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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.25 no.55 Campo Grande set./dic 2020  Epub 01-Abr-2021

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v0i0.1479 

Artigos

Versões do campo da Didática na Base Nacional Comum da Formação Docente no Brasil

Versions of the Didactic Field in the National Common Base for Teacher Education in Brazil

Versiones del campo de la Didáctica en la Base Nacional Común de la Formación Docente en Brasil

José Leonardo Rolim de Lima Severo1 
http://orcid.org/0000-0001-5071-128X

Selma Garrido Pimenta2 
http://orcid.org/0000-0003-0785-890X

1Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil.

2Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo, Brasil.


Resumo

Este texto busca discutir como se situa o campo da Didática na terceira versão do parecer para revisão e atualização da Resolução CNE/CP n. 02/2015 e na Resolução CNE/CP n. 2, de 20 de dezembro de 2019, que institui a Base Nacional Comum da Formação Docente (BNC). Percorrendo contribuições de estudiosos(as) por meio de mapeamento de literatura especializada, sustenta o argumento conceitual de que o campo da Didática, representado pelo componente Didática Geral, institui nos currículos das licenciaturas um foco de problematização teórico-prática da mediação da aprendizagem em contextos concretos, relacionando finalidades, conhecimentos e metodologias educativas. O sentido práxico da Didática, consubstanciado em uma concepção crítica e transformadora de ensino, não encontra lugar nos documentos analisados. Ao preconizar o conceito de Conhecimento Pedagógico do Conteúdo em detrimento da complexidade dos saberes que se entrecruzam na formação docente, a terceira versão do parecer privilegiou as tendências didáticas específicas que se produzem com foco no ensino de conteúdos disciplinares. Já no documento final, apesar de assinalar a especificidade do campo da Didática, denotando a viabilidade de um componente curricular de Didática Geral, a BNC despreza as bases sociopolíticas da mediação didática, operando com uma perspectiva restritiva que dissocia o seu caráter metodológico-operativo da reflexão epistemológica e ético-política da Pedagogia.

Palavras-chave: política curricular; competências; formação de professores

Abstract

This text seeks to discuss how the field of Didactics is located in the third version of the advice for revision and updating of the Resolution CNE/CP n. 02/2015 and in the Resolution CNE/CP n. 2, of December 20, 2019, which institutes the National Common Base for Teacher Training (BNC). Going through the contributions of scholars through the mapping of specialized literature, we support the conceptual argument that the field of Didactic, represented by the General Didactic component, establishes in the curriculum of the courses for teacher’s education degree a focus of theoretical-practical problematization of the mediation of learning in concrete contexts, relating educational purposes, knowledge and methodologies. The practical meaning of Didactic, embodied in a critical and transformative concept of teaching, does not find a place in the analyzed documents. When advocating the concept of Pedagogical Knowledge of Content to the detriment of the complexity of knowledges that intertwines in teacher education, the third version of the advice focused on specific didactics trends that are produced with a focus on the teaching of disciplinary content. In the final document, despite mentioning the specificity of the field of Didactic, denoting the viability of a curricular component of General Didactic, the BNC disregards the socio-political bases of didactic mediation, operating with a restrictive perspective that dissociates its methodological-operative character from epistemological and ethical-political reflection of Pedagogy.

Keywords: curricular policy; competences; teacher educacion

Resumen

Este texto busca discutir cómo se ubica el campo de la Didáctica en la tercera versión del parecer para revisión y actualización de la Resolución CNE/CP n. 02/2015 y en la Resolución CNE/CP n. 2, de 20 de diciembre de 2019, que establece la Base Nacional Común de Formación Docente (BNC). Revisando las contribuciones de estudiosos(as) a través del mapeo de literatura especializada, apoya el argumento conceptual de que el campo de la Didáctica, representado por el componente Didáctica General, establece en los planes de estudio de las Licenciaturas un enfoque de problematización teórico-práctica de la mediación del aprendizaje en contextos concretos, relacionando propósitos educativos, conocimiento y metodologías. El significado práctico de la didáctica, encarnado en un concepto crítico y transformador de la enseñanza, no encuentra lugar en los documentos analizados. Al defender el concepto de Conocimiento Pedagógico del Contenido en detrimento de la complejidad de los conocimientos que se entrelazan en la formación del profesorado, la tercera versión del parecer se centró en las tendencias didácticas específicas que se producen bajo un enfoque en la enseñanza del contenido disciplinario. En el documento oficial homologado, a pesar de señalar la especificidad del campo de la Didáctica, que denota la viabilidad de un componente curricular de la Didáctica General, la BNC ignora las bases sociopolíticas de la mediación didáctica, operando con una perspectiva restrictiva que disocia su carácter metodológico-operativo de la reflexión epistemológica y ético-política de la Pedagogía.

Palabras clave: didáctica; formación del profesorado; Pedagogía

1 INTRODUÇÃO

As motivações que provocaram a tessitura deste texto emergem de nossa experiência profissional como docentes no curso de Pedagogia e demais licenciaturas, enraizada em diferentes tempos e espaços que demarcam posições de diálogo sobre questões envolvendo a Pedagogia e a Didática. Desses lugares experienciais, percebemos confrontos recorrentes que mobilizam o cenário formativo de professores(as) e que repõem, continuamente, indagações sobre a formação pedagógica em cursos de licenciatura: há lugar para um componente de Didática Geral? Que expectativas formativas nutrem a Didática como componente da formação de professores(as)? Como a Didática Geral se legitima como campo de conhecimento no contexto de consolidação das Didáticas Disciplinares? Questões como essas ganham especial relevância no contexto atual em função da proposição de novas Diretrizes Curriculares Nacionais e da Base Nacional Comum para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica (BNC da Formação Docente), pelo Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2019b ).

As considerações analíticas apresentadas neste texto se voltam para a terceira versão do parecer para revisão e atualização da Resolução CNE/CP n. 02/2015 (BRASIL, 2019a) e para a versão finalizada homologada pelo Conselho Nacional de Educação, em 20 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019b). Na terceira versão do parecer, entre diversos pontos controversos e divergentes das possibilidades de qualificação dos currículos sinalizadas pela tradição de estudos acumulados no campo da formação de professores(as) no Brasil, esse documento refere-se apenas às Didáticas Específicas e metodologias de ensino no Grupo II de componentes curriculares, destinados ao aprofundamento dos conteúdos específicos de cada curso de licenciatura. Na Resolução homologada, a Didática aparece como campo singular estruturante do Grupo I de componentes curriculares, destinados a conteúdos de base comum para todos os cursos de licenciatura, os quais compreendem “[...] conhecimentos científicos, educacionais e pedagógicos e fundamentam a educação e suas articulações com os sistemas, as escolas e as práticas educacionais” (BRASIL, 2019a, p. 6).

Em ambas as versões, o campo da Didática se encontra interpelado pela necessidade de defender seu lugar (inter)disciplinar em um projeto crítico de formação de professores(as), científica e socialmente referenciado nas demandas populares, alinhando-se à compreensão de que a complexidade dos processos pedagógicos exige do(a) professor(a) o domínio de recursos conceituais e metodológicos que se situam nas dimensões globais e específicas do ensino, sem se limitar à última. Para tanto, o enfoque da Didática Geral figura como elemento estruturante que permite que o fenômeno do ensino seja compreendido em um contexto de complexas relações sistêmicas envolvendo o saber disciplinar (ALVAREZ MÉNDEZ, 2001), mas que, além dessa referência, se orientam pela crítica pedagógica mais ampla da qual emergem as finalidades e os princípios que dão identidade ao trabalho educativo dentro de um projeto de sociedade e de formação humana.

O objetivo deste texto é, nesse sentido, explorar o campo de reflexões que se abre a partir das questões inicialmente situadas sobre a Didática Geral na formação inicial de professores(as), destacando os limites da ênfase neotecnicista representada na Base Nacional Comum para a Formação Docente. Como as questões são amplas e complexas, o texto não se propõe ao exame aprofundado dessas, mas as toma como roteiro de exploração crítica para delinear possibilidades de compreensão do(s) (entre)lugar(es) da Didática na constituição das matrizes conceituais que devem basear os cursos de Licenciatura.

A análise desses dois documentos permite explorar significados em disputa na formação de professores(as) no Brasil que se acirram em um período de implementação de políticas antidemocráticas e ultraliberais do atual governo, as quais convertem o Conselho Nacional de Educação (CNE) em uma instância de aparelhamento do Estado por representantes do setor privatista. Operando com um quadro de referências que dissocia a formação docente das políticas de valorização e reconhecimento profissional dos(as) professores(as) e da luta pela democratização e pela qualidade da educação pública, o CNE substituiu a Resolução CNE/CP n. 02/2015, que nem sequer havia alcançado status de implementação em escala nacional. Fez isso sem o necessário diálogo com a comunidade científica, associações e sindicatos profissionais e, mais importante, sem considerar as vozes dos(as) sujeitos que vivenciam, nos territórios desse país, circunstâncias de formação e trabalho desafiadoras, as quais deveriam subsidiar a formulação de políticas mais contextualizadas e comprometidas com mudanças estruturais, sem isolar a formação inicial da conjuntura de luta pelo direito à educação e valorização da docência.

2 PARA PENSAR A DIDÁTICA NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO PEDAGÓGICA

O processo de formação inicial de educadores(as) se dinamiza em um espaço plural de contribuições de diferentes campos disciplinares, envolvendo fundamentos, metodologias e cenários práticos do trabalho pedagógico. Na tradição ibero-americana de estudos sobre a organização curricular das licenciaturas, particularmente na brasileira, essas contribuições têm buscado tangenciar as dimensões gerais e específicas que envolvem os saberes e as habilidades profissionais, o que exprime uma preocupação com a contextualização mais ampla do fenômeno pedagógico e, conectado a ele, o fenômeno do ensino.

Tal preocupação carrega uma concepção epistemológica de que os objetivos e objetos do ensino se estruturam pela e na reflexão sistemática sobre a natureza, as finalidades e os princípios ético-políticos do trabalho pedagógico situado em contextos sociais específicos (PIMENTA, 2010). Ou seja, demarca um sentido de que a qualidade da ação do(a) professor(a) deriva da sua capacidade teórico-analítica e prática de articular o seu fazer profissional a um repertório de saberes que se inserem no amplo campo reflexivo-operativo da Pedagogia, evitando o reducionismo - que assola recorrentemente o debate público em educação e se acentua em algumas áreas de conhecimento - no qual essa qualidade é validada por competências instrucionais e pelo domínio de conteúdos específicos do ensino (FRANCO, 2019).

Entre os campos de conhecimento que se situam nesse plano amplo de contribuições formativas, está a Didática, corporificada no componente curricular Didática Geral. Em meio aos dilemas de estruturação interna desse campo que, em si mesmos, representam questões importantes na definição do escopo e contribuições formativas, a Didática Geral vê-se confrontada por discursos que sugestionam a pouca relevância de sua presença nos projetos curriculares, em função de se atrelar a um debate supostamente generalista sobre educação e ensino desvinculado da problemática do conhecimento específico com o qual o(a) futuro(a) professor(a) trabalhará.

A Didática é uma chave conceitual e metodológica fundamental na abertura das possibilidades de análise e intervenção do “quê-fazer” estruturante do trabalho pedagógico, concebendo a mediação educativa como “una actividad histórica y social en constante construcción, que tiene lugar en un determinado contexto económico, social, cultural e político [...]” (ÁLVAREZ MENDEZ, 2001, p. 122). Essa compreensão dialética constitui uma base crítica para a conceituação do objeto da Didática que, na medida em que corresponde a uma varidade de elementos implicados em práticas educativas historicamente situadas, demanda ser investigado “[...] nos contextos sociais nos quais se efetiva - nas aulas e demais situações de ensino das diferentes áreas de conhecimento, nas escolas, nos sistemas de ensino, nas culturas, nas sociedades [...]” (PIMENTA, 2010, p. 17).

Para Libâneo (2010), o objeto da Didática, assim como discutido em Pimenta (2010) a partir da compreensão contextual e dialética, são os elementos constitutivos e as condições formativas do ensinar e do aprender. O sentido de ensinar se revela na construção de possibilidades de formação humana a partir de conhecimentos e atitudes e na aprendizagem como processo de mudança qualitativa do estado cognitivo, afetivo e social dos indivíduos. Como tarefa fundamental para a revitalização da agenda investigativa da Didática, o autor infere ser necessária a ampliação dos elementos que a constituem, referindo-se a aspectos “[...] socioculturais, antropológicos, linguísticos, estéticos, comunicacionais, midiáticos” (LIBÂNEO, 2010, p. 69). Ou seja, é preciso situar a análise e a construção do processo didático em um contexto dinâmico e multidimensional, em que as mediações educativas se expressam como busca de concretização de finalidades pedagógicas a partir de escolhas práticas que organizam e dão condições para que as aprendizagens se produzam em situações escolares e não escolares, constituindo espaços de formação para os atores dessas práticas.

As contribuições dos/das autores(as) convergem para o sentido do ato didático como uma síntese resultante da relação entre teoria e decisão situacional. Esse aspecto situacional se refere a contextos concretos atravessados pela pluralidade de opções que adquirem sentido de acordo com enfoques formativos pretendidos, conteúdos da ação (saberes, atitudes, vivências etc.), sujeitos da ação (perfis, modos de relação com saber etc.) e do tipo de mediação educativa exercida.

Para tanto, a Didática é levada a se constituir a partir da teoria da Pedagogia como Ciência da Educação fundada na práxis e no agir transformador das condições que criam e fundamentam as práticas, o que, na análise de Franco (2010), a converteria de teoria do ensino para teoria da formação. A autora esclarece que “como teoria da formação, ela [a Didática] se alimentaria dos pressupostos da ciência pedagógica, ao mesmo tempo em que forneceria os elementos para a contínua revisão dos fundamentos teórico-práticos da Pedagogia” (FRANCO, 2010, p. 92).

Com base no exposto, aponta-se que os estudos em Didática na formação de educadores(as) viabilizam um espaço para problemáticas atinentes às condições e aos processos que qualificam as práticas de ensino como mediações que promovam aprendizagens necessárias ao desenvolvimento cognitivo, afetivo e social de educandos(as) em contextos escolares e não escolares; miram as situações educativas em sua complexidade, para além da dissociação entre conteúdos específicos e princípios metodológicos mais amplos do ensino, derivados dos fundamentos da Pedagogia.

Tendo situado a compreensão sobre Didática como componente estruturante da docência na sua relação com o campo mais amplo da Pedagogia como Ciência da Educação, passa-se a analisar criticamente os (des)lugares desse campo na composição dos projetos curriculares das Licenciaturas a partir das proposições contidas na BNC da Formação Docente.

3 ENTRE RECUOS E LACUNAS: VERSÕES DA DIDÁTICA NA BNC DA FORMAÇÃO DOCENTE

Esse movimento analítico das proposições dispostas na BNC da Formação Docente reflete uma primeira tentativa de aproximação crítica em torno de uma política que começa a se estruturar em 2018, com a divulgação de Proposta para Base Nacional Comum da Formação de Professores (BRASIL, 2018), liderada pelo Ministério da Educação, sob a gestão de Rossieli Soares da Silva, no Governo de Michel Temer.

Dado o histórico de poucas iniciativas de estruturação de agendas voltadas à formação de professores(as) no primeiro ano do governo ultraliberal de Jair Bolsonaro, é possível supor que a proposição desse novo documento se insere na esteira de ações iniciadas no governo anterior que se mantiveram na pauta do Conselho Nacional de Educação (CNE). Em um momento no qual o Ministério da Educação se omite de se articular com estados, municípios e entidades acadêmicas e civis na formulação de políticas que gerem impactos positivos diante dos desafios que envolvem a melhoria das condições de formação e trabalho docente, comportando-se como plataforma de disseminação de conteúdo ideológico que distorce o debate público sobre escolarização calcado em discursos obscurantistas, ações como a BNC da Formação Docente vão sendo assumidas por grupos privatistas que atuam no CNE. É importante destacar esse contexto de ação política, uma vez que alguns traços que caracterizam as proposições formativas do documento são explicadas à luz do perfil dos atores sociais envolvidos no CNE, tratando-se de representantes de conglomerados financistas que defendem uma visão praticista e “barata” de formação docente como um pilar da estratégia de rentabilização da oferta de cursos de licenciatura no Brasil, os quais já são responsáveis por cerca de 70% dos cursos, sendo 88% destes em Educação a Distância (PIMENTA, 2019).

Um outro destaque não menos importante diz respeito ao fato de que o documento é uma prescrição que ainda não se efetivou. Logo, é no percurso de implementação por meio da reformulação de currículos que será possível dimensionar os efeitos práticos do que, por ora, é possível presumir analiticamente, com base em subsídios teóricos resultantes do acúmulo de literatura e pesquisas na área da Educação.

Partindo da apresentação de um panorama de dados de rendimento de estudantes da Educação Básica resultantes de avaliações externas para apontar desafios de construção de alternativas para a melhoria da qualidade do ensino-aprendizagem, a terceira versão do parecer associa o desempenho estudantil a dilemas da formação docente sem referências consistentes a fatores extra e intraescolares em uma dimensão contextual mais complexa. Isso demonstra uma visão reducionista, em que a qualidade da educação dependeria principalmente da ação isolada do(a) professor(a), desconsiderando a importância de políticas sistêmicas de formação e valorização salarial, suporte pedagógico, organizacional, financeiro e infraestrutural que melhorem a capacidade educativa das escolas. Ao mesmo tempo em que apela para um discurso de valorização do trabalho docente, o documento parece acentuar o baixo prestígio social quando substitui a exigência de formação em Licenciatura por cursos aligeirados de complementação e focados na preparação instrumental de bacharéis para o ensino.

Com base na ilustração de referenciais de políticas educativas de 10 países sem a devida sistematização de informações que permitam a construção de quadros comparativos dos contextos históricos e políticos nos quais se situam e com ênfase particular à experiência australiana, o parecer trata de uma série de princípios considerados como “evidências” relativas às esferas da formação, regulamentação e avaliação da profissão docente. Neles, enfatiza-se a concepção da aprendizagem por competências derivadas da reprodução de modelos práticos disfarçados nas expressões “currículo clínico” e “prática clínica”, as quais nem sequer são definidas conceitualmente.

Sem referência alguma à identidade epistemológica do campo da Pedagogia, a proposta carece de uma base explícita de conceituação teórica do que classifica como “conhecimento científico”, “conhecimento educacional” e “conhecimento pedagógico”, ou ainda para o que designa de “ciências para a Educação” (BRASIL, 2019a, p. 33). Para um documento normatizador de políticas curriculares, é ­interessante notar como o emprego desses termos sem o devido esclarecimento conceitual resulta em um atravessamento de perspectivas epistemológicas sem “lugar” no texto, o que produz um efeito tautológico ou redundante, em que diferentes palavras servem para dizer a mesma coisa. Caberia questionar: esses tipos de conhecimento se aproximam e se distanciam em que aspectos? Podem ser equiparados um ao outro? Na perspectiva da Ciência da Educação, é possível compreender o conhecimento pedagógico como de natureza científica; já na perspectiva das ciências para a Educação, o pedagógico se resume à instrumentalização prática derivada da aplicação de aportes de outros campos de saber distintos da Pedagogia, configurada como um saber sem identidade científica.

O campo da Didática Geral não é assumido teoricamente na terceira versão do parecer. O “didático” é um atributo que qualifica “metodologias” e “recursos”, um aspecto tipicamente característico de concepções instrumentais do saber didático. Somente quando se refere às áreas de aprofundamento do curso de Pedagogia, o documento faz uma referência genérica a “princípios didáticos de planejamento, encaminhamento e avaliação [...]” (PIMENTA, 2019, p. 29), denotando a existência de elementos de ordem conceitual que subsidiam esses processos e manifestam natureza didática.

Por outro lado, as Didáticas Específicas adquirem maior destaque, sendo explicitamente sublinhadas no Grupo II de componentes de aprofundamento nos currículos das licenciaturas quando se prevê que “nesta etapa de estudo, o curso deverá oferecer estudos em currículos referenciados na BNCC, metodologias e didática das áreas e/ou componentes” (BRASIL, 2019a, p. 27). As Didáticas Específicas guardam estreita relação com o Conhecimento Pedagógico de Conteúdo (CPC), conceito que possui centralidade na constituição dos elementos formativos e definição de perfil e atuação de professores na proposta da BNC.

Desenvolvido por Shulman (1986 ), esse conceito lança luz à especificidade do domínio das estratégias de ensino e de aprendizagem do conhecimento específico que o(a) docente ministra, apoiando-se em um conjunto de representações e modelos de ação que o(a) auxiliam na construção de formas de mediação pedagógica. Assim como nas Didáticas Específicas, a referência central para validar a escolha das estratégias didáticas é a natureza do conhecimento que se transpõe na relação educativa.

Efetivamente, a base epistemológica dos objetos de ensino é um aspecto fundamental na composição das estratégias didáticas, uma vez que os processos de aprendizagem ocorrem diferenciadamente em função da natureza disciplinar e do processo metodológico de construção do conhecimento tanto para quem ensina quanto para quem aprende. Por isso mesmo que o próprio Shulman (1987) afirma que, na knowledge base para o ensino, integra-se o CPC, mas também o conhecimento específico do conteúdo, o conhecimento curricular, o conhecimento pedagógico geral, o conhecimento dos contextos de ensino e o conhecimento das finalidades educacionais e de suas bases.

A versão oficial homologada em dezembro trata a Didática como campo de conhecimento singular, representando uma desocultação do campo das entrelinhas da terceira versão do parecer. Além de adjetivar um tipo de conhecimento específico, o “conhecimento didático” no inciso VII do artigo 7º (BRASIL, 2019b), o campo da Didática é o segundo dos treze eixos temáticos que compõem o grupo I de componentes de organização curricular dos cursos de Licenciatura. O campo da Didática é associado às seguintes problemáticas ou dimensões do processo de ensino-aprendizagem:

a) compreensão da natureza do conhecimento e reconhecimento da importância de sua contextualização na realidade da escola e dos estudantes; b) visão ampla do processo formativo e socioemocional como relevante para o desenvolvimento, nos estudantes, das competências e habilidades para sua vida; c) manejo dos ritmos, espaços e tempos para dinamizar o trabalho de sala de aula e motivar os estudantes; d) elaboração e aplicação dos procedimentos de avaliação de forma que subsidiem e garantam efetivamente os processos progressivos de aprendizagem e de recuperação contínua dos estudantes; e) realização de trabalho e projetos que favoreçam as atividades de aprendizagem colaborativa; e f) compreensão básica dos fenômenos digitais e do pensamento computacional, bem como de suas implicações nos processos de ensino-aprendizagem na contemporaneidade. (BRASIL, 2019b - Parágrafo II do Art. 12).

A partir desse leque amplo de questões atinentes ao campo didático, é possível pressupor uma matriz de conhecimentos que legitima a configuração de um componente curricular de Didática Geral. Entretanto a tentativa de demarcar uma identidade da Didática com base nessas questões não se limita apenas a uma operação de recorte temático, mas de definição de uma concepção teórico-metodológica de Didática que corresponda à sua natureza práxica e, sobretudo, à sua orientação crítico-reflexiva na formação docente. Desse ponto de vista, o texto pode induzir o entendimento de que os elementos balizados pelo conhecimento didático na compreensão e organização do processo de ensino-aprendizagem podem ser capturados por uma lógica neutra, concretizada em metodologias operativas despidas de um caráter sociopolítico e histórico, o qual se exprime na problematização da atividade docente no contexto de estruturação de projetos de sociedade e de formação humana.

Logo, entendemos que a versão da Didática na BNC Formação se vincula à tradição recorrente de conceituação presente no campo pedagógico, alinhada a paradigmas pragmatistas que a entendem como aporte metodológico às condições do trabalho docente, dissociados de um referencial problematizador das finalidades educativas e dos significados sociais que orientam a ação da escola e dos(as) professores(as).

Defendemos que, para que a escola alcance sua finalidade civilizatória e humanizadora, é fundamental que os processos de ensino-aprendizagem se ancorem em uma Didática que supere as versões da BNC: de uma Didática invisibilizada ou reificada, em seu aspecto metodológico operativo, a uma Didática multidimensional, que conceba o ensino como uma prática social crítica e transformadora.

4 A DIDÁTICA NA CONTRACORRENTE DO NEOLIBERALISMO: POR UMA CONCEPÇÃO DE ENSINO COMO PRÁTICA SOCIAL CRÍTICA E TRANSFORMADORA NA BNC

Diante do quadro problemático que se expõe com o avanço da ação mercadológica no campo das políticas educacionais e, mais especificamente, na rentabilização da formação docente por conglomerados financeiros que operam nas estruturas do Estado, é preciso assumir a necessidade de situar propostas de organização curricular de licenciaturas em uma concepção de ensino como prática social crítica e transformadora. Essa concepção se vincula ao sentido da aprendizagem não como mera repetição de conteúdos assimilados, mas como processo de socialização e produção de saberes a partir de repertórios culturalmente relevantes em situações de ensino orientadas para a emancipação social. Com isso, o estatuto do magistério se volta para os elementos que possibilitam a concretização dessa concepção socialmente potente de ensino, sendo a Didática um elemento estruturante dos processos que dinamizam a relação pedagógica para “[...] a mobilização dos sujeitos para elaborarem a construção/reconstrução de conhecimentos e saberes” (FRANCO; PIMENTA, 2016, p. 541).

Os caminhos da Didática na contracorrente das concepções neoliberais expressas na BNC apontam que, em um país de desigualdades genealógicas com desdobramentos que se acentuam em uma época de retrocessos nas políticas sociais, a formação docente requer ser alinhada a uma lógica multidimensional de ensino “[...] que o compreenda como uma práxis educativa pedagógica, que considere as contradições e dilemas dos contextos nos quais se realiza” (PIMENTA, 2019, p. 35). Assim, a presença da Didática nos currículos das licenciaturas poderá aportar não somente os instrumentos operativos à organização do trabalho pedagógico, mas condições teórico-metodológicas de análise dos fatores históricos, políticos e institucionais que facilitam ou dificultam a aprendizagem como processo de desenvolvimento de capacidades humanas de auto/cotransformação, balizado por uma Pedagogia Dialógica e Emancipadora (FREIRE, 1997). Nesse processo, formam-se e reformam-se os saberes produzidos pela humanidade na relação com os desafios do tempo presente fundamentados nos diferentes referenciais epistemológicos que organizam os currículos.

No lastro de uma perspectiva crítica e multidimensional de Didática, as políticas de formação docente podem dispor de elementos propositivos para a mudança da situação de não aprendizagem dos(as) estudantes para além de uma resolução que depende de prescrições metodológicas, como sugerem paradigmas produtivistas embutidos em discursos de boas práticas incorporados, inclusive, na BNC.

5 CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

Este texto registra uma tentativa de análise preliminar de como se situa a Didática na terceira versão do parecer para revisão e atualização da Resolução CNE/CP n. 02/2015 e na Resolução CNE/CP n. 2, de 20 de dezembro de 2019, que instituiu a Base Nacional Comum da Formação Docente. Sob a perspectiva conceitual da Didática como um campo de práxis fundamentado pela análise crítica das condições e possibilidades de mediações de ensino e aprendizagem em contextos situados, foi possível assinalar traços que denotam um afunilamento desse campo nas proposições trazidas por essa “nova” política.

Ao referenciar o conceito de CPC, a terceira versão do parecer privilegia as tendências didáticas específicas que se produzem com foco no ensino de conteúdos disciplinares, não operando com a perspectiva ampla de Didática. Ainda que elementos próprios do campo didático, tradicionalmente pertencentes ao componente Didática Geral, percorram o documento, não há referência explícita à Didática como elemento estruturante do projeto de formação docente representado pela BNC.

Já na resolução homologada, encontra-se uma Didática afirmada como campo de conhecimento estruturante da formação docente, mas tendenciosamente associada a dimensões metodológicas de organização dos processos de ensino-aprendizagem sem fundamentação crítico-reflexiva.

Em face dessa circunstância, conclui-se que, ao minimizar o potencial crítico da Didática na formação de professores(as), as duas versões da BNC não contribuem com a construção de currículos que possibilitem aprendizagens que transcendam o uso instrumental do saber e busquem aportar condições intelectuais para que o(a) docente interprete e desenvolva capacidade de ação diante da complexa rede de fatores que atravessam os processos de ensino, objeto da Didática. Para isso, é fundamental a conjugação do foco didático na especificidade do saber ensinado com o foco didático nas dimensões mais amplas da relação pedagógica como síntese de processos humanos, sociopolíticos, institucionais e metodológicos.

À medida que os cursos de Licenciatura se afastam de compreensão da relação entre Didática, atividade docente e problematização social, abre-se espaço para que propostas desintelectualizantes e instrumentalizantes do trabalho docente se consolidem, limitando a formação de professores(as) como intelectuais críticos e profissionais do desenvolvimento humano. Soluções dessa natureza configuram respostas neotecnicistas alinhadas às exigências do modo de produção capitalista, deslocando o sentido social da escola como espaço de construção da democratização do saber e formação cidadã para o sentido da escola como, tão somente, espaço de aquisição de competências necessárias à vida produtiva e disciplinamento social.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 23 de Julho de 2020; Revisado: 17 de Agosto de 2020; Aceito: 09 de Setembro de 2020

José Leonardo Rolim de Lima Severo: Doutor em Educação. Pedagogo. Professor adjunto da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde atua no Programa de Pós-Graduação em Educação. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Pedagogia, Trabalho Educativo e Sociedade (Gepptes). Membro do GT 4 − Didática da ANPEd. E-mail: leonardorolimsevero@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5071-128X

Selma Garrido Pimenta: Doutora em Educação (Filosofia da Educação). Pedagoga. Professora titular sênior da Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo (USP), onde coordena (em parceria) o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Formação do Educador (Gepefe). Professora associada no Programa de Pós-Graduação em Educação (Stricto sensu) da Universidade Católica de Santos (Unisantos). Membro do GT 4 − Didática da ANPEd. Pesquisador 1A CNPq. E-mail: sgpiment@usp.br, Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0785-890X

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