse grupo. Eles permitem, ainda, perceber-se que, mais do que um legado do passado, a discriminação racial constitui-se na principal característica da sociedade brasileira do período pós-abolição, produzindo e reproduzindo desiguais oportunidades de realizações sociais para brancos e afro-brasileiro(a)s.

Os resultados desses estudos mais recentes permitem, também, perceber a variável raça, enquanto atributo ideologicamente construído, operando como “um princípio racial classificatório”, sobre o qual as desigualdades são produzidas e reproduzidas, de modo ininterrupto. Na perspectiva dessas pesquisas mais atuais, o papel desempenhado pela variável educação nos processos de implementação da cidadania do(a)s afro-brasileiro(a)s reveste-se de fundamental importância, por guardar uma estreita relação com a inserção de membros desse grupo étnico-racial nos vários níveis ocupacionais e de renda no mercado de trabalho, ou seja,

[...] entre os homens com quatro anos de educação ou menos, três quartos de não-brancos encontram-se em ocupações manuais não-qualificadas, ao passo que o mesmo ocorre com pouco mais da metade dos brancos. Inversamente, uma proporção considerável de brancos pouco instruídos encontra-se em ocupações manuais qualificadas (37%) e não-manuais (11%) ao passo que nenhum não-branco de pouca instrução alcança ocupações não-manuais e apenas 26% encontra-se em empregos manuais qualificados. [...] Apenas 14% de não-brancos com cinco a nove anos de educação alcançam posições não-manuais em comparação a 30% dos brancos. (HASENBALG, 1979, p. 21).

O supremacismo branco no Brasil, segundo Abdias do Nascimento (1982), criou instrumentos de dominação racial muito sutis e sofisticados para mascarar um processo genocida. O mais efetivo deles se constituiu na pseudo “democracia racial” (SISS, 2003), a qual parte de uma perspectiva sustentada em que a sociedade brasileira estaria isenta de conflitos raciais. Nessa perspectiva, Freyre (1987), por exemplo, afirmou que os brasileiros resolveram sua questão racial porque os colonizadores lusitanos efetivaram a miscigenação, portanto, dessa forma, o embasamento da pseudodemocracia racial está lastreada numa dupla mestiçagem: a biológica e a cultural.

São fartos os dados dos principais institutos de pesquisa reconhecidos nacionalmente, como IBGE (1998) ou IPEA (2000), mostrando que entre os pobres, os afro-brasileiros são a esmagadora maioria - de cada 10 pobres 7 são negros. Negros são maioria entre os pobres por serem discriminados enquanto negros. (BENTO, 2005, p. 168, grifo no original).

É notória a presença de um tipo específico de atuação racista, nas instituições oficiais, conhecida como o racismo institucional2 ou estrutural, que tem se mostrado como uma forma de induzir, manter e condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas públicas ao atuar também nas instituições privadas, produzindo e reproduzindo a hierarquia racial “proposital”, mas muitas vezes subjetiva para excluir aqueles que estão fora da supremacia branca. Sabemos que

[...] a democratização da sociedade, através da eliminação dos privilégios criados e mantidos pelo regime colonial, foi eficaz na criação rápida de quadros nativos capazes de governar essas sociedades, a ponto de fazer com que praticamente todos os países africanos e asiáticos adotassem medidas similares. Mais tarde, os países do Caribe e do Pacífico Sul, que se tornaram independentes nas décadas de 60 e 70, também se valeram dessa estratégia de empoderamento. Na fase após a independência, as políticas de ação afirmativa igualmente serviram para resolver problemas de desigualdades internas, historicamente herdadas, pelos países recém independentes. (MOORE, 2005, p. 311).

O Instituto Rio Branco (IRBr), como única instituição oficial de formação de diplomatas do Ministério da Relações Exteriores (MRE), tem registrado uma sub-representação de afro-brasileiros na carreira diplomática. Nesse sentido, A. P. Oliveira (2011) declara por seus estudos que, até 2010, apenas 0,07% dos diplomatas do IRBr eram afro-brasileiros, dado este que comprova essa sub-representação.

Em nosso país, para ser diplomata, atualmente, além dos pré-requisitos comuns aos concursos federais, é necessário apresentar diploma, devidamente registrado, de conclusão de curso de graduação de nível superior, emitido por instituição de ensino credenciada pelo Ministério da Educação (MEC).

No espaço educacional, percebemos o quanto ainda são presentes práticas institucionais racistas na educação básica. Esse racismo perverso vai permeando-se de tal forma que muitos jovens negros sequer têm apoio para conseguir manter-se na universidade e quiçá aspirar a ter um cargo considerado de alto escalão como é o diplomata. Bourdieu e Passeron (2014, p. 11) mostram bem essa realidade “[...] a escola, da Educação Infantil ao Ensino Superior, atua na reprodução das estruturas socais por meio da produção de estruturas mentais que lhes são correspondentes, fazendo perdurar uma lógica de castas sob uma fachada de racionalidade meritocrática”.

O sistema educacional é um dos campos no qual são reproduzidos muitos dos estereótipos de gênero existentes em nossa sociedade como o caso da questão racial, que ainda se constitui uma esfera marcada por fortíssimas desigualdades no acesso e na permanência dos indivíduos dos diferentes grupos populacionais. Esta é uma característica muito importante na medida em que o acesso à escolaridade é uma das formas por excelência de ascensão social e de potencialização do acesso a muitos bens produzidos pela sociedade. Nesse sentido, os indicadores educacionais se convertem em um importante instrumento de percepção de quão desiguais são as possibilidades de construção de oportunidades sociais para os diferentes grupos sociais (IPEA, 2008, p. 5). Souza (2006), ao analisar a carreira de diplomata, realiza uma excelente constatação. Ele explicita em seu artigo que

[...] a figura do Barão do Rio Branco é o emblema da comunidade moral dos diplomatas. Sendo o responsável pelos acordos de negociação das últimas fronteiras e por dar forma à diplomacia brasileira, ele é a solução simbólica que vincula duas totalidades, a Casa e a Nação. (SOUZA, 2006, p. 810-11).

No Brasil, o acesso a cargos diplomáticos foi dificultado, principalmente para aqueles que historicamente não tiveram a oportunidade de estar representados nas relações diplomáticas por conta de suas identidades de raça, classe e de gênero. Nesse contexto, este artigo, como parte de uma pesquisa mais ampla, buscou investigar os critérios de seleção ao cargo de diplomata e quais as impressões que os diplomatas tanto afro-brasileiros e brancos que ingressam no IRBr possuem sobre a carreira. Foi pertinente ampliar a discussão, pois a pesquisa tem relevância acadêmica, primeiro por utilizar novos caminhos para investigar o racismo institucional nas instituições sociais e segundo, pela relevância política e social para os movimentos negros brasileiros que vêm lutando para que o quadro da sub-representação dos afro-brasileiros nas instituições sociais brasileiras seja alterado.

O universo da pesquisa foi o IRBr, buscávamos analisar as categorias de raça e gênero. Nesse universo, tinha o contato inicial de um diplomata negro e um diplomata branco, do MRE, e, diante da dificuldade de selecionar os demais participantes da pesquisa, optamos pela técnica chamada de snowball, utilizada por Valentim (2012). A autora aponta que

[...] a técnica snowball utiliza “cadeias de referências” como vias de acesso privilegiadas quando se estudam populações ocultas, de difícil acesso ou que tem preocupações com a privacidade, entretanto, ninguém na esfera social é totalmente inacessível. (VALENTIM, 2012, p. 52, grifo da autora).

A preocupação com a privacidade foi uma característica latente dos primeiros participantes e, diante de tal preocupação, preferimos pesquisar pautados no anonimato. Na impossibilidade de realizar a pesquisa com todo o IRBr, trabalhamos com um recorte amostral, realizado por meio da técnica snowball.

Utilizamos como procedimentos metodológicos a análise bibliográfica, pesquisa documental materializada em editais e entrevista semiestruturada e aplicamos também elementos da análise de discurso com o apoio de Rojo (2004), que objetiva a seleção de elementos linguísticos ou discursivos, como o registro, o dialeto social, o gênero, e de como esses discursos se regulam socialmente. Ao assumir esse debate, fez-se necessária uma abertura e conhecimento sobre o conceito de raça3 e o reconhecimento das desigualdades as quais os afro-brasileiros4 têm sofrido no Brasil. Ao desvelar os discursos, as categorias raça, racismo, racismo institucional, branquitude, poder, relações raciais, afro-brasileiros, precisaram ser aprofundadas.

Como a maior parte dos egressos(as) entrevistados(as) já terminou o curso do referido Instituto, o Palácio do Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores, foi o local em que estivemos em contato com 80% dos(as) entrevistados(as).

2 O DESVELAMENTO DA PESQUISA

No início de 2014, no Rio de Janeiro, conheci pessoalmente Ibsen e tivemos um debate relevante sobre o Programa de Ação Afirmativa do IRBr, mas a entrevista foi postergada. Nesse mesmo período, consegui contato telefônico com João que se disponibilizou a participar enquanto “não afirmativo”5.

Após contatar estes dois diplomatas, tentei alguns contatos telefônicos e, ao falar com um dos que se propuseram a conceder-me o depoimento somente por meio do questionário, que eu estava com viagem agendada a Brasília para entrevistar outro diplomata, o posicionamento dele mudou. Viajei à Brasília e consegui dez entrevistas, que ocorreram em outubro de 2015.

A maior parte da coleta de dados com os sujeitos desta pesquisa ocorreu no Palácio do Itamaraty, sede do MRE, na Asa Sul, em Brasília, Distrito Federal. As outras aconteceram em outros locais escolhidos pelos entrevistados, no entanto, próximos à sede do MRE.

Os sujeitos da pesquisa, pautados no anonimato, preocupação muito latente deles, estão aqui identificados por pseudônimo, escolhido por eles.

Em relação aos cursos preparatórios, Ana relata:

Fiz um curso de preparação. Eu terminei a minha dissertação de mestrado, e aí, exatamente no mesmo mês que eu defendi, eu fui e me matriculei nesse curso, que é um curso bastante popular entre as pessoas que fazem esse concurso... Isso, faltava uns seis meses pra prova, eu fiz um estudo super intensivo, mas nessa primeira prova eu não passei, no TPS, e aí eu continuei estudando, só que no ano seguinte, no ano que eu passei, o concurso atrasou, então, quando era para ter saído o edital, em janeiro/fevereiro/março, o edital só saiu em junho, e aí a gente só foi assumir no final do ano. [...] Ele até oferece umas opções de bolsa e tal, mas assim, é um curso bastante caro, você tem que ter um dinheiro, um colchão de reserva, para poder bancar esse estudo. (Ana, branca6).

Já Isis, por sua vez, acredita ser possível passar no concurso para o cargo de diplomata sem uma preparação específica, somente com a formação em nível superior, formação exigida ao cargo, contudo, mesmo tendo casos na diplomacia, isso é muito raro. Ela diz:

É possível, porque há pessoas nessa situação. Agora, é raro, mas é possível. Aí sim entram as questões individuais, uma pessoa que vem de uma boa formação, básica, de ensino fundamental e médio, e que faz um curso, e aí sim, eu acho que um curso, principalmente nas áreas que são mais afins, da diplomacia, e que é muito curioso, lê muito, se informa bastante e acompanha essa área, eu acho que sim. Tem condição, mas é raro, é raro. (Isis, negra7).

João, outro sujeito entrevistado dessa pesquisa, em relação à preparação para o concurso, ao ser questionado se fez algum curso preparatório ou aulas particulares, ele teve posicionamento que muito diferiu dos outros pesquisados, diz que “não fez curso preparatório, que estudou ‘sozinho’”, afirma que

Eu me arrependo, porque eu acho que se tivesse feito, eu tivesse passado antes, mas... É que eu sempre gostei muito de ler e a leitura aqui... E o vestibular aqui não é como, sei lá... IME e mesmo o congresso que você tem matérias específicas, aqui eu acho que se você tiver uma boa carga de leitura, História e tal... aqui você tem: veterinário, psicólogo... Eu entrei aqui porque eu tive uma vida fácil, que me permitiu... por exemplo, eu sempre gostei muito de ler, mas se você tem que sustentar mulher e filho, daí você casa, tem tua casa, tenho filho... Não dá... É como eu te disse, não é uma questão... Aí é que eu te digo, se você é branco, você também não vai entrar, por cotas... Vai ser difícil. (João, branco, grifo nosso).

No momento em que João disse sobre ter tido uma “vida fácil” pensei: como é a vida dos 51,1% dos negros8 brasileiros? Se ter uma vida fácil auxiliou João a ingressar na diplomacia, àqueles que teriam uma vida dificultada seria imposta a falta de facilidade para aspirar a ser diplomata. Seria então uma carreira de elite? A carreira seria para aqueles que têm a oportunidade de estudar, ler, capacitar-se desde cedo. O relato de João muito se assemelha ao que Schucman (2012) aponta sobre a branquitude. A autora salienta em sua pesquisa que

[...] a branquitude, é entendida como uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo. (SCHUCMAN, 2012, p. 23).

Segundo o próprio MRE, eles não têm dados concretos sobre o quantitativo de negros diplomatas. A informação coletada foi a seguinte:

[...] este Ministério informa que desde 2002, quando foi criado o Programa de Ação Afirmativa do Ministério das Relações Exteriores, ingressaram na Carreira de Diplomata 21 candidatos que se autodeclararam afrodescendentes e se beneficiaram de bolsas concedidas pelo Programa. O registro disponível sobre origem racial ou étnica limita-se aos funcionários que fizeram parte do referido Programa. (BRASIL, 2015).

Os diplomatas não pensam parecido, ao contrário de João, Black 10, outro de nossos entrevistados, destaca um outro discurso sobre a preparação ao concurso de admissão,

Fiz a faculdade trabalhando, desde o primeiro dia de faculdade trabalhava na antiga escola técnica federal do Estado, que hoje é um Instituto Federal de Educação, uma coisa assim... trabalhei durante todos os 4 anos. Mas eu sempre fui, como eu falei, muito afeito por estudar, então era assim, tipo, eu chegava do trabalho, ficava estudando, até de madrugada, aquela coisa que o negro tem que estudar 3 vezes mais porque toda a estrutura não é a normal, ideal, para o processo educativo [...] Mas mesmo assim, precisei de curso preparatório. (Black 10, pardo).

Maria do Carmo, ao ser entrevistada para este estudo, também fala sobre ter que estudar mais por ser negra quando diz que

Meus pais sempre foram pobres, mas conseguiram uma pequena ascensão social durante a minha infância. Minha família é de classe média baixa. Meus pais e minhas avós sempre incentivaram a mim e a minha irmã a estudar. Eles sempre falavam que somente estudando conseguiríamos bons empregos e conquistaríamos a nossa independência. Minha avó paterna e minha mãe iam além, dizendo que não podíamos ser medianas, que tínhamos de ter um desempenho melhor do que o dos nossos colegas brancos. Elas sempre diziam que, num processo seletivo para emprego, nós, negras, sempre começávamos atrás dos brancos e que tínhamos que ser muito, muito boas, para nos realizarmos profissionalmente. (Maria do Carmo, negra, grifo nosso).

Os discursos desses diplomatas vão ao encontro de uma das conclusões do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que diz que “a desigualdade entre brancos, pretos e pardos se exprime também na observação do ‘empoderamento’, relacionado ao número de pessoas em posições privilegiadas na ocupação. Na categoria de empregadores, estão 6,1% dos brancos, 1,7% dos pretos e 2,8% dos pardos em 2009” (IBGE, 2010, p. 230). E também de Schucman (2012, p. 27), quando diz que,

[...] na sociedade brasileira, os indivíduos, querendo ou não, são classificados racialmente logo ao nascerem, nos classificados socialmente como brancos recaem atributos e significados positivos ligados à identidade racial à qual pertencem, tais como inteligência, beleza, educação, progresso etc. A concepção estética e subjetiva da branquitude é, dessa maneira, supervalorizada em relação às identidades raciais não-brancas, o que acarreta a ideia de que a superioridade constitui um dos traços característicos da branquitude.

A autora nos mostra como, na estrutura de nossa sociedade, a concepção de que o branco é melhor vem subjetivamente enraizada pela nossa história e que muitos têm perpetuado essa prática, incutindo no imaginário e na identidade dos não-brancos a naturalização de que sempre vai ser mais difícil para o negro. O que é natural ser mais difícil. E quando João diz que teve uma vida fácil, percebemos claramente esse discurso.

Em relação à preparação para o Concurso de Acesso à Carreira Diplomática (CACD), os sujeitos, por meio de suas falas, expressam que, de alguma forma, se faz necessária alguma preparação além da formação em nível superior. Mesmo diante dessa constatação, é possível encontrar alguém que não tenha realizado tal preparação, no entanto, como a entrevistada Isis disse, é muito raro. Ao trazer a análise da quantidade de anos de estudo, em comparação aos negros e aos brancos, que está explícita no Censo, temos os seguintes dados:

  1. A população branca de 15 anos ou mais de idade tem, em média, 8,4 anos de estudo em 2009, enquanto pretos e pardos têm, igualmente, 6,7 anos. Em 2009, os patamares são superiores aos de 1999 para todos os grupos, mas o nível atingido tanto pela população de cor preta quanto pela de cor parda, com relação aos anos de estudo, é atualmente inferior aquele alcançado pelos brancos em 1999, que era, em média, 7,0 anos de estudos.

  2. A proporção de estudantes de 18 a 24 anos de idade que cursam o ensino superior também mostra uma situação em 2009 inferior para os pretos e para os pardos em relação à situação de brancos em 1999. Enquanto cerca de 2/3, ou 62,6%, dos estudantes brancos estão nesse nível de ensino em 2009, os dados mostram que há menos de 1/3 para os outros dois grupos: 28,2% dos pretos e 31,8% dos pardos. Em 1999, eram 33,4% de brancos, contra 7,5% de pretos e 8,0% de pardos (IBGE, 2010, p. 227).

O acesso ao nível superior dos afro-brasileiros tem aumentado consideravelmente, como é demonstrado por meio dos dados do último Censo (IBGE, 2010), porém esse avanço ainda é lento se comparado aos brancos. Dessa forma, ainda que o acesso ao nível superior tenha sido democratizado pela reserva de vagas em uma grande parte das universidades públicas brasileiras, a permanência destes nas universidades ainda é um entrave. Valentim (2012, p. 252) nos mostra com nitidez que

[...] as ações afirmativas para os negros nas universidades fazem parte das chamadas políticas de reconhecimento da diferença, cujas demandas estão ligadas à representação, à cultura e à identidade dos grupos étnicos, raciais, sexuais, dentre outros. As demandas por reconhecimento vêm adquirindo maior relevância na arena política desde o fim do século XX. Todavia, as demandas por reconhecimento da diferença ocorrem em um mundo de desigualdade material acentuada, onde ainda faz muito sentido lutar por uma repartição menos desigual das riquezas sociais, isto é, por políticas de redistribuição.

O amparo familiar foi marcado como primordial aos indivíduos entrevistados pertencentes ao grupo étnico-racial branco. Em seus discursos, compreendemos como aponta Silva (1999) que, aparentemente os brancos possuem mais sucesso na conversão de investimentos educacionais em status ocupacional. Todavia devemos notar que isto pode estar enviesado por outros recursos familiares não-educacionais, como o histórico parental9 (SILVA, 1999). Esse histórico parental é sinalizado pelo discurso destes indivíduos que se apresentam em seguida,

Bem meu, pai me ajudou com apoio financeiro, pois eu estava desempregado na época, inclusive foi ele que me falou sobre esse concurso. (Hugo, branco).

Minha família sempre apoiou, de todas as formas, emocionalmente, financeiramente... porque para a grande parte das pessoas que optam por fazer esse concurso, isso implica você ter que parar a sua vida como um todo e não trabalhar, viver em função do concurso. Então, isso, na maior parte dos casos, significa que a pessoa precisa ter algum tipo de suporte financeiro, de família, para conseguir se dedicar 100%, porque hoje é um concurso que é considerado um dos mais difíceis do Brasil. Então, não significa que outras pessoas... até mesmo na minha turma tem pessoas que trabalhavam e conseguiram passar no concurso, mas são exemplos mais raros, pessoas que conseguem conciliar o trabalho com o estudo, em geral, essas pessoas demoram mais para passar também. [...] Então eu acho que você conciliar com o trabalho acaba atrasando um pouco. (Ana, branca).

A relação desse histórico parental abordado por Silva (1999), ao ser analisado o discurso dos sujeitos afro-brasileiros, vai ao encontro do que Bourdieu e Passeron (2014) chamaram de herança cultural. Segundo eles,

[...] a ação do privilégio é percebida, na maioria das vezes, somente sob suas formas mais brutais, recomendações ou relações, ajuda no trabalho escolar ou ensino suplementar, informação sobre o ensino e suas possibilidades. De fato, o essencial da herança cultural se transmite de maneira mais discreta e mais indireta e mesmo na ausência de todo o esforço metódico e de toda ação manifesta. Nos meios mais “cultos” é talvez menos necessário pregar a devoção à cultura ou tomar, deliberadamente, nas mãos a iniciação à prática cultural. Em oposição ao meio pequeno-burguês, no qual os pais não podem transmitir outra coisa, a maior parte do tempo, que a boa vontade cultural, as classes cultas arranjam iniciações difusas muito mais bem preparadas para suscitar, por uma espécie de persuasão clandestina, a adesão à cultura. (BOURDIEU; PASSERON, 2014, p. 37, grifo nosso).

Da mesma forma como percebemos relação estreita e presença desse histórico parental e herança cultural no grupo étnico-racial branco, notamos como os entrevistados afro-brasileiros expõem a relação e o apoio de suas famílias, foi essencial, mesmo que não entendessem o motivo de suas escolhas, como os relatos anteriores.

Minha mãe sempre foi, e aliás, isso é uma grande característica que eu sempre tive e herdei dela, a minha mãe sempre colocou: - o céu é o limite. Ela fez sacrifício, meu pai separou dela muito cedo, ela criou quatro filhos sozinha ela sempre dizia que a gente podia ser o quisesse, desde que a gente estudasse muito. Então isso sempre foi um bastião, mesmo quando eu perdi na penúltima vez, que eu fui até a última fase e perdi. Ela disse: - ah meu filho, não tem problema não, estuda mais que você vai passar... Ela não sabia, mas começava me dando estímulo. Então no ano que eu perdi eu não fui lá no Natal, no Réveillon, fiquei dia 25 de dezembro estudando, dia 31 de dezembro estudando, em pleno Rio de Janeiro, e mesmo assim ela dizia: - não tem problema não, Réveillon vai ter todo ano, Natal vai ter todo ano, ano que vem quando você passar, você vem. Sempre teve muito estímulo dos familiares, os 3 irmãos também, apesar de não entenderem muito, só a minha irmã é que consegue entender mais, muito bem o que era isso, mas sempre incentivavam. Sempre apoiaram porque sabiam que era uma coisa que eu queria. Era muito mais neste sentido. -Ah é uma coisa que ele quer, que ele vai ser feliz fazendo, então vamos apoiar e é só depende dele, basta que ele estude muito. (Black 10, pardo).

Como eu te falei, eu acho que eu decidi fazer o concurso, acho que num momento muito mais tarde do que o normal, e também pra mim foi um certo desvio de trajetória, eu estava fazendo uma coisa, e aí decidi mudar, e também fiquei muitos anos morando fora do Brasil, então eu já tinha saído de casa, e adquirido minha independência financeira há algum tempo, já fui casado e tudo mais. Então assim... As grandes decisões que eu tomei, a minha família, ela apoiou, até porque eu sempre fui muito voltado para os estudos, sabe? E os estudos realmente me levaram muito longe, em vários sentidos. [...] Conversei com minha mãe, conversei com meu pai, meu pai ainda era vivo na época. Da parte do meu pai, não houve apoio, assim, financeiro, da parte da minha mãe, assim, muito pouco, mas muito pouco mesmo, o que eu não queria fazer, eu não queria ficar na minha cidade natal, na casa dos meus pais, na casa da minha mãe, como estudante, pra esse concurso, dependendo diretamente dela, eu acho que isso não ia ser bom pra mim, então vim pra Brasília e também foi uma forma de eu me manter mais concentrado, sabe? E manter um foco no concurso. Eu acho que foi muito importante. E minha família sempre compreendeu isso, sempre viu, é o estudo dele, deixa ele lá, fazendo as coisas dele... Nesse sentido. (Ibsen, negro).

Conseguimos identificar, pelos relatos, como a família apoiou, de alguma forma os(as) diplomatas, mas ainda é perceptível a presença mais forte do histórico parental dos brancos, bastante relacionado ao poder da branquitude apontado por Bento (2005) e Schucman (2012).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na intencionalidade de analisar essas falas, trago à luz da discussão, J. L. L. Oliveira (2011, p. 12), que aponta que

[...] as explicações podem estar relacionadas com a estrutura histórico-social brasileira, com a formação da burocracia do Estado e com o sistema educacional ou pode ainda ter relação com o racismo não-declarado que serve de barreira velada para a ascensão de negros a esses citados cargos, bem como de explicação para obstarem políticas públicas reparadoras.

As vivências dos agentes diplomáticos entrevistados, em relação ao racismo no Brasil, também foram analisadas. No cerne dessa questão, precisamos relembrar o que Abdias do Nascimento (1982, p. 139) já dizia:

O branco que aportou no Novo Mundo trouxe consigo a bagagem milenar da civilização europeia. Não teve ele trezentos anos de escravidão semi-animalizadora. Trouxe os ensinamentos que a experiência civilizadora lhe dispôs, fundou o seu lar. Criou os organismos controladores da sociedade. Com o braço escravo e terra feraz, colheu as bases da nossa economia, ergueu cidades, extraiu ouro, abriu os caminhos de ferro e construiu esse grandioso patrimônio que representa a nossa pátria comum. Por isso, o orgulho advindo dessa superioridade consequente das circunstâncias, que não racial, gerou o preconceito.

Foucault (1996, p. 205), aponta que

[...] o racismo existia já há muito tempo. Eu acredito que, no entanto, funcionava em outra parte. O que permitiu o registro do racismo nos mecanismos do Estado foi justamente a emergência do biopoder. Este é o momento em que o racismo se insere como um mecanismo fundamental do poder e de forma a ser exercida nos Estados modernos. Isto faz com que o modo moderno de funcionamento dos Estados, até certo ponto, até certo limite e em certas condições, passando através das raças. (tradução nossa).

Sobre o biopoder que Foucault sinaliza, podemos compreender como aqueles que estão no poder fazem, por exemplo, com o simples fato de julgar o caráter, a índole (critérios tão subjetivos), simplesmente pela cor de sua pele, pelos traços fenotipicamente negros. López (2012) mostra que esse biopoder está relacionado a um campo formado relativamente por tentativas racionalizadas em média escala, na intervenção sobre características inerentes à existência do homem. Esse biopoder aparece como um controle social que se principia no corpo, podendo expressar-se na materialidade do poder nos corpos dos sujeitos (LÓPEZ, 2012).

Compreendemos o quanto os relatos evidenciam como a manifestação do racismo tem operado e, como bem falou Schucman (2012), o indivíduo tende a construir-se racista. Constatamos também que essa construção passa de como o branco obtém esse privilégio de sua branquitude sem preocupação alguma e o quanto o Estado brasileiro perpetuou práticas racistas excludentes (SISS, 2003). Ainda assim, uma boa parte dos brancos brasileiros se sente incomodada quando há mecanismos de reparação para que os negros consigam ser mais representados nos cargos considerados de alto escalão no país.

No Brasil, em relação à questão de raça, na construção da intitulada sociedade brasileira, a minoria colonizadora branca inculcou dogmas de superioridade sobre as populações não brancas (RAMOS, 1995).

Entendermos que as desigualdades étnico-racial, social e de gênero, dentre outras, operem como poderosos mecanismos de estratificação social em qualquer sociedade onde elas se manifestem (SISS, 2011), nos permite perceber que ainda há um longo caminho a percorrer na desconstrução dessas e de outras desigualdades. Na fala dos diplomatas, compreendemos que há aqueles que acreditam que o preconceito de classe é mais importante que o preconceito étnico-racial e se opõem, de forma veemente, a qualquer tipo de política de ação afirmativa, citando inclusive que exista um “classismo” na seleção ao cargo. Porém há aqueles que demonstraram ser o preconceito étnico-racial mais importante que a condição de classe e que esse preconceito e o racismo concorrem para produzir e reproduzir as condições de subalternização dos afro-brasileiros frente ao grupo étnico-racial branco, político e socialmente dominante.

Percebemos, pelos relatos dos diplomatas entrevistados, o quão difícil é o processo de democratização e de desconstrução do racismo institucional, ainda bastante presente no acesso à carreira diplomática no Brasil. A análise dos dados deste estudo aponta na direção da existência de uma parcela de diplomatas que se incomoda com a possibilidade de ingresso neste “Mundo de Rio Branco” de pessoas que não seriam capazes de adaptar-se à carreira diplomática.

Compreendemos, pela pesquisa empírica, que o ethos10 que opera sobre o diplomata, está enraizado numa perspectiva de status privilegiado na sociedade brasileira, carregado de glamour; a fala de uma das entrevistadas traduz isto, quando expõe que o diplomata possui

[...] uma formação que, é aperfeiçoada no IRBr e que caminha para uma certa harmonização, digamos assim, de conhecimentos, de conduta, que transforma o diplomata num elemento que é muito parecido uns com os outros, ou seja, cria-se uma classe, uma categoria, que tem muitos pontos em comum, que fala parecido, que se comporta parecido, que se veste parecido, mas que dialoga pouco com a sociedade. (Isis, negra).

Assim, nesse cenário, eles teriam que adequar-se ao “Mundo de Rio Branco” apontado por Moura (2007), não só quando ingressam no Instituto, mas antes, quando inicia a sua preparação. Percebemos que há uma corrente para que o negro que ingresse na carreira, tenha uma conduta parecida com aqueles que já estão no poder, os brancos. Isso não quer dizer que todos ajam dessa forma, porém é uma característica presente nos discursos.

Na chamada ordem social livre, ou seja, no regime republicano, este país criou instituições cujos imaginário e práticas estão assentadas em locus racistas, como bem apontam os estudos de Florestan Fernandes (1972), de Carlos Hasenbalg (1979), Andrews (1998) e Siss e Fernandes (2016), dentre tanto outros. O que surpreende é que esse tipo de racismo já começa a ser identificado, como demonstram as análises dos discursos dos/das entrevistados/das, o que pode possibilitar seu enfrentamento, no âmbito daquela Instituição. Entretanto a simples identificação desse tipo de racismo não impede que a agenda eugênica brasileira continue a se atualizar frente às resistências afro-brasileiras e a oferecer suporte ativo à atuação das instituições sociais brasileiras, como o apontam os resultados da análise de dados coletados nesta pesquisa. O enfrentamento da ação e da atualização de tal agenda exige que políticas institucionais de combate aos racismos pessoal e institucional, ou estrutural sejam elaboradas e implantadas pelo Estado brasileiro em todas as suas instituições.

2 Angela Pace (2015) pontua que “O conceito de racismo institucional foi utilizado pela primeira vez nos Estados Unidos, na década de 1960, por ativistas do grupo Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton (1967), que o definiram quando se referiram ao modo em que se manifesta o racismo nas estruturas de organização daquela sociedade e nas suas instituições. Para esses autores, “trata-se da falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica”.

3Para Siss (2003) a categoria raça deve ser percebida como mecanismo de estratificação social que opera fundamentado na percepção da diversidade fenotípica, como por exemplo, cor da pele, textura de cabelo e se constitui como um mecanismo importante e poderosíssimo determinante de estratificação social. Nessa perspectiva, a categoria raça aqui se distancia de qualquer filiação a determinismos biológicos, ao mesmo tempo em que rompe com reducionismos simplistas de classe, os quais concebem a raça como um mero epifenômeno.

4Ainda Siss (2003, p. 21) conceitua o termo afro-brasileiro, que é utilizado parar designar os cidadãos descendentes de africanos nascidos no Brasil, filhos da diáspora africana. Ao mesmo tempo em que remete a um movimento de identificação étnica com os nascidos na diáspora africana de outros lugares. Ele deve ser compreendido ainda, no sentido que a ele é dado pelo Movimento Negro Nacional.

5O entrevistado utilizou este termo para afirmar que não havia participado de ação afirmativa alguma.

6Neste ponto expomos o termo que os próprios entrevistados utilizaram ao serem perguntados sobre qual grupo étnico-racial declaravam seu pertencimento. Do ponto de vista dos pesquisadores, excetuando as duas diplomatas que responderam ao questionário, com as quais não tivemos o contato pessoal, os oito entrevistados pessoalmente tiveram declaração coerente relacionada a elementos fenotípicos, como textura do cabelo, forma do nariz e, sobretudo, cor da pele, como Oracy Nogueira reforçou, que são fatores que condicionam ou impedem mobilidades ao negro brasileiro que, no Brasil, seria o que ele nomeou de “preconceito de marca”. (NOGUEIRA, 1995).

7Idem.

8Nesse artigo as categorias negros e afro-brasileiros serão equivalentemente utilizadas.

9Segundo Nelson do Valle Silva, o histórico parental é em grande parte responsável pelo nível educacional. Ainda mais importante, ele afeta o nível de renda de modo direto, o que indica a importância de outros recursos familiares não-escolares (isto é, não expresso apenas pelo número de anos de escolaridade completa) na determinação das consequências econômicas. Estes outros recursos familiares podem incluir fatores como níveis de habilidade maiores, melhor posicionamento de redes sociais ou herança direta de propriedade, mas o histórico parental também pode substituir a qualidade da escolaridade, um efeito e pode ir além da quantidade de escolaridade (SILVA, 1999, p. 207).

10Ethos aqui, segundo Moura (2007), assume o caráter normativo que a “casa” impõe.

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Recebido: Julho de 2018; Aceito: Novembro de 2018

Ahyas Siss: Pós-doutor em Antropologia Social (UFRRJ), Doutor em Educação (UFF), Professor/Pesquisador do PPGEduc/UFRRJ/Mestrado e Doutorado em Educação - Departamento Educação e Sociedade (IM/DES). Líder do Grupo de Pesquisa Educação Superior e Relações Étnico-Raciais (GPESURER). Coordenador do Observatório de Ações Afirmativas do Sudeste (OPAAS - http://r1.ufrrj.br/opaa/pt/). E-mail: ahyassiss@gmail.com

Viviane da Silva Almeida: Doutoranda em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) na linha de pesquisa “Educação e diversidades étnico-raciais”. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Educação Superior e Relações Étnico-Raciais (GPESURER). E-mail: 1981almeida@gmail.com

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