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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.25 no.55 Campo Grande set./dic 2020  Epub 01-Abr-2021

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v0i0.1467 

Artigos

Tem dendê na Base? Vidas negras e o Currículo Bahia

Is there dendê in the Base? Black lives and the Bahia Curriculum

¿Hay dendê en la Base? Vidas negras y el Currículo Bahía

Iris Verena Santos de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0001-7041-3327

1Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Salvador, Bahia, Brasil.


Resumo

Neste texto, trato do Currículo Bahia, referencial curricular que se propõe a assegurar os direitos de aprendizagem dos estudantes nas escolas baianas. O documento baseia-se nas orientações normativas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a partir das peculiaridades do Estado, operando pela significação de currículo como conhecimento, com base em Macedo (2017; 2019). Aponto a impossibilidade de cumprimento das promessas da BNCC quanto à garantia de qualidade na educação e foco no tratamento dado pelo Currículo Bahia às questões étnico-raciais, especialmente no que tange à valorização da diversidade, promoção da inclusão e ações educativas voltadas ao combate ao racismo. Enfatizo a falência dos compromissos assumidos diante do papel precípuo da instituição escolar na perpetuação da norma racial, ao mesmo tempo que reconheço brechas para os deslocamentos dela, a partir de atravessamentos do imprevisível na prática educativa, alicerçada em Silva (2006). O Currículo Bahia assume uma promessa de equidade e ambiciona projetos de vida para os jovens que transitam do Ensino Fundamental para o Ensino Médio. Enquanto isso, os altos índices de assassinatos de jovens negros indicam que os estudantes, assim como as personagens de Conceição Evaristo (2016), estão combinando de não morrer. Diante disso, é do cotidiano de uma escola rural de Conceição do Coité, no Território do Sisal, que irrompe o grito de professoras perante o genocídio da juventude negra. Além de apontar para a impossibilidade do controle pretendido nos documentos curriculares, defendo uma ação educativa lastreada no azeite de dendê, para clamar com o nosso Xangô vivo, Gilberto Gil, por práticas curriculares localizadas, racializadas e politicamente posicionadas.

Palavras-chave: currículo; BNCC; educação antirracista

Abstract

In this text, I discuss about the Bahia Curriculum, a curricular framework that aims to ensure students’ learning rights in schools in Bahia, Brazil. The document is based on the normative guidelines of the National Common Curricular Base (BNCC), from the peculiarities of the State, operating by the meaning of curriculum as knowledge based on Macedo (2017; 2019). I point out the impossibility of fulfilling BNCC’s promises regarding quality assurance in education and focus on the treatment given by the Bahia Curriculum to ethnic-racial issues, especially with regard to valuing diversity, promoting inclusion, and educational actions aimed at combating racism. I emphasize the failure of the commitments assumed in view of the school institution’s primary role in the perpetuation of the racial norm, at the same time that I recognize loopholes for its displacements, from the crossing of the unpredictable in educational practice based on Silva (2006). The Bahia Curriculum assumes a promise of equity and ambitions for life projects for young people who move from Elementary School to High School. Meanwhile, the high rates of murder of young blacks indicate that students, as well as the characters of Conceição Evaristo (2016), are agreeing not to die. Given that, it is from the daily life of a rural school in Conceição do Coité, in the Sisal Territory, that erupts the cry of teachers facing the genocide of the black youth. In addition to pointing out the impossibility of the control intended in the curricular documents, I defend an educational action based on palm oil (azeite de dendê), to claim with our living Xangô, Gilberto Gil, for localized, racialized, and politically positioned curricular practices.

Keywords: curriculum; BNCC; anti-racist education

Resumen

En este texto, trato del Currículo Bahía, marco curricular que se propone a garantizar los derechos de aprendizaje de los estudiantes en las escuelas de Bahía, Brasil. El documento se basa en las orientaciones normativas de la Base Nacional Común Curricular (BNCC), a partir de las peculiaridades del Estado, operando según el significado de currículo como conocimiento basada en Macedo (2017, 2019). Destaco la imposibilidad de cumplimiento de las promesas de la BNCC con respecto a la garantía de calidad en la educación y me concentro en el tratamiento dado por el Currículo Bahía a las cuestiones étnico-raciales, especialmente en lo que respecta a la valorización de la diversidad, promoción de la inclusión y acciones educativas dirigidas al combate del racismo. Enfatizo el fracaso de los compromisos asumidos frente al papel principal de la institución escolar en la perpetuación de la norma racial, al mismo tiempo en que reconozco las lagunas para sus desplazamientos, a partir de cruces de lo imprevisible en la práctica educativa basada en Silva (2006). El Currículo Bahía asume una promesa de equidad y ambiciona proyectos de vida para los jóvenes que transitan de la Enseñanza Básica Secundaria a la Enseñanza Media. Mientras tanto, los altos índices de asesinatos de jóvenes negros indican que los estudiantes, así como los personajes de Conceição Evaristo (2016), están de acuerdo en no morir. Dado esto, es cotidiano de una escuela rural de Conceição do Coité, en el territorio del Sisal, que estalla el grito de los docentes frente al genocidio de la juventud negra. Además de señalar la imposibilidad del control pretendido en los documentos curriculares, defiendo una acción educativa basada en el aceite de palma (azeite de dendê), para reclamar con nuestro Xangô vivo, Gilberto Gil, prácticas curriculares localizadas, racializadas y políticamente posicionadas.

Palabras clave: currículo; BNCC; educación antirracista

1 BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E CURRÍCULO BAHIA

Este texto é fruto do incômodo provocado pela ampla divulgação de instrumentos normativos curriculares como pressupostos indispensáveis para a garantia da qualidade da educação no Brasil. O desconforto ganhou novos contornos diante da apresentação do Currículo Bahia , que reitera o debate sobre qualidade e o associa ao combate às desigualdades educacionais e à promoção da equidade racial nas escolas baianas.

A leitura do Currículo Bahia foi motivada pelo interesse em entender como o documento operaria a relação entre o comum e o singular, considerando os pressupostos homogeneizadores defendidos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em que é lastreado. Concordo com Alice Lopes e Erika Cunha (2017, p. 33) sobre a tentativa de estabelecer, por meio da BNCC, “[...] a imposição do controle ante à [sic] impossibilidade mesma em responder ao imponderável, o imprevisível, o intangível, o insondável, o incontrolável”, ao mesmo tempo que me questiono sobre os contornos da tentativa de hegemonizar qualidade e equidade em um Estado com as características da Bahia, no qual a população negra é maioria nas escolas.

Em 2015, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e a Associação Brasileira de Currículo (ABDC) denunciavam o risco de tomar o “nacional como homogêneo” como “um perigo para democracia” e ressaltavam que “[...] qualquer proposta curricular precisa considerar as adversidades e diversidades locais - de ordem étnica, cultural, social, política e econômica - e individuais [...]” (ANPED; ABDC, 2015, p. 2). Nesse sentido, o documento aponta para a necessidade de flexibilidade curricular que “[...] é incompatível com a definição de uma base nacional comum idêntica para todos, sob pena de entendimento do nacional como homogêneo e do comum como único” (ANPED; ABDC, 2015, p. 2)

Diante disso, começo o texto questionando: “Educação é a base?”. Respondo ressaltando a garantia da qualidade para a educação na Bahia feita pelos documentos oficiais, ao tempo que acompanho o tratamento dado às questões étnico-raciais no Currículo Bahia. Na seção “Tem dendê na base?”, contraponho o intuito de promoção da equidade racial, relegada ao debate sobre diversidade, sem o enfrentamento do racismo em sua dimensão estrutural. Proponho uma atenção especial para o funcionamento da norma racial na produção e na veiculação do conhecimento escolar. A partir do subtítulo “A gente combinamos de não morrer”, aponto que a compreensão de currículo como conhecimento oblitera questões que emergem no cotidiano escolar, como o genocídio da juventude negra - ainda que os textos oficiais reafirmem o seu compromisso em combater as desigualdades educacionais e promover a inclusão. Na última seção, aciono a sutileza de Gilberto Gil em “Toda menina baiana” para ler a movimentação das professoras na escola, a partir de sua atuação entre o singular e o comum, construindo escrevivências com luto, cansaço e lutas, e, por isso, acrescento azeite de dendê como oferenda a Xangô , para convocar possibilidades curriculares comprometidas com as imprevisibilidades cotidianas, em sua pulsão de justiça e vida.

2 EDUCAÇÃO É A BASE?

O Brasil terá, pela primeira vez, uma Base Nacional Comum Curricular! O documento é democrático e respeita as diferenças. Com a Base, todos os estudantes do país, de escolas públicas ou particulares, terão os mesmos direitos de aprendizagem. [Aparecem na mesma tela dois quadros; um professor e uma professora, em regiões diferentes do país, afirmam diante da turma de estudantes: “Hoje a aula é sobre cidadania”]. Isso é bom! Se a base da educação é a mesma, as oportunidades também serão! Ministério da Educação. Governo Federal . (BRASIL, 2018, s. p.).

Em 2018, após a aprovação da última versão da BNCC, as emissoras de televisão aberta passaram a veicular a propaganda, cujas falas foram transcritas na citação anterior. A peça publicitária resume alguns argumentos que justificaram a aprovação da Base no Brasil, a despeito da mobilização de professores(as) e associações acadêmicas contrários à implantação do instrumento normativo. Por um lado, as disputas políticas mobilizaram universidades, escolas e associações científicas; por outro, grupos privados como a Fundação Lemann, o Banco Itaú e as redes como Todos pela Educação e Movimento pela Base (MACEDO, 2019; LOPES; CUNHA, 2017). Durante o processo de construção do documento, uma das principais críticas dizia respeito à dificuldade de estabelecer uma base comum, tendo em vista as diferenças em um país de tamanho continental como o Brasil. Respondendo a isso, a propaganda inicia-se afirmando que “[...] o documento é democrático e respeita as diferenças” (BRASIL, 2018, s. p.).

Ao afirmar que “[...] com a Base, todos os estudantes do país, de escolas públicas ou particulares, terão os mesmos direitos de aprendizagem” (BRASIL, 2018, s. p.), a propaganda insiste no argumento de que os problemas relacionados à educação, no Brasil, serão resolvidos pelo estabelecimento de um documento referencial curricular, o que magicamente garantiria igualdade de oportunidades. Tal compreensão aparece no primeiro parágrafo da apresentação da BNCC, onde se lê: “O Brasil inicia uma nova era na educação brasileira e se alinha aos melhores e mais qualificados sistemas educacionais do mundo” (BRASIL, 2017, p. 5). Desde 2015, a ANPEd e a ABDC produziram uma série de documentos com posicionamentos críticos acerca da proposição da BNCC . Os documentos dessas Associações denunciam os interesses de fundações ligadas a empresas privadas, bem como articulações por meio das redes como Todos pela Educação e Movimento pela Base, que disputam os sentidos sobre o que denominam “educação de qualidade”.

Ao longo das discussões acerca da BNCC, sustentou-se a promessa de que os questionamentos sobre as diferenças regionais seriam respondidos nos referenciais curriculares produzidos pelas redes de educação estaduais e do Distrito Federal. Diante do exposto, investigo o Currículo Bahia como referencial curricular orientado a partir da BNCC, que “[...] ressignifica e complementa à luz das diversidades e das singularidades do território baiano, de modo a colaborar com a (re)escrita dos Projetos Políticos Pedagógicos das Unidades Escolares” (BAHIA, 2019b, p. 12). Considerando o expressivo percentual de negros na população baiana, que consagra a sua capital, Salvador, o título de cidade mais negra fora do continente africano, destaco o tratamento dado pelo “Referencial Curricular - Currículo Bahia” às pautas do movimento negro, que disputam sentidos para a educação antirracista no Brasil (GOMES, 2012; 2017; LIMA, 2016; MACHADO, 2006; OLIVEIRA, 2017; 2019; SILVA, 2011).

A BNCC ressalta a “[...] diversidade cultural e [as] profundas desigualdades sociais” (BRASIL, 2017, p. 15), e, em função disso, caberia aos sistemas e às redes de ensino “[...] elaborar propostas pedagógicas que considerem as necessidades, possibilidades e os interesses dos estudantes assim como suas identidades linguísticas, étnicas e culturais” (BRASIL, 2017, p. 15). O documento ainda destaca que é preciso “[...] planejar com um claro foco na equidade, que pressupõe reconhecer que as necessidades dos estudantes são diferentes” (BRASIL, 2017, p. 15, grifo do autor).

No documento baiano, as singularidades são pautadas a partir da discussão do território. O texto inicia-se com o tópico “Territorialidade na singular e plural Bahia: elementos identitários para a política curricular do estado” (BAHIA, 2019b, p. 16). Para tanto, os 417 munícipios baianos são articulados em 27 Territórios de Identidade, que constituem unidades de agrupamento para as políticas públicas do estado. Assim, “[...] é no lócus do território que as novas formas de solidariedade de parceria e de cooperação entre os sujeitos sociais se tornam possíveis” (BAHIA, 2019b, p. 22).

A elaboração do referencial curricular da Bahia lidou com o desafio de construir um instrumento normativo para um estado que agrega distintas práticas culturais, formas de viver e de agir, propondo que a escola “[...] não deve perder de vista a potência do território na construção de identidades situado no tempo-espaço concreto, como elemento constitutivo das práticas e da cultura humana” (BAHIA, 2019b, p. 23). Nesse sentido, o Currículo Bahia defende uma “[...] educação de possibilidades emancipatórias, na qual o estudante assuma o protagonismo de sua aprendizagem e formação”, e, ainda, valoriza a “[...] diversidade de saberes e vivências culturais que tratam do mundo do trabalho” (BAHIA, 2019b, p. 27).

Visando contemplar a ampla gama de questões elencadas anteriormente, o Currículo Bahia foi organizado a partir de “Temas Integradores”, com o intuito de que transversalmente perpassem por todas as etapas e modalidades da Educação Básica. Os temas escolhidos foram: Educação em Direitos Humanos; Educação para Diversidade, que se subdivide em Educação para as Relações de Gênero e Sexualidade e Educação das Relações Étnico-Raciais; Educação para o Trânsito; Saúde na Escola; Educação Ambiental; Educação Financeira e para o Consumo; Cultura Digital e Educação Fiscal.

O documento demarca a importância dos debates relacionados a questões de gênero e de sexualidade na escola, de modo a orientar que as práticas pedagógicas devem considerar “[...] as diversidades sexuais presentes nas representações e relações sociais existentes na escola” (BAHIA, 2019b, p. 57). Além disso, orienta que os currículos devem auxiliar a comunidade escolar no “[...] fortalecimento da autoestima, promoção da alteridade, autonomia, do autocuidado, autoconhecimento, da afetividade pessoal e entre pares, independente das expressões das identidades sexuais e de gênero” (BAHIA, 2019b, p. 57).

Considerando os embates protagonizados por atores evangélicos e católicos, durante a construção dos Planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação ocorridos no Brasil entre 2014 e 2015, o Currículo Bahia manteve a utilização do termo “gênero”, duramente criticado pelos religiosos, e escancarou a necessidade de tratar a escola como um importante espaço de combate às violências sexuais e às doenças sexualmente transmissíveis, bem como mostrou-se empenhado na construção de uma ambiência escolar livre de preconceitos relacionados ao que denomina “identidades sexuais e de gênero”.

As questões raciais são centralizadas no subtópico “Educação das relações étnico-raciais”, integrado ao tema “Educação para Diversidade”, e são justificadas considerando a “[...] retumbante diversidade dos grupamentos humanos e do multiculturalismo baiano” com o intuito de “[...] auxiliar a comunidade escolar na (des) construção de preconceitos, atitudes, valores e práticas sociais discriminatórias e estereotipadas” (BAHIA, 2019b, p. 55).

A despeito da intenção transversal, as questões raciais são explicitadas apenas quando o documento se refere à educação escolar indígena e à educação escolar quilombola. No âmbito da Educação de Jovens e Adultos, da Educação Especial e da Educação do Campo, por exemplo, o debate racial não é citado . Ainda que o documento não promovesse alterações significativas, considerando o seu vínculo com a BNCC, o que justifica a ausência de proposições para a educação antirracista, em um referencial curricular que menciona tantas vezes termos como equidade e diversidade?

3 TEM DENDÊ NA BASE?

Em 2016, durante os debates sobre a construção da BNCC, a ANPEd lançou a campanha “Aqui já tem Currículo: o que criamos na escola...” . A iniciativa teve o intuito de dar visibilidade às construções curriculares protagonizadas por professores(as) no ambiente escolar, por meio da veiculação de vídeos sobre suas práticas, uma ação que se contrapunha à urgência do Ministério da Educação (MEC) em definir o que deveria ser ensinado nas escolas. Atualmente, diante da aprovação da BNCC e da sua implementação em estados e municípios, os documentos divulgados materializam os receios previstos pelas associações acadêmicas desde 2015, quando se opunham ao estabelecimento de uma base nacional.

É importante destacar que a oposição que sustento aqui não diz respeito às escolhas e às definições feitas na BNCC e no Currículo Bahia. A crítica não envolve a compreensão de que poderia existir uma BNCC melhor ou um referencial curricular estadual que contemplasse as exclusões que aponto ao longo do texto. Longe disso, reitero a impossibilidade de construção de um referencial pela sua pretensão de ser “Nacional Comum”, o que só pode ser constituído pela obliteração da diferença, enquanto são erguidos “nichos” para os(as) diferentes. Portanto, questiono o tratamento das questões étnico-raciais no Currículo Bahia, recusando-me a celebrar o “puxadinho” construído para negros(as) e Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (LGBTTs), por exemplo, em sua proposição da “Educação para Diversidade”.

O Currículo Bahia funda-se na compreensão de currículo como conhecimento. O que fica de fora, diante dessa escolha? Ausência! Entendo, com Elizabeth Macedo (2017, p. 541), que, para “[...] uma teoria curricular comprometida com a educação, só interessa o conhecimento como ausência porque é essa ausência que nos permite a experiência de estar com o outro”. É preciso atentar para o sentido dado à ausência, já que “[...] conhecimento como ausência não é a defesa de uma escola sem conteúdo” (MACEDO, 2017, p. 541).

Quais as consequências disso, ante o propósito de “incorporar a diversidade” em uma dinâmica educativa que contribua para “[...] eliminar as discriminações, emancipar grupos historicamente discriminados, valorizar socioculturalmente o sujeito, demarcando a importante contribuição das ações pedagógicas na construção de identidades” (BAHIA, 2019b, p. 61)? Denise Ferreira da Silva (2006) aponta que a produção científica tem um importante papel na invenção do humano como tal. Ao tratar da constituição do mestiço no Brasil, ela afirma que

[...] a eficiência da racialidade como estratégia política/simbólica moderna reside no fato de seu arsenal de racialidade reconciliar os valores científicos aos históricos da diferença humana porque escreve os ‘outros da Europa’ como sujeitos vulneráveis, como aqueles cujo destino não é a transparência. (SILVA, 2006, p. 70).

A autora afirma que a ciência assumiu um importante papel na instituição de humanidades, a partir de uma acepção de sujeito como consciente e transparente, para o qual conhecer a trajetória humana é tarefa primordial. Assim sendo, “[...] aqueles cuja existência social é regulada pela universalidade e autodeterminação” (SILVA, 2006, p. 69) instituem “[...] o racial como uma ferramenta onto-epistemológica” que funda um “horizonte ontológico diferenciado” (SILVA, 2006, p. 71). Nesse momento, a historicidade atua como importante mecanismo de inclusão e exclusão, estabelecendo quem é o “sujeito nacional transparente” e quem são os outros. Assim, Denise Silva (2006) descreve o funcionamento da norma racial, e “[...] não surpreende que a lógica da exclusão não possa capturar o modo da sujeição racial que esse relato autoriza”, isso porque “[...] a miscigenação, como um processo e como indicador de obliteração da diferença racial, institui configurações sociais em que o racial não opera como estratégia de poder” (SILVA, 2006, p. 74).

Aciono os argumentos utilizados por Denise Ferreira da Silva em relação à mestiçagem para questionar a celebração da diversidade no Currículo Bahia. Nesse sentido, a centralidade do conhecimento presente nos documentos referenciais nacional e estadual impõe um desafio que não será enfrentado por meio da disputa por inclusão de conteúdos, competências e habilidades que contemplem história da cultura afro-brasileira, indígena ou africana, por exemplo. A proposição do “nacional comum”, antes mesmo da sua concretização nos instrumentos, apresenta, em seu cerne, o pressuposto de estabelecimento de uma “base”, alicerçada no compromisso que “[...] estabelece com clareza o conjunto de aprendizagens essenciais e indispensáveis a que todos os estudantes, crianças, jovens e adultos, têm direito” (BRASIL, 2017, p. 5, grifo meu). O documento evidencia, portanto, que o direito alienável de todo(a) o(a) brasileiro(a) é fundado na reiteração do sujeito como “nacional transparente” e seus outros, conforme argumenta Denise Silva (2006).

Nessa perspectiva, a escola assume um papel fundamental na constituição da humanidade cidadã. Não por acaso, a ideia de que é necessário frequentar a escola para ser “alguém na vida” é tão popularizada no Brasil. A partir dessa acepção, para constituir-se como sujeito, seria necessário saber qual é a fórmula de Bhaskara , as regras gramaticais da língua portuguesa e que países integravam a Tríplice Entente, durante a Primeira Guerra Mundial. Assim, os sujeitos deveriam acessar o acervo de conhecimentos comuns compartilhados pelas gerações anteriores. Chamo atenção que, ao fazê-lo, enxergam o perfil dos corpos daqueles que produziram ciência, protagonizaram guerras e formularam compreensões sobre o mundo.

Seguindo por outra perspectiva, proponho olhar para a escola assumindo a perspectiva parcial, como ensina Donna Haraway (1995). Ao fazê-lo, nego a pretensão de neutralidade na produção científica e na sistematização dos conhecimentos escolares. Nessa trilha, a incorporação feita pela escola de “temas integradores”, com a promessa de equidade e de valorização dos saberes dos alunos, referenda o conhecimento comum curricular tido como universal e indispensável para a construção da narrativa da humanidade cidadã, constituindo-se, portanto, como arsenal da racialidade, ensinado, aprendido e fundado na escola (SILVA, 2006, p. 70).

Denise Ferreira da Silva (2006) evidencia que, ao tratar das relações entre senhores e escravizados no período colonial, como se elas fossem equilibradas, Gilberto Freyre “[...] reescreve a vulnerabilidade de indígenas e africanos, embrulhando-os no aspecto culinário, afetivo e patológico da vida familiar patriarcal” (SILVA, 2006, p. 76). De modo análogo, ignorar a violência produzida na escola como importante mecanismo de funcionamento do racismo estrutural (ALMEIDA, 2019), a partir da celebração da diversidade, é uma maneira perversa de escamotear o funcionamento da norma racial, que formula e reforça mecanismos de subjugação política, econômica e cultural, ao mesmo tempo que afirma promover “[...] uma educação integral voltada ao acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno de todos os estudantes, com respeito às diferenças e enfrentamento à discriminação e ao preconceito” (BRASIL, 2017, p. 5). Diante do exposto, não há como criar a expectativa de que as reformulações regionais da BNCC promovam a traição dela mesma, a partir da inclusão destas ou daquelas competências e habilidades.

No momento que questiono se tem dendê na base, estabeleço uma relação entre a baianidade com o azeite de dendê, na acepção de uma baianidade nagô, partindo, desse modo, da marcante inserção de práticas culturais de matriz africana, as quais são populares especialmente em Salvador e no Recôncavo baiano. Aponto, portanto, a impossibilidade de dar conta de diferentes nuances e sotaques que se distribuem em todos os territórios de identidade baianos. Espaços culturalmente marcados por tradições de vaqueiro no sertão, pelo culto do Jarê na Chapada Diamantina, pelo Folguedo do Boi em Irará ou das Caretas de Cairu, para citar apenas alguns exemplos que constam no Catálogo: Culturas Populares e Identitárias da Bahia (BAHIA, 2010).

A culinária produzida com azeite de dendê apresenta sabor e cheiro característicos. Assim sendo, acrescentar dendê na Base provocaria uma mudança substancial na receita. Já que não é possível separar o dendê no cantinho do prato, ele invade, no sentido mesmo de tomar o paladar dos pratos elaborados com o seu uso. Ao evidenciar o compromisso dos documentos curriculares como conhecimento e com a reiteração da norma racial, aponto, portanto, para a incompatibilidade entre o dendê e a Base, ainda que o Currículo Bahia reivindique se constituir como ação educativa que prioriza “eliminar as discriminações” e pretenda “[...] emancipar grupos historicamente discriminados, valorizar socioculturalmente o sujeito” (BAHIA, 2019b, p. 61).

A incompatibilidade do azeite de dendê com a regulação curricular está relacionada à tentativa de controle do instrumento normativo, que visa “[...] suturar esse fracasso, controlar os excessos e definir o que deve ser jogado para o lugar da invisibilidade” (MACEDO, 2017, p. 540). Por um lado, o intuito de prever situações formativas e de planejar sonhos da juventude na escola deixa escapar o ­imprevisível que atravessa os muros da escola; por outro, não assume o compromisso de pensar a juventude a partir de marcadores como raça, gênero e sexualidade, que permitiria perceber que, para transitar entre o Ensino Fundamental e o Médio, os jovens negros precisam permanecer vivos.

4 “A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER”

No debate sobre questões étnico-raciais, entre os temas integradores do Currículo Bahia, os dados sobre a violência que atinge a juventude negra são elencados. A partir de informações coletadas no Atlas da Violência de 2017, o documento aponta que as principais vítimas de violência no país são jovens negros. O texto também informa que apenas 62% dos jovens negros de 15 a 17 anos estão matriculados no Ensino Médio, enquanto o percentual de brancos da mesma faixa etária é de 76%. Segundo o Currículo Bahia: “Isso significa dizer que os jovens negros entre 15 e 17 anos ou estão matriculados no Ensino Fundamental, em situação de distorção idade/ano e série, ou estão fora da escola” (BAHIA, 2019b, p. 59).

A despeito das informações elencadas no tema integrador “Educação para Diversidade”, na elaboração da parte final do documento intitulada “Projeto de Vida e as Transições para o Ensino Médio”, encontram-se formulações que visam estimular a “[...] liberdade, autonomia, criticidade e responsabilidade” entre os jovens. Os educadores são convidados a “[...] reconhecerem seus estudantes como detentores de saberes, formas de sociabilidade e práticas culturais” (BAHIA, 2019b, p. 453). Entretanto, na minha trajetória atuando em ações de formação continuada para professores(as) - docentes dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, no interior da Bahia -, os(as) profissionais da educação têm apontado para outras urgências que irrompem a dinâmica escolar.

Retomo os dados sobre o genocídio da juventude negra, a distorção idade-série e a evasão entre os jovens negros para perguntar: qual é o papel da escola? Alguns indícios para a resposta emergiram das rodas de conversa realizadas em formação continuada com professores(as) que atuam em escolas públicas no município de Conceição do Coité, localizada no Território do Sisal, interior da Bahia. A escuta aconteceu entre ações do projeto de pesquisa “Combinamos de escreviver! Práticas de leitura e produção de narrativas negras no Território do Sisal”, tomando a conversa como metodologia de pesquisa (RIBEIRO; SOUZA; SAMPAIO, 2018). Ao desenhar o perfil de ex-alunos assassinados de forma violenta ou presos por envolvimento com tráfico de drogas, os(as) professores(as) identificaram a distorção idade-série como um elemento comum em suas trajetórias.

A população de Conceição do Coité, em 2010, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2017), era de 62.040 pessoas, com estimativa para 67.013 em 2020. Trata-se, portanto, de uma cidade pequena, localizada no interior da Bahia, que, em três anos, dobrou o número de homicídios. Os dados coletados na delegacia não trazem informações sobre questões raciais. Ainda assim, as notícias acompanhadas em sites que realizam reportagens na região, como o Calila Notícias, não deixam dúvidas sobre o perfil dos jovens assassinados. Os dados coletados na delegacia da cidade apontam para a maioria de assassinatos de jovens, mas, apesar disso, faz-se necessário considerar a subnotificação desse crime, especialmente nos municípios em que a construção desses dados não é acompanhada por outros órgãos públicos, em um contexto de tensionamento provocado por movimentos sociais diante da atuação da polícia.

O crescente número de jovens assassinados tem atingido diretamente as escolas estaduais, que atendem jovens do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. No diálogo com gestoras das unidades escolares, os dilemas vivenciados no cotidiano escolar foram relatados. Elas narraram momentos dramáticos, em que precisaram deixar estudantes em casa, temendo que fossem assassinados ao caminhar pelas ruas da cidade − situações em que permitem que eles permaneçam na escola, ainda que não queiram assistir às aulas, pois sabem que o espaço da escola é seguro. Elas mencionaram o grupo de diretoras em um aplicativo de mensagens, por meio do qual trocam informações nas madrugadas, quando escutam barulho de tiros, buscando sondar se os estudantes estão bem ou mesmo para identificar qual foi o estudante assassinado naquela noite.

No Colégio Estadual de Bandiaçu, unidade escolar em que desenvolvo atividades de formação junto aos docentes, foram seis estudantes assassinados nos últimos 4 anos. A comunidade escolar conhece os estudantes “envolvidos” - aqueles vinculados ao tráfico de drogas na cidade - e, também, os que estão marcados para morrer. No dia 25 de abril de 2019, recebemos uma mensagem no grupo do aplicativo criado para facilitar a comunicação com a equipe envolvida no projeto de formação:

Mais uma vida interrompida!

Gente, eu aconselhei, abracei e me despedi dele a semana passada ao ­entregar a transferência na mão da mãe.

Eu não estou dando conta.

A mãe veio buscá-lo na semana passada com medo de matarem ele. (Trecho do Grupo de Mensagens “Escrevivências”).

Em meio às tentativas de cuidado de várias colegas do grupo, que insistiam em demarcar que ela estava fazendo um bom trabalho como gestora, a professora desabafou: “Não está sendo suficiente, continuo perdendo alunos...”. Outra professa complementa: “Nossa! Que triste... sei bem como é isso, no final do ano passado uma aluna de Araci foi morta e esse ano dois adolescentes que foram meus alunos o ano passado também foram mortos... é preciso ser forte diante dessa situação”.

O assassinato de jovens negros, estudantes das escolas públicas, tem sido pautado pelos movimentos sociais da cidade, como o Revolution Reggae e o Coletivo Marielles. Os grupos mobilizam rodas de conversa, marchas e atividades artísticas na cidade, denunciando o grande número de assassinatos. Entretanto, as palavras da professora no aplicativo de mensagens continuam ecoando: “Não está sendo suficiente, continuo perdendo alunos”.

Diante desse contexto, entendo que racismo estrutural gera situações de exclusão racial que produzem padrões estatísticos, em que constam números alarmantes sobre exclusão do espaço escolar, ingresso reduzido na universidade e grande índice de jovens negros entre os assassinados e presos. A formação escolar, ao assumir as questões que irrompem no cotidiano e partem de demandas estudantis, pode gerar deslocamentos nas normas, especialmente se não limitar a escola como espaço apenas para ensinar, entendendo-a, portanto, como território de socialidades, encontros, afetividades e desavenças (MACEDO, 2017). A amplitude desse espaço é entendida pelos estudantes, como nos revela a gestora Valdemara Souza de Oliveira Costa: “Eles gostam de vir pra escola, mas não de assistir às aulas”.

Os dados apontam a gravidade da situação no Nordeste, especialmente na Bahia. A taxa de distorção idade-série que, no Brasil, é de 25,9; na Bahia, é 40,8. Em Conceição do Coité, o índice chega a 42,0. Essas informações, disponibilizadas pelo Censo Escolar de 2017, evidenciam o problema detectado nas escolas de Conceição de Coité; entretanto, não apresentam o recorte racial. Por outro lado, ao comparar a taxa de homicídios de negros, por 100 mil habitantes no Brasil, no Atlas da Violência de 2019, a Bahia ocupa o oitavo lugar no ranking nacional.

No levantamento preliminar realizado na Escola Estadual de Bandiaçu, os números são ainda mais alarmantes, com taxas de distorção idade-série de 63%, quando consideramos as turmas de sexto ano. Em todos os anos observados, os estudantes negros são maioria, e, em alguns casos, todos os estudantes em distorção são do sexo masculino e negros, o que ocorre com as turmas de sétimo ano da mesma unidade escolar.

Quando considero a idade dos jovens assassinados e encarcerados no Brasil e associo tais dados aos índices de evasão e de distorção idade-série, a impossibilidade de cumprimento das promessas da BNCC e do Currículo Bahia é latente. As questões que atravessam o cotidiano do Colégio Estadual de Bandiaçu apontam para o impacto do genocídio da juventude negra na comunidade escolar, atingindo diretamente seu corpo estudantil, e, também, para os efeitos provocados na atuação dos(as) professores(as). Quais são os projetos de vida possíveis para os que sobrevivem nessa ambiência?

No conto A gente combinamos de não morrer, a escritora mineira Conceição Evaristo intercala experiências das personagens Esterlinda, Dorvi e Bica, que conversam sobre um acordo estabelecido entre os jovens:

- A gente combinamos de não morrer.

- Deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel. [...]. Entre Dorvi e os companheiros dele havia o pacto de não morrer. Eu sei que não morrer, nem sempre, é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. “Escrever é uma maneira de sangrar”. (EVARISTO, 2016, p. 108-9).

No livro Olhos d’Água, de Conceição Evaristo, a morte apresenta-se para muitas personagens como forma de denúncia, em relação às condições de vida da população negra no Brasil. A escritora apresenta a complexidade de suas personagens, a partir de diversas camadas, que envolvem os(as) leitores(as) em seus dramas. Por isso, quando eles perdem a vida em meio a um gozo-pranto, como Davenga, ou na volta do trabalho, carregando as frutas para os filhos, como foi o caso de Maria, já estamos envolvidos em seus anseios, seus desejos e suas lutas. A leitura de cada conto transporta-nos para o cotidiano de personagens que soam familiares. Enquanto, nas escolas, os(as) professores(as) relatam dramas de Josés e Pedros da “sétima A” ou da “oitava B”, eles(as) indicam a vinculação familiar, “neto de Dona Joana”, e a relação, por vezes, conflituosa com a escola: “ele foi transferido e depois voltou”, ou ainda, “ele perdeu de ano duas vezes”.

Se, nos contos de Conceição Evaristo, as escrevivências dão concretude à ficção, nos corredores das escolas, ouvimos relatos e dramas que assombram o cotidiano de estudantes e professores(as). Vamos mesmo subscrever diante delas o compromisso de documentos normativos “[...] com a redução das desigualdades educacionais no Brasil e a promoção da equidade e da qualidade das aprendizagens dos estudantes brasileiros” (BRASIL, 2017, p. 5).

5 TODA MENINA BAIANA

Toda menina baiana tem um santo, que Deus dá

Toda menina baiana tem encanto, que Deus dá

Toda menina baiana tem um jeito, que Deus dá

Toda menina baiana tem defeito também que Deus dá

Que Deus deu

Que Deus dá

Que Deus entendeu de dar a primazia

Pro bem, pro mal, primeira mão na Bahia

Primeira missa, primeiro índio abatido também

Que Deus deu

Que Deus entendeu de dar toda magia

Pro bem, pro mal, primeiro chão na Bahia

Primeiro carnaval, primeiro pelourinho também

[...]

(Gilberto Gil - Toda Menina Baiana - Álbum Realce/1979)

Escrevi este texto no momento das mobilizações antirracistas no Brasil e nos Estados Unidos de 2020, provocadas pelo assassinato de George Floyd, um homem negro, vítima da violência policial em Minneapolis. No Brasil, a juventude negra moradora de comunidades, de favelas e de distritos luta para sobreviver diante das fragilidades do Sistema Único de Saúde (SUS), acentuadas pela pandemia da Covid-19. A juventude negra administra as dificuldades para prover itens básicos, por conta do crescente desemprego que resulta da crise econômica, e tenta se manter viva a despeito das constantes operações policiais que vitimam jovens e crianças negras.

Diante das agruras do contexto de isolamento social e temores relacionados à disseminação do coronavírus em todo o país, a arte tem sido um alento, por vezes veiculada por meio de lives transmitidas por plataformas como o YouTube e o Instagram. O isolamento social, que visa reduzir as taxas de contágio do novo coronavírus, fundou novas rotinas para a produção acadêmica, com o trabalho em home office, que concorre com as aulas on-line do meu filho e o acúmulo das infindáveis tarefas domésticas. Em um desses sábados com cara de segunda, ouvia Gilberto Gil enquanto escrevia este texto e estranhei a letra da conhecida canção Toda Menina Baiana. Provavelmente, o meu estranhamento foi fruto das idas e vindas na escrita entre comum e o singular, em meio aos debates da BNCC e do Currículo Bahia. A música parecia anunciar o universalismo do determinante indefinido “toda”, que é estancado pela especificidade da “menina baiana”. Se nos deixarmos levar pela voz de Gil, que nos acalenta, e pela melodia da canção, é possível pensar que, apesar de aparentemente tratar de características específicas da menina baiana, Gil se refere a atributos comuns, todos dados por Deus: encanto, jeito, defeito... Ao mesmo tempo, a sua forma de cantar indica que se refere a “um jeito” e encanto particularmente baianos. Ainda assim, em que ponto estaria delimitada a baianidade da menina? A primazia da Bahia é destacada por razões históricas. Já a localização da menina baiana pode ser lida a partir da relação com as tradições religiosas afro-brasileiras, tomando como referência o primeiro verso da letra: “Toda menina baiana tem um santo, que Deus dá”. A localização envolve o uso do termo “santo”, que, no candomblé baiano, é uma forma de se referir ao orixá de frente, aquele que assentado no ori(cabeça) durante os rituais de iniciação. A compreensão de que toda pessoa tem um santo, ainda que este ainda não tenha sido identificado, integra a cosmogonia das religiões afro-brasileiras.

Pensei que talvez estivesse fazendo uma superinterpretação da canção de Gil. Passei o dia cantarolando a música, ao mesmo tempo que trabalhava no texto e aguardava a live de Teresa Cristina, tradicional ponto de encontro na quarentena. Naquela madrugada, o encontro virtual seria dedicado às músicas cantadas por Elis Regina. Desde o início do isolamento social, reúno-me com milhares de pessoas para ouvir a sambista carioca cantar a capela sambas de terreiro, sambas-enredo, temas de novela e homenagear artistas marcantes para a cultura brasileira. Entre gargalhadas, canções e muitas histórias sobre a música brasileira, os medos e as apreensões provocados pela pandemia e pelas tensões políticas do país ocupam o segundo plano. Naquela noite, durante a homenagem para Elis Regina, de forma inesperada, Gilberto Gil entrou na live de Teresa. No seu ingresso, Teresa lhe disse que o considerava um orixá vivo, que a sua presença era marcada pela energia de Xangô, o orixá de Gil. Imediatamente, lembrei da música que cantarolava durante o dia. Como se diz na Bahia: tão certo assim! Aquela aparição era um sinal!

Xangô é o orixá da justiça e seu alimento é o amalá, comida sagrada feita com quiabo, cebola, camarão seco e azeite de dendê. Ante o grande número de pessoas negras vítimas da pandemia no Brasil e nos EUA, bem como de jovens negros assassinados com absurda frequência pela ação policial, aqui denominada guerra às drogas, parece-me justo clamar por Xangô, na defesa de práticas curriculares comprometidas com a vida da juventude negra. Diante disso, considero inócua a tentativa de formulação de projetos de vida que desconsiderem a imprevisibilidade de suas necessidades e sem o controle de seus anseios, ainda que tenha demonstrado ao longo do texto a preocupação específica em relação ao genocídio da juventude negra. Os relatos dos(as) professores(as) sobre estudantes que gostam da escola, mas não querem assistir às aulas, indicam a falência do projeto defendido pelo Currículo Bahia, que significa a escola como um lugar para “ser alguém na vida”.

Ao longo do texto, evidenciei a impossibilidade de cumprimento das promessas do Currículo Bahia quanto à equidade e à promoção da educação antirracista. Ao afirmar isso, não reivindico a alteração de competências e de habilidades, proposição que seguiria na mesma esteira da compreensão do currículo como conhecimento, manutenção do espaço escolar como instituição que perpetua o funcionamento da norma racial. Nesse sentido, demonstro a impossibilidade que se dá pela combinação de demandas por equidade com a defesa do universalismo epistemológico, que lastreia a Base (MACEDO, 2019).

As práticas divulgadas no site da ANPEd, na Campanha “Aqui já tem currículo”, e a minha experiência na formação de professores(as), atuando nas escolas do Território do Sisal, indicam invenções, comprometimento e constante busca por formação pelos(as) docentes. Além disso, é perceptível que os(as) profissionais da educação são constantemente atormentados(as) pelo sentimento de impotência e culpa, como foi explicitado na frase: “Não tem sido suficiente”.

Creio que, durante o exercício desta escrita, o Xangô vivo, Gilberto Gil, fez-se presente para apontar na direção de práticas curriculares de professores(as) que se equilibram entre o comum e o singular, como os atributos da “menina baiana”. Assim, a produção de conhecimento e a construção de sociabilidades nas escolas emergem como saberes localizados e que, portanto, são atravessados por orixás, sambas, lives e amalás. Nessa perspectiva, refuto o princípio multicultural do Currículo Bahia que se pretende articular a todos os Territórios de Identidade do Estado, sem apontar pertencimento algum, tal e qual os temas integradores do documento oficial, que não articulam modalidades e etapas de escolarização. Vejo, na dinâmica cotidiana dos(as) professores(as), algo que não pode ser fixado em normativas curriculares. Algo que lembra a sutileza de Gil, que se refere a um jeitinho especial da menina baiana, demarcando-a como tal, sem fixações identitárias, e, ao mesmo tempo, situa culturalmente a menina, que é baiana.

Ancorada na leitura dos documentos produzidos pela ANPEd, pela ABDC e, principalmente, pela escuta de professores(as) em experiências de formação continuada, duvido que quaisquer documentos curriculares possam garantir a qualidade da educação no Brasil e promover a equidade diante do funcionamento da norma racial na escola, ainda que reconheça possibilidades para fissuras. Destaco o papel dos documentos curriculares em suas tentativas de controle e de regulamentação das práticas educativas, assim como a potência das brechas e dos deslocamentos, especialmente se forem banhados do azeite de dendê. Dito isso, só me resta servir o amalá de Xangô e rogar para que ele traga justiça para a população negra, que luta contra a pandemia de coronavírus, ao mesmo tempo que se mantém de pé diante dos ataques sistemáticos das forças do estado, em comunidades de grandes centros e distritos de pequenas cidades em todo o Brasil. Reitero, então, a necessidade de tratamento de questões curriculares sem obliterar a diferença, o que possibilitaria tratar de questões que atravessam o cotidiano escolar, como o genocídio da juventude negra. Kaô Kabiecilé !

2O título do texto em análise é “Documento Curricular Referencial da Bahia”; entretanto, como indicou o Parecer do Conselho Estadual de Educação na Bahia, na ocasião de sua aprovação, no corpo do texto, a nomenclatura utilizada é “Currículo Bahia”. Esse nome tem sido utilizado nas escolas, por professores(as) e gestores(as) ao se referirem ao documento, por isso foi adotado ao longo deste texto. Entre as recomendações do Conselho Estadual de Educação da Bahia, consta: “Adequar nomenclaturas, garantindo coerência ao nome atribuído de Documento Curricular Referencial da Bahia, que intitula o presente documento, às constantes citações no seu corpo, mantidas como em versões anteriores, de Currículo Bahia” (BAHIA, 2019a, p. 21).

3Xangô − Orixá do panteão iorubá, definido por Reginaldo Prandi da seguinte forma: “Xangô é o dono do trovão, conhecedor dos caminhos do poder secular, governador da justiça” (PRANDI, 2001, p. 21-22).

4Texto da propaganda da BNCC, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fbz-cpct1W4. Acesso em: 6 jul. 2020. #EducaçãoéBase. Base Nacional Comum Curricular. 11.056 visualizações. Postado em 13 de abril de 2018. Legenda: #EducaçãoÉBase | O Brasil terá, pela primeira vez, uma Base Nacional Comum Curricular! Com a Base, todos os estudantes do país, de escolas públicas ou particulares, terão os mesmos direitos de aprendizagem. Saiba mais em http://portal.mec.gov.br/. Canal do Ministério da Educação – 98,5 mil inscritos.

5O histórico desse debate pode ser acompanhado no site da Associação Brasileira de Currículo, disponível em: https://www.abdcurriculo.com.br/documentos. Acesso em: 6 jul. 2020.

6O Parecer do Conselho Estadual da Bahia que avaliou a proposta do Currículo Bahia chamou atenção para a necessidade de integração do debate racial nas práticas curriculares. “Cabe ressaltar, no que se refere aos desafios da Educação para os Direitos Humanos e Diversidade, a necessidade de incorporação, de modo sistêmico, nos PPP e Planos de Ensino, os conteúdos programáticos relacionados à Educação para as Relações Etnicorraciais, Educação Indígena e Educação Quilombola, como parte da formação integral dos indivíduos. Importa que tais conteúdos não fiquem restritos a projetos realizados em datas comemorativas ou desenvolvidos apenas em modalidades especiais, seccionados exclusivamente para os diversos” (BAHIA, 2019a, p. 10).

8Método resolutivo para equações de segundo grau em matemática.

9 Saudação ao orixá Xangô.

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Recebido: 20 de Julho de 2020; Revisado: 17 de Agosto de 2020; Aceito: 09 de Setembro de 2020

Iris Verena Santos de Oliveira: Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - PROPED/UERJ, como bolsista PNPD/CAPES. Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em História Social pela Universidade Federal do Cear (UFC). Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) - Campus XIV (Conceição do Coité) e do Mestrado Profissional em Educação e Diversidade da UNEB. Atua na Gerência de articulação com grupos estratégicos da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas da UNEB. Coordena o Projeto de pesquisa aplicada em educação: “Combinamos de não morrer: currículo, distorção idade-série e genocídio da juventude negra em Conceição do Coité”. Desenvolve pesquisas sobre currículo, diferença, BNCC e Currículo Bahia, além de atuar em cursos para formação e atualização de professores. Integra a Associação de Pesquisadores Negros (ABPN), Associação de Pesquisadores em Educação (ANPED) e a Associação Brasileira de Currículo (ABDc). E-mail: irisveren@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7041-3327

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