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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.25 no.55 Campo Grande set./dic 2020  Epub 01-Abr-2021

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v0i0.1494 

Artigos

Fazendo a “racionalidade” tremer: notas disruptivas acerca da BNC-Formação1

Making “rationality” tremble: disruptive notes about BNC-Formação

Hacer temblar la “racionalidad”: notas disruptivas sobre BNC-Formação

Veronica Borges de Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0002-0011-1769

Ana Paula de Jesus2 
http://orcid.org/0000-0001-6786-7301

2Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


Resumo

Este artigo se propõe a problematizar a lógica da racionalidade científica que marca políticas curriculares para formação docente. Problematizamos os encaminhamentos defendidos nas políticas curriculares, em defesa de discursos de eficiência/eficácia como respostas às demandas da sociedade por uma educação de qualidade. Nosso referencial teórico-estratégico incorpora as discussões de perspectiva pós-estrutural no currículo − a “abordagem das lógicas” −, mais especificamente, a lógica fantasmática. Tendo em vista o diálogo profícuo com Laclau e Mouffe, Glynos e Howarth, em uma perspectiva discursiva, operamos com a abordagem das lógicas sociais, políticas e fantasmáticas. Defendemos que mecanismos de abalroamento “da racionalidade”, via reconfiguração dos cenários e dos desafios da docência, apresentam-se como operadores disruptivos potentes no campo da Formação Docente. Nossa estratégia passa por outras leituras dos documentos curriculares − Parecer CNE/CP n. 22/2019, também denominado de BNC-Formação, que revisa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica. Nossas considerações finais apontam para a problematização radical do discurso das evidências no campo da formação docente.

Palavras-chave: políticas de currículo; formação de professores; BNC-Formação; “Abordagem das Lógicas”

Abstract

This article aims to discuss the logic of scientific rationality that marks curricular policies for teacher education. We problematize the guidelines defended in curricular policies, in defense of discourses of efficiency/effectiveness as responses to society’s demands for quality education. Our theoretical-strategic framework incorporates post-structural perspective discussions in the curriculum − the “logics approach” − more specifically, phantasmatic logic. Given the fruitful dialogue with Laclau and Mouffe, Glynos, and Howarth, in a discursive perspective, we operate with the approach of social, political, and phantasmatic logic. We argue that collision mechanisms “of rationality”, through the reconfiguration of teaching scenarios and challenges, present themselves as powerful disruptive operators in the field of Teacher Education. Our strategy goes through other readings of the curricular documents − Opinion CNE/CP n. 22/2019, also called BNC- Formação, which reviews the National Curriculum Guidelines for the Initial Teacher Training for Basic Education and establishes the Common National Base for the Initial Formation of Basic Education Teachers. Our final considerations point to the radical problematization of the evidence discourse in the field of teacher education.

Keywords: curriculum policies; teacher education; BNC-Formação; “Logics Approach”

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir la lógica de la racionalidad científica que marca las políticas curriculares para la formación del profesorado. Problematizamos los lineamientos defendidos en las políticas curriculares, en defensa de los discursos de eficiencia/efectividad como respuestas a las demandas de la sociedad de una educación de calidad. Nuestro marco teórico-estratégico incorpora discusiones sobre la perspectiva post-estructural en el currículo, el “enfoque de la lógica”, más específicamente, la lógica fantasmática. En vista del fructífero diálogo con Laclau y Mouffe, Glynos y Howarth, en una perspectiva discursiva, operamos con el enfoque de la lógica social, política y fantasmal. Argumentamos que los mecanismos de colisión “de la racionalidad”, a través de la reconfiguración de los escenarios y desafíos de la enseñanza, se presentan como poderosos operadores disruptivos en el campo de la formación del profesorado. Nuestra estrategia pasa por otras lecturas de los documentos curriculares: Opinión CNE/CP n. 22/2019, también llamada de BNC-Formação, que revisa las Pautas Nacionales del Currículo para la Capacitación Inicial de Maestros para Educación Básica y establece la Base Nacional Común para Formación Inicial de Docentes de Educación Básica. Nuestras consideraciones finales apuntan a la problematización radical del discurso de la evidencia en el campo de la formación docente.

Palabras clave: políticas curriculares; formación de profesores; BNC-Formação; “Enfoque de la Lógica”

1 INTRODUÇÃO

Evocar notas disruptivas acerca da BNC-Formação, já no título deste trabalho, diz respeito a um posicionamento ético-político que radicaliza a impossibilidade do simbólico em representar o real. Isso significa dizer, por exemplo, que o referido documento está sendo interpelado por apresentar-se como a solução para superar o deficit formativo dos professores, a partir de uma proposta açodada, fortemente marcada pelas “evidências científicas”. Além disso, a estratégia adotada por este trabalho é explorar a máxima de que é impossível dizer a verdade em sua inteireza, porém, ainda assim, alguém precisa tentar fazê-lo (STAVRAKAKIS, 2006).

Assumimos que, ao enunciar disruptivamente a problemática, talvez possamos promover um esgarçamento dos discursos pró-formação docente, que se pautam no fomento das melhores práticas nas políticas curriculares voltadas para essa área. Ressaltamos, no entanto, que entramos nessa disputa para discutir possíveis respostas de um campo, nomeadamente o das políticas curriculares para formação de professores, recorrentemente apoiadas em racionalidades técnicas/científicas. Antecipamo-nos em afirmar, em concordância com Yannis Stavrakakis, que o que está sendo disputado não é que o conhecimento científico não possa ser uma representação “verdadeira” para a realidade. O que está em jogo é como uma realidade pode ser produzida por meio de regras, regras científicas de simbolização, faz-se necessário frisar. Com isso, colocamos em causa uma realidade teorizada a priori, que expulsa o real da experiência.

Confrontamo-nos com uma concepção que vem se fortalecendo no campo, a qual constrói e mantém uma pretensa exterioridade entre discurso subjetivo e mundo objetivo - opera com conceitos abstratos gerais à realidade, como uma forma de confirmar ou refutar a teoria. Nosso argumento se inscreve no campo das políticas curriculares para formação de professores − notadamente a partir da interpelação à expressão-chave da BNC docente: “pesquisa baseada em evidências”. Tal expressão vem se reverberando no campo a partir das políticas de centralização curricular, as quais prescrevem o que fazer ou como conduzir a formação docente, tendo em vista que os dados apontam que a formação inicial e continuada, nos moldes atuais, não responde às demandas da sociedade por uma educação de qualidade.

Problematizamos os argumentos que buscam oferecer garantias para as demandas da educação, como: a eficiência/eficácia do ensino, avaliação docente e discente, educação de qualidade para todos, entre outras. Consideramos que essa ampla defesa pela dita conquista de um canal de expressão da realidade compõe o conjunto de artifícios de um modelo científico que pouco favorece a compreensão e o redimensionamento dos desafios com os quais o campo da formação docente se depara, especialmente no cenário brasileiro.

A fim de promover abalroamento do que estamos chamando de “edifício da racionalidade”, especialmente no campo das políticas curriculares para formação docente, incorporamos a perspectiva discursiva de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, bem como a “abordagem das lógicas” de Jason Glynos e David Howarth, que passamos a discutir a seguir.

2 ÊNFASES NAS LÓGICAS SOCIAIS, POLÍTICAS E FANTASMÁTICAS: A “ABORDAGEM DAS LÓGICAS”

Consideramos fundamental situar a trajetória dos autores Jason Glynos e David Howarth. Ambos foram alunos e interlocutores de Ernesto Laclau e se destacaram, juntamente de Yannis Stavrakakis e Aletta Norval, por pautarem seus trabalhos na desconstrução de um pensamento recorrente, qual seja, o de que está dada a divisão essencialista que aparta os níveis individuais e sociais. A alternativa a tal binarismo se dá pela emergência de um outro modo de conceber subjetividade: “una concepción ‘sociopolítica’ de la subjetividad no reducida a la individualidad, una subjetividad que abre un nuevo camino a la comprensión de lo ‘objetivo’” (STAVRAKAKIS, 2007, p. 17). O que destacamos não é que não haja uma existência de determinado fato/objeto, mas que tal existência nunca se dá fora de suas condições discursivas de emergência. Ou ainda, nos dizeres de Ernesto Laclau, a perspectiva lacaniana possibilita pensarmos a coincidência entre as referidas dimensões:

Ni como la adición de un suplemento al primero [el (pos) marxismo] por parte del segundo [el psicoanálisis], ni como la introducción de un nuevo elemento causal - el inconsciente en lugar de la economía - sino como la coincidencia de los dos en torno a la lógica del significante como lógica... de la dislocación [real]... la lógica que preside la posibilidad de la constitución de toda identidad. (LACLAU, 1993, 96).

Em consonância com a perspectiva discursiva, buscamos reverberar o posicionamento dos autores que se colocam em desacordo com a hegemônica assunção do status paradigmático das leis de causalidade. Corroboramos a máxima laclauniana de que, a fim de empreender o esforço de compreensão da realidade social, importa não conhecer o que a sociedade é efetivamente, mas aquilo que a impede de ser. Assim, os limites do discurso são constitutivos e não algo a ser superado em dado momento por questões de ordem epistemológica, técnica ou outrem.

Consideramos que a perspectiva discursiva, marca dos trabalhos de Laclau e Mouffe (LACLAU; MOUFFE, 2015; LACLAU, 1993), serve-nos como um operador, na falta de uma expressão mais apropriada. Um dispositivo capaz de reativar as condições que possibilitam/possibilitaram a tomada de decisão por uma prática discursiva e não outra, não para evidenciar uma essência que lhe seja própria, mas para reconfigurar a cena dos movimentos que lhe impedem de ser plenamente. Em outros trabalhos, foram ressaltadas as diferenças conceituais entre política e político (BORGES; LOPES, 2019), com vistas a explorar aspectos contingenciais que atuam e favorecem a sedimentação de determinado discurso.

O esforço teórico aqui empreendido caminha no sentido de apresentar e discutir a “abordagem das lógicas”, por considerarmos que tal possibilidade teórico-estratégica permite-nos ampliar a compreensão do social e do político por meio da lógica fantasmática. Aliado a isso, advogamos pela noção de contingência radical, uma noção que nos oferece argumentos para nos contrapormos ao fortalecido discurso das “evidências científicas”, bastante difundido no discurso pedagógico (LOPES; BORGES, 2015). Nessa perspectiva, o sentido de impossibilidade, enquanto falha constitutiva de qualquer objeto para alcançar a identidade plena, apresenta-se como um profícuo e estratégico aspecto a ser considerado nas investigações no campo da formação docente.

É central para este trabalho a argumentação de Glynos e Howarth (2018) que se baseia “na articulação de uma ontologia social que enfatiza a contingência radical e a incompletude estrutural de todos os sistemas de relações sociais” (GLYNOS; HOWARTH, 2018, p. 55). Os autores se alinham à psicanálise lacaniana e enfatizam o caráter disruptivo do Real1, que irrompe sobre qualquer ordem simbólica impondo a marca da plenitude ausente.

Nesse sentido, é possível considerar que, ao explicitar tal enquadre teórico, também estamos reconfigurando os cenários nos quais os sujeitos atuam. Faz-se necessário enfrentar outras discussões por sua sedimentação, por sua naturalização, por exemplo, aquelas que se propõem a levantar apenas as características das coisas/fatos. Tal perspectiva contribui para problematizar o caráter necessário que alimenta o “status quo”, que opera com a “instabilidade essencial” (GLYNOS; HOWARTH, 2018, p. 56) e com o caráter impossível da sociedade (LACLAU; MOUFFE, 2015).

Desse modo, mobilizados por uma ontologia que pressupõe a contingência radical das relações sociais, Glynos e Howarth (2018) desenvolvem a “abordagem das lógicas”: a social, a política e a fantasmática, que são articuladas mutuamente, com vistas a manter a problematização de dado fenômeno. A lógica social refere-se a práticas já consolidadas de determinado domínio, como as práticas de consumo, no universo da economia, ou as práticas avaliativas, no discurso pedagógico. A lógica política nos fornece sentidos que permitem explorar como as práticas sociais se sedimentam, como são contestadas e defendidas. Seguindo ainda a argumentação dos autores, há de se trazer para esta discussão as contribuições de Mouffe e Laclau sobre as lógicas da equivalência e lógicas da diferença. Um dos aspectos principais a serem destacados dessas lógicas é que elas possibilitam compreender/rastrear as articulações estabelecidas entre um particular e um universal, diante de uma contingência radical. Isso proporciona uma compreensão de como os sentidos/práticas/identidades se apresentam de modo parcialmente fixado. Sendo assim, a lógica política se propõe a explorar tais movimentações de sentido articuladas às práticas sociais. Já a lógica fantasmática oferece-se como uma forma de abordagem mais próxima de aspectos ideológicos.

Assim sendo, Matthew Clarke (2018) afirma que entende fantasia como estruturante de nosso senso de interpretação do mundo, a nos proteger do confronto com a incompletude que constitui tanto a nós mesmos quanto a sociedade. Para o autor, a noção de fantasia envolve:

[...] a estruturação da realidade de modo a excluir suas contradições, inconsistências e disjunções, resultando em uma plenitude harmoniosa profundamente sedutora e, desse modo, tornando-nos mais suscetíveis à captura ideológica, conforme elaborado por teóricos da política e da teoria do cinema. (CLARKE, 2018, p. 3).

Ou seja, opera como um fechamento representacional, metafórico e precário e, assim, tem força para fixar sentidos em dado contexto. Vale ressaltar que a lógica fantasmática, de modo indissociado às outras, vai servir como outro modo de apreensão de como os sujeitos se implicam, como se engajam em dada situação.

Uma importante ponderação feita por Glynos e Howarth (2018) refere-se ao significante “lógicas”, as quais podem se referir a gramáticas essencialistas, que insinuam uma compreensão fundacionista. Não obstante, não é desse modo que uma investigação a partir da “abordagem das lógicas”, no enquadre aqui proposto, opera. Segundo os autores, essa teorização está em diálogo com o legado de Wittgenstein que opera com a investigação das “possibilidades” do fenômeno (GLYNOS; HOWARTH, 2007, p. 135) em seus contextos tanto espaciais como temporais. Importante ressaltar que também não se trata de uma análise formal das proposições, com vistas a legitimar/validar dado fenômeno. Nesse sentido, afastam-se de abordagens causalistas e se alinham aos pressupostos ontológicos da sua teorização.

Reapresentaremos, a seguir, um cenário que envolve as políticas curriculares de formação docente e passaremos para a discussão que articula a “abordagem das lógicas” às discussões específicas do referido campo.

3 “ABORDAGEM DAS LÓGICAS”: RECONFIGURANDO O CENÁRIO DAS POLÍTICAS CURRICULARES DA FORMAÇÃO DOCENTE

As lógicas sociais, como vimos argumentando, referem-se a práticas sedimentadas, a naturalizações reconhecidas por suas regras em determinado campo. Vale ressaltar que isso não significa dizer que as práticas sociais estão dadas/fixadas. Elas são informadas por aspectos contextuais e, nesse sentido, operam para além do sistema de regras que “parecem” determiná-las. Tais lógicas, ao serem acessadas em uma investigação, favorecem o levantamento de características associadas a determinada prática social e/ou regime. Nesse ponto, julgamos propícia a identificação dessas lógicas no campo da educação. Por exemplo, tornou-se comum relacionar a mercantilização da educação às políticas neoliberais, por diferentes mecanismos normativos. Seja por meio das práticas de avaliação censitária (localização e responsabilização individualizadas), seja por meio das políticas de enxugamento da máquina estatal, ou ainda pela defesa da bonificação, assim como a defesa da meritocracia, enfim, todas estas são práticas/regimes reconhecidos no campo das políticas educacionais e constituem uma formação discursiva já bastante difundida no campo.

Também podemos dizer que é igualmente recorrente o reconhecimento, e até certa exaltação, da racionalidade científica como a resposta possível para as demandas da sociedade no que concerne à educação. Observamos referências a tal racionalidade na BNC-Formação: “Na construção dos referenciais, a experiência internacional mostra a importância de se trabalhar com fundamento em evidências científicas de como os estudantes aprendem” (BRASIL, 2019, p. 9). No entanto cabe sempre ressaltar que não há um e mesmo modo de analisar os fenômenos sociais, se compreendemos o caráter contingencial da subjetivação. Ainda assim, podemos dizer que há marcas reconhecíveis, que funcionam de modo a operar na sedimentação dos eventos, o que compreendemos como lógicas sociais. Em outros termos, os autores defendem que as lógicas sociais se referem à dimensão sincrônica, ao que se mantém inalterado, ao que coincide e regula as práticas.

Afirmamos que as lógicas políticas podem oferecer respostas sobre como dada prática discursiva emerge, quais as condições de possibilidade para a precipitação de dada situação. Operam com elementos que enfatizam como os cenários podem e são desenhados, inclusive como esses processos discursivos fortalecem as posições reconhecidas e/ou se afastam delas.

Vários estudos (LOPES; BORGES, 2015; DIAS, 2015; PEREIRA; COSTA; CUNHA, 2015) enfrentam o desafio de compreender a dinâmica de como as fronteiras discursivas (políticas) são delimitadas, como se fortalecem e/ou se enfraquecem e se sedimentam de modo precário, provisório e contingencial. Ressaltam as políticas curriculares no cenário brasileiro e como discursos pró “centralização curricular” ganham/ganharam passagem e se consolidam/consolidaram no cenário das políticas curriculares.

Considerando tais contribuições, um primeiro aspecto a ser sublinhado é que, embora estejamos falando de política curricular, o que está em jogo nesta formação discursiva, por exemplo, não é (nunca é) o currículo em si. Diferentes demandas se alinham em torno de um nome (um significante): por uma educação de qualidade; por controle dos processos de ensinar e aprender; por garantias de sucesso escolar; por sugestão (alinhamento com) dos organismos internacionais, tais como Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) etc.; por empregabilidade; pela otimização dos gastos públicos com educação; pela defesa da meritocracia; por inserção no mundo globalizado, como também (ainda que pareça contraditória) pela defesa do nacionalismo; pela liberdade individual, entre tantas outras. Como vimos argumentando, os significantes “eleitos” para expressarem dadas demandas remetem a sentidos e significados relacionais, não têm um sentido em si mesmos.

Ao explorar um pouco mais sobre como se dá o alinhamento em torno de um significante como a centralização curricular, por exemplo, temos a tensão entre lógicas diferenciais e equivalenciais. Estas funcionam de modo relacional e mutuamente constitutivo diante de um antagonismo em comum. No caso, o discurso da “falta de qualidade da educação” opera como antagonismo na instituição do discurso “centralização curricular”. Há um alargamento de sentidos, a lógica equivalencial se sobrepõe à lógica diferencial, para que seja possível uma articulação política, para que uma decisão possa ser tomada. Reparem que não há uma positividade nessa articulação, e sim uma fixação de sentidos por uma ameaça constitutiva. Também não há um caráter necessário, tendo em vista a radical contingência, o caráter impossível da significação - negatividade e contingência radical inscrevem-se na lógica política.

O que colocamos em causa é a compreensão de como a lógica política está relacionada com o movimento de “instituição do social”, quer pela sua contestação, quer pelo seu fortalecimento. Como já afirmamos, ela explora os limites da formação social a partir da influência da psicanálise lacaniana, mas também a partir do enquadramento ontológico.

Com vistas a abordar a lógica fantasmática, estaremos adensando a discussão de modo mais explicitado: esta lógica se apresenta como uma possibilidade de oferecer uma gramática que explora por que dado significante “gruda/adere” (“grip”) aos sujeitos. Para os autores, a lógica fantasmática contribui tanto para a compreensão da resistência por mudança das práticas sociais como também para o ritmo e direção da mudança, quando esta ocorre. Vale ressaltar que a fantasia abordada nesse enquadre teórico não se trata de uma ilusão da realidade. Não se trata, igualmente, de algum modo que o sujeito possa compor (ou forjar) o universo no qual está inserido, mas é um modo de garantia de que a radical contingência da realidade social - o caráter político do social - permaneça na superfície, seja para o fortalecimento, seja para o apagamento de determinadas práticas. Mais do que isso, é importante entender que as fantasias são o suporte para o que denominamos realidade, nos dizeres lacanianos.

Conforme já foi dito, as lógicas políticas estão ligadas a momentos de contestação ou instituição do social, com forte ênfase no caráter contingencial; e, nessa medida, também estão conectadas às lógicas sociais, quer por sua defesa, quer por seu enfraquecimento via precipitação de antagonismos. Estes, por sua vez, indicam os limites do social. A máxima “sociedade impossível” expressa o caráter “faltoso”, parcial da estrutura, que somente encontra alguma objetividade como marca da ausência de plenitude. Se a lógica política se ocupa de mostrar a ­contingência radical e o caráter não necessário de quaisquer fixações de sentidos, então a tarefa reservada à lógica fantasmática implica reiterar determinada prática ou ativamente refutá-la. A lógica fantasmática é o canal que alavanca determinadas práticas discursivas, por reverberações discursivas beatíficas ou horríficas. Em linhas gerais, à guisa de exemplos, as dimensões beatíficas operam na promessa de plenitude caso determinado obstáculo (discursivo) seja transposto exacerbando um sentido de onipotência. Já as lógicas horríficas operam a partir de imagens desvitalizantes, que impõem certa impotência diante de determinadas práticas (sempre discursivas).

A potência das lógicas fantasmáticas interconectadas às outras lógicas, as políticas e as sociais, está em sua pretensão de apreender o modo como os sujeitos organizam sua satisfação (o gozo nos moldes da psicanálise lacaniana). Como a energia (catexial) dispendida adere-se a determinadas respostas discursivas, sem que haja uma lógica racional subjacente. Se podemos expressar alguma organização desse modo de funcionar, esta está dada pela força disjuntiva operada no/pelo inconsciente em operações metafóricas e metonímicas (se optamos por responder pela linguística), ou por condensação ou deslocamento (por força do pensamento psicanalítico).

Em uma tentativa de sumarizar a discussão, podemos dizer que as lógicas políticas se prestam a explanações sobre as mudanças discursivas em seus deslocamentos, com ênfase no caráter não necessário das fixações de sentido. Já as lógicas fantasmáticas vão encontrar canais para expressarem o espaçamento, o ritmo e a direção para a qual as mudanças discursivas apontam. Tudo isso nos ajuda a compreender um modo de capturar, dito de outra forma, um modo de enunciar como os sujeitos expressam, observando a radical contingência das relações sociais e tendo em vista sua condição de sujeitos de desejo. Para Glynos e Howarth (2018):

[...] o foco na contingência também está ligado à prática da crítica. Um modo de crítica envolve a combinação de Derrida e Foucault, gerando a “genealogia desconstrutiva” de um regime ou prática social. A tarefa aqui é reativar e tornar evidente estas opções que foram bloqueadas durante o surgimento de uma prática - os conflitos e forças que foram reprimidos ou derrotados - para mostrar como a configuração presente das práticas se baseia em exclusões que revelam o caráter não necessário da formação social atual, e para explorar as consequências e efeitos potenciais de tais “repressões”. Por outro lado, no modo do que poderíamos chamar de uma crítica onto-ética, a tarefa é interrogar criticamente as condições sob as quais uma prática ou regime social particular fixa os sujeitos a despeito de seu caráter não necessário. Esse modo de crítica nos fornece um meio de interrogar criticamente o desejo de fechamento (fantasmático). (GLYNOS; HOWARTH, 2018, p. 69-70).

Do ponto de vista teórico estratégico, essa busca “pelo modo como os sujeitos negociam com a radical contingência das relações sociais como sujeitos de desejo” nos oferece uma amplitude maior de compreensão de como as práticas discursivas se colocam em marcha. No campo da educação, mais especificamente nas políticas curriculares para formação docente, tal abordagem pode ser uma profícua estratégia para compreendermos os dilemas e desafios a serem enfrentados nessa área. Assim, com a “abordagem das lógicas” e com foco na lógica fantasmática, algumas questões podem ser enunciadas: como inventariar os (novos) fenômenos e práticas no discurso pedagógico? Como e por que esse novo regime de práticas emerge e ganha força? Como encontrar uma gramática para expressar o modo de funcionamento dessas novas práticas discursivas na medida em que discursos são fixados?

4 NOTAS DISRUPTIVAS DA POLÍTICA CURRICULAR PARA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: A BNC-FORMAÇÃO

Ainda que o foco seja BNC-Formação (Parecer CNE/CP n. 22/2019), apontamos para a inserção dessa discussão em um cenário mais amplo das políticas curriculares para formação de professores. Atentarmos para isso se faz necessário, tendo em vista a aposta no caráter discursivo deste exercício de análise. Se, para Laclau e Mouffe, discurso pode ser entendido como uma totalidade relacional decorrente de práticas articulatórias, também podemos dizer que ele não se reduz ao que parece estar fixado, mas opera por jogos de linguagem que, performaticamente, inventam maneiras de fixar sentidos.

Vale destacar que a análise aqui defendida não se furta de operar na ambivalência: tanto circunscreve como extrapola o referido documento. Argumentamos que as formações discursivas interpretadas incidem em uma retórica causal, objetivista e racional − “o discurso das evidências científicas”. Considerar este discurso do ponto de vista da lógica política nos remete à subversão das demandas diferenciais em demandas equivalenciais. Identificamos como demandas diferenciais a defesa da autonomia docente, a qualidade social da educação, um maior diálogo com a cultura, a melhoria das condições estruturais das escolas, a não centralização curricular, a inclusão social, a manutenção da Resolução CNE/CP n. 2/2015 (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica), a valorização do magistério, entre tantas outras. Sendo assim, a cadeia equivalencial se expande diante de um antagonismo. Vale destacar que as demandas não são iguais, tornam-se equivalentes diante de uma “ameaça” comum.

Na BNC-Formação, percebe-se que há tentativas (discursivas) de apontar saídas/dar respostas para o grande desafio de ofertar educação de qualidade para todos. Nesse sentido, no documento, a relação antagonística se apresenta em relação ao que se supõe produzir essa propalada “falta de resultados” - a (deficitária) formação docente. Uma afirmação amplamente consensuada nos discursos das políticas educacionais em documentos oficiais, conforme já discutido no campo do currículo e/ou da formação docente e outros campos da educação.

O documento da Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) reformula as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica (Resolução CNE/CP n. 2/2015) e tem como proposição dar um norte para a formação no país. Insere-se no movimento em prol da centralização curricular, corroborando vários pontos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Básica, como também das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Docente.

O recurso retórico do texto, como também o panorama político brasileiro, centra força em configurar um cenário “inaugural”, o discurso de que pela primeira vez foi construído o consenso no campo educacional, no qual o alinhamento com a BNCC promove a efetividade da aprendizagem (decisões pedagógicas com base em evidências), assegurando educação para todos:

A BNCC inaugura uma nova era da Educação Básica em nosso país. Pela primeira vez na história, logrou-se construir, no Brasil, um consenso nacional sobre as aprendizagens essenciais, que são consideradas como direito de todos e, portanto, devem ser, ao longo de todas as etapas e modalidades, asseguradas na Educação Básica.

Para torná-las efetivas, os professores devem desenvolver um conjunto de competências profissionais que os qualifiquem para colocar em prática as dez competências gerais, bem como as aprendizagens essenciais previstas na BNCC, cuja perspectiva é a de oferecer uma educação integral para todos os estudantes, visando não apenas superar a vigente desigualdade educacional, mas também assegurar uma educação de qualidade para todas as identidades sobre as quais se alicerça a população brasileira. Desse modo, é imperativo inserir o tema da formação profissional para a docência neste contexto de mudança que a implementação da BNCC desencadeia na Educação Básica. (BRASIL, 2019, p. 1-2, grifo nosso).

Reparem que o exaltado caráter inovador deste texto político se esvai ao defender práticas que se apoiam em evidências e ao fazer uso de um discurso amplamente conhecido e reconhecido: o das competências profissionais. Um texto dessa natureza oferece a resposta que se almeja como projeto de sociedade em uma narrativa que suportamos em termos de manter certa inteligibilidade e dar vazão aos nossos anseios. Toda a trama discursiva está urdida nessa ambivalente enunciação que exalta o inaugural, mas viabiliza tal proposta com práticas de outrora, em um alinhamento entre currículo, avaliação e formação docente.

Ao longo do documento, a argumentação vai em um crescente, sedimentando-se em torno da apresentação de “dados” (muitos deles descontextualizados e até falaciosos) que recompõem os caminhos trilhados no campo da formação docente. À guisa de exemplo, podemos citar o trecho do documento que apresenta os resultados gerais de avaliações nacionais de desempenho (Avaliação Nacional de Alfabetização [ANA] de 2006, Sistema de Avaliação da Educação Básica [Saeb] de 2007 a 2017) e os indicadores do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), de 2007 a 2017, que é calculado com base nos dados de aprovação escolar registrados no Censo Escolar e nas médias de desempenho no Saeb. No que se refere aos dados do Ensino Médio, segue-se a afirmação:

Quanto ao Ensino Médio, o Ideb está estacionário, deixando de cumprir a meta projetada a cada dois anos, e se distanciando ainda mais dela. Embora não contemplada no Ideb, a desigualdade de desempenho na Prova Brasil entre grupos sociais, o que tem sido constatado por várias pesquisas acadêmicas, encontra-se em patamares muito altos. Não só a diminuição dessa desigualdade, mas também a melhoria no desempenho desses indicadores, exigem a contribuição dos professores, além do incremento das políticas públicas para a área. (BRASIL, 2019, p. 5).

Observa-se, no trecho selecionado, uma tentativa de estabelecer uma correlação entre a identificação do baixo desempenho dos estudantes nas avaliações em larga escala e a sua respectiva solução: “a contribuição dos professores” e “incremento das políticas públicas para a área”, sem quaisquer preocupações em anunciar quais. Ao buscar afirmar o discurso das evidências científicas e sua respectiva saída, o documento escamoteia a complexidade da modalidade de ensino no Brasil (o perfil socioeconômico cultural dos estudantes, inserção no mercado de trabalho, distorção idade-série, diferenças regionais e locais, diferenças entre instituições escolares públicas e privadas, infraestrutura das instituições, diferenças entre turnos, violência urbana, entre outros), facultando ao professor, principalmente, a responsabilidade de melhorar o desempenho dos estudantes.

A BNC-Formação enfatiza o quanto a aprendizagem vem sendo preterida. Podemos dizer que o “tom” do texto revela um pragmatismo na apresentação da solução para o deficit educacional brasileiro. Exaltando ter o respaldo das evidências científicas, recorre a tabelas e figuras com dados estatísticos e apresenta alguns indicadores nacionais (assim como exemplificado anteriormente) para reafirmar o indubitável mau posicionamento do Brasil, em comparação com outros países. Vale dizer que tal perspectiva é algo recorrente, chega a ser senso comum junto à ampla comunidade escolar. Além disso, também se utiliza da estratégia de se vincular a institutos, organizações, fundações, pesquisas e estudos, tais como: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Todos pela Educação, Fundação Santillana, Varkey Foundation, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Instituto Canoas, Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), entre tantos outros.

Com tais recursos, o documento parece “enunciar” que as demandas da sociedade, para além do campo da educação, representada por tais instituições acima referidas, ancoram-se fortemente na busca por evidências. As respostas também seguem essa lógica objetivista: uma docência menor exige mais docência, recolocam a “simetria invertida” - uma correspondência ponto a ponto entre ensino e aprendizagem. Assim, pretensamente, fecha-se a equação no sentido de atingir o objetivo - apoio para a implementação de uma política que traga resultados -, os resultados de aprendizagem:

Esses resultados [referência ao Ideb estacionário] nos levam a pensar em dois aspectos. O primeiro se refere à regulação da formação e do exercício profissional para o magistério, conforme o inciso III do art. 13 da LDB, pelo qual os docentes devem se incumbir de zelar pela aprendizagem dos ­estudantes. Nesse sentido, a aprendizagem passa a ser a principal incumbência do professor, ou seja, a centralidade do tradicional processo de ensino e de aprendizagem não está mais na atividade meio, ou no simples repasse de informações, mas na atividade fim, que diz respeito ao zelo pela aprendizagem dos estudantes, uma vez que a finalidade primordial das atividades de ensino está nos resultados de aprendizagem.

O segundo aspecto se refere à importância da qualificação do professor para o processo de aprendizagem escolar dos estudantes. Conforme os vários estudos têm apontado, entre eles o da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que envolve o levantamento das políticas relativas aos professores da Educação Básica em 25 países membros, constatou-se que a qualificação dos professores para a qualidade do ensino ministrado é o fator mais importante para explicar o desempenho dos estudantes. Daí porque a formação docente é, dentre os diversos fatores que contribuem para a melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem escolar, o que deve ganhar maior atenção das políticas públicas para a área. (BRASIL, 2019, p. 5)

[...] A experiência internacional também mostra que, para formação inicial de professores, os referenciais podem estar alinhados aos mecanismos de avaliação e acreditação dos cursos de formação inicial e avaliações dos estudantes ou recém-graduados.

[...] Também podem estar articulados a mecanismos de certificação ou registro para controlar o ingresso na carreira docente. Ao longo da carreira, eles podem impactar o desenvolvimento profissional e a formação continuada, e podem estar vinculados à permanência e progressão na carreira por meio de certificações, avaliações e aumentos salariais. Vale salientar, entretanto, que não é necessária a adoção de todos esses mecanismos, mas que algum mecanismo seja adotado, de forma que os referenciais impactem nos processos de ensino e de aprendizagem. (BRASIL, 2019, p. 9-10, grifo nosso).

Pode-se dizer, nos termos laclaunianos, que vem sendo fortalecida a articulação em torno da tentativa de controle sobre o fazer docente, definindo-o como o principal vetor dessa equação. Assim, podemos compreender como o discurso da regulação da formação docente, quer seja ela inicial, quer seja ela continuada, ganha cada vez mais força nas políticas curriculares centralizadas. A fantasia, no referencial aqui adotado, serve como suporte desses projetos, das escolhas e dos desejos, e atua a partir do apagamento da contingência radical das práticas ­sociais e políticas. Faz isso por meio de uma narrativa fantasmática que, nesse caso, confere ao discurso do resultado a plenitude a ser atingida - a dimensão beatífica da lógica fantasmática. Em nossa análise, importa buscar qual(ais) seria(m) o(s) investimento(s) afetivo(s) que impõe(m) ritmo e velocidade aos discursos:

Por que alguns sentidos se instauram como prevalentes? O que bloqueia, ainda que eventual e provisoriamente, o livre fluxo de significados nos significantes e possibilita algum nível de acordo para gerar comunicação? O que nos leva a investir em escrever, ler, educar, fazer política? Como são definidos os critérios e as regras - certa normatividade - capaz de levar a uma decisão política entre tantas outras possibilidades de significação do mundo social? (LOPES, 2018, p. 143).

Ainda em acordo com Lopes (2018), cabe o destaque de que há uma estreita vinculação de todo projeto educacional com a mudança social, e não apenas com a permanência, e que tal relação se dá de modo mutuamente constitutivo. No documento, há promessa de mudanças, inclusive mudanças substantivas e ditas inaugurais. No entanto faz suas apostas na permanência do discurso das evidências, um discurso que se mantém hegemônico na modernidade. Consideramos que a força desse discurso é alavancada porque se espraia por outras dimensões, como a econômica, a política, a sociológica, a cognitiva, que também adotam o objetivismo científico e mantêm a crença de que os dados falam por si. Uma vez apresentados os dados, já não se fazem necessárias tantas justificativas. Isso imprime ritmo às respostas − clareza, objetividade, eficácia; tais promessas ocupam um lugar de realização, no caso, de realização de desejos, uma realização sempre adiada, mas que fantasmaticamente tampona a falta. Aponta horizontes, assim como observado no exemplo do Ensino Médio citado no início desta seção.

Voltemos à cadeia equivalencial “educação de qualidade para todos”. Para manter o alinhamento a esse projeto, impõe-se construir um discurso que explicite de modo claro e objetivo o que se supõe ser o alvo a ser debelado: neste caso, a (deficitária) formação docente. Não por acaso, há a proposição de três competências específicas: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional, enquanto conhecimento, prática e engajamento dizem respeito aos anseios por: reconhecimento (os dados retratam resultados pífios e posicionamentos inferiores nos ranqueamentos); eficiência/eficácia das práticas e por “compromisso com o fazer aprender”. Já o significante profissional opera articulando demandas de diferentes setores. Demandas do discurso educacional, como: valorização do magistério, protagonismo docente, autonomia docente, formação inicial e continuada; demandas científicas: por exemplo, aquisição de conhecimento escolar; e as demandas identificadas como mercadológicas, que transformam a prática docente em commodities e valorizam a homogeneização e pasteurização das tarefas do professor. Assim, compreendemos que o vetor dessa mudança em curso se orienta em dois sentidos: de mudança social (importante investimento afetivo), que pavimenta o terreno dos anseios mais abrangentes e difusos da educação de qualidade; e pragmático, em uma compreensão estreita da profissionalização docente com a ênfase na prática e nas decisões pedagógicas tomadas com base em evidências.

Compreender tais fixações de sentidos em termos de investimento afetivo também nos impõe uma aposta no caráter relacional e contextual da discursividade e dos processos de subjetivação. Há um clamor por mudanças (ainda que sejam via permanências, como no caso das evidências científicas), perfazendo deslocamentos muito particulares nessa busca por realização de desejos. O discurso pela educação de qualidade, um “significante vazio” (LACLAU, 2011, p. 67), apresenta-se como o nome capaz de representar esses anseios. Mas como atingi-la, como conviver com sua impossibilidade, como suportar e manter esse desejo no horizonte? Como vimos argumentando, a lógica fantasmática encontra um canal para expressar esse anseio − a “realidade social” −, mas sua forma de organização é errática, opera de modo oscilante e com posições incompatíveis entre si.

5 CONCLUSÕES: APONTAMENTOS SOBRE OS PROCESSOS DISCURSIVOS

Do ponto de vista da relevância dessa discussão, podemos dizer que, de um modo geral, na grande área das ciências humanas e no campo da educação, já há certo consenso de que operamos em um território em que o paradigma científico está a perder espaço. No entanto, na contemporaneidade, há ainda um retrocesso importante que oferece terreno também para o obscurantismo, haja vista os discursos conservadores em ascensão no cenário brasileiro, como também no internacional.

Ao longo deste trabalho, nosso objetivo foi buscar argumentos que coloquem em suspensão a clareza, a transparência dos dados apresentados, e insistir na ideia de que formação/educação é da ordem do impossível (BORGES; LOPES, 2019). A argumentação de fazer tremer a racionalidade opera de modo disruptivo ou, dito de outro modo, opera incorporando o risco nas variadas ­relações educativas. Nos dizeres de Gert Biesta (2014), seria assumir o “belo risco da educação” sob pena de, ao insistirmos em práticas que buscam o controle e a certeza, ­afastarmos aquilo que talvez seja mais caro ao campo de formação de professores: a possibilidade de invenção da relação educativa.

Com tais preocupações, propomo-nos a investigar possibilidades teórico-estratégicas da “abordagem das lógicas”, sem utilizarmos o termo método e todo seu aparato instrumental. Com isso, já estamos marcando um posicionamento importante que se confronta com o paradigma científico. Nossa aposta no termo teórico-estratégico expressa uma busca de uma linguagem a ser inventada no percurso investigativo. Mais do que isso, assumimos essa estratégia tendo em vista ressaltar que não há práticas de pesquisa previamente dadas a serem aplicadas e que cada investigação vai impor uma abordagem específica a ser engendrada no processo.

Assim, argumentamos que há uma formação discursiva em andamento que se filia às certezas e busca “o ser das coisas”, como discutimos no documento da Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (Parecer CNE/CP n. 22/2019). Um documento que reitera uma lógica bastante fortalecida no campo da educação como um todo e no campo de formação de professores em particular, que almeja o controle da prática docente com a promessa da evidência científica.

Finalizamos com Gert Biesta: “A responsabilidade do educador é a responsabilidade para o que está por vir, sem conhecimento do que está por vir” (tradução livre, BIESTA, 2014, p. 148). Defendemos que docência não cabe em qualquer racionalidade e que as respostas serão dadas a partir de uma condição que não se constrói a priori, que nunca está dada. Mais do que isso, tal condição se apresenta reiteradamente aos sujeitos: de novo, de novo e uma vez mais.

1O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior − Brasil (Capes) − Código de Financiamento 001.

2Cabe salientar que a noção Real aqui utilizada está referenciada pela psicanálise Lacaniana. Segundo Bruce Fink (1998), no livro intitulado “O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo”: “O Real talvez seja melhor compreendido como aquilo que ainda não foi simbolizado, resta a ser simbolizado, ou até resiste à simbolização; pode perfeitamente existir lado a lado e a despeito da considerável habilidade de um falante. [...] O real, então, não existe, uma vez que ele precede à linguagem. Lacan reserva a ele um termo separado para ele, emprestado de Heidegger: ele ‘ex-siste’. Ele existe fora ou separado da nossa realidade”.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 04 de Agosto de 2020; Revisado: 07 de Setembro de 2020; Aceito: 09 de Setembro de 2020

Veronica Borges: Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Psicopedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduada em Psicologia pela UFF. Professora adjunta no Departamento de Educação Aplicado ao Ensino (Deae) da Faculdade de Educação da Uerj, unidade Maracanã. Professora credenciada no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/Uerj), na linha Currículo: Sujeitos, Conhecimento e Cultura. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa do CNPq Discursos sobre Avaliação nas Políticas de Currículo para a Formação e o Trabalho Docente no Espaço Ibero-Americano. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Políticas de Currículo e Cultura. Membro da Association for Teacher Education in Europe. E-mail: borges.veronica@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0011-1769

Ana Paula de Jesus: Mestranda em Educação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd-Uerj), vinculada à linha de pesquisa Currículo: Sujeitos, Conhecimento e Cultura. Especialista em Educação e Relações Raciais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). MBA em Gestão Empreendedora - Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pelo Serviço Social da Indústria (Sesi). Pós-graduada lato sensu em Gestão Escolar: Administração, Supervisão e Orientação na Universidade Cândido Mendes. Graduada em Pedagogia pela Uerj. Diretora adjunta do Colégio Estadual Ignácio Azevedo do Amaral (Ceiaa). E-mail: anapauladejesusdasilva@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6786-7301

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