1 INTRODUÇÃO
Antes de inserirmos o leitor nos motivos que justificam essa produção acadêmica, abordaremos o objetivo deste texto. O artigo que segue tem o intuito de propor uma reflexão sobre a formação dos professores e apresentar uma proposta de iniciação à/de leitura para crianças, leitura essa de caráter medieval.
Este texto foi pensado a partir de um estudo realizado anteriormente. Em nossa dissertação, tratamos de três aspectos da atuação do Rei D. Dinis (1261-1325). No primeiro deles, analisamos, brevemente, sua vida e formação; no segundo capítulo, tratamos da universidade e da importância da iniciativa do rei em criar essa instituição como um dos maiores feitos de seu governo e como marco no desenvolvimento da cultura medieval portuguesa, já que foi a primeira universidade em Portugal. Por fim, elaboramos um terceiro capítulo explicitando os efeitos da educação que D. Dinis havia recebido e a grande influência que seu avô, Dom Afonso X (amante da poesia), exerceu em sua vida.
Ao conhecermos a história da poesia medieval, vimos que o período em que D. Dinis reinou era o que se costuma denominar de renascimento cultural português, do qual a poesia e os jograis constituíram-se partes fundamentais.
Nossa intenção com a dissertação foi conhecer e analisar o conteúdo das poesias escritas pelo rei, conhecido como ‘rei trovador’, alcunha que recebeu devido às suas inúmeras composições e grande apreço pela cultura dos jograis (SPINA, 1991). Além disso, patrocinou parte dos trovadores de seu tempo e bastante respeitado em sua época pela sua cultura. D. Dinis foi considerado, em seu tempo, como um rei culto2.
Segundo Martins:
D. Dinis, sensível e culto lido em poetas e romances, tinha matéria para cantar; e sabia cantar.
Por isso, cantou.
E cantou nessa língua portuguesa, com cheiro e sabor silvestre, servindo-a, como servira, ao ordenar que nela se escrevessem os processos judiciais, em vez de se utilizar o latim. Como a servira, que na língua é um dos mais poderosos instrumentos de cultura, quando, em 1 de março de 1290, se fundara a Universidade de Lisboa, a que dera os mestres mais insignes e os privilégios mais invejados. Como se servira, no momento em que mandara traduzir para o nosso ainda pobre léxico as mais importantes obras do tempo. (MARTINS, 2010, p. 34).
Nossos estudos sobre a poesia medieval, por mais que tenham sido feitos no terceiro capítulo da dissertação, tiveram seus limites estabelecidos pelo tempo e recorte do tema. No entanto compreendemos que um trabalho de formação deve sempre nos desafiar a relermos e reelaborarmos o escrito anterior. Assim, este artigo vem nos guiar e mostrar que é mais uma porta que se abre para o conhecimento da leitura de um tempo cultural presente na formação da língua portuguesa e que se constitui numa tradição, até os dias atuais, seja na memória e herança do povo português, seja nas cantigas que adornam o aspecto social da vida.
Todavia alertamos que não pretendemos aqui sugerir que o professor/pedagogo deva ser um poeta ou tenha uma profunda formação literária, mas indicamos a necessidade de que esse formador tenha, em sua base, conhecimento sobre a construção de sua própria língua, em todos os aspectos ‘possíveis’3, já que sua primeira função é alfabetizar; portanto, que sua formação o torne apto para semelhante papel.
Ao ter um primeiro contato com o português arcaico, percebe-se um universo linguístico a conhecer. Nossa proposta, ao sugerir o acesso a esse gênero literário, se atribui ao professor, pois este detém a capacidade cognitiva desenvolvida para aprender a leitura da língua portuguesa por meio da cantiga medieval. No entanto não sugerimos a abordagem desse gênero em sala de aula, aos seus alunos. E sim, ressaltamos que seja de ampla atuação um conhecimento linguístico, técnico e cultural ao qual, no processo de compreender a sua raiz linguística, o profissional se depara com as múltiplas dificuldades em que a criança se percebe na alfabetização.
Explicitamos melhor essa relação de aprendizagem por meio de aproximações ao longo do texto, em consonância com as leituras que realizamos sobre a necessidade de estudarmos história, história da educação e, em especial, história medieval.
Além do conhecimento que nos é caro sobre a história que fundamenta e nos situa em nossa área de conhecimento e atuação, também expomos nossas reflexões sobre a importância da literatura na formação do professor. A literatura tem sido o maior meio de comunicação e formação para as crianças no processo de sua educação formal. A fantasia que a envolve e a maneira, muitas vezes fantástica ou subliminar, de lidar com questões complexas de moral e ética, chegam até às crianças em uma linguagem muito mais eficaz do que uma conversa severa sobre sua conduta.
2 A LITERATURA E O FORMADOR NAS QUESTÕES SOCIOEDUCACIONAIS
Para além dos efeitos que a literatura provoca em aspectos emocionais e cognitivos, a partir do momento em que nos envolvemos com o conhecimento literário clássico, percebemos o quanto ele é fundamental na formação do professor, pois o torna conhecedor de um todo abrangente da origem de sua profissão.
Ao lado desse conhecimento dos clássicos, precisamos considerar a relevância que os livros infantis, filmes e jogos medievais infanto-juvenis,passaram a ocupar na formação da criança e, por conseguinte, necessários à formação do professor. Sobre isso devemos nos atentar para a quantidade de incentivos nas contações de histórias e na inserção de leitura infantil, seja com projetos, instituições governamentais ou grupos privados que bombardeiam de ofertas nos meios midiáticos.
Certamente, um professor que atua em sala de aula não tem o ‘dever’ de responder a todos esses aspectos formativos, pois ele é um dos personagens que contribuem para a formação da criança. Contudo o docente é o ponto de referência constante, em termos de educação formal do indivíduo durante um longo período. Atualmente, considera-se a figura docente como o elemento de maior influência no desenvolvimento de determinadas habilidades sociais e de aprendizagem cognitiva.
Nesse sentido, também aproveitamos para abordar um dos graves problemas que nossa sociedade encara: a dificuldade de erradicar o analfabetismo, mesmo na fase da alfabetização. Evidentemente, nosso artigo não pretende ser um apanhado de temas que sejam vinculados ao nosso, nem mesmo temos a intenção de adentrar no campo dos pesquisadores desse tema. A nossa abordagem diz respeito a este público que está sendo formado em escolas públicas ou privadas do nosso país. Requer, por isso, nossa menção ao abordarmos uma proposta de formação dos professores que atuam nas séries iniciais e também sob a perspectiva da formação da criança a partir de um material literário, quando inserido na formação de professores destinados à alfabetização, aos quais uma das principais funções seria promover a alfabetização e o letramento das crianças.
Não generalizamos, nem criticamos os profissionais que, em uma árdua tarefa, se empenham na sua tarefa, enfrentando, na maioria das vezes, aspectos que dificultam a sua atuação, como a falta de estrutura familiar, escolar, aspectos de defasagem (cognitiva, pedagógica e/ ou psicológica) causados por síndromes, enfermidades etc. Mas, não podemos deixar de assinalar: há também a falta de um processo mais rigoroso que forme o professor, programas de estágios mais adequados, remuneração correspondente a sua responsabilidade e insalubridade.
Outro elemento que tem ganhado atenção quando se trata da atuação profissional é a própria falta de empatia com a profissão, que resulta, não só na pedagogia, mas em qualquer profissão, em pessoas despropositadas. Não atribuímos culpabilidades, pois sabemos que o processo seletivo e formativo para se tornar um professor da educação básica atrai, em grande escala, esse perfil que se descobre descontente no desenrolar profissão.
Assim, reconhecendo essas variáveis do mundo educacional, nosso intuito é apresentar uma finalidade prática de nossa pesquisa em nível de mestrado e, com ela, uma possibilidade de inserir a poesia medieval como material adaptado, o que chamamos de releitura desse conteúdo e forma, e de inseri-lo na leitura e universo literário infantil.
Introduzido e justificado nosso objetivo, partimos para contexto e conceito da poesia e cantigas medievais portuguesas do século XIV.
3 AS CANTIGAS NO CENÁRIO MEDIEVAL
Anteriormente ao reinado de D. Dinis, a literatura no Ocidente Peninsular sofreu uma decadência e escassez devido às incursões normandas na região. Quando ‘portucalenses’ retomam o domínio desses territórios, ela volta a circular ainda que timidamente.
Os saques e devastações dos Normandos, as guerras e depredações árabes, detiveram por algum tempo esta crescente expansão intelectual e artística na orla ocidental da Península, mas no século XII, o pequeno núcleo populacional de Entre-Douro-e-Minho alcança o domínio livre do seu destino e retoma o fio da velha tradição cultural portucalense. Todavia, este começo, tão modesto e simples, será o ponto de partida de uma das mais antigas literaturas latinas, a literatura portuguesa, cuja história se vai sumariar. (RAMOS, 1967, p. 23).
Segundo Ramos, a cultura jogralesca não surge com o reinado Afonsino, nem mesmo com D. Dinis, mas se destaca nesse período por renascer com tamanha força na qual o rei impulsionou seu aprimoramento, construção linguística e estrutural.
Essa construção da língua e ampliação da cultural respaldavam-se nas instituições vigentes da época, regentes, diga-se, formadoras, a igreja, em primeiro lugar, e, depois, a universidade, criada pela força e atuação dos mosteiros. Estes últimos são extremamente importantes por terem sido os primeiros a preservarem o conhecimento da época, ao se dedicaram à cópia e conservação dos manuscritos.
Anteriormente à Universidade, vemos que eram os mosteiros que conservavam e difundiam a educação porque tinham tempo e as condições materiais de subsistência necessárias para tal, mas também por saberem o quanto era importante para a humanidade esse conhecimento.
Por toda a terra Entre-Douro-e-Minho, os monges beneditinos de Cluny edificaram igrejas românicas, onde o santo patrono do templo era objeto de uma festa anual, a que os devotos da região acorriam em romaria. Na poesia dos <<Cancioneiros>> ficou um eco vivo dessas festas religiosas e até do comportamento dos romeiros que então as frequentavam. (RAMOS, 1967, p. 29).
A cultura ocidental se caracteriza pela intervenção das práticas do cristianismo - não há como separar, na Idade Média, a cultura religiosa da cultura popular4. Ainda que existissem movimentos por parte da Igreja para rejeitar o que considerava profano, o mesmo veículo que relatava o cotidiano vulgar retratava também as práticas ligadas à fé. O recurso era a poesia, que transmitia palavras que ensinavam a boa moral cristã e, ao mesmo tempo, expressavam os mais sinceros desejos do corpo e da alma, revelando a característica dos vícios humanos.
A literatura das cantigas servia, portanto, como uma forma de crônica dos fatos e dos pensamentos dos homens medievais. Inclinada a expor o pensamento, a cantiga mostrava como o homem considerava-se em seu meio social. Ao atribuir milagres aos homens e, por meio da poesia, divulgá-los, alguma intenção se tinha. Poderíamos pensar na formação do homem virtuoso, que tem fé num modelo ideal de comportamento, e se dedica às boas ações, que sempre se revertem ao próximo. Sem deixar de notar que assim também se promove a vaidade, pois a valorização que a pessoa, autora dos milagres, recebe a deixa incólume do que se considera ‘maus julgamentos’ - isso sendo quaisquer críticas ao seu comportamento como profano ou imoral.
A vida sempre ameaçada de morte, pestes, inimigos e, ainda por cima, um futuro que a Deus pertencia após a morte, da qual a Igreja fazia questão de anunciar como algo que poderia não ser nada bom, na maioria dos casos. Uma política de espírito, na qual se busca educação, arte, poesia (na maioria com versos doces ou alegorias amorosas) e, além disso, musicadas: isso deveria revigorar, acalentar e alegrar a mente dos homens, inclusive do próprio rei, que carregava sobre si todas as decisões, porque expressaria a cabeça (caput) do reino.
Esta literatura popular manteve-se por largo tempo sob a forma oral. Não é possível reconstituir essa poesia oral ou fazer dela uma ideia exacta. Há, porém, motivos para crer que, nessa lírica primitiva, tinham relevo certos cânticos em que as raparigas manifestavam saudades do noivo ausente, ou davam expressão a alegrias e queixumes de amor. (RAMOS, 1967, p. 32).
Nessa citação, podemos evidenciar que os contos medievais possuíam uma tradição oral, o que poderia resultar em várias versões sobre uma mesma história. Assim, ainda que nunca cheguemos a conhecer exatamente como eram as primeiras cantigas e quem as escreveu, o autor chama a atenção para o fato de termos versões bastante aproximadas de como seriam.
O que acontecia é que, por se tratar de cantos populares e a maior parte da população medieval ser analfabeta, a forma mais evidente e possível de transmitir um determinado costume era via oral.
Ramos aponta que essas cantigas foram sendo recebidas em cortes e castelos e a mistura entre o popular e o provençal era realizada pelos próprios trovadores, fosse nas apesentações na corte ou nos jograis nas praças.
A pessoa que recebia a incumbência de cantar e dançar era chamada de soldadeira e andava por diversas regiões com grupo de jograis ou sozinha a cantar e dançar. Três tipos de cânticos basicamente ganharam espaço no reino português entre os séculos XII e XIII. São eles: o canto litúrgico, os profanos e os amorosos.
Esta literatura popular manteve-se por largo tempo sob a forma oral. Não é possível reconstituir essa poesia oral ou fazer dela uma ideia exacta. Há, porém, motivos para crer que, nessa lírica primitiva, tinham relevo certos cânticos em que as raparigas manifestavam saudades do noivo ausente, ou davam expressão a alegrias e queixumes de amor. (RAMOS, 1967, p.32).
Apresentaremos um dos poemas que menciona, exatamente, essa situação, narra o lamento de uma donzela que lastima a ausência do noivo que não voltou, e ela se queixa de saudades e desespero por não ter notícias. Essa é uma poesia de autoria do Rei D. Dinis e foi uma das cantigas mais conhecidas e, inclusive, teve uma partitura5. A importância de ter sido transformada em música revela a validade do poema em tempo posterior à sua criação. Além disso, mostra que a poesia teve sua repercussão na cultura portuguesa como cantiga/canção. As estrofes são divididas como se fossem diálogos, pois a moça pergunta a uma flor, o pinho, (que pode ser referência aos pinheiros plantados pelo rei) se a árvore sabe se o amado está vivo e se vai voltar a vê-lo e o pinheiro responde.
Ai flores do verde pino
- Ai flores, ai flores do verde pio,
se sabedes novas do meu amigo?
ai, Deus e u é?
Ai, flores, do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
ai, Deus, e u é?
Se sabedes nova do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?
ai, Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado
aquel que mentiu do que mi á jurado?
Ai, Deus, e u é?
- Vós me perguntades polo voss’ amigo?
E eu bem vos digo que é sã’ e vivo:
ai, Deus e u é ?
Vós me perguntades polo voss’ amado?
E eu bem vos digo que é viv’ e são:
ai, Deus e u é?
E eu bem vos digo que é sã’ e vivo
e será vosc’ ant’ o prazo saido:
ai, Deus, e u é?
E eu bem vos digo que é viv’ e são
e será vosc’ ant’ prazo passado:
ai, Deus, e u é?
(D. Dinis, 1995, p. 97).
Ao lermos a poesia, algumas frases são incomuns para nossa compreensão, pois se trata de uma língua que já foi modificada, mesmo tendo palavras e termos próximos da nossa. Um exemplo disso é o verso <<ai Deus, e u é?>> essa letra ‘u’ significa ‘onde’ - o que traduzindo a frase ficaria <<ai Deus, onde ele está?>>. Outra frase que não está tão transparente o sentido da mensagem é o penúltimo verso da poesia <<e será vosc’ ant’ prazo passado>> que foi traduzido pelos antologistas << e estará convosco antes de acabar o prazo? >>.
O poema repete em todas as estrofes que a amada pede pelo retorno do namorado que, provavelmente, foi à guerra e não voltou. A repetição é característica dessa forma de poema e aparece com o intuito de exprimir a angústia que a mulher sente ao não saber o paradeiro de seu amado. A sensação de que o acontecimento é algo vago e sem sentido é para representar a ‘loucura’ que a mulher chega ao perguntar para a flor sobre o destino daquele que prometera voltar e nunca chegava. E a flor a responde com os mesmos termos com que a mulher lhe perguntou <<se perguntas pelo seu amigo, se perguntas pelo seu amado>> a rima vem ao encontro para afirmar que está são e salvo, que está vivo, que virá antes do prazo dito, antes de o prazo ter passado.
Pensamos que a mesma poesia poderia ser tratada como sendo de amigo, no tema para as crianças, já que explicar tal gênero poético literário seria bastante difícil em virtude da sua complexidade. No entanto consideramos que seja possível a apresentação dos dois poemas, por meio da adaptação. Essa adaptação permitirá inserir a criança no universo da rima, da repetição de palavras que é um excelente recurso no momento de construção da leitura e escrita da criança. Ainda possibilitaria que fosse trabalhado o tempo do ‘era uma vez’ de outra maneira, que conhecem por meio dos contos e fábulas medievais.
A seguir apresentamos a forma como o poema, anteriormente apresentado, foi adaptado para a literatura infanto-juvenil.
Ai Flores do Verde Pinho6 -
Ai flores, ai flores do verde pinho,
Vocês têm notícia do meu amiguinho?
Ai Deus, onde está?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
Vocês têm notícia do menino que amo?
Ai Deus onde está?
Vocês têm notícias sobre o Rodrigo,
Que prometeu brincar comigo?
Ó céus, onde está?
Vocês viram passar um menino apressado,
Que sempre anda atrasado.
Ó céus onde está?
Você me pergunta onde está seu amigo?
Responde o pinho que tinha ouvido,
Pois eu lhe respondo onde eu o vi.
Veio correndo e ficou escondido
Esperando você que chegasse aqui.
Pois eu bem lhe digo, está salvo e vivo,
Mas entrou numa briga e ficou ferido.
- Ai Deus, esse meu amigo!
- Vou logo atrás dele antes que brigue comigo.
Ele é muito levado, mas é muito amado!
Uma sugestão de abordagem dessa poesia seria o professor, a partir da leitura do poema para as crianças, trabalhar os aspectos da alfabetização, já que são frases curtas e de fácil compreensão. Outra interação importante seria propor aos alunos a ideia de um jogral na sala, no qual poderiam ler para os amigos e, em concomitância, fazer desenhos sobre o poema.
Nesse contexto de aprendizagem, o docente poderia contextualizar o período, explicando que isso é um poema que representou a situação em que as pessoas vivenciaram, narraria aos alunos que a principal atividade dos homens, no período da poesia era a guerra e não o trabalho cotidiano como nos dias atuais. Deveria explicar que guerra era necessária para que os homens se protegessem e conquistassem novos espaços geográficos. Em virtude dessas atividades masculinas, as mulheres casadas ou que iriam se casar ficavam meses a fio, à espera de seus amores. Muitas vezes, esses homens não voltavam, ou voltavam, mas com ferimentos muito graves por estarem em guerra ou em viagens pelo mar.
Em face desse debate, seria possível ao professor ampliar as reflexões sobre a poesia e abrir uma discussão sobre o fato de não vivermos isso na sociedade brasileira, e alertar as crianças porque em vários países crianças vivenciam guerras e separações de suas pessoas queridas. Ou, ainda, associar a necessidade de trabalhar a convivência entre os amigos e como elas poderiam se auxiliar, mutuamente, no cotidiano.
Apresentamos, a seguir, outra cantiga classificada como cantiga de amor. Na cantiga de amor, os temas, geralmente, estão associados a um amor não correspondido. Em cantigas dessa ordem, a mulher amada não sabe nem pode saber, ou já é comprometida, portanto o amor deveria ser oculto e platônico.
A mia senhor que eu por mal de mi,
vi, e por mal daquestes olhos meus,
e por que muitas vezes maldezi
mi e o mund’e muitas vezes Deus,
des que a nom vi nom er vi pesar
d’al, ca nunca me d’al pudi nembrar.
A que mi faz querer mal mi medês
e quantos amigos soía_haver,
e desasperar de Deus, que mi pês,
pero mi tod’este mal faz sofrer,
des que a nom vi nom er vi pesar
d’al, ca nunca me d’al pudi nembrar.
A por que mi quer este coraçom
sair de seu lugar, e por que já
moir’e perdi o sem e a razom,
pero m’este mal fez e mais fará,
des que a nom vi nom er vi pesar
d’al, ca nunca me d’al pudi nembrar.
A voz do trovador, no caso dessa poesia, é de um homem. <<Mia senhor>> é, na verdade, minha senhora; ele se queixa do mal do amor que sofre pela mulher amada, e muitas vezes maldisse a Deus, em nome desse sofrimento e da impossibilidade deste amor. É tão grande essa dor sofrida que chega a se esquecer de qualquer outra coisa que tenha vivido. Nesse quadro, a mulher seria a dona da razão e dos sentimentos dele.
Como o poema acima trata de um pedido de perdão e arrependimento a Deus, por maldizer a própria situação, poderíamos associá-lo a uma conduta e comportamento, no qual a criança o ‘eu lírico’ pede desculpas pelas vezes que não soube resolver os conflitos do seu dia a dia sem agressividade. Algo que se torna tão comum no cotidiano da convivência com outras crianças. Logo, mais uma vez seria possível tratar do comportamento cotidiano, por meio da literatura.
A seguir apresentaremos a versão adaptada da canção
Ó meu amigo, o que foi que fiz!
Fiquei furioso e disse aquilo que não se diz!
Ei meu amigo eu acho que errei.
Mas, meu amigo, agora não esquecerei
Ao contrário de brigar, nós podemos conversar.
Ó meu amigo é tão grande o coração,
Que num segundo eu digo meu pedido de perdão.
Ei criançada, vamos fazer uma roda,
Vamos sacudir, pois parado me incomoda.
A adaptação para a literatura infanto-juvenil permitirá ao professor abordar conceitos morais necessários ao convívio social como a amizade, a tolerância, o amor ao próximo, o arrependimento; enfim, ensinar aos alunos virtudes sociais que são imprescindíveis para o convívio dos homens na sociedade.
A seguir traremos mais um exemplo de cantiga medieval portuguesa para evidenciar como ela pode se transformar em um excelente recurso pedagógico. Agora apresentamos uma cantiga designada como de escárnio.
Tant’ é Melion pecador
e tant’ é fazedor de mal
e tant’ é um ome infernal,
que eu soo ben sabedor,
quento o mais posso seer,
que nunca poderá veer
a face de Nostro Senhor.
Tantos son os pecados seus
e tan muit’ é de mal talan, (desejo)7
que eu soo certo, de pran, (verdade)
quant’ aquest’ é, amigos meus,
que, por quanto mal em el á,
que já mais nunca veerá
en neum temp’ a face de Deus.
El fez sempre mal e cuidou
e já mais nunca fezo ben;
[e] eu soo certo poren
del que sempr’en mal andou;
que nunca já, pois assi é,
pode veer, per boa fé,
a face do que nos comprou.
(D. Dinis. 1995, p. 125).
Nessa cantiga, o trovador8 diz, com expressiva raiva, que deseja o mal ao homem que fez mal a ele e afirma ter certeza de que ele sempre foi mau e, por esse motivo, por ser tão pecador e nunca ter feito o bem, jamais veria a face de Deus.
A poesia original é classificada como de escárnio e simboliza a raiva que o trovador sente pelo sujeito abordado. Em virtude disso, difama-o para o público. Com essa cantiga, além da questão da literatura, do ritmo de leitura, seria possível ao professor trabalhar com os alunos a questão de atitudes rancorosas; portanto, filosoficamente, seria oportuno refletir com os alunos questões concernentes à calúnia, intriga etc.
A última adaptação que propomos vai ao encontro de um sério problema enfrentado nas escolas, que é a necessidade de tratar de atitudes de crianças e adolescentes identificadas como bullying. Na releitura da cantiga, tratamos da mudança nas formas de brincadeiras, na qual não se rotula a criança pela escolha de brinquedos que ela faz. A nosso ver, não há distinção de gênero em sua escolha que seja pensada fora da diversão e da aprendizagem.
Olha que menina mais legal!
Ela diz pra todo mundo uma frase genial...
“Que ninguém é diferente.
Que ninguém é todo igual.”
Olha aquele ali que menino bonitão!
Ele brinca de casinha e também de caminhão.
Ei, minha nossa! Que turminha do barulho!
Estuda o ano inteiro,
E deixam os pais com muito orgulho!
Nessa cantiga, é possível, inclusive, tratar uma interpretação textual explorando os sentidos que o conteúdo traz. Além disso, seria possível pedir aos alunos em atividade de produção textual (em uma turma de 2º ano- como tarefa junto aos pais) que elaborassem uma poesia tratando de um tema que considerasse importante.
Finalizando nossa ideia inicial, reforçamos que só é possível tal análise e releitura quando o educador detém uma formação ampla. É, pois, de sua formação que emergem as competências necessárias para criar e reelaborar conteúdos que estimulem seus alunos das mais diversas maneiras.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, propomos a inserção da poesia e o conhecimento do contexto medieval do gênero literário como fonte de educação da sensibilidade, tanto aos professores, quanto aos alunos. A ideia de transformar uma cantiga medieval em uma poesia com linguagem atual não é para ser considerada como um desvio da fonte histórica. Ao contrário, pretendemos abordar, de forma singular, a necessidade de conhecermos a estrutura que se formou em nossa língua e cultura.
Abordar o conhecimento que se produz, que se faz de maneira social, por meio da universidade, das leituras que outros deixaram, com árduo trabalho intelectual e físico, deve ser sempre por meio de um diálogo. E nesse sentido, com a necessidade de leitura e reconhecimento da literatura na formação do docente.
Esperamos que este texto possa ser útil em abordagens práticas, mas que seja um estímulo, em primeiro lugar, para a saída da zona de conforto do conhecimento que afirmamos ter como suficiente para a tarefa que exercemos diariamente.