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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.25 no.55 Campo Grande set./dic 2020  Epub 01-Abr-2021

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v0i0.1491 

Artigos

Complexo de formação de professores: espaço-tempo produtor de políticas de currículo

Teacher training complex: space-time producer of curriculum policies

Complejo de formación docente: espacio-tiempo productor de políticas curriculares

1Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


Resumo

Este texto tem por objetivo refletir sobre a articulação que vem sendo produzida entre políticas de currículo e políticas de formação docente da educação básica, no âmbito de uma experiência de construção de um novo arranjo institucional, atualmente em curso, nomeada Complexo de Formação de Professores (CFP). Assumindo a postura epistêmica pós-fundacional e em diálogo com a literatura especializada, tanto da área do currículo quanto da de formação de professores, ele busca explorar possibilidades de pensar essa articulação, tal como mobilizada nessa experiência. Sublinha, assim, os entrecruzamentos de fluxos de sentidos particulares de currículo de licenciatura e de docência, os quais essa articulação busca hegemonizar em meio às lutas de significação desses termos, travadas no cenário político-educacional de nosso presente. A análise de documentos produzidos pelo próprio CFP, dos conteúdos veiculados em suas redes sociais, nesse processo, permite destacar potencialidades insurgentes e elementos desafiadores na produção de políticas (inter)institucionais, que podem contribuir para fazer avançar o debate político-educacional das áreas envolvidas.

Palavras-chave: política de formação de professores; política de currículo; currículo de licenciaturas

Abstract

This text aims to reflect on the articulation produced between curriculum policies and the policies for teacher formation in basic education, within the scope of building a new institutional arrangement, currently underway, called the Teacher Training Complex (CFP). The text parts from a post-foundational epistemic instance and in dialogue with specialized literature, both in the curriculum area and in teacher training, it seeks to explore possibilities of thinking about this articulation. This articulation is mobilized within the CFP experience. Though emphasizing the intersections of meanings of teaching and curriculum, this policy aims to align these terms − amid struggles to signify them within the educational political scenario of our time. The analysis of documents produced by the CFP itself, of the contents in its social medias, allows highlighting insurgent potentialities and challenging elements in the production of (inter)institutional policies, which can contribute to the political-educational debate of the areas involved.

Keywords: teacher training policy; curriculum policy; undergraduate curriculum

Resumen

Este texto tiene como objetivo reflexionar sobre la articulación que se ha producido entre las políticas curriculares y las políticas para la formación docente en educación básica dentro del alcance de una experiencia de construcción de un nuevo arreglo institucional, actualmente en curso, llamado el Complejo de Formación Docente (CFP). Asumiendo la postura epistémica posfundacional y en diálogo con la literatura especializada, tanto en el área del plan de estudios como en la formación de docentes, él busca explorar las posibilidades de pensar sobre esta articulación, como se movilizó en esta experiencia, enfatizando las intersecciones de flujos de significados particulares de currículo y de enseñanza, los cuales esa articulación busca dominar en medio de las luchas para significar estos términos, ocurridas en el escenario político educativo de nuestro tiempo presente. El análisis de los documentos producidos por el propio CFP, desde los contenidos vinculados en sus redes sociales, permite resaltar las potencialidades insurgentes y los elementos desafiantes en la producción de políticas (inter)institucionales, que pueden contribuir para hacer avanzar el debate político-educativo de las áreas involucradas..

Palabras clave: política de formación docente; política curricular; plan de estudios de pregrado

1 INTRODUÇÃO

A interface política de currículo e políticas de formação docente tem sido tanto objeto de reflexão e problematização no campo acadêmico quanto ocupado de forma recorrente a pauta da agenda política educacional contemporânea. O debate em torno dessa temática suscita posicionamentos, muitas vezes contraditórios, sobre a natureza dessa articulação, deixando entrever as disputas entre os diferentes grupos de interesse pelos processos de significação de termos como política, currículo e docência.

As reações provocadas pela homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e da Reforma do Ensino Médio em 2017, no campo da pesquisa em educação e nas entidades representativas da área, são exemplos de como políticas de currículo recentemente gestadas no âmbito do governo federal traduzem as tensões que atravessam esses debates. A promulgação da resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) instituindo a Base Nacional Comum de Formação de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), no fim de 2019, ao associar de maneira orgânica os currículos dos cursos de licenciatura à aplicação da BNCC, fez com que essas reações tendessem a se amplificar, reforçando a denúncia sobre o entendimento particular de processo de formação docente que esse documento legal pretende consolidar e hegemonizar.

Seja pela reatualização de perspectivas instrumentalistas, tecnicistas e conteudistas, já há muito problematizadas no campo educacional, seja pela defesa dos interesses mercadológicos de grupos privatistas na educação, as críticas formuladas aos discursos sustentados nessas propostas curriculares para a educação básica e para o ensino superior se adensam exigindo um enfrentamento dos desafios da definição de diferentes termos mobilizados nos debates políticos e acadêmicos da área. O que está em jogo são tanto os sentidos particulares de currículo e de docência que interessam universalizar, estabilizar, ainda que contingencialmente, quanto o entendimento sobre a articulação possível de ser estabelecida entre esses dois termos. De forma semelhante, a compreensão dessas lutas pela significação depende diretamente do sentido de política com o qual operamos.

Este texto tem por objetivo entrar nesse debate a partir da análise de uma política institucional de formação inicial e continuada dos professores da educação básica no Estado do Rio de Janeiro , envolvendo uma malha de instituições públicas do ensino superior e da educação básica, nomeada de Complexo de Formação de professores (CFP). Não se trata de avaliar o processo de construção de tal política, tampouco fazer sua apologia, considerando-a como uma verdadeira panaceia para todos os males que afligem o sistema educacional. O propósito aqui é explorar potencialidades dessa política no que diz respeito à forma como ela tem enfrentado os desafios impostos pelas tensões anteriormente mencionadas que a têm interpelado e a atravessado ao longo de seu processo de construção.

Organizado em dois momentos, o texto dialoga, para além da literatura especializada das áreas de currículo e formação docente, com as contribuições da abordagem discursiva pós-fundacional. No primeiro momento, buscamos apresentar de forma sucinta algumas das ferramentas de análise desse quadro de inteligibilidade, destacando as suas contribuições teóricas para uma leitura política do social. No segundo momento, o foco está posto na análise da política institucional − Complexo de Formação de Professores −, buscando explorar alguns indícios, nos fios da meada puxados para a análise aqui pretendida, do posicionamento dessa política nas lutas pela significação de termos como currículo e docência, bem como as estratégias mobilizadas que permitem pensar a articulação entre políticas de currículo e políticas de formação docente.

A incorporação no campo educacional das contribuições teóricas do pós-fundacionismo (MARCHART, 2009; RETAMOZO, 2009; LACLAU, MOUFFE, 2004) incide diretamente na produção da leitura política do fenômeno social que selecionamos em nossas pesquisas como objeto de investigação. Essa afirmação é importante para a compreensão do potencial analítico dessa abordagem para pensarmos politicamente o campo educacional a partir de uma outra postura epistêmica. Referimo-nos mais particularmente às perspectivas teóricas que reconhecem a importância da dimensão ontológica nas análises do Social, abrindo mão de certezas e verdades que se apoiam em fundamentos metafísicos situados fora do jogo da linguagem. A afirmação de que todo fundamento é compreendido como produto de decisões particulares e contingentes em meio às lutas pelo estabelecimento da ordem e pelo controle do conflito constitui o eixo argumentativo principal em torno do qual a abordagem pós-fundacional se constitui.

Definida como “uma constante interrogação das figuras metafísicas fundacionais” (MARCHART, 2009, p. 14), a perspectiva pós-fundacional não se confunde, no entanto, com um antifundacionismo, por meio do qual caberia um “tudo vale”. O que está sendo problematizado não é a possibilidade de trabalhar com a ideia de fundamento, mas sim o seu estatuto ontológico. Essa abordagem sustenta e faz trabalhar a aporia do reconhecimento da ausência de um fundamento absoluto sobre o qual se construiria o social e a necessidade de um fundamento contingente, precário e provisório.

É justamente essa intenção de fazer trabalhar esse paradoxo, traduzido pela impossibilidade e inevitabilidade de fundamentos sociais, que justifica, na abordagem discursiva pós-fundacional, a distinção conceitual entre política e político. Com efeito, essas duas lógicas, ao entrarem em ação, permitem a compreensão tanto da construção contingente de uma ordem social quanto da mobilização de mecanismos visando simultaneamente à sua manutenção ou desestabilização. O propósito da diferenciação entre essas duas lógicas não é de identificar tampouco distinguir momentos cronológicos na construção de uma ordem social. Elas intervêm de forma concomitante a partir de suas respectivas “características, funções e racionalidades” (RETAMOZO, 2009, p. 79). Segundo Marchart (2008), “enquanto a política faz referência ao nível ôntico (a multiplicidade de práticas da política convencional) o político remete ao plano ontológico (a dimensão instituinte)” (MARCHART, 2008, p. 91).

Importa sublinhar que o momento performativo do político está diretamente relacionado a uma fissura no interior da ordem social que, apesar de mobilizar diferentes dispositivos de hegemonização com o intuito de sua objetivação e naturalização, não consegue eliminar completamente as múltiplas possibilidades de experiências sociais. Pensar a dimensão política como lógica instituinte significa, pois, interrogar quando e como se produz a operação hegemônica que produz a sociedade. Para Laclau e Mouffe (2004), a produção de políticas pode se explicar como sendo a “intenção de domesticar a infinitude, de englobá-la na finitude de uma ordem discursiva” (LACLAU, MOUFFE, 2004, p. 151). Marchart (2009) afirma, por sua vez, que a lógica do político permite lembrar e chamar atenção sobre o que sempre escapa a toda tentativa de domesticação política do social.

Operar na análise aqui proposta, com perspectivas teóricas que reconhecem a importância da dimensão ontológica nas análises do social, abrindo mão de certezas e verdades que se apoiam em fundamentos metafísicos, pressupõe um enfrentamento com o universo da linguagem e o seu papel na definição das coisas do mundo. Segundo Marchart (2009), a Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2004) é um caminho potente para esse enfrentamento, trazendo avanços significativos para o pensamento político pós-fundacional.

Nessa perspectiva, discurso é da ordem do material e não se limita ao domínio da fala e da escrita. Ele designa toda prática social que produz sentido. Entendemos, pois, que a realidade material só pode ser acessada pela produção de um discurso. O significante discurso permite, assim, apreender as regras de produção de sentido pelas quais um determinado fenômeno encontra seu lugar no mundo social e numa determinada formação discursiva.

Para além da própria categoria discurso, esse quadro teórico oferece um conjunto de outras ferramentas analíticas para a compreensão da produção da ordem social como uma operação hegemônica discursiva. Nessa abordagem, toda identidade ontológica é atravessada por duas lógicas: a da equivalência e da diferença. A primeira tem por objetivo atenuar as diferenças, criando uma cadeia de equivalência que funciona como uma síntese do heterogêneo. Essa cadeia é infinita, abrindo múltiplas possibilidades de articulações discursivas na definição/significação dessa identidade. No entanto, para que a significação possa ocorrer, é preciso que a lógica da diferença intervenha de forma radical, expulsando da cadeia de equivalência o outro antagônico que tem como função discursiva fechar, suturar, ainda que provisoriamente, o processo de significação. Esse outro é nomeado, pela natureza de sua função discursiva, como exterior constitutivo. Constituído de outros discursos, isto é, de excesso de sentidos, o exterior constitutivo simultaneamente estabelece uma fronteira, uma barreira precária e provisória, e simultaneamente cria as condições de vulnerabilidade de todo o discurso, reafirmando-o como uma totalidade inacabada.

Essas duas lógicas − a da equivalência e a da diferença − permitem compreender o entendimento de duas categorias importantes e indissociáveis na análise política desse quadro teórico: hegemonia e antagonismo. Hegemonizar significa universalizar provisoriamente um sentido particular, constituindo um ponto nodal capaz de, simultaneamente, atenuar as diferenças e instituir o antagônico. Isso pressupõe produzir dispositivos de esquecimento do caráter contingente de toda ordem social. A luta política consiste na luta pela significação, quer dizer, pela sedimentação e reativação dos sentidos do social.

A análise de uma política institucional como aqui proposto, a partir da postura epistêmica pós-fundacional, pressupõe explorar como as lógicas do político e da política intervém no seu processo de construção. Trata-se, pois, de uma análise que focaliza os conflitos como propriedade inerente a toda configuração política e social, objetivando sublinhar os momentos da reativação da contingência, bem como as estratégias de produção de dispositivos de sedimentação de sentidos particulares de currículos de licenciatura e docência que se quer hegemonizar no âmbito do CFP.

Neste texto, o Complexo de Formação de Professores pode ser visto como uma estrutura particular tomada como objeto de análise e na qual são mobilizadas estratégias de fixação de sentidos particulares de significantes, entre outros, de currículo de licenciatura e de docência em meio às disputas do campo educacional.

3 COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES: ENTRE AS LÓGICAS DO POLÍTICO E DA POLÍTICA

Como sugere o título atribuído a este texto, o Complexo de Formação de Professores se institui na interseção entre políticas de formação docente e de currículo. Ao associarmos essa política institucional a um espaço-tempo produtor de políticas de currículo, nosso propósito é justamente, neste segundo momento, buscar compreender as práticas articulatórias em meio aos jogos de linguagem mobilizados que permitem essa associação.

Se, como temos indicado, entendemos que todo processo de significação é disputado discursivamente e que o discurso não é apenas o registro dessas disputas, mas o próprio espaço de enfrentamento e hegemonização de sentidos, interessa-nos investir na análise de como o CFP tem operado simultaneamente como locus de produção de significados e como ato de significação, no que diz respeito à interface currículo-formação docente. Compreendemos, assim, que, ao mesmo tempo em que se produzem e se fixam cadeias de equivalência para definir essa política institucional de formação de professores, ela mesma se configura como um espaço de disputas pela hegemonização de determinados sentidos particulares que, por sua vez, afetam outros processos de significação, como os que envolvem a definição de políticas de currículo. Apostamos, assim, que o CFP, tal como vem sendo delineado no âmbito da UFRJ, atua como política institucional − quando produz dispositivos para fixar um entendimento particular de currículo de licenciatura e de docência na educação básica − e, simultaneamente, como espaço instituinte marcado pela irrupção da contingência, do político quando reconhece e potencializa, em seu processo de construção coletiva, a multiplicidade de sentidos presentes nessa disputa e os conflitos que o atravessam.

Valemo-nos, para esta análise, de algumas superfícies textuais que consideramos relevantes na produção do jogo de linguagem que define o CFP entre essas duas lógicas. São elas: (i) a resolução n. 19, de 20 de dezembro de 2018, que institui o CFP como parte da estrutura média da UFRJ; (ii) a resolução n. 20, de 20 de dezembro se 2018, que trata do regimento do CFP; (iii) o relatório final produzido pelo professor António Nóvoa após sua temporada na UFRJ como professor visitante, em 2017, que teve grande influência nas ideias e propostas que integram o CFP; (iv) o termo de referência firmado entre o CFP e as escolas parceiras em sua última versão, de março de 2018; (v) documento interno produzido pelo Comitê Provisório de Instalação do CFP em junho de 2018; e (vi) textos informativos extraídos do site oficial do CFP ..

Escolhemos acessar essas superfícies textuais por considerarmos que elas possibilitam, ao mesmo tempo, analisar tanto os dispositivos acionados para a sedimentação de sentidos particulares de política de formação e de política de currículo quanto as disputas em torno de determinados processos de significação. Sendo o CFP uma política recém-institucionalizada, acreditamos que a análise de alguns de seus documentos fundantes, bem como a forma como ele se autoapresenta na mídia, pode auxiliar no entendimento das disputas sobre formação docente e sobre produção de currículo que marcam essa política institucional.

Vale destacar ainda que a análise aqui proposta não trata do dissecamento desses documentos, tampouco de sua apresentação linear e sequencial. Interessa-nos, mais precisamente, puxar alguns fios dessa meada − a dimensão política do CFP; a noção de institucionalidade; o entendimento da articulação entre universidade e escola; e a questão da relação com o saber − para pensarmos com esses textos participam das disputas e produzem sentidos sobre docência e currículo de licenciatura.

Os fios selecionados apresentam uma potencialidade heurística que nos ajuda na análise a que nos propomos. Nunca é demais repetir que eles se encontram entremeados na trama discursiva do CFP. Ao abordá-los separadamente, nesta escrita, nossa intenção não foi de rarefazer a importância da intertextualidade, mas sim de nos proporcionar diferentes portas de entrada em um debate de tamanha complexidade. Trata-se, mais particularmente, de compreender e de explorar, a partir desses quatro fios/entradas selecionados, a inscrição do CFP entre a lógica da política e a do político, como explicitado na seção anterior.

O primeiro fio que nos interessa puxar diz respeito ao próprio entendimento do CFP como uma política simultaneamente de currículo e de formação docente que busca fixar sentidos particulares de currículo de licenciatura e docência. Com efeito, uma primeira leitura dos documentos selecionados permite reafirmar o CFP como uma política de formação docente. Essa definição aparece em diferentes formulações textuais, tais como:

Modelo institucional diferenciado de organização da formação inicial e continuada de professores, como na Educação Básica, que tem como objetivo promover uma política integrada de formação de professores, dando centralidade e visibilidade a este campo de atuação dentro da UFRJ. (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO[UFRJ], 2018a, p. 3, grifo nosso).

Este modelo tem por objetivo central traduzir uma política institucional sistemática de formação de professores defendida pelas Instituições e Redes que participam desta parceira. (UFRJ, 2018b, p. 1, grifo nosso).

No entanto, a cadeia de equivalência definidora do CFP como política de formação docente é ampliada quando passamos à análise dos outros documentos que também participam do processo de significação do Complexo de Formação de Professores, deixando entrever contornos de uma política curricular. Sentidos particulares de currículo e de currículo de licenciaturas são fixados e mobilizados na definição do CFP, que, como política, funciona como dispositivo de estabilização destes.

O sentido de currículo, tanto como caminho estabelecido e proposto a ser percorrido pelos licenciandos em seu processo formativo quanto a definição de currículo de licenciatura pela via da valorização da inclusão nesse percurso das singularidades da cultura escolar, entendida como espaço de atuação profissional desse/a futuro/a professor/a, é acionado de forma explícita no seu regimento interno. Entre os seus objetivos, é possível ler que o CFP atua na articulação do trabalho de formação acadêmica dos futuros professores - licenciandos - abrangendo o estágio, a prática como componente curricular, as atividades complementares e outras ações de formação, como projetos de extensão e pesquisa nas escolas parceiras. Em outras superfícies textuais analisadas, como os textos informativos do site oficial do CFP, é possível perceber que o sentido de currículo como próprio ato de percorrer está também contemplado nessa política. Referimo-nos, por exemplo, à Cartografia descrita como

[...] uma ferramenta digital pensada para materializar os princípios que norteiam o CFP. Ela dá visibilidade a um conjunto de possibilidades formativas oferecidas pelas diferentes instituições parceiras e endereçadas tanto aos professores em exercício quanto aos futuros profissionais em formação inicial. (UFRJ, s.d.).

A preocupação com o percurso formativo dos futuros professores também é expressa por Nóvoa (2017b, p. 22), quando afirma que “é preciso construir um pensamento sobre a melhor forma de organizar e desenvolver um percurso de formação. Esta é a mudança decisiva que se espera promover com a criação do Complexo”.

A explicitação das finalidades do CFP, no seu regimento, ou ainda suas atribuições também especificadas nesse mesmo documento, são indícios de como se apresenta no CFP essa imbricação entre sentidos de políticas de currículo e de formação. O conjunto dessas finalidades e atribuições incide diretamente tanto na proposta curricular dos cursos de licenciatura quanto na organização dos cursos de formação continuada. Propor ações de formação e atividades de acolhimento estudantil, formular e implementar diretrizes para as licenciaturas, promover a participação em projetos de extensão e de pesquisa, mobilizar grupos de trabalho para discussão e produção de material didático são atividades marcadamente curriculares que moldam, transformam e produzem percursos tanto para os licenciandos quanto para os professores que os acompanham.

Esse entrecruzamento de políticas de formação e de currículo impresso no CFP atravessa e se emaranha a toda meada, deixando claro que política de formação docente e política de currículo (de licenciaturas) são duas faces de uma mesma moeda. Outrossim, do jeito que se estabelece essa interface no CFP, ele problematiza e desestabiliza discursos bastante recorrentes e atuais no campo das políticas educacionais oficiais que tendem a subalternizar a formação dos professores a uma política curricular específica, como é o caso, por exemplo, da já referida Base Nacional Comum para a formação inicial de professores da educação básica (BNC-Formação). Ao ampliar o sentido de currículo, bem como trazer a questão da profissionalização docente como elemento central de suas reflexões, o CFP rompe com essa hierarquização e abre outras possibilidades de entendimento de articulação entre essas duas políticas.

Por fim, mas não menos importante, esse primeiro fio puxado da trama fortalece a compreensão de autonomia universitária, reconhecendo essa instituição como um contexto formulador de políticas. Na contramão de políticas de currículo e de formação gestadas pelo Estado e direcionada para as universidades, o CFP é uma política institucional pensada, formulada e executada por de dentro dessa instituição, o que faz dela uma experiência formativa singular no que concerne à escala de institucionalização.

O segundo fio − a noção de institucionalidade − nos parece potente por duas razões: a primeira refere-se ao fato de ela explicitar o reconhecimento pela própria universidade pública de sua função social e política na formação inicial e continuada dos professores da educação básica, e a segunda é porque essa noção, tal como significada nessa política, seja talvez o que mais a singulariza e a diferencia das demais políticas de formação de professores da educação básica.

Em relação à primeira razão, trata-se dos efeitos de deslocamentos que o reconhecimento dessa institucionalização do CFP na UFRJ tende a provocar na fronteira do que é e do que não é “excelência universitária”. Destacamos duas passagens extraídas dos documentos analisados que traduzem bem essa tendência deslocatória. A primeira refere-se à (boa) provocação que consta no relatório de final de missão institucional do professor Antônio Nóvoa, no qual é possível ler: “É tempo de a UFRJ assumir as suas responsabilidades neste campo, construindo um pacto de toda a comunidade acadêmica em torno da formação docente” (NÓVOA, 2017b, p. 7). A segunda passagem refere-se à primeira consideração preliminar da Resolução n. 19/2018 do Conselho Universitário (Consuni), evidenciando um dos pressupostos que o sustenta, isto é: “o reconhecimento institucional da alta relevância da formação de professores na função social da UFRJ”. O que está em jogo aqui é a disputa por um sentido de universidade pública autônoma, democrática e de qualidade.

Tanto a “invocação” de Nóvoa, quanto o reconhecimento institucional, via a criação do CFP, da “alta relevância” dos cursos de licenciatura, parecem-nos ter sido estratégias adotadas para desestabilizar sentidos hegemonizados de “excelência” que tendem a expulsar de sua cadeia de equivalências cursos como os de licenciatura, fixando-os no lugar da prática esvaziada de teorização. Nessas leituras, os currículos de licenciaturas são significados como o exterior constitutivo, o elemento antagônico da excelência universitária, cujo significado historicamente vem sendo forjado em âmbito reduzido ao das atividades de pesquisa em detrimento das atividades de ensino e extensão.

A segunda razão, anteriormente mencionada, remete à própria noção de institucionalidade com a qual essa política opera. A leitura dos documentos selecionados aponta que esse significante é mobilizado de forma sistemática ao longo da trajetória de construção do Complexo de Formação de Professores, assumindo um duplo sentido, em função da cadeia de equivalência na qual ele é inscrito. Assim, esse termo ora remete à ideia de uma (intra) institucionalidade estabilizada, ora faz referência à ideia de refundação, de produção de um novo arranjo (intra e inter) institucional.

A intencionalidade de inserção do CFP na institucionalidade da cultura universitária estabilizada pode ser percebida em diferentes documentos analisados. No fim de 2018, com a Resolução n. 19/2018 do Consuni, ele foi institucionalizado passando a compor a estrutura média da UFRJ, marcando sua transversalidade no que concerne às unidades e demais instâncias acadêmicas. No artigo primeiro da resolução que instaura o CFP, fica clara a sua função articuladora tanto no plano interno à comunidade acadêmica quanto no plano externo, ao fazer referência às redes públicas de educação.

Art. 1. Instituir o Complexo de Formação de Professores na estrutura média da Universidade Federal do Rio de Janeiro, objetivando articular a formação docente realizada nas unidades e centros com as redes públicas federal, estadual e municipal. (UFRJ, 2018d).

Essa mesma função está igualmente explicitada no regimento do CFP instituído mediante a Resolução n. 20/2018 do Consuni.

Art. 1º O Complexo de Formação de Professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro tem como objetivo promover a articulação intra e interinstitucional para a formação profissional dos professores da educação básica.

§ 2º O Complexo de Formação de Professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro tem caráter consultivo e propositivo, exercendo papel articulador entre as instâncias universitárias, as unidades acadêmicas que possuem atividade de formação de professores e de educação básica e as redes municipais, estadual e federal participantes do CFP, em conformidade com as decisões administrativas e acadêmicas das Unidades e Coordenações de Curso (UFRJ, 2018c).

De forma semelhante, basta lermos a composição e as atribuições do Comitê Permanente do CFP explicitadas na Resolução n. 20/2018 para nos darmos conta da presença da natureza transversal dessa institucionalidade. A representatividade nesse Comitê, garantida nesse documento de todas as instâncias e sujeitos que participam desse processo formativo no âmbito da UFRJ − pró-reitorias, decanias, unidades, programas institucionais, centros acadêmicos −, não deixa de ser uma reafirmação dessa intencionalidade.

A partir do fim de 2018, o CFP passa, assim, a ocupar na UFRJ um lugar institucional de referência para as questões relacionadas à formação inicial e continuada dos professores da educação básica, percebido como um locus produtor de políticas voltadas para essa formação com o intuito de subsidiar as decisões relacionadas a essa temática no âmbito das instâncias deliberativas da UFRJ. Essa busca de institucionalização por meio da sua inserção e articulação com os espaços institucionais já existentes da UFRJ se materializou igualmente por meio de outras instâncias que configuram o desenho institucional do CFP tal como é possível perceber no seu site oficial.

A estrutura operacional do CFP no âmbito da UFRJ foi pensada a partir dessa intencionalidade de institucionalidade, buscando estrategicamente se inscrever nas formas organizativas já relativamente conhecidas e legitimadas pela comunidade acadêmica dessa instituição. Assim, por exemplo, o Núcleo de Planejamento Pedagógico das Licenciaturas (NPPL) emerge com o intuito de potencializar as tradicionais coordenações de licenciatura como espaços articuladores envolvendo os interesses e as demandas dos diferentes sujeitos − docentes e licenciandos − que participam diretamente do processo de formação docente em cada unidade. Reflexão semelhante pode ser feita no que concerne aos Grupos de Orientação Pedagógica (GOP) e as Redes Educativas de Práticas de Ensino (REP). Tanto a composição quanto as atribuições dessas instâncias do CFP são indícios de que, ao longo do processo de construção dessa política, prevaleceu a lógica da articulação e ampliação, procurando reconhecer a historicidade das diferentes unidades no processo de formação de professores.

Para além dessa institucionalização estabilizadora, o CFP opera igualmente com a dimensão instituinte que o significante institucionalidade carrega. Com efeito, o CFP não se limita a entrar na normatividade institucional vigente. Como indicam os vestígios encontrados nos documentos analisados, essa política se propõe a enfrentar o desafio da construção de um novo arranjo institucional, isto é, de uma refundação institucional. Nóvoa (2017b), em seu relatório final, define o que ele nomeia de uma “ambição clara” do CFP: “[...] construir um novo lugar institucional interno e externo, que promova uma política integrada de formação de professores, integrando a Universidade na cidade” (NÓVOA, 2017b, p. 10 - grifo original).

Esse novo arranjo institucional se expressa tanto pela ampliação orgânica de sua função articuladora quanto na natureza da articulação buscada. Importa sublinhar que, ao integrar a rede federal em sua configuração institucional, o CFP amplia a sua configuração para além das escolas públicas da educação básica, na medida em que incorpora, como instituições parceiras, os Institutos Federais do Ensino Superior (Ifes) situados no Estado do Rio de Janeiro. A instância que materializa essa ampla articulação política corresponde ao Fórum de Formação dos Professores do CFP, composto pelos dirigentes máximos das instituições federais e os/as secretários/as de Educação do Município e do Estado do Rio de Janeiro. Recentemente instituído e presidido pelo/pela reitor/a da UFRJ, esse Fórum tem diferentes atribuições explicitadas no regimento do CFP, entre as quais destacamos: (i) apoiar o desenvolvimento das parcerias institucionais; (ii) empreender ações no Ministério da Educação, no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações e nos órgãos de fomento federais e estaduais, com o objetivo de fortalecer o apoio institucional ao CFP; (iii) formalizar a adesão institucional das escolas e instituições parceiras ao CFP.

No que diz respeito à sua natureza, essa dimensão institucional inovadora se caracteriza pelo próprio sentido de rede ou malha institucional no qual o CFP investe, pactuado entre as diferentes instituições parceiras e selado pelo Termo de Referência. A leitura desse documento deixa transparecer que o sentido de rede buscado deveria representar um espaço capaz de articular interesses e demandas diferentes em torno de uma pauta comum sobre as questões que envolvem a formação de professores. Um espaço comum que se inscreveria entre a universidade/curso de licenciatura e o grupo de escolas com o qual essa licenciatura estabelece parceria. Pautada nos princípios da horizontalidade, pluralidade e integração entre os saberes, sujeitos e territórios envolvidos na construção dessa política, a construção do CFP assume, assim, uma dimensão interinstitucional. É nessa lógica que se insere a constituição do Grupo de Escolas Parceiras (GEP) composto por escolas públicas localizadas no Estado do Rio de Janeiro, pertencentes às diferentes redes - municipal, estadual e federal - e que, junto da UFRJ, passam a configurar essa nova institucionalidade.

A construção e organização dessa malha institucional de natureza híbrida envolvendo sujeitos posicionados diferentemente no processo de formação exigiu o enfrentamento com a ideia do comum não apenas na gestão dessa política, mas igualmente no próprio entendimento do percurso de formação desse profissional. Entendidos como espaços híbridos resultantes de fluxos de sentido que atravessam contextos de formação distintos − universidade e escola −, os currículos de licenciatura tornam-se, nessa política, um terreno propício para a problematização do comum ou, se preferirmos, para a construção de um comum cujas regras de uso são estabelecidas no jogo democrático da política universitária.

A novidade dessa nova institucionalidade consiste justamente na vontade política do enfrentamento com essa questão. Trata-se, assim, menos de “inventar a roda” sobre a formação inicial e continuada de professores da educação básica, do que criar as condições institucionais que permitam efetivar ou explorar estratégias de enfrentamento apontadas pelas pesquisas empíricas dessa área. Afinal, esse novo arranjo intra e interinstitucional é uma tentativa de concretizar a ideia de um “terceiro espaço” (ZEICHNER, 2010) defendida por muitos pesquisadores da área como locus privilegiado de formação desse profissional.

Essa afirmação remete ao terceiro fio da meada, que diz respeito ao entendimento da articulação entre escola e universidade no qual o CFP aposta. Como mencionado anteriormente, seu desenho institucional busca romper com certas tradições da cultura universitária, bem como com o modelo hegemônico da sua articulação com as escolas, com a intencionalidade de enfrentar os desafios já apontados pelos estudos sobre formação de professores, em particular no que eles decorrem da consolidação das políticas de universitarização (NÓVOA, 2017a; ZEICHNER, 2010; SHULMAN, 2014; SARTI, 2012; TARDIF, 2013).

Parte dos desafios que estão postos à formação de professores diz respeito à questão do locus de formação dos futuros professores da educação básica que se expressa, entre outras questões, pela fragmentação dessa formação no espaço acadêmico com pouca ou nenhuma articulação com as escolas. O locus de formação docente está em disputa desde a origem dos cursos de licenciatura em nível superior no Brasil, seja pela distinção entre formação em nível médio ou superior, seja pela alocação da formação docente como um apêndice do bacharelado.

A reatualização dessas disputas em torno do locus de formação docente é colocada em evidência, a partir de 1980, com a questão da universitarização da formação de professores (MAUÉS, 2003; TARDIF, 2013). Contudo, os esforços em prol da universitarização da formação docente não garantiram uma formação profissional dos professores (NÓVOA, 2017a; SARTI, 2012). O que algumas pesquisas têm apontado é que a elevação da formação dos professores para o nível superior tem sido marcada por certa erudição academizante que se fecha em si mesma (FORMOSINHO, 2009) e por uma estruturação que acaba excluindo os professores da educação básica e seus conhecimentos da formação de seus futuros colegas de trabalho (SARTI, 2012).

Ao reconhecer institucionalmente em sua própria configuração a importância de um “terceiro-espaço” (ZEICHNER, 2010) ou uma “casa comum” (NÓVOA, 2017a, 2017b) como locus da formação desse profissional, pautado, como mencionado anteriormente, nos princípios da horizontalidade, pluralidade e integração de saberes, sujeitos e territórios, o CFP oferece possibilidades de enfrentamentos dessas críticas. A proposta, por exemplo, de incorporar no processo formativo a ideia de “práticas docentes compartilhadas”, como expresso no Termo de Referência, parece-nos um indício revelador do princípio de horizontalidade de saberes defendido nessa política potente, para deslocar o professor da educação básica que atua nas escolas “no lugar do morto” (SARTI, 2012) no processo de profissionalização do futuro professor. Afinal, propor a “participação de professores da escola básica em disciplinas regulares de cursos de licenciatura, de forma compartilhada com docentes desses cursos” (UFRJ, 2018b, p. 4) é um exemplo do reconhecimento do princípio da horizontalidade, “[...] de forma a estabelecer um locus de formação no qual os diferentes saberes produzidos e mobilizados nos diferentes espaços institucionais e profissionais sejam reconhecidos e legitimados” (UFRJ, 2018b, p. 2).

Com efeito, a articulação buscada no CFP se movimenta por meio da mobilização das lógicas da equivalência e da diferença a partir do reconhecimento da incompletude, do inacabamento de todo e qualquer contexto ou instância da formação. Na contramão das lógicas da complementaridade e da hierarquização, o CFP busca justamente estratégias que permitam superar essas críticas. A própria configuração do desenho institucional, com suas instâncias responsáveis pela operacionalização dessa política, indica a preocupação de considerar a articulação entre pesquisadores e professores universitários e professores da educação básica como corresponsáveis na formação profissional de professores da educação básica.

Outro aspecto dessa política no que concerne ao entendimento da relação escola-universidade, que merece ser destacada a partir da leitura dos documentos selecionados, diz respeito ao lugar crucial atribuído à cultura escolar nesse processo formativo. A construção dos GEP é outro sinal importante da defesa de uma formação de professores construída de dentro da profissão, o que remete ao compromisso de priorizar as “dimensões que incidem diretamente na ­inscrição desse futuro professor em sua cultura profissional” (UFRJ, 2018a, p. 4). Esse desafio/compromisso foi sublinhado por Nóvoa (2017b), ao afirmar que “a missão mais importante do Complexo” consiste em “ligar em rede a universidade e as escolas permitindo que os estudantes das licenciaturas tenham uma relação com a profissão desde o primeiro dia” (NÓVOA, 2017b, p. 11).

A articulação entre formação inicial e formação continuada dos professores da educação básica, tal como pensada e propiciada no âmbito do CFP, é outro indício da singularidade do entendimento da relação defendida entre esses dois espaços formativos. Ao explicitar no Termo de Referência o entendimento do princípio de integração das ações de formação, o CFP deixa claro que “as atividades formativas deverão articular a formação inicial com a formação continuada de professores das Redes e Instituições parceiras, que poderão problematizar e reconstruir suas práticas pedagógicas a partir da participação nas experiências vividas” (UFRJ, 2018b, p. 3).

É justamente a preocupação com a profissionalização em meio ao processo de universitarização que justifica trazer para a discussão o quarto e último fio da meada, Complexo de Formação de Professores relacionado à questão da relação com o saber (GABRIEL, 2018), mais especificamente, como, no âmbito dessa política, essa questão emerge e é enfrentada. Defender a docência como profissão, tal como explicitado nos diferentes documentos do CFP analisados, implica o reconhecimento desses sujeitos como profissionais que produzem e mobilizam conhecimentos específicos no exercício da docência. Por sua vez, isso implica levar em conta, nos currículos de licenciatura habitados por esses sujeitos, ao longo de sua formação, a especificidade do saber docente, o lugar de sua produção, bem como a forma como os sujeitos que participam do processo de profissionalização docente se relacionam com ele.

Em relação à especificidade do saber docente, a literatura da área (SHULMAN, 2014; TARDIF, 2014) vem apontando, há muito, a sua natureza plural e estratégica no processo de construção de uma identidade profissional. A articulação entre os saberes disciplinares, pedagógicos e os da experiência que configuram, entre outros, os saberes docentes a serem socializados nos currículos de licenciatura, pode ser vista como uma estratégia para a superação dos binarismos que insistem em dicotomizar termos como teoria e prática, ciência e pedagogia, bacharelado e licenciatura nos processos formativos.

Pensar de forma articulada e integrada o conjunto do tempo de estudo e trabalho das licenciaturas, para além da dicotomia tradicional entre conhecimentos disciplinares e conhecimentos pedagógicos, “[...] permitindo a aquisição progressiva de uma identidade docente de forma a que [sic] cada um construa a sua posição no seio da profissão” (NÓVOA, 2017b, p. 24), é uma preocupação curricular que remete à questão da seleção dos conhecimentos e como essa seleção produz efeitos no processo de subjetivação dos sujeitos. Afinal, quais conhecimentos privilegiar na formação dos professores?

O CFP oferece pistas para buscar possibilidades potentes para essa articulação ao insistir na construção de uma casa comum como locus da formação docente e, simultaneamente, de produção curricular. Ao criar, por exemplo, condições para que os licenciandos tenham contato com a profissão docente desde o primeiro dia do curso de licenciatura, o CFP opera com o reconhecimento da docência como uma profissão que se organiza e se governa fora dos muros da universidade (BOURDONCLE, 2000), investindo, assim, em um entendimento de currículo de licenciatura no qual sejam levados em conta nessa formação os conhecimentos produzidos e mobilizados pelos praticantes dessa profissão - os professores da educação básica. Os currículos de licenciatura podem ser assim definidos, nessa política, como espaços-tempos híbridos de estruturação entre a cultura escolar e a cultura universitária.

Ao longo de nossa escrita, procuramos deixar claro como o Complexo de Formação de Professores vem sendo construído a partir do entrecruzamento de lógicas e espaços, permitindo pensá-lo como um espaço potente para a reflexão sobre a interface políticas de formação docente e políticas de currículo.

Entendemos que o CFP aposta em outra hegemonização de sentido para o processo de formação docente, diferentemente das políticas curriculares atuais, que reatualizam sentidos subalternizados de docência (GABRIEL, 2015). O parecer CNE/CP n. 22/2019, que institui a já referida Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica, é um dos indícios mais palpáveis de como políticas curriculares reatualizam sentidos subalternizados de docência ao reduzir o profissional docente a um aplicador eficiente de propostas curriculares, tal como preconizado pelo pensamento pedagógico instrumental tecnicista.

A proposta de fazer emergir um novo espaço institucional de diálogo e decisão sobre os cursos de licenciatura, que articule de forma horizontalizada, integrada e plural os saberes, sujeitos e territórios, reconhecendo a importância incontornável tanto da universidade quanto da escola básica na formação docente, é bastante desafiadora. Tanto pelas relações de poder que marcam as trajetórias dessas duas instituições e que contribuíram para cristalizar uma forma de hierarquização dos saberes, como se aqueles produzidos/mobilizados na universidade tivessem mais valor ou prestígio do que os produzidos/mobilizados na escola, quanto pelo atual momento que vivemos, em que as universidades e as escolas são frequentemente atacadas e deslegitimadas de sua função social. Defender a articulação entre universidade e escolas públicas na formação de professores não é tarefa fácil. No entanto, não nos parece que possamos fugir dela se quisermos apostar, como nos convida Nóvoa (2017a, 2017b), em uma formação de professores universitária e profissional com qualidade.

1A produção deste texto está diretamente vinculada aos estudos que temos realizado dentro de dois projetos de pesquisa em curso: “Currículo como espaço biográfico: subjetivação e profissionalização docente em múltiplos tempos e espaços” (CNPq) e “Currículo como espaço biográfico: conhecimento, sujeitos e demandas em diferentes percursos formativos” (CNE/FAPERJ).

2Todos esses documentos podem ser encontrados no site do Complexo de Formação de professores na internet - https://formacaodeprofessores.ufrj.br/. O documento interno produzido pelo Comitê Provisório de Instalação do CFP está disponibilizado apenas em parte no site. É essa versão que estamos usando para esta análise.

3 Grupo de escolas que integram o espaço formativo do CFP, isto é, que habitam essa “casa comum”. Isso significa poder propor e compartilhar ações de formação − ensino/estágio, pesquisa e extensão − envolvendo todos os sujeitos que participam da construção permanente dessa rede: professores universitários, professores da educação básica, licenciandos, alunos/as da educação básica.

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Recebido: 01 de Agosto de 2020; Revisado: 19 de Agosto de 2020; Aceito: 09 de Setembro de 2020

Carmen Teresa Gabriel: Pós-doutorado na Université des Sicences Humaines de Lille 3 (França). Doutorado e mestrado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Pós-graduação em Estudos do Desenvolvimento pelo Institut dÉtudes du Développement (IUED-Genebra). Bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense. Professora titular de Currículo na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora no Programa de Pós-Graduação em Educação dessa mesma instituição (PPGE/UFRJ). Coordenadora do Laboratório de Núcleo de Estudos de Currículos da UFRJ (LaNEC) e do Grupo de Estudos Currículo, Conhecimento e Ensino de História (Gecceh). Coordenadora do Comitê Permanente do Complexo de Formação de Professores da UFRJ. E-mail: carmenteresagabriel@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9503-6740.

Bruna Senna: Doutoranda e mestre em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE/UFRJ). Membro do Grupo de Estudos Currículo, Conhecimento e Ensino de História (Gecceh) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). E-mail: brunasenna@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5787-7693.

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