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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.25 no.54 Campo Grande mayo/agosto 2020  Epub 22-Sep-2020

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v25i54.1180 

Artigos

Os limites de um currículo eurobrancocêntrico e as expectativas de uma formação crítica e antirracista em um curso de licenciatura em História

The limits of a white eurocentric curriculum and the expectations of a critical and anti-racist training in a degree in History

Los límites de un currículo euroblancocéntrico y las expectativas de una formación crítica y antirracista en una carrera de grado en profesorado de Historia

José Bonifácio Alves da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-4274-5919

1Universidade Regional de Blumenau (FURB), Blumenau, Santa Catarina, Brasil.


Resumo

Discuto a formação pretendida por um curso de licenciatura em História pertencente a uma universidade pública do estado do Paraná, Brasil. Essa formação está pautada em uma perspectiva crítica da história e da educação, mas também no antirracismo. Apresento a tensão entre as expectativas de formar docentes críticos antirracistas e o eurobrancocentrismo no currículo dessa licenciatura por meio da análise de registros feitos, inspirados na etnografia, de aulas do curso assistidas, do projeto pedagógico do curso e de entrevistas feitas com estudantes e professores do curso. No currículo da licenciatura em História participante da pesquisa, de modo ambivalente, coexistem críticas e conivências com o eurobrancocentrismo. Embora a Europa e o branco, enquanto referenciais, sejam os eixos principais em torno dos quais o currículo do curso ainda se movimenta, também acontecem eventuais iniciativas de mostrar os protagonismos históricos dos indígenas e dos negros que servem para o combate às representações racistas.

Palavras-chave: formação crítica e antirracista; eurobrancocentrismo; licenciatura em História

Abstract

I discuss the training aimed by a degree in History of a public university in the state of Parana, Brazil. The training is based on a critical perspective of history and education, but also on anti-racism. I present a tension between the expectations of forming anti-racist critical teachers and the white eurocentrism in the curriculum of the university course through data analysis collected, and inspired ethnographically, in its classes and pedagogical project, and via interviews carried out with students and teachers. In the curriculum of the History course involved in the study, criticisms and connivance with the white eurocentrism coexist ambivalently. Though Europe and the white, as referent points, are the main axes around which the curriculum still pivots, eventual initiatives of showing the historical indigenous’ and black people’s protagonism that serve to fight back the racist representations also take place.

Keywords: critical and anti-racist training; white eurocentrism; degree in History

Resumen

Discuto la formación que se pretende tener en una carrera de grado en profesorado de Historia que pertenece a una universidad pública del estado de Paraná, Brasil. Esa formación es organizada desde una perspectiva no solo crítica de la historia y de la educación, sino también del antirracismo. Presento la tensión entre las expectativas de formar docentes críticos antirracistas y el punto de vista europeo y blancocentrista en el currículo de esa carrera de profesorado por intermedio del análisis de registros hechos, inspirados en la etnografía, de clases en la facultad, del proyecto pedagógico de la carrera y de entrevistas hechas con estudiantes y profesores de la facultad. En el currículo de profesorado de Historia, incluido en la investigación, coexisten críticas y connivencias con el euroblancocentrismo, de manera ambivalente. Aunque Europa y el blanco, como referencias, sean los ejes principales, alrededor de los cuales el currículo de la carrera todavía se movimienta, también pasan eventuales iniciativas de mostrar los protagonismos históricos de los indígenas y de los negros que sirven para el enfrentamiento a las representaciones racistas.

Palabras clave: formación crítica y antirracista; euroblancocentrismo; profesorado de Historia

1 INTRODUÇÃO

Neste artigo, discuto a formação crítica e antirracista almejada por um curso de licenciatura em História pertencente a uma universidade pública do estado do Paraná . Para tanto, baseio-me nas análises do projeto pedagógico do curso, de registros feitos de aulas do curso (inspirados na etnografia) e de entrevistas com estudantes e professores dessa licenciatura.

A análise do projeto pedagógico do curso , reelaborado em 2012, esteve focada em verificar quais objetivos são priorizados por essa formação de professores. Entre esses objetivos, destaco a pretensão de formar o ­­professor-pesquisador crítico e antirracista para o debate presente neste texto.

Os registros no caderno de campo de aulas assistidas nas diferentes turmas e disciplinas, feitos entre dezembro de 2015 e julho de 2016, foram inspirados na etnografia. Esses registros foram criados após observações e escutas nas aulas que buscaram estar atentas a alguns rumos do currículo investigado. Selecionei para este texto duas observações pertinentes para a discussão proposta. Registros de interpretações marcados pela coautoria dos sujeitos participantes da pesquisa (CLIFFORD, 2008).

Realizadas entre julho e dezembro de 2016, as entrevistas foram interpre­tadas seguindo a perspectiva de que são construídas nas conversas, culturalmente situadas, entre o pesquisador/entrevistador e os entrevistados (SILVEIRA, 2002). Elas foram (re)lidas, após transcrição, sem pretensão de revelar alguma verdade transcendental.

As entrevistas foram sobre o currículo da licenciatura em História colaboradora da pesquisa e as representações das diferenças étnico-raciais dentro/fora dessa formação de professores de História. Entrevistei 10 estudantes e quatro docentes do curso.

A tabela a seguir especifica informações de cada um dos estudantes entrevistados:

Tabela 1 Informações dos estudantes entrevistados 

Pseudônimo Idade Etapa Experiência docente Identificação
étnico-racial6
Acadêmico Breno 22 anos 4º ano Estágio Negro
Acadêmico Toni 32 anos 4º ano Estágio Negro
Acadêmica Fátima 21 anos 4º ano Projeto social, estágio e
Pibid
Negra
Acadêmica Gabriela 21 anos 4º ano Estágio Negra
Acadêmica Joana 31 anos 2º ano Não tem Indígena kaingang
Acadêmico Sandro 21 anos 4º ano Estágio Mestiço
Acadêmico Inácio 25 anos 4º ano Estágio Pardo
Acadêmica Maria 21 anos 4º ano Estágio e projeto
universitário no magistério
Branca
Acadêmica Rafaela 22 anos 4º ano Professora em escola
privada e fez estágio
Branca
Acadêmico Ernesto 24 anos 4º ano Estágio Branco

Fonte: informações obtidas nas entrevistas em 2016.

Apresento informações de cada um dos docentes entrevistados na próxima tabela:

Tabela 2 Informações sobre os docentes entrevistados 

Pseudônimo Idade Formação acadêmica e o ano da
última titulação
Identificação
étnico-racial
Professor Miguel 45 anos Graduado em História e doutor em
Educação. Última titulação obtida em
2000
Branco
Professor Agostinho 63 anos Graduado e mestre em História.
Última titulação obtida em 2002
Branco
Professor Tomaz 54 anos Graduado e doutor em História.
Última titulação obtida em 2000
Branco
Professora Luna 38 anos Graduada em História e doutora em
Educação. Última titulação obtida em
2015
Branca

Fonte: informações obtidas nas entrevistas em 2016 e na consulta do currículo dos docentes na Plataforma Lattes do CNPq, entre 13/09/2017 e 16/09/2017.

Os quatro professores entrevistados participaram da elaboração e/ou discussão do projeto pedagógico da licenciatura em História investigada, que espera formar sujeitos críticos e antirracistas.

2 A FORMAÇÃO CRÍTICA NO CURRÍCULO DE UM CURSO DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA

Preferi transitar entre abordagens críticas e pós-críticas da educação na compreensão do currículo da licenciatura em História pesquisada. Para Silva (2000, p. 147): “[...] a teoria pós-crítica deve se combinar com a teoria crítica para nos ajudar a compreender os processos pelos quais, através de relações de poder e controle, nos tornamos aquilo que somos”.

Além de mostrar nossas subordinações (como as “pós”), as teorias críticas podem contribuir, na relação com as abordagens pós-críticas, para apontar âmbitos férteis de combate às desigualdades. As teorias pós-críticas nos ensinam que os poderes operam em todas as relações. “As teorias críticas não nos deixam esquecer, entretanto, que algumas formas de poder são visivelmente mais perigosas e ameaçadoras do que outras” (SILVA, 2000a, p. 147), de acordo com o contexto.

Lopes e Macedo (2002; 2009) escrevem que o campo do currículo é múltiplo e híbrido. Nesse campo de estudos, já há a mesclas entre perspectivas pós e críticas, modernas e pós-modernas. Tais articulações (re)criam múltiplas interpretações e hibridismos, o que produz “[...] enfoques originais e produtivos para o campo, evidencia a ambivalência de nossas concepções, a inexistência de uma ruptura definitiva entre o que se possa denominar como moderno e o que é traduzido como pós-moderno” (LOPES; MACEDO, 2009, p. 5). Proposições das pedagogias críticas são articuladas às problematizações das teorias educacionais pós-críticas para conceber o currículo como percurso formativo que tem a intenção de produzir identificações e diferenciações.

O professor de história é provocado e convocado a contribuir na “[...] construção e fixação de identidades por meio da mobilização de experiências (passado) e projetos (futuro) coletivos e individuais selecionados como conteúdos a serem ensinados em cada presente” (GABRIEL, 2015, p. 35). Os conteúdos de história nos currículos são afetados pelas demandas de identidades desejáveis como objetivo da formação.

Para o projeto pedagógico do curso, a formação universitária de professores-pesquisadores de História da licenciatura participante da pesquisa busca produzir identidades profissionais adequadas para colaborarem na formação de sujeitos autônomos, cidadãos e críticos nas instituições educacionais. A prática histórica pode ser entendida como “[...] a construção consciente/inconsciente, paulatina e imperceptível de todos os agentes sociais, individuais ou coletivos” (BEZERRA, 2010, p. 45).

De acordo com seu projeto pedagógico, o curso analisado objetiva fazer com que seus graduandos se identifiquem como sujeitos da história, agentes dos processos de mudança, que se sintam à vontade para atuar conscientemente na sociedade como cidadãos críticos e convençam outros a se tornarem cidadãos críticos. “A gente discutiu bastante o agente histórico, né. Tipo, transformar a pessoa ali em sujeito” (acadêmico Inácio, Entrevista, 17/08/2016).

Essa formação acadêmica de docentes de História deseja formar intelectuais transformadores “[...] que combinam a reflexão e prática acadêmica a serviço da educação de estudantes para que sejam cidadãos reflexivos e ativos” (GIROUX, 1997, p. 158). Uma formação docente para a reflexão crítica leva em conta que os professores não podem ser meros implementadores de programas de ensino (ZEICHNER, 2002). Os docentes e as suas comunidades precisam exigir maior participação ativa na elaboração de programas e políticas educacionais mais amplos.

A licenciatura em história pesquisada procura criar e desenvolver uma consciência crítica nos acadêmicos. “Como se destapasse os olhos da gente e a gente conseguisse enxergar que tudo o que acontece hoje, tudo o que a gente está vendo hoje: essa criminalização, esse preconceito, é um negócio que foi construído lá atrás” (acadêmica Gabriela, Entrevista, 30/08/2016). Notar a construção histórica das questões contemporâneas é um dos requisitos para adquirir uma consciência crítica da história, de acordo com a perspectiva de formação do curso.

Na perspectiva de formação do curso, ter uma consciência crítica da história significa também perceber o predomínio de determinados grupos nas narrativas históricas em detrimento de outros. Essa consciência permite tornar a história um campo, muitas vezes, contestado, por privilegiar os grupos dominantes e desprivilegiar os subalternizados.

Diferentes narrativas são usadas em cada tipo de história, “[...] mas também sancionamos certas narrativas e desconsideramos outras por razões políticas e ideológicas” (MCLAREN, 2000, p. 163). A história expressa pensamentos e interesses diversos que podem entrar em confronto à medida que “[...] a gente tem que discutir as possibilidades que são interpretações possíveis do que pode ter sido na realidade” (professor Agostinho, Entrevista, 09/11/2016).

A consciência crítica da história serve para orientar os sujeitos, que sofrem os efeitos das suas ações e de outros nos processos de mudanças (RÜSEN, 2001), nas suas interpretações, atitudes, posturas e trabalhos. “Os eventos históricos e as experiências humanas ao longo do tempo servem para você ser uma pessoa melhor no presente” (professora Luna, Entrevista, 22/11/2016). Nesse sentido, uma consciência crítica da história seria útil para melhorar a conduta dos formados pelo curso. A perspectiva crítica auxiliaria na condução ética dos professores de História formados pela licenciatura analisada.

Formar consciências críticas da história que auxiliem em melhorias no presente é uma finalidade curricular do curso. O objetivo da formação deste curso de licenciatura em História está relacionado com o que escreve Martins (2011, p. 56): “O ensino da história encontra, assim, sua missão mais destacada no estabelecimento da correlação substantiva entre a vida quotidiana do presente e o passado historicizado”.

Nessa perspectiva, pensar historicamente significa articular o passado, o presente e as expectativas para o futuro, adquirindo uma consciência dos processos históricos que compõem a realidade na qual se vive para agir de modo autônomo, racional e crítico. No entanto argumento que essa consciência não é total e nem permanente. O posicionamento crítico não é pleno e não está presente a todo momento.

Muito nos escapa da reflexão crítica, racional e consciente, inclusive forças econômicas e culturais reguladoras de nosso pensar, ser e agir. Podemos não ­perceber, por exemplo, desigualdades nos (des)favorecendo bem debaixo do nosso nariz. “A dominação cultural tem efeitos concretos - mesmo que estes não sejam todo-poderosos ou todo-abrangentes” (HALL, 2003b, p. 255). Muito nos passa de maneira despercebida e inconsciente. “Mas nós sabemos que o ‘entre’ que fica entre a percepção e a consciência está lá - mesmo que não possamos vê-lo ou controlá-lo [...]” (ELLSWORTH, 2001, p. 69).

Significados orientam nossas vidas, pois estão nas normas e convenções sociais condutoras e reguladoras do nosso agir. “Os significados são também, portanto, o que alguns procuram estruturar e moldar, sendo que esses são os que desejam governar e regular as condutas e idéias dos outros” (WORTMANN, 2001, p. 158).

Nossa autonomia é fragilizada pelas constantes regulações de nossas condutas, mas não destruída, porque, inesperadamente, podemos escapar, reinterpretar, reelaborar, resistir, alterar formas e rearticular forças, de maneira consciente e/ou inconsciente em diferentes lugares, mesmo que não completamente.

Conforme o projeto pedagógico, o curso pesquisado tem o intuito de formar professores-pesquisadores que tenham conhecimento no campo da história e do ensino de história. Tal licenciatura também almeja produzir profissionais reflexivos, dedicados e comprometidos com a educação e a pesquisa, sem se esquecerem da responsabilidade com a justiça social.

Ainda de acordo com o projeto pedagógico do curso, os profissionais formados pelo curso precisariam ter responsabilidade social para (re)avaliar os efeitos de seus trabalhos na educação e na pesquisa. Assim, teriam condições de realizar uma reflexão crítica acerca dos problemas atuais com parceiros, estudantes e outros professores do mesmo ambiente de atuação profissional.

O conhecimento científico crítico é concebido pelo professor Miguel como um poderoso instrumento de conscientização dos estudantes. De acordo com ele: “[...] principalmente, no primeiro ano, o que a gente faz muito é quebrar paradigmas de senso comum com os alunos” (Entrevista, 18/08/2016). A história crítica seria um instrumento de conscientização sociopolítica e teria grandes chances de trazer respostas satisfatórias para algumas angústias do presente.

A intenção desse curso, presente em seu projeto pedagógico, de formar sujeitos críticos, por meio de um conhecimento poderoso, está bastante relacionada com o pensamento iluminista de saída de um estado de imaturidade intelectual e de senso comum para a maturidade de uma consciência crítica, racional, histórica e científica. Esse conhecimento direciona o sujeito ao branqueamento pelas alvas luzes da razão, ao fazê-lo menosprezar outras possibilidades de conhecer não legitimadas pela ciência.

Mesmo que o objetivo seja formar o profissional autônomo e crítico, organizam-se expectativas de coordenar condutas e fabricar determinadas identidades (COSTA; SILVEIRA; SOMMER, 2003, p. 58), sintonizadas com concepções de verdade defendidas no currículo.

Enquanto ciência, a história, disciplina acadêmica inventada no século XIX na tentativa de distanciamento da literatura (ANHORN, 2003), busca racionalizar o passado e as experiências humanas no tempo com seus critérios e métodos de análise das fontes históricas para contribuir com o progresso do conhecimento científico. “Trata-se da capacidade do pensamento histórico de garantir, mediante fundamentação, a validade das sentenças que enuncia sobre o passado humano” (RÜSEN, 2001, p. 99). O historiador não se contenta apenas em contar uma história, ele precisa validar a narrativa (ANHORN, 2003).

Despertar a consciência crítica por um poderoso arsenal teórico crítico, resgatando sujeitos da alienação do senso comum, é um compromisso pedagógico, assumido pelo curso de licenciatura em História pesquisado. Coloca a aquisição do conhecimento científico crítico, alinhado a uma postura política de questionamento das desigualdades e injustiças, para o esclarecimento e a conscientização sobre o real com dados históricos fidedignos, verdadeiros e transparentes.

Penso que o compromisso de formação do curso precisa se atentar mais para a ideia de que as consciências adquiridas da realidade são mediadas pelas representações do real às quais temos acesso, incluindo os conhecimentos de diferentes culturas. “Todos nós nos localizamos em vocabulários culturais e sem eles não conseguimos produzir enunciações enquanto sujeitos culturais” (HALL, 2003c, p. 83).

Há múltiplas formas de pensar, envolvendo saberes populares, étnicos e ancestrais, cujo potencial explicativo das realidades não pode ser superado e subestimado pela arrogância de um conhecimento eurocentrado que se considera superior a qualquer outro. A compreensão de que o saber acadêmico não é superior a outros saberes está presente no projeto pedagógico do curso entre as competências e habilidades exigidas do licenciado, contudo há maior valorização da cientificidade crítica.

Para o professor Agostinho: “[...] a raiz do preconceito é o ­desconhecimento. O pré-conceito. O conceito do senso-comum” (Entrevista, 09/11/2016). As compreensões da realidade, incluindo as científicas, são versões convencionadas e (re)construídas que podem estar naturalizadas, ser preconceituosas e antidemocráticas, baseadas em versões sustentadas em certos regimes de verdade, e não expressão da verdade em si. O preconceito racial já foi científico (MUNANGA, 1999) e a academia ainda menospreza, em atitude preconceituosa, conhecimentos oriundos de outras lógicas culturais.

A fixação dos significados nunca é última para conscientização dos sujeitos. É sempre provisória, porque os sentidos mudam, de acordo com o contexto e a época, nas diferentes significações. “O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente escapulindo de nós” (HALL, 2004, p. 41). Os estudantes não são perfeitamente ajustáveis aos sentidos da formação desejável de professores-pesquisadores críticos e esclarecidos.

Não há garantias de que o conhecimento científico e crítico acerca da história no currículo produza os sujeitos conscientes, críticos e esclarecidos desejáveis pela perspectiva de formação do curso. “Isso ocorre porque é impossível dizer tudo, de uma vez por todas, na linguagem” (ELLSWORTH, 2001, p. 55).

Os contextos educacionais, dentro e fora do curso, constituem os acadêmicos com múltiplas consciências e subjetividades, de maneiras imprevisíveis, que alteram significados no currículo, impossibilitando o ajuste perfeito dos formandos ao objetivo da formação.

Ajustes educacionais imperfeitos podem ser compreendidos como meios para mudarmos cada vez mais os currículos a fim de que aproximem mais os estudantes e professores dos objetivos de uma determinada formação. Todavia também servem para percebermos a persistência das diferenças que não podem ser contidas. Distintas compreensões, interpretações, respostas, aprendizagens e posicionamentos.

Como afirma Ellsworth (2001, p. 56): “[...] se fosse possível obter ajustes perfeitos entre as relações sociais e a realidade psíquica, entre o eu e a linguagem, nossas subjetividades e nossas sociedades seriam fechadas”. Ou seja, prontas, acabadas, completas, sem diferença, sem possibilidade de mudar, de subverter, de outras aprendizagens e de outros ensinos.

Além dos estudantes não serem perfeitamente ajustáveis ao currículo, possibilitando sua recriação, “[...] cada professor que vai dar a disciplina vai dar de uma forma diferente, porque depende muito da formação dele e das escolhas que ele faz” (professor Agostinho, Entrevista, 09/11/2016). No curso de licenciatura em História pesquisado, diferentes concepções e formas de trabalhar interferem na formação.

Embora haja distâncias entre o planejado e o executado, é importante que o currículo, a formação e as práticas educativas sejam pensados coletivamente de modo endereçado (ELLSWORTH, 2001) ao ensino-aprendizagem; sobretudo para buscarmos compreender o público-alvo e procurarmos prever alguns possíveis efeitos nos destinatários, a fim de gerar identificações com os objetivos da formação. “É impossível significarmos a formação e o currículo de uma vez por todas, mas ainda assim é preciso” (LOPES; BORGES, 2015, p. 499). Precisamos produzir alguma estabilidade do sentido da formação e do currículo, mesmo temporária.

Na perspectiva de uma formação crítica, “[...] o ensino nunca pode ser neutro. Os professores devem agir com um significativo esclarecimento político a respeito de quais interesses são atendidos por suas ações cotidianas” (ZEICHNER, 2002, p. 43).

Estratégias de contestação das representações normalizadoras das desigualdades, convidando os acadêmicos a se engajarem politicamente, estão presentes no currículo do curso de licenciatura em História analisado, embora possam não ter o alcance esperado. Inclusive, com relação à formação antirracista pretendida pelo curso.

3 A FORMAÇÃO ANTIRRACISTA NO CURRÍCULO DO CURSO PESQUISADO

Na formação pretendida pela licenciatura analisada, espera-se alguma mudança de mentalidade dos formados para um comprometimento com a justiça social. “O propósito de se trabalhar para a justiça social é uma parte fundamental do ofício dos formadores de educadores em sociedades democráticas [...]” (ZEICHNER, 2008, p. 548).

A acadêmica Fátima disse: “[...] as pessoas que fizeram parte da organização do currículo são pessoas engajadas nas causas, na questão das cotas, que defendem o vestibular indígena para essa população estar sendo inserida dentro da universidade” (Entrevista, 18/08/2016). São pessoas comprometidas em tornar a universidade mais multicolorida.

Diferenças étnico-raciais, de gênero, sexuais, geracionais, culturais, religiosas, de interesses e de orientação política compõem o curso de licenciatura em História colaborador da pesquisa. “Eu esperava que ia vir aqui [para o curso de História] e ouvir falar mal de Igreja Católica. Não que eu ligue, porque eu sei como são as coisas. Mas foi uma coisa que eu me surpreendi até, o respeito à religião” (acadêmico Sandro, Entrevista, 21/07/2016).

Há a percepção de que essas diferenças estão relacionadas às diversidades presentes no curso que precisam ser respeitadas. “E, dentro do curso de História, principalmente, eu vejo isso como uma ótima oportunidade para a gente, além de conhecer, também saber lidar com essas questões” (acadêmico Breno, Entrevista, 11/07/2016).

Um dos legados da modernidade, prezados pelo currículo do curso pesquisado, é a igualdade entre os seres humanos. A igualdade da modernidade pretende uniformizar os humanos, independentemente de nacionalidade, classe, religião, gênero, sexualidade, etnia/raça, geração etc., desconsiderando direitos que são necessários a grupos específicos afetados por formas particulares de violência, restrição, opressão, discriminação, desvantagem etc.

De acordo com Candau (2008, p. 47): “[...] atualmente a questão da diferença assume importância especial e transforma-se num direito, não só o direito dos diferentes a serem iguais, mas o direito de afirmar a diferença”. Entre a igualdade e a diferença não pode haver uma oposição, mas sim uma articulação. “Não se trata de afirmar um pólo e negar o outro, mas de articulá-los de tal modo que um nos remeta ao outro” (CANDAU, 2008, p. 47). Participantes do currículo do curso analisado têm a intenção de estabelecer relações mais igualitárias com as diferenças, nem sempre bem-sucedidas.

Esse contexto plural e as iniciativas de formação do sujeito crítico, questionador das desigualdades, têm efeitos promissores, pois podem levar à autorreflexão e à mudança de posturas. “Eu acho que eu tenho reflexos e práticas que são machistas, são racistas, são preconceitos de gênero, mas que hoje, até por causa do curso também, eu me policio muito e tento diminuir o máximo isso” (acadêmico Toni). Um espaço de reflexões coletivas com as diferenças pode produzir posturas menos discriminatórias, mas também pode ter muitos conflitos.

Pelas entrevistas, verifiquei que a licenciatura em História procura configurar identificações e criar consciências críticas que consigam perceber as desigualdades de classe, de gênero, de orientação sexual, étnico-raciais, entre outras. Embora esse objetivo não esteja explícito no projeto pedagógico do curso, pretende-se manter um ambiente em que exista “quase que uma vacina, um rechaço a esses tipos de discriminação” (professor Miguel, Entrevista, 18/08/2016).

Também se objetiva formar profissionais que se contraponham às discriminações, preconceitos e racismos, “[...] porque é claro que qualquer tipo de preconceito é condenável e ele tem que ser superado. Como você supera depende de como você avalia” (professor Tomaz, Entrevista, 14/12/2016).

No projeto pedagógico do curso, apenas a disciplina de Tópicos Temáticos em História Africana e Afro-Brasileira inclui em sua ementa a discussão da educação das relações étnico-raciais que tem como finalidade contribuir para o combate às inferiorizações e superiorizações raciais. Todavia não é proposto um debate a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004) no documento, assim como em projetos pedagógicos de licenciaturas em História brasileiras analisados por Mauro Coelho e Wilma Coelho (2018).

A iniciativa de educação voltada para as relações étnico-raciais está pautada na percepção de que não podemos ignorar as desigualdades étnico-raciais, mas também “[...] há que ter presente as tramas tecidas na história do ocidente que constituíram a sociedade excludente, racista, discriminatória em que vivemos e que muitos insistem em conservar” (SILVA, 2007, p. 493). Tais questões são enfatizadas mais na disciplina de Tópicos Temáticos em História Africana e Afro-Brasileira. A acadêmica Maria lembrou que nesta disciplina se “[...] trabalhou a riqueza cultural do negro. [...] Não só como uma cultura fraca que foi dominada pela cultura branca [...] Ou um grupo fraco que foi dominado por outro” (Entrevista, 29/08/2016).

O curso está mais focado em uma história branca e europeia, pretendendo formar o professor-pesquisador crítico e antirracista. “Você estuda Teoria da História, você vê os teóricos... Na verdade, é tudo Europa, né. Aí tem, por causa de uma lei foi inserida uma matéria de tópicos que tem uma carga horária muito menor de África” (acadêmico Ernesto, Entrevista, 25/08/2016).

Os brancos são os que mais aparecem nos conteúdos do curso, sejam como personagens históricos, sejam como referências nos estudos. “Nossa... Na História, ele [o branco] aparece desde o começo, desde o início, desde a origem... [risos]” (acadêmica Joana, Entrevista, 11/07/2016). Negros e indígenas aparecem mais como dominados, escravizados, enganados e sem atuação de destaque na história.

A acadêmica Gabriela recordou que o negro apareceu, muitas vezes, nos assuntos discutidos no curso na condição de escravo e “[...] o indígena apareceu como um sujeito que foi ludibriado com a chegada dos portugueses aqui. O indígena e o negro apareceram como se fossem enganados e explorados pela elite” (Entrevista, 30/08/2016). Os negros e indígenas aparecem mais como subjugados e enganados pelos poderosos brancos. Essas representações constituem as marcas do eurobrancocentrismo das narrativas dominantes que subsidiam o racismo.

Acadêmicos da licenciatura em História falaram acerca da proposta subversiva de ler as narrativas dominantes eurobrancocêntricas contra elas próprias em uma aula de História do Paraná.

Na apresentação de um grupo de acadêmicos do quarto ano sobre o livro ‘Viagem à Comarca de Curitiba’ (1820) de Auguste de Saint-Hilaire, os estudantes, ao final da apresentação, atendendo ao pedido do professor, teriam que mostrar qual poderia ser a utilidade dessa obra para as aulas de história na escola. Os acadêmicos argumentaram que por mais que o enfoque do autor seja bastante eurocêntrico e racista, questão enfatizada por eles que pode ser discutida em aula, são mostrados exemplos da resistência indígena, representada na obra como ataques dos ‘selvagens’ , ao domínio dos fazendeiros. Segundo os acadêmicos que apresentaram, é preciso filtrar o eurocentrismo de Saint-Hilaire para mostrar o protagonismo indígena em uma interpretação crítica da obra. (Aula de História do Paraná, Caderno de Campo, 12/05/2016).

Mesmo que a referência bibliográfica utilizada para a aula seja eurocêntrica, existe a possibilidade de criticá-la, discuti-la, desconstruí-la, recontextualizá-la e reapropriar-se dela para que sirva ao nosso interesse de reposicionar os sujeitos da/na história, mostrando seu protagonismo. Com isso, é possível contestar estereótipos de cunho racista.

O protagonismo negro, sob a forma de resistência cultural e religiosa, foi também enfatizado em uma aula de História do Brasil III.

Naquela aula sobre a república velha (1889-1930), foi mencionado pelo docente que os grupos populares foram submetidos à repressão do Estado naquele período. No Rio de Janeiro, os terreiros de candomblé eram fechados pela polícia e os cultos afro-brasileiros proibidos, os quais continuavam sendo praticados, clandestinamente, nos fundos de quintal. (Caderno de Campo, 08/04/2016).

As denúncias de violências sofridas pelos indígenas e negros podem alertar os estudantes acerca da produção de processos de exclusão e de estigmatização sociocultural. Porém, além disso, é relevante mostrar as resistências desses povos para enfatizar seus protagonismos históricos. Tal prática pode contribuir no combate aos preconceitos raciais.

A estudante indígena de História entrevistada, a acadêmica Joana, disse que sofreu e ainda sofre preconceito e discriminação na sociedade, na universidade e no curso de licenciatura em História colaborador deste estudo. “O que eu acho, assim, que eles pensam que o lugar do indígena é lá no mato e que não deveria estar numa universidade tentando se formar também” (acadêmica Joana). Injustas representações das identidades étnico-raciais circulam no curso pesquisado.

O professor Agostinho afirmou que, no curso, “contra negro e indígena, é muito forte o preconceito” (Entrevista, 09/11/2016). Porém é possível perceber pelas entrevistas, apesar de não constar no projeto pedagógico do curso, que o antirracismo é parte integrante da formação crítica de docentes de História que o curso pesquisado tem o intuito de realizar. “Mas eu acho que, muitas vezes, isso [o preconceito racial] está implícito no nosso próprio modo de agir ou no olhar que você direciona para o outro” (acadêmica Rafaela). O racismo permeia contextos e se manifesta de maneira nem sempre consciente.

Mesmo os estudiosos das relações étnico-raciais não estão livres do racismo (CARDOSO, 2014). Podemos ser tomados por sentimentos racistas de maneira involuntária. “Como a gente é fruto de uma sociedade ainda muito racista, a gente acaba trazendo alguns ranços. E acho que o professor universitário também não está isento disso” (acadêmico Inácio, Entrevista, 17/08/2016).

O professor de História que adota uma postura antirracista precisa estar atento às formas mais explícitas e às mais implícitas de racismo para decodificação dos códigos raciais nas atitudes racistas percebidas no seu cotidiano (PASSOS, 2013). Essa é uma vigilância (que não deve ser apenas do professor de História) para a vida toda, porque fomos educados por uma sociedade naturalizadora de desigualdades, preconceitos e discriminações raciais.

Muitas vezes, representações estereotipadas e inferiorizantes das diferenças étnico-raciais capturam os sujeitos, porque são incorporadas durante suas trajetórias de vida, de maneira inconsciente, como normais. O despertar para a consciência desse processo não é pleno, no entanto, “se somos sempre assujeitados, lutemos por formas de sujeição que não nos submetam tão radicalmente naquilo que mais nos é caro - nossa subjetividade” (FISCHER, 2011, p. 239).

Com relação ao despertar de uma consciência antirracista, Frankenberg (2004) expõe sua experiência como uma antirracista branca: “Embora a transformação inicial tenha tido proporções de um grande terremoto, há sempre espaço para um tremor subsequente ao abalo principal, há sempre necessidade de um novo despertar” (FRANKENBERG, 2004, p. 314). Para os brancos, pode ser tenso e difícil reconhecerem-se, constantemente, como privilegiados pelas desigualdades étnico-raciais.

Docentes da licenciatura em História pesquisada apostam na possibilidade de que estudantes indígenas, negros, cotistas raciais e de escola pública (com experiências em contextos de privações) construam um engajamento político contra as injustiças sociais: “[...] é uma possibilidade, não é uma garantia, que são pessoas que podem ter possibilidade de problematizar melhor isso [a exclusão] e trabalhar melhor isso na escola” (professora Luna, Entrevista, 22/11/2016). Todavia a identificação com a perspectiva crítica produzida diante das desigualdades não é a única possibilidade e nem é permanente, porque os contextos sociais afetam as pessoas de diferentes modos, criando efeitos distintos, em diferentes momentos.

A força da ressignificação de ideias e de uma crítica perspicaz não supera, de uma vez por todas, representações impregnadas nos contextos, coniventes com as desigualdades (mesmo que os sujeitos não percebam) e que produzem verdades convincentes para a vida das pessoas. “Por mais usos transgressores que se façam da língua, das ruas e das praças, a ressignificação é temporária, não anula o peso dos hábitos com que reproduzimos a ordem sociocultural, fora e dentro de nós” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 347).

O curso analisado insiste no âmbito da possibilidade de formar o profissional que perceba as injustiças sociais e “[...] uma pessoa que seja comprometida com uma sociedade mais justa. Uma pessoa que seja aberta ao diálogo, que seja democrática. Um profissional que tenha senso de justiça acima de qualquer coisa” (professor Agostinho, Entrevista, 09/11/2016). Esse sujeito também poderia combater injustas relações étnico-raciais pautadas no racismo.

O trabalho no âmbito dessa possibilidade de formação pode ser relacionado com a ideia de que “tudo sempre pode ser de outra maneira e o que aceitamos como ordem natural nada mais é do que uma sedimentação de práticas hegemônicas marcadas pela exclusão, instituídas por atos de poder, de outras possíveis ordens [...]” (LOPES, 2013, p. 17).

A licenciatura pesquisada pretende formar sujeitos esclarecidos e antirracistas, afetados pelas disciplinas curriculares, aptos para ensinar estudantes nas instituições de ensino, mas também sujeitos pesquisadores a partir de uma perspectiva crítica do conhecimento.

Apesar de questioná-la, essa perspectiva, muitas vezes de modo ambivalente, adapta-se à norma branca e eurocêntrica, disfarçada de universal, devido à dificuldade de ruptura com representações fortemente arraigadas. “Olha, a gente busca um olhar crítico, mas a história que a gente tem acesso aqui [no curso de licenciatura em História], apesar da gente criticar, é uma história eurocêntrica” (acadêmica Rafaela).

Para criar docentes críticos e antirracistas, no curso de licenciatura em História participante da pesquisa, ainda está muito forte e naturalizada a ideia de que os moldes dessa formação devem ser constituídos, majoritariamente, pelos conteúdos eurobrancocêntricos que menosprezam o protagonismo negro e indígena.

4 APONTAMENTOS FINAIS: ENTRE OS LIMITES, O EUROBRANCOCENTRISMO E AS EXPECTATIVAS DE UMA FORMAÇÃO CRÍTICA E ANTIRRACISTA

Constituiu-se uma forte tradição disciplinar dominante nas licenciaturas em história no Brasil, “[...] pautada na divisão quadripartite , infensa à crítica à preponderância da perspectiva eurocêntrica e que assume a prática docente como uma instrumentalização do saber [acadêmico] de referência para fins didáticos” (COELHO; COELHO, 2018, p. 25).

A formação crítica pretendida pelo curso pesquisado não tinha como foco colocar sob suspeita a epistemologia moderna, apesar de que eram feitas algumas críticas ao eurocentrismo e à ideia de supremacia branca. A crítica de Garcia (2001, p. 42) menciona: “O esclarecimento, por meio da posse do conhecimento, é pressuposto da produção de um sujeito soberano em seu saber e em suas ações no mundo e na história”. Um sujeito pleno, acabado, eurocentrado e branqueado pelas alvas luzes da razão moderna.

No currículo da licenciatura em História participante da pesquisa, de modo ambivalente, coexistem críticas e conivências com o eurobrancocentrismo. A formação crítica e antirracista esperada não é plena, pois os sentidos que guiam os rumos da formação mudam e não afetam todos da mesma maneira.

Ênfases na racionalidade moderna feitas na licenciatura em História participante da pesquisa situaram a ciência eurocentrada como a instância máxima de produção do conhecimento, desconsiderando outras lógicas de produção do conhecimento advindas de culturas subalternizadas.

Embora a Europa e o branco, enquanto referenciais, sejam os eixos principais em torno dos quais o currículo do curso ainda se movimenta, também acontecem eventuais iniciativas de mostrar os protagonismos históricos dos indígenas e dos negros que servem para o combate às representações racistas.

A licenciatura em História analisada realiza um trabalho contra preconceitos, discriminações e baseado no antirracismo. No entanto preconceitos, estereótipos, racismos e discriminações estão presentes no curso.

Representações racistas são muito difundidas na sociedade e, mesmo inconscientemente, elas nos capturam. Para combatermos o racismo no percurso curricular, questionando o eurocentrismo, precisamos de contínuos preparos com uma formação crítica específica, mesmo não plena.

Tal formação, além ter a intenção de destronar a branquidade, precisa estar pautada no reconhecimento do valor de saberes ancestrais e de protagonismos históricos de negros e indígenas. Uma formação crítica e antirracista de docentes de História precisa também estar referenciada em versões da história que não estejam restritas ao mundo branco.

1Por razões éticas, não revelo o nome da instituição, dos entrevistados e observados. Utilizo pseudônimos para referenciar as falas citadas de entrevistas.

2Não coloquei o projeto pedagógico da licenciatura nas referências para não revelar o nome da instituição e nem o cito de maneira direta.

3O projeto pedagógico deste curso estava passando por uma rediscussão a partir do parecer e da resolução mais atuais do Conselho Nacional de Educação sobre as diretrizes curriculares nacionais para formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e formação continuada de professores (BRASIL, 2015a; 2015b), com o objetivo de uma nova reelaboração. O parecer e a resolução não trabalham especificamente com as legislações relacionadas à diversidade, mas destacam a importância do respeito às diversidades.

4Compreendo que as representações culturais configuram os significados atribuídos às realidades, ainda que não definitivamente. “É dentro dos sistemas de representação da cultura e através deles que nós ‘experimentamos o mundo’: a experiência é o produto de nossos códigos de inteligibilidade, de nossos esquemas de interpretação” (HALL, 2003a, p. 181-2). Para saber mais sobre essa noção de representação, leia Hall (2010).

5Esta identificação étnico-racial, que consta nas tabelas com informações sobre os discentes e docentes do curso, foi a autoidentificação dita durante as entrevistas. Parto do seguinte pressuposto: a identidade não depende apenas do sujeito e de sua escolha, que pode variar de acordo com o contexto e as forças vigentes, mas das relações socioculturais configuradas pelo exterior constitutivo (HALL, 2000). Contudo foi importante perceber como os sujeitos se identificam etnicamente/racialmente para entender melhor seus posicionamentos.

6De acordo com os acadêmicos que apresentavam, este foi o termo utilizado pelo autor da obra discutida. Este termo é bastante criticado, pois é pejorativo e inapropriado para se referir aos indígenas.

7Divisão dos períodos históricos em história antiga, medieval, moderna e contemporânea, situando a Europa como epicentro dos acontecimentos. Na perspectiva eurocêntrica, os povos ágrafos são, por vezes, localizados na pré-história ou considerados como irrelevantes.

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Recebido: 03 de Agosto de 2018; Aceito: 31 de Outubro de 2019

José Bonifácio Alves da Silva: Doutor e mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Licenciado em História pela UCDB. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Diferença Cultural − vinculado à Linha de Pesquisa Diversidade Cultural e Educação Indígena do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCDB; do Grupo de Pesquisa Políticas de Educação na Contemporaneidade e do Grupo de Pesquisa Educogitans − vinculados à Linha de Pesquisa Educação, Cultura e Dinâmicas Sociais do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Regional de Blumenau (PPGE-FURB). Participa do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da FURB. Faz estágio pós-doutoral no PPGE-FURB e é coeditor da Revista Atos de Pesquisa em Educação. E-mail: zezao-boni@hotmail.com, ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4274-5919.

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