SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número52La captura de niños y adolescentes: reflexiones sobre las controversias públicas que involucran el género y la sexualidad en las políticas educativas índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.24 no.52 Campo Grande set./dic. 2019  Epub 09-Ene-2020

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v20i52.1399 

Dossiê: Gênero e Sexualidade: Lutas no Currículo em Tempos de Novos Mapas Políticos e Culturais

Apresentação do Dossiê

Anna Luiza Martins de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-0620-3322

1Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, Pernambuco, Brasil.


As políticas curriculares e os currículos são radicalmente atravessados por lógicas de produção de subjetividades engendradas e sexualizadas. São articulações discursivas elaboradas continuamente através de negociação com outros discursos e foros - escolas, secretarias, ministérios, academia, comunidades disciplinares, agências multilaterais, mercado, movimentos sociais, mídia, religiões etc. - locais de construção, multiplicação, tensionamento e deslocamento de sentidos sobre gênero e sexualidade. No Brasil, mormente na primeira década do século XXI, observou-se a emergência de políticas pautadas num novo dispositivo ou regime de sexualidade ancorado em torno dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos (CARRARA, 2015), as quais, entre outros aspectos, investem no fomento à pesquisa, produção de materiais didáticos e formação docente sobre equidade de gênero e enfrentamento à LGBTfobia.

Nos últimos anos, entretanto, surgiu um cenário político-discursivo fortemente articulado ao fundamentalismo religioso e a lógicas econômicas ultraliberais, que evoca a desigualdade social como corolário da “meritocracia”, os direitos humanos como meio para proteger pessoas com “comportamentos antissociais” e a educação escolar pública como instrumento de “doutrinação” (MIGUEL, 2016). Os movimentos (neo)conservadores religiosos e seculares, até então articulados em torno do discurso “anticomunista” ou “antiesquerdista”, ganham força e projeção ao promover a agenda do combate ao fantasma da “ideologia de gênero”, desencadeando no país uma cruzada moral em torno da defesa da “família tradicional”, da “proteção das crianças e dos adolescentes”, do controle e judicialização da atividade docente (OLIVEIRA, OLIVEIRA, 2019).

A partir desse cenário, projetos de lei têm sido propostos no âmbito do governo federal, estadual e municipal visando garantir a primazia do poder familiar sobre a escola. Entre outros objetivos, busca-se o impedimento da educação sexual; o veto ao uso de termos como “gênero” e “orientação sexual” nos documentos oficiais, materiais didáticos e políticas curriculares; a proibição do acesso ao conhecimento produzido pelas ciências humanas e sociais sobre as temáticas de gênero e sexualidade; assim como a imposição de uma pretensa neutralidade no ensino.

Este dossiê, constituído por sete artigos produzidos por pesquisadoras e pesquisadores de diferentes instituições, regiões, trajetórias pessoais e tradições teórico- metodológicas, investe na análise crítica e contestação de discursos e projetos que, através da disseminação do pânico moral (RUBIN, 1993), da racionalidade cínica (SAFATLE, 2008) e da estigmatização dos estudos de gênero e sexualidade (CORREIA, 2018; JUNQUEIRA, 2018), miram a invisibilização dos problemas e o silenciamento das vozes que discutem e questionam os processos de produção e negociação dos sentidos sobre gênero e sexualidade no campo da educação.

Em “A captura das crianças e dos adolescentes: refletindo sobre controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade nas políticas de educação”, Vanessa Jorge Leite analisa as polêmicas em torno do “Projeto Escola sem Homofobia”, discutindo as estratégias entabuladas por diferentes atores sociais implicados no processo, que contribuíram para a instauração da hegemonia de uma pauta conservadora no país. A pesquisadora enfatiza a força mobilizada pelo acionamento simbólico do significante “proteção da infância e da adolescência” no debate, provocando, inclusive, o temor dos próprios movimentos de afirmação da cidadania LGBT de lidarem com o tema da (homo/bi)sexualidade na adolescência. Para a autora, essa dificuldade passa, entre outros aspectos, pela carência de problematizar as concepções e os valores historicamente constituídos e idealizados em relação às fases da vida - notadamente, infância, adolescência e juventude.

Esse desafio foi assumido por Bruno do Prado Alexandre e Raquel Gonçalves Salgado em “Memórias de infância na escola pelo avesso do tracejado das normativas de gênero, sexualidade e desenvolvimento”. O pesquisador e a pesquisadora questionam a noção de “criança ideal” (BURMAN, 2008) defendida por tradicionais teorias do desenvolvimento evolutivo que fundamentam a educação. Com o objetivo de interrogar regimes de verdade hegemônicos sobre infância e adolescência, o texto mobiliza reflexões, pelo viés do gênero e da sexualidade (BUTLER, 2016), sobre memórias de travestis que vivenciam experiências dissidentes das normativas de gênero, desde a mais tenra idade. Destacam-se as discussões sobre as implicações das pedagogias de disciplina e controle dos corpos na vida dessas pessoas e sobre os equívocos de teorias psicológicas que, articuladas a lógicas neoliberais, tratam o desenvolvimento como processo de otimização e avanço evolutivo, fundamentando políticas curriculares, a exemplo da BNCC (FRANGELLA, 2018), que defendem matrizes universais de aprendizagem para estudantes da educação básica e desconsideram os diversos marcadores de diferença que atravessam suas vidas e entram no jogo de produção das subjetividades individuais e coletivas.

Dando continuidade ao diálogo com as reminiscências de pessoas que (es)borram as fronteiras entre os gêneros, Dayvi Santos e Anna Luiza Martins de Oliveira miram seu debate em narrativas transgêneras de estudantes que interromperam suas trajetórias escolares e, instigados pelas políticas educacionais de gênero e sexualidade desenvolvidas nos últimos quinze anos no país, especialmente a política de reconhecimento do nome social, retomam seus estudos através da Educação de Jovens, Adultos e Idosos (EJAI).

A evasão escolar é um problema antigo no Brasil, relacionado com fatores como desigualdade social, trabalho infantil, fome, precariedade de habitação e de assistência à saúde. No caso das pessoas trans, esses fatores se interseccionam à ininteligibilidade de suas identidades, aos alarmantes índices de violência contra essa população, às dificuldades e/ou impossibilidades de acesso a espaços públicos, como os meios de transporte e banheiros escolares. As autoras realçam os ambivalentes modos de existência que circulam, tencionam e se sobrepõem no espaço-tempo do currículo produzindo a constituição de subjetividades, algumas das quais ainda negadas pela reiteração da estrutura (cis-hétero)normativa e que, consequentemente, enfrentam a resistência e forçam o deslocamento dos sentidos hegemônicos de gênero e sexualidade.

Mantendo o foco nos deslocamentos curriculares produzidos por políticas educacionais inclusivas e ações afirmativas desenvolvidas no Brasil nas primeiras décadas do século XXI, João Paulo Lopes dos Santos e Núbia Regina Moreira analisam o significado das cotas raciais para estudantes negras de cursos de ­licenciatura de uma universidade pública da Bahia. O texto ressalta a importância da articulação entre sociedade, instâncias governamentais e movimentos sociais para a redução das desigualdades raciais. De acordo com os resultados do estudo, as cotas raciais são canais essenciais para inserção de negras e negros no ensino superior brasileiro, devido à desigualdade de acesso à universidade entre pessoas de segmentos sociais diferentes, especialmente aquelas e aqueles que vivem em situação de pobreza e discriminação racial. Apesar das mudanças que o programa de cotas raciais vem promovendo no ensino superior, cujo principal sinal é o aumento significativo no ingresso de pessoas negras nas universidades e a mobilização de sentidos que a presença da corporeidade negra promove, isso ainda não foi suficiente para a superação do racismo estrutural e a promoção da desejada igualdade. Questões como desigualdade regional, de gênero, motivação para os estudos, acesso à moradia e precariedade das condições de trabalho também são discutidas.

“Paulo Freire con glitter y pañuelo verde: notas cuir para educadores” é um texto que se propõe a homenagear o educador brasileiro Paulo Freire através de reflexões críticas sobre sua obra. Para Francisco Ramallo, em tempos de recrudescimento de discursos conservadores e ascensão de governos que defendem o estado autoritário, é necessário revisitar a pedagogia como prática da liberdade, porém, abandonando a interpretação patriarcal, cristã e sistêmica tão comum às obras do autor. A partir de leituras queer/cuir, questiona a lógica da assimilação, normalidade e colonialidade, ainda muito presentes na pedagogia, e defende que a pesquisa em educação seja desafiada pela estética da imprevisibilidade, da crítica e do impossível (HALBERSTAM, 2011; SEDGWICK, 2018) e invadida por narrativas sensíveis à vida, aos corpos e aos afetos.

O afeto é tema central do artigo “Docência, amor e gênero em pesquisas brasileiras do século XXI: implicações curriculares”. Miriã Zimmermann da Silva, Renata Porcher Scherer e Maria Cláudia Dal’Igna, com base num amplo estudo bibliográfico, analisam como as pesquisas em educação no Brasil têm abordado as relações entre amor e docência. Ressaltam que, apesar de o assunto ainda ser temido e desqualificado, há um número crescente de pesquisadores e pesquisadoras que ousam estudá-lo e legitimá-lo cientificamente. Ao discutir como o gênero atravessa essa relação, as pesquisadoras percebem que várias pesquisas denunciam quanto pressupostos sobre feminilidades e masculinidades interferem no exercício da docência, participando das condições de possibilidade de ser professor e professora. Para elas, atualmente, o tipo de sentimento necessário no campo da educação se aproxima muito mais do amor profano pelo mundo do que do amor sublime que produz docências salvadoras. As autoras defendem a exploração intencional do amor nos currículos de formação docente como fomento ao exercício democrático da docência.

Por fim, “Critical Fantasy Studies: neoliberalism, education and identification. An interview with Jason Glynos” apresenta uma entrevista realizada com o professor e pesquisador Jason Glynos, da Universidade de Essex, sobre a emergência e importância crescente dos estudos sobre afetos, desejo, fantasia, relações de identificação e construção de subjetividades para as pesquisas em ciências políticas, sociais e educação. Glynos, um dos principais continuadores do trabalho de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe na Escola de Essex, é entrevistado por Joanildo Burity e Gustavo Gilson Oliveira, dois pesquisadores reconhecidos no campo da teoria do discurso. As questões debatidas ao longo da entrevista indicam e buscam explorar, de forma minuciosa e consistente, como a articulação entre a ontologia política desenvolvida pela teoria do discurso e o quadro teórico-conceitual da psicanálise lacaniana, proposta pelo trabalho de Glynos, podem contribuir para aprofundar a compreensão e aguçar a crítica sobre os processos atuais de articulação entre discursos e movimentos neoliberais e neoconservadores em diversas partes do mundo, em especial na América Latina e no contexto brasileiro, assim como para compreender as lógicas e as dinâmicas políticas que constituem, atravessam e são atravessadas pelos discursos sobre gênero, sexualidade e educação no contexto desse imenso embate hegemônico.

Espera-se que o Dossiê ora apresentado venha a servir, em seu conjunto e através de cada artigo, como referencial e ferramenta para que estudantes, docentes, pesquisadoras/es, agentes públicos e militantes sociais possam continuar a fazer o trabalho imprescindível de interrogar, questionar e interagir de forma criativa no âmbito das políticas educacionais e curriculares de gênero e sexualidade. Sem esse trabalho, as estruturas de poder que se alimentam da subjugação, da exclusão e da violência encontrariam um caminho mais fácil para moldar um sistema de educação à sua imagem e semelhança.

REFERÊNCIAS

BURMAN, Erica. Developments: child, image and nation. London and New York: Routledge, 2008. [ Links ]

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. [ Links ]

CARRARA, Sérgio. Moralidades, racionalidades e políticas sexuais no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de Janeiro, n. 21, v. 2, p. 323-45, maio/ago., 2015. [ Links ]

CORREIA, Sônia. A “política do gênero”: um comentário genealógico. Cadernos Pagu. Campinas, n. 53, jun. 2018. [ Links ]

FRANGELLA, Rita de Cássia Prazeres. Do silêncio e seus sons: “diferenças” na Base Nacional Comum Curricular. In: LOPES, Alice Casimiro; OLIVEIRA, Anna Luiza A. R. Martins; OLIVEIRA, Gustavo Gilson Sousa. Os gêneros da escola e o (im)possível silenciamento da diferença. Recife: Ed. UFPE, 2018. [ Links ]

HALBERSTAM, Jack. El arte queer del fracaso. Madrid: Egales, 2011. [ Links ]

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. A invenção da “ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero.Psicologia Política, São Paulo, v. 18, n. 43, p. 449-502, 2018. [ Links ]

MIGUEL, Luis Felipe. Da “doutrinação marxista” à “ideologia de gênero”: Escola Sem Partido e as leis da mordaça no parlamento brasileiro. Direito & Praxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 590-621, jul./ago. 2016. [ Links ]

OLIVEIRA, Anna Luiza Araújo Ramos Martins; OLIVEIRA, Gustavo Gilson Sousa. Curriculum Policies of Gender and Sexuality in Brazil. Transnational Curriculum Inquiry, v. 16, n. 1, p. 38-60, 2019. [ Links ]

RUBIN, Gaule. Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In: ABELOVE, Henry; BARALE, Michèle; HALPERIN, David (Org.). The lesbian and gay studies reader. Nova York: Routledge, 1993. [ Links ]

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. [ Links ]

SEDGWICK, Eve. Tocar la fibra: afecto, pedagogía, performatividad. Madrid: Alpuerto, 2018. [ Links ]

Anna Luiza Martins de Oliveira: Doutora em Educação, mestre e graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Associada do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEdu) da UFPE, líder do Grupo de Pesquisa (CNPq) “Discurso, subjetividade e educação” e membro da Associação Brasileira de Currículo (ABdC). E-mail: alarmo@uol.com.br, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-0620-3322

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.