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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.24 no.52 Campo Grande set./dic. 2019  Epub 09-Ene-2020

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v20i52.1323 

Dossiê: Gênero e Sexualidade: Lutas no Currículo em Tempos de Novos Mapas Políticos e Culturais

Docência, amor e gênero em pesquisas brasileiras do século XXI: implicações curriculares

Teaching, love and gender in 21st-century Brazilian research: implications for the curriculum

Docencia, amor y género en investigaciones brasileñas del siglo XXI: Implicaciones curriculares

Miriã Zimmermann da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-4885-4756

Renata Porcher Scherer2 
http://orcid.org/0000-0003-2331-1453

Maria Cláudia Dal'Igna1 
http://orcid.org/0000-0002-0566-9606

1Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.

2Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IFSul), Camaquã, Rio Grande do Sul, Brasil.


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar um conjunto de dez pesquisas realizadas em Programas de Pós-Graduação brasileiros neste início do século XXI que abordam o tema do amor em sua relação com a Educação. Ancorado nos Estudos em Docência e nos Estudos de Gênero de uma perspectiva pós-estruturalista, parte do questionamento sobre como o gênero atravessa e dimensiona o par docência e amor nas pesquisas e quais as implicações para a formação docente a partir da perspectiva do currículo como percurso e como produtor de modos de ser docente. Articulando análises de duas pesquisas de doutorado desenvolvidas na região sul do Brasil, vinculadas a um projeto de pesquisa mais amplo, em um Programa de Pós-Graduação em Educação, examina o conjunto de pesquisas, organizando-as em três grupos e operando com o conceito-ferramenta gênero, articulado ao par docência e amor. Tal articulação possibilita mostrar a coexistência de, pelo menos, três perspectivas para compreender o par docência e amor: uma mais polarizada acusa ou acata o amor como marca histórica da docência e como atributo feminino; a segunda perspectiva desconsidera uma docência generificada; e a terceira amplia a compreensão de amor como uma marca generificada ligada ao sexo. Ao final, defende-se o argumento de que é necessário abordar o par docência e amor de forma intencional e deliberada nos currículos dos cursos de formação de docentes.

Palavras-chave: docência; amor; gênero

Abstract

This paper aims to analyze a group of 10 studies carried out in Brazilian Postgraduate Programs in the beginning of the 21st century that have approached the theme of love in relation to Education. Grounded on Teaching Studies and Gender Studies from a post-structuralist perspective, it questions how gender has crossed and dimensioned the binomial teaching and love in research, and its implications for teacher education from the perspective of curriculum as both a route and a producer of ways of being a teacher. By articulating analyses of two doctoral researches carried out in the southern region of Brazil that are linked to a broader research project in a Postgraduate Program in Education, the paper examines a group of studies organized in three groups, by operating with gender as a tool-concept articulated with the binomial teaching and love. Such articulation has enabled us to point out the coexistence of at least three perspectives to understand that binomial: a more polarized one, which acknowledges and accepts love as a historical teaching mark and a female attribute; one that disregards gendered teaching; and one that deepens the understanding of love as a gendered mark associated with sex. Finally, we defend that it is necessary to address, both intentionally and deliberately, the binomial teaching and love in the curricula of teacher education courses.

Keywords: teaching; love; gender

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar un conjunto de diez investigaciones realizadas en Programas de Posgrado brasileños en el inicio del siglo XXI, que abordan el tema del amor en relación con la Educación. Anclado en los estudios sobre Docencia y Género de una perspectiva pos-estructuralista, parte del cuestionamiento sobre cómo el género atraviesa y dimensiona el par docencia y amor en las investigaciones, y cuáles son las implicaciones para la formación docente a partir de la perspectiva del currículo como transcurso y como productor de modos de ser docente. Articulando los análisis de dos investigaciones de doctorado desarrolladas en la región sur de Brasil, vinculadas a un proyecto de investigación más amplio, en un Programa de Posgrado en Educación, es examinado el conjunto de investigaciones, organizándolas en tres grupos y operando con el concepto-herramienta género, articulado al par docencia y amor. Tal articulación posibilita mostrar la coexistencia, de, por lo menos, tres perspectivas para comprender el par docencia y amor: una más polarizada, acusa o acata el amor como marca histórica de la docencia y como atributo femenino; la segunda perspectiva desconsidera una docencia de género; y la tercera amplía la comprensión del amor como una marca de género relacionada al sexo. Finalmente, se defiende el argumento de que es necesario abordar el par docencia y amor de manera intencional y deliberada en los currículos de los cursos de formación de docentes.

Palabras clave: docencia; amor; género

1 UM QUADRO REFERENCIAL PARA O ARTIGO

Neste artigo, buscamos analisar um conjunto de pesquisas acadêmicas realizadas em Programas de Pós-Graduação brasileiros que abordam o tema do amor em sua relação com a Educação. Ancoradas nos Estudos em Docência e nos Estudos de Gênero de uma perspectiva pós-estruturalista, partimos do questionamento sobre como gênero atravessa e dimensiona o par docência e amor nas pesquisas e quais as implicações para a formação docente sob a perspectiva do currículo como percurso e como produtor de modos de ser docente3.

Para a identificação e organização das pesquisas produzidas no Brasil no contexto de pós-graduação stricto sensu, foi realizada uma revisão detalhada do Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), utilizando-se como descritor inicial a palavra amor. Da primeira busca, resultaram 4.615 trabalhos, entre teses de doutorado e dissertações de mestrado acadêmico e profissional de diferentes áreas de conhecimento. O primeiro critério para refinar a busca a partir desse resultado inicial foi a seleção por área de conhecimento, sendo a área “Educação” selecionada. O total de trabalhos na área Educação foi de 470 teses e dissertações. Com esse refinamento inicial, o próximo passo foi a realização da leitura do título e do resumo dos trabalhos. Tal movimento resultou na seleção de 85 teses e dissertações. A leitura das teses e dissertações permitiu situar as pesquisas em três grandes grupos: o primeiro conjunto de pesquisas trata da temática da docência e de sua relação com o amor nos resultados e análises; o segundo grupo é composto por pesquisas que assumem o amor como um conceito importante e necessário para o campo da Educação e/ou para a docência; e o terceiro conjunto de pesquisas é formado por aquelas que abordam autores específicos e suas concepções sobre o amor.

Considerando os objetivos deste artigo e o espaço que seria necessário para apresentar todas as 85 pesquisas, selecionamos um conjunto de dez pesquisas - seis teses e quatro dissertações - que caracterizam e exemplificam cada um dos três grupos.

Para examinar este conjunto de pesquisas acadêmicas de pós-graduação stricto sensu, mobilizamos resultados de outras pesquisas que investigam a docência e o amor sob a perspectiva de gênero: duas de doutorado e um projeto de pesquisa mais amplo, vinculado a um Programa de Pós-Graduação em Educação da região sul do Brasil4. A partir dessas pesquisas, assumimos docência, gênero e currículo como conceitos centrais.

Para docência, utilizamos a compreensão defendida por Elí Fabris e Maria Cláudia Dal'Igna (2017) 5 como a condição exercida pelo professor que tem como função o ensino, marcado por um caráter democrático e pelo qual os/as professores/as devem assumir responsabilidade.

Maria do Céu Roldão (2007) também nos provoca a analisar o que caracteriza a docência e qual é a sua especificidade em relação a outros grupos profissionais. Para a autora (2007), a função de ensinar é primordial para o exercício da docência e é caracterizada por uma dupla transitividade:

Ensinar configura-se assim, nesta leitura, essencialmente como a especialidade de fazer aprender alguma coisa (a que chamamos currículo, seja de que natureza for aquilo que se quer ver aprendido) a alguém (o acto de ensinar só se actualiza nesta segunda transitividade corporizada no destinatário da acção, sob pena de ser inexistente ou gratuita a alegada acção de ensinar). (ROLDÃO, 2007, p. 95).

Com relação ao conceito de gênero, ao articularmos as contribuições dos Estudos Feministas e o pós-estruturalismo, buscamos compreendê-lo tal como sugere Dagmar Meyer (2012), ou seja, como um conceito que dimensiona as formas de regulação e estrutura o social. Conforme a autora explica, estudiosas, como Joan Scott (1995), Linda Nicholson (2000) e Guacira Lopes Louro (2014), têm problematizado as noções de corpo, de sexo e de sexualidade, e esse exercício tem produzido mudanças epistemológicas e metodológicas importantes para a compreensão do conceito nessa perspectiva6.

O currículo aqui é entendido, a partir de Tomaz Tadeu da Silva (2013), como percurso envolvido na produção de sujeitos e seus modos de ser e estar no mundo, constituindo e posicionando os sujeitos como sujeitos de gênero (DAL'IGNA; KLEIN; MEYER, 2016). Alfredo Veiga-Neto (2009) explica que o currículo escolar, além de tratar de conteúdos e de modos de ensiná-los e aprendê-los, conforma os tempos e espaços escolares. O currículo “funciona como um dispositivo que nos ensina determinadas maneiras de perceber, significar e usar o espaço” (VEIGA-NETO, 2009, p. 32). Ao mesmo tempo, o autor diz que o currículo é um artefato, que seu significado não está dado e que pode ser compreendido como uma “porção de cultura” considerada relevante em determinado momento histórico.

Com isso, a articulação teórica e metodológica dos conceitos de docência, gênero e currículo que propomos neste artigo permite-nos afirmar que gênero opera para modificar as relações de docentes consigo mesmos, ao mesmo tempo em que o próprio conceito se torna constituinte das normas regulatórias que orientam nossas formas de compreender e dar sentido ao par docência e amor. Precisamos criar condições para analisarmos de que maneiras essas normas de gênero estão implicadas na constituição de um modo de ser docente produzido no âmbito dos currículos dos cursos de formação de professores e professoras.

Para atingir o objetivo deste artigo, o texto segue organizado em duas seções. Na primeira, apresentamos as pesquisas realizadas no contexto da pós-graduação brasileira ao longo das últimas décadas. Em um segundo momento, procuramos mostrar como gênero atravessa e dimensiona as concepções de docência e amor presentes nas pesquisas. Concluímos provisoriamente, entendendo que é necessário ampliar as formas de articular docência, amor e gênero no que diz respeito às pesquisas em Educação, atentando para os modos como a formação docente e os currículos dela decorrentes estão implicados na produção e no posicionamento de professoras e professores no contexto brasileiro.

2 A DOCÊNCIA E O AMOR NAS PESQUISAS EM EDUCAÇÃO: UMA ARTICULAÇÃO ANALÍTICA

A figura da professora mulher cotidianamente é tratada com naturalidade. Se, em boa parte do século XX, a presença massiva de mulheres professoras era justificada por sua “natureza” e feminilidade, hoje talvez possamos dizer que o chamado processo de feminização do magistério e as críticas feitas a partir dele a atributos naturalmente tidos como femininos, tais como afetividade e amorosidade, também estão em um lugar-comum na academia: de forma automática, reconhecemos o processo de feminização, acatamos as críticas dele decorrentes e seguimos em frente.

Historicamente, a docência e o amor estabelecem uma relação estremecida. No exercício profissional, o amor parece desqualificar a profissão; na narrativa do exercício docente, no entanto, vemo-nos enredados por um jeito de falar que não pode ignorar tal amor; na formação de professores, ignoram-se a presença do amor e seus efeitos na profissão docente; nas pesquisas, buscamos conceitos e explicações científicas para justificar a insistente permanência do amor na relação com a docência ao longo do tempo.

A articulação entre educação e amor, bem como entre docência e amor, é presente e recorrente nas pesquisas neste início do século XXI, aumentando significativamente no início da segunda década deste século. Procuramos conhecer e sistematizar os usos que têm sido dados para o amor nas pesquisas deste campo, bem como as compreensões construídas sobre educação e docência a partir do estudo e articulação com o tema do amor. Para dar conta deste objetivo, como já referimos, organizamos as pesquisas em três grandes grupos, que passamos a analisar a seguir.

O primeiro concentra pesquisas que abordam a temática da docência e sua relação com o amor nos resultados e análises.

Judith Perez (2017, p. 106), em sua tese sobre as representações sociais de trabalho docente, realizada com professores e professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental do município do Rio de Janeiro, aponta a presença de um “discurso acerca do trabalho docente que afirma a necessidade de se ‘aplicar' ou ‘ter' amor à profissão, uma vez que o aluno merece, tem necessidade de afeto”. Juntamente do compromisso e da dedicação, compõe-se uma representação social de trabalho docente para o grupo de professores investigado.

O trabalho de Jameson Campos (2008), que investigou as representações sociais da docência para professores de um município do estado da Paraíba, na mesma direção da pesquisa de Perez (2017), aponta quatro dimensões que compõem as representações sociais de docência deste grupo de professores, entre elas, a dimensão do amor e do cuidado. Sua pesquisa vai apontar que o amor e o cuidado são eleitos pelos professores como um princípio “inerente ao ser professor”, associado a outras expressões, como carinho, dedicação, paciência, dom e vocação. Conforme Campos (2008), esta dimensão do amor e do cuidado está ancorada nas “condições de gênero, nas experiências formativas e profissionais, na condição religiosa e na origem familiar desses professores” (CAMPOS, 2008, p. 103), vinculando-se a uma trajetória histórica da “constituição docente no Brasil e do seu processo de feminilização” (CAMPOS, 2008, p. 103). Quanto a esta dimensão, o pesquisador concluirá que o amor e o cuidado são elementos centrais do ser professor, dando sentido à profissão e estruturando o trabalho docente (CAMPOS, 2008).

Sandra Andrade (2010), em sua pesquisa, investigou as representações sociais de bom professor por estudantes de licenciatura em Pedagogia e Letras em uma universidade do município de Santos, em São Paulo. A pesquisa apontou três dimensões da representação do bom professor para o grupo de estudantes: a afetiva, a cognitiva e a profissional. Novamente, agora pela perspectiva de estudantes, o amor está presente na representação social da docência. Conforme Andrade (2010), a dimensão afetiva é composta pelos aspectos de amor à profissão e de respeito aos estudantes. O amor à profissão é compreendido pelos sujeitos da pesquisa como um aspecto importante de um bom professor, que, na sua concepção, deve amar o que faz - “amor do professor ao que faz, a sua ação dentro e fora de sala de aula, amor do professor direcionado aos estudantes; enfim, sucessivas formas de amar o exercício de sua profissão” (ANDRADE, 2010, p.78-79). Para analisar tal aspecto, a pesquisadora lança mão de concepções como as de Maurice Tardif e Claude Lessard, para quem a educação e o trabalho docente possuem um caráter afetivo e emocional.

As pesquisas acima fazem uma descrição detalhada das dimensões que compõem as representações sociais da docência e da profissão de professor. Ao descreverem as dimensões, no entanto, o olhar lançado pouco questiona os aspectos que compõem as representações. A dimensão do amor aparece vinculada a expressões como afeto, cuidado, paciência, dom e vocação, podendo o amor ser compreendido como um valor, princípio e/ou sentimento inerente à docência. Outras pesquisas que também se inserem neste primeiro grupo, por outro lado, fazem uma análise crítica da articulação entre docência e amor.

Rodrigo Carvalho (2011) investigou os discursos operantes na constituição de um pedagogo generalista - expressão usada pelo autor a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de Pedagogia de 2006. Atento aos modos de governamento operantes na constituição de pedagogas em formação, o autor identifica a presença de um imperativo em sua formação, que ele nomeia de imperativo do amor. Este imperativo do amor é composto por discursos “a respeito da importância do afeto no processo educativo”, pela “questão afetiva e a linguagem sentimental” e pelo entendimento de que a “afetividade do professor [...] é um atributo natural” (CARVALHO, 2011, p. 215). Carvalho olha com suspeita para tal imperativo, buscando o significado da expressão afeto tanto no nível etimológico quanto como conceito, entendendo que “o conceito de afetos docentes contempla uma variedade de sentimentos vivenciados pelo professor em seu fazer profissional” (CARVALHO, 2011, p. 223), envolvendo sentimentos como amor e carinho, mas também ódio e desprezo, entre outros. O pesquisador identifica, portanto, que há uma regulação dos discursos dos professores, na medida em que alguns sentimentos lhes são permitidos e outros não, de modo que o amor se torna um “imperativo a ser cumprido” (CARVALHO, 2011, p. 224). A partir disto, Carvalho nos convoca a olhar com suspeita para a própria noção de amor, que parece ser algo inerente, natural e instintivo da docência.

A pesquisa realizada por Letícia Caetano (2017) analisa postagens publicadas em páginas específicas da rede social Facebook, voltando-se para o discurso do mal-estar docente produzido nesta rede e como este discurso opera em modos de ser e exercer a docência. A pesquisadora descreve e analisa cinco categorias. Na categoria nomeada “Professor, o salvador da nação”, a autora identifica o discurso da missão e/ou vocação, associado “à figura docente e ao discurso heroico e de amor à profissão” (CAETANO, 2017, p. 66). A partir da concepção de poder pastoral trabalhada por Michel Foucault, Caetano (2017, p. 69) compreende que “cuidado, amor, carinho [...] são algumas características que são tomadas como próprias da ação docente e que podem ser articuladas ao poder pastoral”, assim como Carvalho (2011) mostra que tal discurso está fortemente vinculado a uma marca histórica da docência como função maternal, reafirmando que “missão, apostolado, sacrifício, amor incondicional” são características da docência e produtoras de subjetividades.

Ambas as pesquisas vinculam-se a uma vertente teórica pós-estruturalista, trabalhando com conceitos foucaultianos. Com diferentes objetos e materiais para análises, mas atentas para os discursos da e na docência, também se deparam com a presença do amor, que parece insistir em aparecer nas pesquisas em Educação. O pesquisador e a pesquisadora, no entanto, suspeitam, questionam e desnaturalizam tanto o amor quanto sua relação com a profissão docente. Também, nestas pesquisas, o amor segue sendo compreendido como um sentimento, como quase sinônimo de afeto, de cuidado, de vocação.

O segundo grupo é composto por pesquisas que assumem o amor como um conceito importante para o campo da Educação e/ou para a docência.

A pesquisa realizada por Nilton Mullet Pereira (2004) percorre, de certa forma, as concepções de amor presentes na história ocidental. Pereira (2004), em seu estudo, realiza uma crítica contundente ao que ele chama de “amor freireano”, analisando especialmente a obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire. A partir dos conceitos de proveniência e Arquivo, trabalhados por Michel Foucault, Pereira (2004) busca realizar uma história do presente, perguntando “como se constituiu historicamente uma amorosidade freireana” (PEREIRA, 2004, p. 27). Pereira (2004) compreende que a obra Pedagogia do Oprimido inaugura uma “ciência do amor”, em que “o amor é um método” pelo qual “o indivíduo é analisado, registrado, avaliado e, através de um exame de si mesmo, revela-se como grotesco e ingênuo” (PEREIRA, 2004, p. 26).

A concepção de grotesco, na pesquisa de Pereira (2004), é central para compreender a crítica que o pesquisador dirige ao amor freireano. Para Pereira (2004), o grotesco ou o corpo grotesco seria aquilo para o qual o amor freireano se dirigiria, buscando libertar: o analfabeto - em quem há falta -, “exterior e inumano” (PEREIRA, 2004, p. 22), carregado de culpa por não saber decodificar os códigos utilizados para viver. Na leitura feita por Pereira (2004, p. 23) da obra de Freire, então, “o amor é a justa medida para livrar o corpo de sua grossura e a alma da sua ingenuidade”.

O pesquisador compreenderá que o amor freireano consiste em um “amor ao corpo grotesco”, e sua problemática de pesquisa perguntará “como foi possível a constituição de um amor ao corpo grotesco na Educação?”. Para responder esta pergunta, Pereira (2004) propõe-se a descrever o Arquivo do amor freireano, sendo Arquivo entendido por ele como “séries de enunciados” (PEREIRA, 2004, p. 29). Em sua pesquisa, então, o amor é compreendido como Eros, como “amor ao belo” (PEREIRA, 2004, p. 28), e o pesquisador percorrerá as compreensões de amor platônico, amor cortês, amor cristão e amor rousseauniano para descrever a proveniência do amor freireano, defendendo a tese de que o Eros deixa “rastros de sobrevivência” em cada uma destas práticas amorosas e que, no Arquivo do amor freireano, esta sobrevivência tem desvios: “do amor ao belo, ao amor ao grotesco” (PEREIRA, 2004, p. 28).

Edileide Maria Antonino da Silva (2017) teve como tema de investigação a transferência na escola e, de modo mais específico, a transferência entre professor e aluno, articulando e enlaçando a Psicanálise e a Educação. Silva (2017) propõe pensar a transferência na escola como um tipo de amor, defendendo a tese de que, “quando há transferência entre professor e aluno, o professor, nos seus afetos ambivalentes, investe mais em seu saber-fazer docente, constituindo, assim, o seu amor ao saber” (SILVA, 2017, p. 31). A pesquisa faz uma escuta de professores atuantes nos anos finais do Ensino Fundamental, da Educação Básica de uma escola municipal no estado da Bahia, utilizando-se de diferentes recursos, como observação, conversação e entrevista, “na tentativa de apreender os afetos que marcam sua trajetória de aprender e ensinar na escola e de que forma a transferência alimenta seu prazer ou desprazer na sua práxis docente” (SILVA, 2017, p. 32). Propondo a transferência como um fenômeno que se dá também na escola, Silva (2017) mostrará que, na relação entre professor e aluno, assim como na relação entre analista e analisante, “o aluno precisa ver no professor este sujeito que supostamente sabe para que se instale a transferência entre eles” (SILVA, 2017, p. 67). O professor, para que haja uma relação educativa (im)possível entre ele e seus alunos, precisa sustentar este “lugar de saber algo que o outro supõe” (SILVA, 2017, p. 68).

A pesquisadora ressalta que a transferência mobiliza o aluno no desejo de aprender e “imprime no professor um jeito outro de ensinar, tanto os conteúdos da ciência, sistematizados, quanto o seu próprio jeito de ser, suas posturas, suas posições” (SILVA, 2017, p. 70), podendo a transferência ser positiva (prazerosa) ou negativa (desprazerosa). Silva (2017) entenderá, ainda, que a transferência ocorrida entre professor e aluno implica uma relação de amor, na medida em que, para o aluno, o “professor representa uma função, é substituto de figuras do passado que marcaram de alguma forma seu desenvolvimento” (SILVA, 2017, p. 74). O amor é entendido como “o desejo por algo que não se possui”, que “brota de uma autoridade legitimada [o aluno ao professor], de um saber suposto, de um desejo de saber” (SILVA, 2017, p. 79-80). Também nas falas dos professores, na pesquisa de Silva (2017), o amor à profissão e o amor ao aluno estão presentes. Em suas análises, a pesquisadora entenderá que este amor é enigmático e “tem um mais além inexplicável até então” (SILVA, 2017, p. 186) - e é este amor que ela chama de transferência a partir do estudo que faz acerca do conceito. A pesquisadora percebe que a transferência ocorrida entre os professores escutados na pesquisa e seus alunos mobiliza afetos ambivalentes e produz tanto amor quanto saber, sendo nomeada por Silva (2017) como “transferência de amor ao saber” (SILVA, 2017, p. 190). Quando, em suas falas, os professores recorrem à expressão amor, Silva (2017) compreende que é o aluno, sujeito do fazer do professor, que os faz referirem-se desta forma, a partir da relação que estabelecem.

A pesquisa desenvolvida por Verônica Domingues Almeida (2017) investigou o amor e a docência, assumindo o amor como conceito central e articulando teoricamente autores do campo da Filosofia, da Educação e da Pedagogia, em uma perspectiva pós-estruturalista. O campo de pesquisa foi a rede social Facebook. Como procedimento teórico-metodológico, Almeida propôs a caosgrafia, trabalhando com o conceito de subjetivação. Analisando publicações e comentários de publicações feitas por professores e professoras em grupos fechados ou em outros locais da rede social em que eles tematizavam o amor e a docência, Almeida identificou que “muitas são as formas reinventadas por professores para expressar o amor na profissão” (ALMEIDA, 2017, p. 41). O amor platônico, o amor romântico, o amor cristão, entre outros, foram colocados sob suspeita e seus efeitos foram avaliados no processo de subjetivação de professores. Buscando escapar a “representações aparentemente cristalizadas e a juízos de valor, que tendem a impor identidades e perfis à docência” (ALMEIDA, 2017, p. 48), a pesquisadora cunhou a expressão e conceito de poli[AMOR]fia, como uma forma de contemplar e expressar “as inúmeras formas de conceber e expressar o amor” (ALMEIDA, 2017, p. 45).

As pesquisas deste segundo grupo buscam apoio em autores dos campos da Filosofia, da Teologia, da Psicologia e da Educação, a fim de construir a história do amor como conceito e de definir uma concepção de amor que possa ser articulada à profissão docente. Amor platônico, amor cortês e amor cristão são as faces do amor ao longo da história abordadas nestas pesquisas. Amor como método, como desejo e como expressão de sentidos múltiplos são as definições a que chegam as/os pesquisadoras/es em sua articulação com a educação e com a docência.

Por fim, o terceiro grupo de pesquisas aborda autores específicos e suas concepções sobre o amor, tratando da produção de Hannah Arendt, Friedrich Nietzsche e Jean-Jacques Rousseau.

Norberto Mazai (2008) deteve-se no estudo de uma obra clássica para o campo da Educação: Emílio, ou da Educação, de Jean-Jacques Rousseau. Sua investigação atentou para a relação estabelecida na obra de Rousseau entre os conceitos de educação natural, amour de soi-même e amour-propre, tendo como objetivo “investigar o papel que estes dois últimos desempenham na formulação rousseauniana do ‘projeto' de uma educação natural” (MAZAI, 2008, p. 5).

De acordo com Mazai (2008), Rousseau, a partir das críticas que faz à sociedade de sua época, o século XVIII, entenderá que o progresso da ciência e da sociedade corrompe o homem e o afasta cada vez mais de sua natureza. O pensador esboça um projeto antropológico-social “da valorização de um retorno às origens, do retorno do homem ao seu estado natural, sem por isso ter de afastá-lo por completo da sociedade e do saber” (MAZAI, 2008, p. 40); para tanto, desenvolverá sua concepção de homem natural e de homem social. Tal conceito de natureza e de homem natural não está desconectado da sociedade e vincula-se a um processo de socialização do ser humano. (MAZAI, 2008). Também os conceitos de amour de soi-même e amour-propre, cunhados por Rousseau, estão vinculados à sua concepção de natureza, de homem natural e de educação natural.

Conforme Mazai (2008), o amor de si e o amor próprio são considerados por Rousseau como sentimentos distintos, “intimamente ligados ao homem e [...] duas disposições necessárias para a conservação do homem e da espécie como tal”. (MAZAI, 2008, p. 44). O amor de si é, para Rousseau, um sentimento natural, enquanto o amor próprio seria um sentimento adquirido pelo homem com a sua socialização, que “arranca o homem de seu estado original” (MAZAI, 2008, p. 46). Em uma primeira leitura, como indica Mazai (2008), o amor de si pode ser entendido como positivo, e o amor próprio, ao contrário, como negativo. O pesquisador defende que há uma tensão entre o amor de si e o amor próprio na obra de Rousseau - uma tensão criadora na formação humana do projeto rousseauniano. O amor de si possibilita um “voltar-se a si mesmo”, e o amor próprio, o “sair de si mesmo” (MAZAI, 2008, p. 52), fazendo uso da reflexão e do julgamento. Na sua leitura da obra de Rousseau, especialmente de Emílio, a tensão entre os dois amores, ou sentimentos, deve ser equilibrada, indicando uma educação natural que “proporcione um balanço adequado tanto dos sentimentos quanto da razão” (MAZAI, 2008, p. 54) e que siga o caminho resumido pelo pesquisador como “conhecer-se a si mesmo” e “conhecer os outros” (MAZAI, 2008, p. 54).

A pesquisa de Vanessa Sievers de Almeida (2009), em uma direção diferente das pesquisas citadas anteriormente, aborda um conceito específico de amor, presente na produção da filósofa alemã Hannah Arendt, atentando, de forma especial, para o campo da Educação. Em sua pesquisa, Almeida (2009) busca investigar a noção de amor mundi de Arendt e sua pertinência para a Educação. Almeida (2009) realiza a análise da obra de Arendt a partir de textos publicados originalmente em alemão, mas também em inglês e em suas traduções para o português. A pesquisadora mostra que o conceito de amor e de amor mundi é cunhado por Arendt especialmente no ensaio A crise na Educação, de 1950, em que ela analisa uma crise na Educação vinculada às características na sociedade moderna já na década de 1950. Almeida (2009) perscruta o amor mundi, investigando a compreensão de Arendt sobre mundo e sobre a educação. A autora (2009, p. 20) evidencia que a Educação, para Arendt, “é necessária não apenas para preparar as crianças para a vida e suas necessidades, mas principalmente porque temos de fomentar a possibilidade de participação no mundo comum”, uma vez que ela constitui um meio intermediário, entre o público e o privado (ALMEIDA, 2009). A escola, portanto, permite às crianças e aos jovens (recém-chegados) uma transição do privado para o público, e os professores “são os representantes do mundo frente à criança” (ALMEIDA, 2009, p. 29).

Diante do contexto de um mundo fragmentado, de perda de autoridade e de tradição, e tendo tal compreensão sobre mundo comum e educação, é que Hannah Arendt falará de dois amores, o amor ao mundo e o amor às crianças (ALMEIDA, 2009). Conforme Almeida (2009), trata-se de “um duplo amor que é preliminar à dupla responsabilidade do educador”, de proteger as crianças do mundo e, ao mesmo tempo, ser o representante do mundo para elas (ALMEIDA, 2009, p. 39). Amor mundi, como Almeida (2009) mostra, não seria algo natural, nem uma solução, mas uma decisão. Apesar de cunhar o conceito de amor mundi, Arendt não indica como se dá este amor, como amar o mundo. Almeida (2009), ao estudar o conjunto da obra de Arendt, atentando para este conceito e para suas relações com o campo da Educação, no entanto, marcará que o amor mundi para Arendt não é um sentimento, pois o amor, enquanto sentimento, “não pode exercer nenhum papel construtivo ou propositivo no espaço público de interação, no mundo comum” (ALMEIDA, 2009, p. 68).

Na compreensão de Almeida, a concepção de amor mundi de Arendt está vinculada à leitura que ela faz do conceito de amor em Agostinho, como um “desejo que se origina na falta de auto-suficiência da vida humana” (ALMEIDA, 2009, p. 69). Diante dos desafios postos pela sociedade moderna e seus pressupostos denunciados em diversos textos por Arendt, o amor mundi precisa “se reconciliar com um mundo que permitiu e permite barbaridades, e, mais do que dar continuidade precisa, sobretudo, renovar ou refundar” (ALMEIDA, 2009, p. 71). Cumprir a tarefa educativa, de acolher os jovens no mundo, nesta perspectiva de amor mundi, exige que quem educa se importe com o mundo e o escolha, tendo compromisso com ele “para que os alunos, a esse exemplo ou contra ele, possam estabelecer o seu vínculo com esse espaço e seu legado” (ALMEIDA, 2009, p. 184, grifo da autora).

As pesquisas aqui apresentadas mostram que o amor tem se tornado um tema recorrente nos estudos em Educação, principalmente nos últimos anos. Assunto temido, desqualificado e evitado, alguns se arriscam a abordá-lo. O amor aparece com frequência como resultado, a partir de referenciais teórico-metodológicos variados, pois os próprios professores e professoras atuais seguem falando sobre ele. Seria esta recorrência somente um imperativo que se mantém e se atualiza com o passar do tempo e com as mudanças da sociedade?

De outras formas, há um esforço em dar ao amor uma legitimação científica. As pesquisas buscam autores e autoras que o expliquem, enquadrando-o em categorias, mostrando o quanto o amor dito profano, deste mundo e por este mundo, é, no campo da Educação, o tipo de amor desejado, e não o amor sublime, este que produz uma docência vocacionada, salvadora. Um número menor de pesquisas procura articular amor e docência, assumindo-os como um par que constitui a docência brasileira. Muitas das pesquisas, em algum momento, abordam o amor materno e o processo de feminização do magistério, mas não o fazem de uma perspectiva de gênero. Assumir gênero como um conceito importante para analisar o par docência e amor parece apresentar-se como um desafio a ser assumido neste trabalho.

3 UM OLHAR DE GÊNERO PARA O PAR DOCÊNCIA E AMOR: IMPLICAÇÕES CURRICULARES

Articular os conceitos de docência, amor e gênero a fim de analisar os estudos apresentados anteriormente mostra-se como um diálogo possível e profícuo. Para isso, mobilizamos os quatro pressupostos desenvolvidos por Meyer (2012) sobre algumas possibilidades de utilizar gênero como conceito-ferramenta, que serão apresentadas a seguir, para depois estabelecermos algumas problematizações sobre como o conceito de amor tem sido abordado na pesquisa acadêmica brasileira, especialmente na área da Educação.

O primeiro pressuposto refere-se à articulação entre os conceitos de gênero e educação. De acordo com Meyer, é importante atentar para como, nos diferentes processos educativos, aprendemos a nos reconhecer como homens e mulheres, alunos e alunas, professores e professoras. Tal compreensão permite problematizar noções essencialistas e universais de homem/mulher e de docência.

O segundo pressuposto refere-se a compreender o conceito de gênero como organizador da cultura, atentando para os diferentes modos pelos quais gênero opera estruturando o social. Dentro de tal perspectiva, importa analisarmos como gênero atravessa e dimensiona o trabalho docente, constituindo diferentes formas para o exercício profissional.

O terceiro pressuposto concerne ao caráter relacional do conceito de gênero, buscando observar as diferentes formas de condução da docência para e entre homens e mulheres. O quarto e último pressuposto articula os conceitos de gênero e poder, ressaltando a importância de examinarmos as redes de poder envolvidas nos processos de diferenciação que permitem classificar, hierarquizar e posicionar sujeitos.

Diante de tais pressupostos, retornamos aos trabalhos apresentados na seção anterior. Buscamos evidenciar como gênero encontra-se implicado nas diferentes formas como o amor é abordado no campo da Educação e nos Estudos em Docência.

De acordo com a pesquisadora Marília de Carvalho, duas têm sido as formas como tradicionalmente as pesquisas acadêmicas brasileiras têm buscado explicar o caráter da relação afetiva entre professoras primárias e seus alunos. Ambas partem da constatação de que existe uma maioria numérica de mulheres atuando no exercício da docência primária e buscam explicar que essa marca teria relações com características da feminilidade, sem distinguir analiticamente o que seria do plano das identidades individuais e gênero, produzindo uma confusão entre “características do trabalho docente com o sexo do professor ou professora” (CARVALHO, 1999, p. 23).

Assim, um primeiro modo consistiria em uma abordagem acusatória direcionada às relações afetivas estabelecidas entre a professora primária e seus alunos. Nas pesquisas inseridas nesta abordagem, o enfoque analítico dirige-se às mulheres-professoras, que são “acusadas por transferirem referências e práticas relativas à família, espaço privado e doméstico, elementos que elas teriam adquirido através da socialização primária e da continuidade exercício do trabalho doméstico e da maternagem” (CARVALHO, 1999, p. 23).

O segundo modo, no qual a própria pesquisadora insere seus estudos, busca lançar um olhar diferente para as relações afetivas entre a professora primária e seus alunos, defendendo a possibilidade de uma combinação entre casa e escola. Os estudos enquadrados nesta forma apontam como vantagem para o exercício da docência “essa presença de elementos associados às mulheres no interior das relações pedagógicas” (CARVALHO, 1999, p. 24).

Vinte anos após a publicação dessa importante revisão teórica e conceitual desenvolvida por Carvalho, voltamos para os bancos de dados para identificar como as relações afetivas têm sido incorporadas ou não nas discussões sobre docência. Ainda atentamos para as formas como gênero é posicionado em tais investigações.

O primeiro grupo de pesquisas apresentadas, em que encontramos o maior número de abordagens do tema, parece seguir dentro de uma perspectiva polarizada, relacionando o amor e o fazer docente, muito próxima da divisão apresentada por Carvalho. De um lado, um conjunto de pesquisas que apresenta o amor e as relações afetivas como elementos constituintes da representação do que significa ser um bom professor; de outro, um conjunto de estudos que denuncia as formas como a representação de uma docência pautada nos atributos de amor e afeto acaba por constituir um modo de descrever a docência como vocação e/ou missão, e o próprio amor constitui-se como uma forma de regulação do exercício profissional.

Na análise desse conjunto de pesquisas, desejamos chamar atenção para o fato de que, mesmo que os achados dos pesquisadores e pesquisadoras convirjam quanto ao modo como o amor aparece como uma marca histórica da docência, poucas são as articulações entre tais achados e os estudos sobre o processo de feminização do magistério. Aqui seria importante ressaltar como o discurso da amorosidade da professora tem relação com os saberes da psicologia.

Como mostra Louro (2014), os aportes das teorias da Psicologia foram importantes e criaram condições para a elaboração das teorias pedagógicas. Tais estudos, ao afirmarem que um ambiente que favoreça as trocas afetivas e o interesse dos alunos seria mais propício para construção de aprendizagens, produzem uma ligação cada vez mais estreita entre mulheres, profissão do magistério e crianças. Atributos tidos como naturalmente femininos, tais como a docilidade, a submissão, a sensibilidade, a intuição e a paciência, vão fortalecer o espaço escolar como espaço cada vez mais feminino. Seria neste espaço que as professoras-mulheres, rodeadas por crianças, poderiam exercitar suas características naturais como mulheres. Assim, compreender quais as condições históricas que permitem que o amor seja descrito como uma marca da docência e suas diferentes nuances certamente é algo importante de ser considerado em nossas pesquisas.

O segundo conjunto de pesquisas parece avançar de uma leitura dicotômica e, em vez de posicionar o amor como um problema a ser resolvido ou como uma competência a ser alcançada, investiga as próprias concepções de amor relacionadas à profissão docente. O que desejamos destacar é que, seja por uma compreensão do amor em uma perspectiva pedagógica, psicológica, filosófica ou teológica, o conjunto de estudos desse grupo não considera as relações entre gênero, docência e amorosidade. Reiteramos que analisar a amorosidade como elemento constitutivo da docência implica compreender como o gênero operou e opera na constituição de formas de ser docente generificadas.

As últimas duas pesquisas apresentadas em nossa revisão trazem um elemento importante, pois partem de uma revisão teórica de como o conceito de amor é desenvolvido no contexto específico de algumas obras. As revisões apresentadas pelos autores a partir dos escritos de Rousseau e Arendt permitem-nos ampliar o escopo analítico e atentar para a potência do conceito de amor nas pesquisas sobre o trabalho docente, escapando de algumas ciladas que consistiriam na necessidade de posicionarmo-nos - seja a favor, seja contra - quanto à importância da amorosidade como elemento constituinte da docência. Também possibilitam-nos escapar de compreensões que acabam naturalizando o amor como uma marca generificada ligada ao sexo feminino, o que nos deixaria sem saída em termos analíticos. Como explicam Michele Vasconcelos e Fernando Seffner (2015), um dos limites das pesquisas que operam com o conceito gênero consistiria no fato de que, enquanto “gênero funcionar como um vetor de subjetivação colado a determinadas formas masculinas e femininas, se permanecerá discutindo, descrevendo e reificando - inclusive nas pesquisas - [...] funções de homens e mulheres” (VASCONCELOS; SEFFNER, 2015, p. 264).

As três perspectivas apresentadas neste artigo apontam para o par docência e amor como uma questão de formação e de currículo. A primeira, mais polarizada, de acusação e ataque ao amor como marca histórica da docência e como atributo feminino, e a segunda, que desconsidera as relações entre docência e gênero para pensar o amor e seus sentidos para a profissão, estão presentes no percurso de quem se torna professor. Elas compõem os currículos de modo sutil e insistente. A terceira perspectiva, que parece apresentar um escape da naturalização do amor como uma marca generificada, provoca-nos a pensar na importância de assumir o par docência e amor em nossos currículos - de formação, profissionais, de vida - de modo intencional e deliberado.

Com a análise que desenvolvemos neste artigo, buscamos mostrar que as pesquisas acadêmicas sobre docência realizadas no século XXI, apesar das distintas perspectivas, apresentam certa regularidade quando se trata de pensar a amorosidade como elemento constitutivo da profissão docente. Seja para negar, seja para reafirmar a necessidade do amor para o exercício profissional docente, pesquisadoras e pesquisadores parecem não conseguir escapar de uma leitura polarizada acerca deste par docência e amor.

O que oferecemos aqui é uma argumentação que busca analisar o par fora desta polarização dicotômica. Quando nós passamos a pensar por este viés, o amor pode adquirir um novo significado, ao mesmo tempo em que pode reinscrever a docência. Uma das formas encontradas por nós para libertar-se da dicotomia consiste em adjetivar o amor como docente, aliando-o a alguns pressupostos epistemológicos. Nesse sentido, a partir da defesa do currículo como percurso envolvido na produção e formação de sujeitos, acreditamos na importância de modificarmos nossas formas de compreender o lugar que o amor ocupa nas discussões relacionadas à formação de professores para que possamos escapar das armadilhas descritas em nossas análises relacionadas ao par docência e amor. Isto somente faz sentido na medida em que entendemos o currículo como um projeto formativo.

Do mesmo modo, entendemos como produtivas as análises mais recentes do campo da Filosofia da Educação que têm defendido que a finalidade da Educação seria permitir/possibilitar que os envolvidos nesse processo de formação possam existir como sujeitos (BIESTA, 2018). Temos aprendido com Marcos Villela Pereira (2016) que o processo de formação docente está envolvido na produção, criação e construção de si, pelo “enfrentamento da insatisfação consigo, no enfrentamento das estranhezas, dos incômodos que lhe atravessa” (PEREIRA, 2016, p.207). É preciso suspeitar, estranhar e (re)inventar nossos modos de ser docente.

Desde essa perspectiva, a docência supõe responsabilidade pedagógica tanto com a singularidade de cada estudante quanto com o coletivo e com o mundo. A aceitação dessa responsabilidade pedagógica implica um compromisso responsivo com a formação e com o ensino. Envolve, ainda, rigor com aquilo que se faz, com a qualidade da formação e do ensino que desenvolvemos. Por fim, tal responsabilidade implica uma certa exigência em relação aos alunos e às alunas e a nós mesmos.

Acreditamos que ampliar o escopo analítico relacionado ao par docência e amor - tomando o conceito de gênero como ferramenta - e assumi-lo na formação e no currículo nos possibilita avançar em relação às denúncias relativas a determinadas formas de mulheres e homens exercerem a docência, ligadas a pressupostos de feminilidades e de masculinidades - aqueles entendidos como essenciais e universais -, criando condições de possibilidades distintas de existir como sujeitos. Mais ainda, permite-nos defender novos modos de exercer a docência democrática, competente, colaborativa e também amorosa.

3Agradecimento à agência de fomento à pesquisa. Este artigo reúne pesquisas que receberam apoio financeiro parcial da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

4Trata-se da pesquisa “A produção de sentidos sobre afeto, amor e cuidado na formação inicial docente sob a perspectiva de gênero” (DAL'IGNA, 2017) à qual vinculam-se as duas pesquisas de doutorado: (a) “Amor e profissionalidade: uma análise da docência brasileira” (SILVA, 2019); (b) “A desfeminização do magistério: uma análise da literatura pedagógica brasileira da segunda metade do século XX” (SCHERER, 2019).

5Adotamos o uso do nome e sobrenome do(a) autor(a) quando este(a) é citado(a) pela primeira vez no corpo do texto, para dar visibilidade a mulheres e homens a quem nos referimos. Esta é uma escolha teórico-política e decorre de nossa inserção no campo dos Estudos de Gênero.

6Na última seção deste artigo, detalhamos o argumento acerca das mudanças epistemológicas e metodológicas do conceito de gênero.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 30 de Agosto de 2019; Aceito: 02 de Novembro de 2019

Miriã Zimmerman da Silva: Doutoranda e mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), na linha de pesquisa Currículo, Formação de Professores e Práticas Pedagógicas. Graduada em Pedagogia pela mesma Universidade. Bolsista CAPES/PROEX e integrante do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências, Pedagogias e Diferenças (GIPEDI/Unisinos/CNPq).E-mail: miriazimm@gmail.com, Orcid:http://orcid.org/0000-0002-4885-4756

Renata Porcher Scherer: Doutora e mestre em Educação, especialista em Educação Especial e graduada em Educação Física pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integra o Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências, Pedagogias e Diferenças (GIPEDI/CNPq). E-mail: renatapscherer@gmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-2331-1453

Maria Cláudia Dal'Igna: Doutora em Educação. Professora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Vice-líder do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências, Pedagogias e Diferenças (GIPEDI/Unisinos) e docente pesquisadora do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (GEERGE/UFRGS/CNPq). E-mail: mcdaligna@hotmail.com, Orcid: http://orcid.org/0000-0002-0566-9606

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