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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.26 no.56 Campo Grande ene./apr 2021  Epub 22-Jul-2021

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v26i56.1442 

Artigos

Transição entre a Educação Pré-Escolar e o primeiro ano: desafios do contexto educativo português1

Transition between Pre-School and 1st year: challenges in the portuguese educational context

Transición entre pre-escuela y primer año: desafíos del contexto educativo portugués

Silvani Kempf Bolgenhagen2 
http://orcid.org/0000-0002-8225-4455

Ariana  Cosme2 
http://orcid.org/0000-0002-8194-5027

Ana Cristina Pinheiro3 
http://orcid.org/0000-0003-3285-4003

2Universidade do Porto, Porto, Portugal.

3Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, Porto, Portugal.


Resumo:

Com esta pesquisa, buscamos perceber desafios que se colocam no processo de transição entre a Educação Pré-Escolar e o 1º Ciclo do Ensino Básico e como eles são espelhados na prática pedagógica dos diferentes atores no processo: educadores de infância, professores do 1º Ciclo do Ensino Básico e famílias. Analisamos: planificações, registos, relatórios de avaliações e, ainda, a relação destes instrumentos com as novas demandas das Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar de 2016 (OCEPE) e o Decreto Lei n. 55/2018. Foi realizado um estudo qualitativo, no paradigma fenomenológico interpretativo. A pesquisa nos permitiu constatar sobre a articulação: i) O olhar das entrevistas e observações das práticas pedagógicas; ii) O tempo das crianças; iii) A importância da afetividade; iv) Do ofício de criança ao ofício do aluno; v) Transição da casa para 1º ano; vi) O olhar das educadoras/professoras sobre os planeamentos; Regras e a imaturidade para adaptação.

Palavras-chave: transição; articulação entre os ciclos; prática pedagógica

Abstract:

With this research, we seek to understand the challenges on transitions between Early Childhood Education (ECE) and Primary School and how they are shown in teachers’ pedagogical practices as well as within families. We analyzed: planning records and evaluation reports and how these instruments relate to the demands of the new Curriculum Reformulations for ECE 2016 (OCEPE) and Decree Law 55/2018. We developed a qualitative study based on an interpretative phenomenological paradigm. The research allowed us to find out more about practices on the interaction between Primary Schools and ECE institutions from: i) interviews and observation data on effective practices; ii) spontaneous children’s activities; iii) the importance of affectivity; iv) reflection upon children or student work; v) articulation between home and school as a sense of continuity; vi) the teachers/educator’s professional eye about planning; rules and adaptability skills.

Keywords: transition; articulation between ECE and Primary School; pedagogical practice

Resumen:

Con esta investigación, buscamos percibir los desafíos que surgen en el proceso de transición entre la educación preescolar y el 1er ciclo de educación básica y cómo ellos se reflejan en la práctica pedagógica de los diferentes actores en el proceso: educadores infantiles, maestros del 1er ciclo Educación básica y familias. Analizamos: planes, registros e informes de evaluación y también la relación de estos instrumentos con las nuevas demandas de las Reformulaciones Curriculares para la Educación Preescolar 2016 (OCEPE) y el Decreto Ley 55/2018. Se realizó un estudio cualitativo, en el paradigma interpretativo fenomenológico. La investigación nos permitió conocer la articulación: i) El aspecto de las entrevistas y observaciones de prácticas pedagógicas; ii) El tiempo de los niños; iii) La importancia de la afectividad; iv) Del trabajo del niño al trabajo del estudiante; v) Transición de la casa al primer año; vii) La opinión de los educadores/profesores sobre la planificación; Reglas e inmadurez para la adaptación.

Palabras clave: transición; articulación entre ciclos; práctica pedagógica

1 INTRODUÇÃO

Transição de um ciclo para outro, normalmente, tem grande significado na vida social das crianças. Segundo o dicionário de Língua Portuguesa, a palavra transição tem o significado sobre o ato de transitar, passar de um lugar para outro. Neste artigo, a transição se refere de um ciclo para o outro, mais especificamente, da Educação Pré-Escolar para o 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico. O processo de transição entre ciclos tem estado na preocupação do Ministério da Educação de Portugal, fazem indicações para que os profissionais de ambos os ciclos debatam e articulem entre si (OCEPE, 2016). Em ambos os ciclos, a legislação estipula a necessidade de uma interligação entre os diferentes níveis, seja pelo Decreto-Lei n. 55/2018, de 6 de julho, no Artigo 3º 4 ou OCEPE (2016). Do ponto de vista metodológico, a pesquisa apoiou-se nos princípios do paradigma fenomenológico interpretativo. Neste artigo, será abordado como se deram as transições e articulações entre os ciclos de quatro agrupamentos verticais, da Educação Pré-Escolar e do 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico, total de oito unidades educativas da área metropolitana do Porto – Portugal. Devido a questões éticas, as unidades da Educação Pré-Escolar foram nomeadas pelas siglas: M1, P1, L1 e F1, e a nomeação do 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico, siglas: M2, P2, L2 e F2. A coleta dos dados se deu no final do ano letivo da Educação Pré-Escolar e no início do ano letivo seguinte, nas salas do 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico. A análise dos dados incidiu sobre: entrevistas, registos das observações, projetos educativos, planeamentos das educadoras e professoras e documentos do Ministério da Educação (Pré-Escolar e Ensino Básico). Para o estudo, suportamos uma estratégia metodológica qualitativa a fim de compreender desafios que se colocaram no processo de transição entre os ciclos. Para tanto, neste artigo, face às demandas apresentadas, pretendemos demonstrar como foram conduzidas estas especificidades no chão das escolas, se de fato houve uma parceria por parte dos profissionais no que diz respeito à transição do Pré-Escolar para o 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico. Também procuramos perceber os significados dados e as estratégias pedagógicas utilizadas para efetivar o processo da transição.

2 PROCESSO DE TRANSIÇÃO

O fato das crianças serem provenientes de diferentes percursos, com géneses sociais distintas e com características próprias, merece atenção por parte dos/as profissionais no processo de transição entre os ciclos. Nas OCEPE (2016), é sugerido uma articulação entre estes profissionais e que tenham um olhar mais atento no período de adaptação para que as crianças possam transitar e integrar com tranquilidade na nova escola ou contexto. As orientações sugerem:

A reflexão prévia e o acordo entre educadores/as do mesmo estabelecimento é importante para debaterem com os/as professores/as os processos e aprendizagens desenvolvidos na educação pré-escolar, partilhando o que uns e outros pensam sobre a pertinência destas aprendizagens, [...] e sobre as práticas adotadas [...], que mereçam o acordo de todos os docentes, e sejam facilitadoras da transição e da continuidade do processo educativo. (SILVA et al., 2016, p. 103).

Há de se ter em conta que a comunicação e a articulação entre os profissionais e suas práticas pedagógicas contribuirão e facilitarão para as crianças a tr­ansição, sentindo menos a rutura do Pré-Escolar para o 1º ano. Pesquisas ap­ontam que no processo de transição deve envolver comunicação e articulação entre docentes de ambos os ciclos e familiares, para terem um sentimento de pertença e obterem uma transição bem-sucedida (SAHNOW, 2015). Outros fatores também foram relacionados nas interações entre as equipes de trabalho e a criança, incluindo as interações emocionais, institucionais e organizacionais (ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT [OECD], 2018, p. 66-86). Julião (2019), coloca que nestes contextos a ação destes profissionais se torna necessária para que se cumpra o que está prescrito a nível nacional de forma mais efectiva, eficaz e harmoniosa possível (JULIÃO, 2019, p. 311). Cruz (2008) diz que esta ideia está vinculada ao sentido de união, sequências ordenadas no sentido de uma progressão, com elos de união que tornam os processos globais e não compartimentados (CRUZ, 2008). Esta pesquisa nos possibilitou ter um olhar particular para este processo entre os ciclos, destacando, a seguir, pontos que surgiram no decorrer das análises realizadas da coleta dos dados.

3 O OLHAR DAS ENTREVISTAS E OBSERVAÇÕES DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Trata-se de um processo delicado e merece a atenção devida; dado a isso, o Ministério da Educação tem tido um olhar mais atento, o processo de transição deixou de estar somente nos papéis, está no dia a dia, preocupa as educadoras e as professoras, como pudemos constatar nas entrevistas fornecidas. Ao fazermos as entrevistas, as educadoras e professoras foram questionadas sobre qual era a perceção que tinham sobre o processo de transição e de como é planeado na escola. Importa referir que apesar de ter como referencial as respostas dadas nas entrevistas exploratórias, elas não se restringiram como a única fonte, estas informações serão associadas às observações realizadas, igualmente relevantes. Vejamos:

3.1 O tempo das crianças

O tempo das crianças vai ao encontro da ideia de se adaptarem ao novo ciclo e merece atenção sob a perspetiva das profissionais. Em seus depoimentos, defendem que a transição deve ser feita de modo gradual e tranquilo. Elas têm a consciência de que a diferença de espaço, a idade das crianças e o conteúdo do 1º ano devem ser levados em conta para assegurar que esta etapa seja bem-sucedida; para isso, deve ser respeitado o tempo de adaptação ao novo ciclo.

[…] acho que tem que ser uma transição mesmo graduada […] (Entrevista P2)

[…] muitos vêm pequeninos com 5 anos para o 1º ciclo e, portanto, no fundo uma palavra para resumir a transição: a transição deve ser tranquila. (Entrevista P2)

[…] uma transição também em que a parte afetiva é valorizada, até porque eles ainda são muito pequeninos […] (Entrevista P2)

[…] pegar neles de uma maneira, pelo menos no 1º período e aqui os professores fazem muito isso, e eu acho que é ótimo. Ainda deixam eles serem crianças, e deixam ainda virem cá um bocadinho no pré e fazerem umas coisitas do pré, um bocadinho diferentes. (Entrevista M1)

Acho que todas as crianças têm o seu tempo de adaptação e que devem ser respeitadas […] (Entrevista L2)

Há sempre um conjunto de fatores que são importantes para que eles transitem para o 1º ciclo de uma maneira “soft” digo eu, que é mesmo assim, é um estrangeirismo, é mesmo a palavra adequada! Maneira “soft”! (Entrevista M2)

Defendem também que a transição deve ter experiências positivas e que tenham um sentido de continuidade no primeiro Ciclo.

[...] mas, se a criança não estiver preparada para isso, ela vai se deparar com uma situação na qual, ela se calhar não vai gostar, e começar a rejeitar um bocado a escola e precisamos que ter muito cuidado com isso, sabes […] (Entrevista L1)

A criança ou poderá não gostar da escola, ou sentir-se de alguma forma oprimida na sala e não pretendemos isso, queremos que as crianças que vem do Pré-Escolar, vem com experiências positivas a partida e nós queremos que as experiências positivas continuem no primeiro ciclo, acho que este ponto de transição é muito importante. (Entrevista L2)

O sentido de continuidade, na abordagem do sistema ecológico (BRONFENBRENNER, 1979), é uma mais-valia no processo de adaptação ao novo ciclo, pois poderá operar em forma de ligação entre a Educação Pré-Escolar e o 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico, podendo se complementarem, para que funcione esta transição no sentido de continuidade e não rutura. As experiências positivas, a autoconfiança adquirida pelas crianças no Pré-Escolar vai auxiliá-las no processo de adaptação e aquisição de novos hábitos (VASCONCELOS, 2015). A transição dentro da abordagem por sistemas ecológicos pressupõe uma interligação, não opera de modo independente. Percebe-se que as profissionais da mesma instituição e ciclos distintos têm a mesma opinião, olhar atento para este período para que a criança não se sinta desconectada, percebemos a veracidade destas iniciativas quando a professora (M2) do 1º ano diz:

[...] porque eles estão no mesmo espaço, os que já estavam cá e claro, eles só transitam de sala, porque a escola é a mesma professora. Mas de professora também vemos nos corredores! Porque durante os intervalos, ou durante as visitas às salas do pré-escolar nós também, e pronto. (Entrevista M2)

Vasconcelos (2015) defende “que cada parte do sistema funcione efetivamente, torna-se necessária uma boa articulação entre sistemas: trabalho conjunto, passagem de informação, partilha de poder” (VASCONCELOS, 2015, p. 8). Curioso perceber que os espaços informais de relação são locais de promoção da transição; conforme refere a entrevistada M2, as crianças são acolhidas.

3.3 A importância da afetividade

O período de transição também é indicado pelas professoras, para elas perceberem o nível de conhecimento que a criança tem, para poderem avançar ou não nos conteúdos do 1º ano. Através de alguns depoimentos, percebe-se que há a consciência de que as crianças necessitam de um tempo para se adaptarem, valorizam a trajetória e presam por um trabalho contínuo.

Eu também faço a aferição, portanto dos meninos que ainda têm cinco anos, que são mais jovens e que se calhar terão que manter mais próximos da professora, mais próximos do quadro. (Entrevista P2)

[…] eu também vou conhecendo o grupo e vou vendo o que resulta e o que não resulta e, portanto, é o que eu acho. (Entrevista P2)

Eu acho muito importante porque também permite a criança perceber que aquele momento que tinham no Pré-Escolar também passa cá para cima e também ao outro nível de outra forma com responsabilidades e com assuntos diferentes, mas que também é importante e existe aqui e faz com que eles sintam que a proximidade entre e nós seja menor. (Entrevista L2)

[...] e durante o ano há sempre um trabalho contínuo. Portanto, ou seja, quando eles vão para aquele espaço, o espaço já não é novo, pronto. (Entrevista M1)

A importância dada ao trabalho contínuo faz com que as crianças possam passar de um ciclo para outro em ambiente conhecido, favorecendo o sentido de progressão e construção de novos conhecimentos no novo espaço educativo. As diferenças entre os espaços educativos sempre existirão e devem ser tratadas com cautela; na visão das profissionais este processo é difícil:

[...] assim, e, pela experiência que eu tenho e vários estudos que eu tenho lido, eu acho que esta transição da Pré para o 1º Ciclo é sempre um bocado complicado (Entrevista M2).

[...] acho que as pessoas estão mais sensibilizadas para o fato de que a criança vem de um ambiente mais livre, e, não é, tendo esta sensibilidade, naturalmente vão perceber que as crianças precisarão de tempo para se adaptarem, não é? (Entrevista L1)

Torna-se necessário que os adultos consigam perceber a dificuldade que a criança tem de se adaptar no novo espaço e tratem as transições com a devida atenção para não prejudicarem o sucesso educativo da criança. Serra (2004) salienta a importância de as crianças conhecerem as diferenças entre estes ambientes, para que elas possam se preparar para a mudança e isso não seja tão complicado.

No primeiro dia de aula do 1º ano, pude perceber em uma das escolas um acolhimento diferenciado das demais. A aula iniciou-se na manta e à base de afeto, principalmente para a criança que estava com dificuldade emocional, que estava a chorar. Então a professora pediu que fosse para o colo dela.

Professora: Muito bom dia! Onde estamos? Crianças: na sala do 1º ano! Responderam entusiasmados. Professora: Muito bem! Então agora nós vamos para carpet time para podermos nos apresentar! Todos sentaram-se na manta em forma de círculo, um ao lado do outro para poderem se ver, com exceção de uma das meninas que ainda estava a chorar sentou no colo da professora para poder ir se acalmando. Professora: vocês querem saber o nome dos amigos? Crianças: sim! (Observação L2)

O respeito ao tempo de adaptação da criança no novo contexto é salvaguardado no momento que a professora acolhe a criança em seu colo, criando um vínculo afetivo entre elas.

3.4 Do ofício de criança ao ofício do aluno

Nas observações realizadas, pudemos perceber que as crianças sentem falta do tempo para brincar e a todo momento pedem. As professoras têm esta consciência e atribuem, de certa forma, este tempo para as crianças usufruírem o ofício de criança.

Quem terminava a tarefa ganhava uma plasticina para brincar. Faltando pouco tempo para o almoço as crianças pediram para cantar. A professora concordou. (Observação F2)

Professora: olha! Iríamos trabalhar um bocadinho com a matemática! Mas estou a perceber que estão cansados! Então, vamos pintar os balões, e depois poderão brincar, o que acham? (Observação P2).

A observação nos indica que a professora respeita o tempo de brincar e a necessidade que a criança tem neste processo de transição. Percebemos que está implícito conceito e o respeito ao “ofício de criança”, e que para ela o processo da transição tem de ser de forma equilibrada e tranquila para se integrar ao novo ofício, o do aluno. Também percebemos em uma das escolas a preocupação na organização do tempo e espaço e o respeito para com o processo de transição em duas escolas. O espaço foi organizado em vários ambientes, em um deles está a manta, espaço para brincarem e canto da leitura, locais característicos do colhimento do Pré-Escolar.

Sim, nós temos aqui nas nossas salas, as nossas salas são organizadas de forma que haja respeito por esta transição. Não sei se já viste as nossas salas, mas, por exemplo, a nossa sala do 1º ano tem o cantinho de leitura ali ao fundo, tem um sótão exatamente igual ao que tem no Pré-Escolar! Tem por baixo, que geralmente é a casinha, mas que deixa de ser a casinha e o mesmo espaço para a ser um canto de leitura e um espaço para a informática.A ­p­ró­pria sala em si está pensada de forma que haja essa transição. Por exemplo a sala do 2º ano já não tem o sótão, só o cantinho da leitura, na sala do 3º ano já não tem uma coisa nem outra, portanto vai havendo esta preocupação e consciência a medida que as crianças vão avançando. (Entrevista L2)

No depoimento da professora, é demonstrada a preocupação da escola como um todo sobre o processo de transição, ela é feita aos poucos em todos os anos, gradualmente, para que não haja uma rutura brusca. Ao perguntarmos se os processos de transição passam por preparar a criança para a entrada no 1º ciclo, as educadoras acreditam que sim e que o trabalho efetivado na Educação Pré-Escolar seja um facilitador de aprendizagens.

De eles ficarem mais despertos, para que eles consigam com maior facilidade para subir este degrau que é bastante mais alto, não é? Eu espero que ao chegar ao próximo, ao próximo ano, e eu ouvir dizer que eles realmente estão a conseguir? Portanto, vou conseguir ter um feedback, vou conseguir saber como as coisas estão a correr! Espero sinceramente que com este trabalho que eu fiz ao longo deste ano, dê frutos e seja um facilitador das aprendizagens. (Entrevista L1)

Esta preocupação é evidenciada nos relatos abaixo relacionados que demonstram seus posicionamentos com referência à transição em relação ao tempo e espaço da sala. Relatam como é organizado o tempo e o espaço no local. O planeamento é voltado para uma abordagem mais lúdica parecida com a Pré-Escola. Com a utilização destas dinâmicas pedagógicas durante o dia, fazem com que as crianças se familiarizem aos poucos com a nova rotina e não se distanciem do que vinham vivenciando no ciclo anterior.

[…] também temos muitas vezes nas nossas aulas, elas começam com uma rotina “carpet time”, que é a rotina que há no Pré-Escolar, estão todos sentados em círculo no chão e a professora esta sentada no chão também e fazemos esta rotina várias vezes durante o dia. (Entrevista L2)

Eu acho que numa primeira fase terão esta preocupação, nós aqui temos, esta preocupação. Eu sei, porque nós temos uma sala, logo ali em frente que é do 1º ano, que tem uma biblioteca, com computador, quando eles acabam a tarefa deles, eles podem ir até a biblioteca ler um livro. (Entrevista L1)

Tudo muito à base da manipulação, nós sempre estamos aqui a manipular materiais, estou a sentir aqui neste grupo que a plasticina é um sucesso [...] é o que eles gostam não é, muito no concreto, muito mesmo. (Entrevista P2)

[…] e pronto nesta fase [...] trabalham brincando, não é, e aqui eu quero manter um bocado isto. (Entrevista P2)

No processo de adaptação, a criança deixará para trás o “ofício de criança” para entrar no “ofício de aluno”, com outros conjuntos de práticas sociais institucionalizadas e num contexto de produção sendo, na maioria das vezes, dirigidas pelos adultos e diferentes das que estão familiarizadas (SARMENTO, 2011, p. 588). De certa forma, assegurar que a transição seja tranquila e bem-sucedida será benéfico para o bem-estar social e emocional da criança, bem como seu desempenho cognitivo, não colocando o sucesso educativo em risco. Por outro lado, há crianças que não tiveram acesso à Educação Pré-Escolar ou a uma educação informal, vinda de casa.

3.5 Transição da casa para 1º ano

A transição da casa para o ambiente escolar merece uma atenção maior; na descrição de uma das professoras, algumas crianças desconhecem totalmente o ambiente escolar.

É, é mesmo nulo, eu tenho aqui um caso de um menino e nem é procedente da etnia cigana, porque se fosse seria igual, e, por não ter a Pré os conhecimentos dele são mínimos. (Entrevista F2)

Pois as bases são nulas completamente, nem sequer teve um ensino ou uma Pré digamos caseira, não teve nada. Não sabe o que é um livro, não sabe o que é uma folha ou um caderno. Não sabe o que é um livro ou um caderno! (Entrevista F2)

As políticas da primeira infância5 (OCEPE,2016) têm se preocupado com a transição da casa para escola para este ciclo, porém, no Decreto-Lei n. 55/2018, não é explicitada esta preocupação. Independentemente do ambiente que a criança vivenciou antes da entrada para escola obrigatória, é suposto que ela consiga e tenha apoio para garantir a sua aprendizagem. Woodhead e Moss (2007, p. 30) relatam que em alguns casos os professores não estão preparados para se confrontarem com grupo misto de crianças com e sem experiência Pré-Escolar e que, por vezes, deixam de lado as crianças com Pré-Escolar até que as que não tiveram possam acompanhá-las. No entanto, ao visualizar o relato da entrevista da professora F2, ela demonstra ter o cuidado de não privilegiar somente um grupo em detrimento a outro.

Sim, sempre, sempre, e eu já percebi, portanto estamos a pouquinho tempo do início do ano letivo, mas já percebi aqui que tenho quatro elementos que já tem que arranjar trabalhos extras, vai para teu trabalhinho extra, porque sei que já estão à frente e depois desmotiva-os ficar sempre no mesmo trabalho e andar ali, tenho que arranjar trabalho extra para andar para frente, mesmo para frente, para eles terem motivação. (Entrevista F2)

O fato de as crianças terem frequentado a Educação Pré-Escolar não significa que elas estejam realmente preparadas para a transição para o 1º Ciclo; elas poderão estar com maior prontidão para a aprendizagem, isso não significa que social e emocionalmente estejam preparadas para frequentarem o outro espaço.

[…] porque os educadores se preocupam, porque sentem que algumas crianças sentem dificuldade e uma certa infelicidade naqueles primeiros tempos de 1º ano de escolaridade, por que? Porque de fato passa de um diríamos de um regime aberto, não é, para um regime fechado. (Entrevista F1)

Eles também são muito novos! Muito deles tem apenas 5 anos de idade! Fazem até dezembro 6. (Entrevista M2)

[…] uma transição também em que a parte afetiva é valorizada, até porque eles ainda são muito pequeninos […] (Entrevista P2)

[…] mas acho que relativamente as pessoas estão sensíveis a isso, cada vez mais. (Entrevista L1)

Claro, exatamente, é um prolongamento, e nós iremos complexificando à medida que o ano vai avançando, não é. (Entrevista P2)

A grande dificuldade das crianças está em adaptarem-se nos novos regimes estabelecidos no novo ciclo. Embora as crianças que frequentaram o Pré-Escolar na generalidade poderiam estar mais prontas para aprender e mais fortes em seu desenvolvimento social, cognitivo e emocional básico, elas ainda precisam superar a incerteza e o estresse associados à mudança para uma nova e diferente configuração (cfe. WOODHEAD; MOSS, 2007, p. 31-4). Serra (2004) defende que uma boa adaptação na transição do Pré-Escolar para o 1º Ciclo é condição essencial para o bem-estar dos alunos e ao sucesso educativo. Podemos perceber esta preocupação nos depoimentos das profissionais e em alguns documentos.

3.6 O olhar das educadoras/professoras sobre os planeamentos

Podemos verificar nos discursos das profissionais a preocupação referenciada por elas, já não é mais algo somente abordado pelas políticas educacionais (OCEPE, 2016; Decreto-Lei n. 55/2018), ela chegou ao contexto educativo e num novo posicionamento das profissionais da educação.

[…] por outro lado, também não devemos cair no erro de escolarizarmos demasiado, porque ainda não é tempo, não é, por que acho, daquilo que vou vendo, as vezes há um exagero na escolarização do Pré-Escolar […] (Entrevista L1)

Este posicionamento e o respeito ao trabalho de cada ciclo vêm alterando sensitivamente o processo de transição das crianças da Educação Pré-Escolar para o 1º ciclo. O depoimento da educadora L1 demonstra a preocupação de não escolarizar demasiado no Pré-Escolar, porém os planeamentos da educadora que analisamos mostram o contrário, há uma preocupação com o letramento/grafismo bastante explícito.

Em outros depoimentos, uma das educadoras relata que as crianças frequentam os espaços do 1º Ciclo com o intuito de amenizar as dificuldades na transição, para além do letramento, ela quer que seja feita de maneira natural. Porém estas visitas não são planeadas e, na maioria das vezes, não são registradas, tudo é de forma muito informal.

Exatamente, já não há o papão de uma escola diferente, pessoas diferentes, conhecem as professoras, porque articulam conosco e vêm conosco, nós vamos para a sala delas e elas vêm até a nossa. Portanto é feito de uma maneira que quase é natural. (Entrevista M1)

Só que muitas vezes, quando é mais formal, o tempo também muitas vezes não permite. E também não permite porque não temos este hábito enraizado. Quando começarmos todos os anos fazermos este tipo de coisa, com atividades diferentes, mais formal, não tão informal como fazemos, até para ficar registrado, até para ser uma estratégia nova… e diferente. (Entrevista M1)

Mas isso também não está enraizado, não é falta de má vontade, nem nada, de parte a parte; por parte do Pré-Escolar e 1º Ciclo queríamos fazer e depois chegou por final, e aí acabamos por não fazer! Isso não porque não houvesse vontade! (Entrevista M1)

Ainda sobre o planeamento, as profissionais demonstraram a preocupação quanto ao aspeto da adaptação das rotinas e regras do 1º ano e a falta de maturidade.

3.7 Regras e a imaturidade para adaptação

As adequações das regras na rotina emergiram das categorias. Foi unânime a demonstração de preocupação das educadoras e de algumas professoras nas entrevistas ou nas próprias observações realizadas nas salas do Pré-Escolar, bem como no 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico. Há a preocupação com a adequação das regras para poderem frequentar o 1º ano, as crianças saem de uma liberdade de movimentação e autonomia da Educação Pré-Escolar para serem formatados pelas rotinas e práticas escolares. Salientamos as palavras das profissionais:

Sim, exatamente, ele tem uma rotina na sala do Pré, uma liberdade que acabam por ha, também depende do professor, não é? Não sei qual vão ter ano que vem, mas acabam por estar muito mais restritos. E eles não estão tão habituados para isso. (Entrevista L1)

Eu acho que os colegas do primeiro ciclo, querem, pronto. Querem que os meninos estejam mais prontos, querem que coloquem o dedo no ar, falem um de cada vez. (Entrevista F1).

Exatamente, é preciso dar tempo para as crianças, não é, pronto. Dar tempo para se adaptarem! Ele tem que saber que tem que falar baixo, porque estão a trabalhar [...]. (Entrevista F1)

Ainda há em algumas escolas a preocupação com disciplinarização, uma delas é a disciplina corporal. No contexto da observação, podemos perceber a preocupação com a disciplina/regra, tanto da parte de uma das unidades da Educação Pré-Escolar, bem como nas salas do 1º ano. Em uma das observações registradas, as crianças estavam sentadas no tapete em círculo, para combinarem a rotina da manhã e sobre a festa de final de ano. As crianças estavam bastante empolgadas com o tema da festa, conversavam muito entre elas, brincavam ali sentadas enquanto a educadora falava. Neste momento, a educadora pede para pararem e lhes chama a atenção sobre as regras e a importância delas quando estiverem no 1º ano, “Ohhh! Valha-me Deus! Vocês já têm 5 anos e vão para o primeiro ano e ainda não sabem esperar a sua vez!” (Observação L1). Esta educadora também demonstra a preocupação na sua entrevista quando diz que as professoras do 1º ano querem que as crianças já cheguem com as regras instituídas. Das salas observadas do 1º ano, percebemos que há uma preocupação excessiva com a instituição das regras e a instituição de uma rotina de produção.

A sala estava organizada com as carteiras uma atrás das outras, de uma forma mais tradicional. Ao iniciar a aula a professora relembrou as regras que haviam combinado no dia anterior, como: local da mochila, lancheira, lugar que escolheram sentar, entre outros. (Observação F2)

Por que esta sentada em outro lugar? Perguntou a professora. Olhem, só podem trocar de lugar depois de falar comigo! Agora volta para o lugar, está bem! (Observação F2)

Quando entramos, as crianças já estavam em seus lugares como o combinado. (Observação F2)

Mesmo assim, houve quem trocou de lugar, então a professora relembrou com eles que só trocariam mediante autorização da professora, conforme acordado no dia anterior. (Observação M2)

Os lugares estabelecidos, sem poderem trocar, é um fator novo para as crianças, pois na Educação Pré-Escolar elas têm a liberdade e autonomia de transitarem por outros lugares quando dá vontade. Ao contrário, no 1º ano, cada um tem seu lugar específico e por vezes as carteiras enfileiradas voltadas para a frente. Foucault (1999), em seu livro “Vigiar e punir”, coloca que estes métodos acabam por manter um controle das operações do corpo, sua disciplinarização. Para Foucault (1999),

Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, pois cada um se define pelo lugar que ocupa na série, e pela distância que o separa dos outros. A unidade não é portanto nem o território (unidade de dominação), nem o local (­unidade de residência), mas a posição na fila: o lugar que alguém ocupa numa classificação, o ponto em que se cruzam uma linha e uma coluna, o intervalo numa série de intervalos que se pode percorrer sucessivamente. A disciplina, arte de dispor em fila, e da técnica para a transformação dos arranjos. Ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações. (FOUCAULT, 1999, p. 163).

Para além de não terem a liberdade de trocarem de lugar quando dá vontade, no 1º ano também há outras regras, como a do não falar para produzir, aspeto valorizado por uma das educadoras (L1) da Educação Pré-Escolar.

Passou-se um tempo as crianças falavam em tom bastante alto. Então a professora levantou o dedo e perguntou se ela poderia falar. As crianças responderam que sim. Olha meninos! (em tom baixo e fala amorosa) Quando estamos a trabalhar não podemos falar! Eu não posso o tempo todo ficar a chamar os seus nomes! Sabem por quê? Porque daqui a pouco vai gastar os seus nomes! (Observação M2)

Olhem, estou aqui a pensar, a todo o momento estou a fazer chhh, chhhh, chhh, mas isso se faz para chamar as galinhas para comerem o milho? Vocês não são galinhas, pois não? As crianças riram. Então qual é a solução para resolvermos o problema? Depois veremos isso quando montarmos as regras da sala, vocês pensam! (Observação M2)

Olha, agora nós vamos colocar aqui no quadro as carinhas de comportamento! A verde de bom comportamento e a vermelha de mau comportamento. E sabem para que serve? Vou colocar aqui ao lado da carinha os nomes das crianças que se comportam bem e as que se comportam mal, as crianças que se comportam mal vão ficar aqui na sala comigo na hora do recreio. [...] Meninos não saem dos lugares! Agora é trabalhar! A todo o momento a professora chama a atenção das crianças para sentarem direito, ficarem sentados e não falarem. Olha neste momento acham que estão a cumprir as regras? Mas ainda falta uma regra que não falaram. Uma das crianças falou: não falar! (Observação M2)

Para além da regra do não falar enquanto trabalham, houve outra situação na escola L2 que nos chamou atenção, ao contrário da primeira semana que teve um acolhimento baseado no afeto e no tempo da criança, na segunda semana estava estabelecida a regra crua e dura. O modelo de escolarização já estava em curso, apesar das carteiras estarem agrupadas, em média com seis crianças, parecia não haver um trabalho em grupo; observamos também que, implicitamente, naquele espaço, as regras de produção já estavam sendo instituídas.

Oiçam! Vocês terão 20 minutos para acabarem a tarefa! Quando eu terminar de entregar os cadernos vou virar a ampulheta que tem vinte minutos! Se não acabarem neste tempo! Significa que vocês terão que ficar na hora do lanche! Vou começar a contar! Meninos! Se fala quando se está a trabalhar? Então quem quiser falar como se faz? Criança: dedo no ar!! Então, por favor! Quem quiser falar dedo no ar! Olhem! Faltam dez minutos! Quem não acabar vai acabar no intervalo! Vocês têm que começar a aprender a se concentrarem! Enquanto as crianças fazem a atividade, conversam com os amigos no grupo. Atenção! O tempo acabou! Dedo no ar quem não terminou? Então estes meninos que não acabaram me digam porque não acabaram? Foi falta de tempo ou muita conversa? Então, no intervalo da tarde eu vou ficar convosco para acabarmos de fazer! (Observação L2)

Ao observar estes episódios da sala, podemos perceber o uso de poder que o adulto tem sobre a criança. O uso da disciplina e da regra acaba por potencializar o poder do maior (professora) sobre o menor (aluno). Para Foucault (1999),

Tudo isso não passaria talvez de uma diferença bem especulativa — pois no total trata-se, nos dois casos, de formar indivíduos submissos — se a penalidade “de coerção” não trouxesse consigo algumas consequências capitais. O treinamento do comportamento pelo pleno emprego do tempo, a aquisição de hábitos, as limitações do corpo implicam entre o que é punido e o que pune uma relação bem particular (FOUCAULT, 1999, p. 143).

Outra questão preocupante aos olhos das educadoras é a falta de maturidade para frequentarem o 1º ano. Através das entrevistas, podemos perceber a maior preocupação é da parte das educadoras. Elas sentem que as crianças ainda são muito novas e imaturas emocionalmente para se depararem com a realidade da escola e estarem tanto tempo concentradas e com regras instituídas.

[…] mas também em termos comportamentais, em termos de maturidade, e cada vez mais, hoje em dia nós nos deparamos, […] e eu me deparo nomeadamente com este grupo com questões de comportamento, que veem a dificultar esta transição, […] (Entrevista L1)

[…] porque, porque as crianças são cada vez menos maduras, portanto estão cada vez menos preparadas para, para este salto que é tão grande. E, portanto, em termos de comportamento, em termos de maturidade é essencial que eles estejam preparados […] (Entrevista L1)

Ah! […] eu muitas vezes quando eu sinto que eles não estão preparados, não é em termos de competências, e nem cognitivas [...] mas a mim o que me preocupa é a parte emocional, é a parte emocional, acho que é sempre um bocadinho mais complicado. (Entrevista M1)

Eles também são muito novos! Muito deles têm apenas 5 anos de idade! Fazem até dezembro 6. (Entrevista M2)

Percebemos através dos depoimentos a preocupação por parte das profissionais com a questão da transição das crianças, que vão de um contexto mais livre, de brincadeiras e sem as regras tão rígidas, para um lugar avesso ao da Educação Pré-Escolar, em que estão acostumados a transitar pela sala e ter mais autonomia nos movimentos. Esta preocupação é vivenciada na observação em uma das salas do 1º ano.

Olhem está difícil com esta turma! Vocês não querem trabalhar! Assim não é possível! Nem a turma que tinha ciganos era assim! Vocês só querem estar a brincar! (Observação M2)

[…] O que fazemos primeiro? Crianças: a data! Muito bem! A data! Então vamos lá! (Observação L2)

As crianças começaram a fazer e a professora foi passando um a um para ajudá-los com relação à orientação da data, à escrita das letras e orientação espacial da folha. (Observação L2)

O tempo e o espaço possivelmente serão gerenciados pelos adultos e numa lógica de trabalho, e não da brincadeira como a da Educação Pré-Escolar. Na escola, as crianças terão de se adaptar ao novo ofício, a do aluno. Sarmento (2011) ressalta que:

De algum modo, perante a instituição, a criança “morre”, enquanto sujeito concreto, com saberes e emoções, aspirações, sentimentos e vontades próprias, para dar lugar ao aprendiz, destinatário da ação adulta, agente de comportamentos prescritos, pelo qual é avaliado, premiado ou sancionado. […] O aluno, tem por ofício, de tomar a forma (no sentido de se deixar formatar), adquirir a cultura escolar – deixando de lado, entre parêntesis ou de modo definitivo, a sua cultura de origem, quando incompatível com a cultura escolar, ou a cultura gerada e reproduzida nas relações com os seus pares: as culturas da infância – e ajustar-se à disciplina do corpo e da mente induzida pelas regras e pela hierarquia dos estabelecimentos de ensino que frequenta. (SARMENTO, 2011, p. 587-8).

As educadoras demonstram a preocupação com relação à adaptação do novo contexto, pelo fato de as crianças ainda estarem imaturas para a disciplina dos corpos, principalmente pela idade de 6 anos de ingresso na escola. Alguns estudos têm referenciado estas preocupações, de que, ao ingressar para o Ensino Básico, as crianças têm de se adequar às novas exigências e regras e deixar de lado o tempo das brincadeiras (QUINTEIRO, 2015; ROCHA, 2010). Silva (2010) elenca este novo contexto vivenciado pela criança como um não lugar de brincadeiras, pois no novo espaço há uma nova expectativa, a meta da alfabetização, gerando uma pressão social na lógica de uma produção e cumprimento das metas curriculares (SILVA, 2010).

Quanto ao novo perfil do aluno/a que ingressa no 1º ano, as políticas educacionais estão cientes e podemos perceber, quando deitamos o olhar para a legislação de ambos os ciclos, que elas indicam a necessidade de uma articulação entre eles para que não haja um rompimento; elas elencam caminhos que levem uma articulação entre as profissionais da Educação Pré-Escolar e 1º Ciclo do Ensino Básico no sentido de continuidade no processo de transição.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os desafios que se colocam no processo de transição e articulação entre a Educação Pré-Escolar e o 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico podem ser espelhados nos documentos e na prática pedagógica das educadoras e professoras. Nosso estudo demonstrou que na Educação Pré-Escolar, com referência à legislação, as indicações sobre o assunto são bem mais extensas e detalhadas, atribuindo ao educador uma responsabilidade muito grande no processo de transição e articulação com o 1º ano. As OCEPE (2016) elencam desde a preocupação emocional até a articulação curricular no processo de transição. Quanto a esta última, percebemos que na legislação há uma grande preocupação com relação à efetivação da articulação entre os ciclos, a fim de amenizarem a ruturas entre um ciclo. O envolvimento de ambos os ciclos é um fator positivo para que conheçam o trabalho realizado por ambos; este envolvimento poderá facilitar a transição dos educandos e o trabalho pedagógico do profissional ao nível da articulação. Em ambos os ciclos, as educadoras e professoras concordam com a legislação, dizem em seus depoimentos que é preciso respeitar o tempo de adaptação da criança, que ela ainda está muito ligada ao tempo de brincar, demonstrando a preocupação com o processo de transição que ela deve fazer aos poucos, ano a ano, para que não haja a rutura brusca. Os espaços informais na escola eram locais de promoção da transição, muitas vezes nestes espaços é que ocorriam encontros entre ambos os ciclos, sendo que muitas das vezes não eram planeados; eram realizados informalmente. Houve também casos em que as crianças transitaram do ambiente familiar direto para o 1º ano. Atualmente, as indicações sobre a transição da casa para 1º ano escolar, sem ter passado pelo Pré-Escolar, parecem ser um problema para os professores, uma vez terão de, supostamente, suprir esta lacuna. Independentemente do ambiente que a criança vivenciou antes da entrada para escola obrigatória, é suposto que ela consiga e tenha apoio neste processo de transição.

Outro fator demonstrado em algumas entrevistas e observado em sala é a preocupação quanto ao aspeto da adaptação das rotinas e regras do 1º ano e a falta de maturidade. Das quatro escolas pesquisadas, três têm a preocupação em adequar as crianças às regras do 1º ano. As crianças saem de uma liberdade de movimentação e autonomia da Educação Pré-Escolar para serem formatadas pelas rotinas e práticas escolares. Salientamos que algumas destas profissionais dizem que temos de respeitar o tempo das crianças, porém a disciplinarização dos corpos falou mais alto. No contexto da observação, podemos perceber a preocupação com a disciplina/regra, tanto da parte de uma das unidades da Educação Pré-Escolar quanto nas salas do 1º ano. A disciplina e a instituição das regras no 1º ano foram questões preocupantes aos olhos das educadoras, é a falta de maturidade para frequentarem o 1º ano. Através das entrevistas, podemos perceber que a maior preocupação é da parte das educadoras. Elas sentem que as crianças ainda são muito novas e imaturas emocionalmente para se depararem com a realidade da escola e estarem tanto tempo concentradas e com regras instituídas.

E, por último, analisar as perspetivas das educadoras de infância e das professoras do 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico sobre as intervenções pedagógicas direcionadas para a promoção de competências de maior flexibilidade no processo de transição das crianças entre a Educação Pré-Escolar e o 1º ano do 1º Ciclo do Ensino Básico. De certa forma, a flexibilização curricular na Educação Pré-Escolar já é explorada, é algo que já se efetiva. Podemos perceber isso através das atividades e organização dos espaços. A forma de organização do espaço destas salas é exemplo do quanto é dinâmico este espaço de aprendizagem. As c­rianças têm autonomia para transitarem nas diferentes áreas de conhecimento que estão disponíveis para elas. A flexibilidade do tempo e espaço destes ambientes proporcionou às crianças o contato com diferentes códigos simbólicos, podendo explorar de forma lúdica tudo isso. Flexibilizar o tempo e o espaço vai também ao encontro da opinião das educadoras; para elas, é algo que falta em algumas escolas do 1º Ciclo. Percebemos isso através da entrevista de uma das educadoras: quando abordamos a questão da flexibilidade, ela diz que esta flexibilidade já acontece na Educação Pré-Escolar e que a nova legislação pertence ao Ensino Básico. E, neste aspeto, algumas professoras ainda têm muita dificuldade em se adequarem à nova lei ou, até mesmo, nas palavras de Cosme (2018), seria a adequação de “uma outra forma de conceber os atos de ensinar e de aprender” (COSME, 2018, p. 10). Aos poucos, as professoras tendem a tornar as suas metodologias mais autónomas e flexíveis, conforme estabelece Decreto Lei n. 55/2018. Estes são alguns dos desafios da escola, pensar na necessidade de mudanças de atitudes, novas posturas no processo de transição entre os ciclos.

1Este texto foi escrito em Português Europeu.

4Artigo 3.º a) “«Articulação curricular», a interligação, realizada a diferentes níveis e modos de interação, de saberes oriundos das componentes de formação e disciplinas, numa perspectiva de articulação horizontal e ou vertical, tendo por objetivo a construção progressiva de conhecimento global;” (Decreto-Lei n. 55/2018, de 6 de julho, Portaria n. 226-A/2018, de 7 de agosto).

5As transições constituem mudanças dos ambientes sociais imediatos de vida, que determinam ajustamentos no comportamento, pois correspondem a papéis, interações, relações e atividades diferentes. Há transições que fazem parte da nossa vida quotidiana e as crianças que frequentam uma instituição educativa experienciam diariamente, pelo menos, a transição do ambiente familiar para o contexto da organização educativa (o acolhimento diário das crianças marca e facilita essa transição), mas também outras, como a transição para a Animação e Apoio à família. Estas são designadas ‘transições horizontais’”. (OCEPE, 2016, p. 100). “Mas há outras transições, socialmente construídas e estabelecidas pelos sistemas educativos, ditas ‘verticais’, em que a idade da criança vai originar a sua passagem para uma nova etapa e, muitas vezes, para outro estabelecimento educativo (idem).

REFERÊNCIAS

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Recebido: 14 de Abril de 2020; Aceito: 31 de Janeiro de 2021

Silvani Kempf Bolgenhagen: Doutora em Ciências da Educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação – Universidade do Porto. Supervisora Escolar da Rede Municipal da Educação Infantil de Florianópolis, SC. E-mail:silkbol@hotmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-8225-4455

Ariana Cosme: PhD em Escola de Educação e Humanidades – Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Doutora em Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, Portugal. Professora auxiliar na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. E-mail:ariana@fpce.up.pt, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-8194-5027

Ana Cristina Pinheiro: Doutora em Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, Portugal. Mestre em Educação (Instituto de Educação e Psicologia – Departamento de Tecnologia Educativa). Graduada em bacharelado de Educação de Infância pela Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti. Professora da Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti. E-mail:acp@esepf.pt, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-3285-4003

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