Galeano (2019, p. 111), ao escrever “AMARES”, conta a seguinte estória:
Um velho, já muito enfermo, reuniu seus três filhos e anunciou:
Minhas coisas mais queridas serão de quem conseguir encher esta sala completamente.
E esperou lá fora, sentado, enquanto a noite caía.
Um dos filhos trouxe toda a palha que conseguiu juntar, mas a sala só ficou cheia até a metade.
Outro filho trouxe toda a areia que conseguiu reunir, mas metade da sala ficou vazia.
O terceiro filho acendeu uma vela.
E a sala se encheu.
A sala encheu-se de luz, e, assim como a luz, defendemos que a arte ilumina a criação nos currículos. Parodiando Deleuze (2016, p. 342), entretanto, perguntamos o que é ato de criação e, com ele, pontuamos: “Que entrelace misterioso é esse entre uma obra de arte e um ato de resistência, visto que os homens que resistem não têm nem o tempo nem, às vezes, cultura, ambos necessários para ter o entrelace com a arte?”. E Deleuze (2016, p. 342) continua assinalando a tessitura estreita entre o ato de resistência e a obra de arte, afirmando: “Nem todo ato de resistência é uma obra de arte, embora, de uma certa maneira, ela o seja. Nem toda obra de arte é um ato de resistência e, no entanto, de uma certa maneira, ela o é”.
A arte possibilita vasculhar as dobras da realidade e, assim, a arte e a resistência vivem uma dança a favor da vida como resistência e reexistência, pois só os resistentes vivem no mundo, fazendo da vida uma obra de arte.
Necessário se faz tomar posição contra o fascismo que domina o país e, portanto, tomar as artes como um ato de resistência concreta de abertura da sensibilidade para lutar contra o estado de coisas que estamos vivenciando. Trata-se de uma posição contra o dogmatismo em que a arte surge como espaço para o exercício da imaginação, da multiplicidade, da liberdade.
“Um pouco de possível, senão eu sufoco” (DELEUZE, 2016, p. 246). O grito de socorro, quase dilacerante, atribuído a Michel Foucault, expressa uma posição de resistência à realidade, sufocando a vida e necessitando ser dobrada, redobrada, desdobrada...
Assim, a proposta deste dossiê envolve os possíveis de um corpocurricular, entendido como sensibilidade, como possibilidade de conhecer e aprender, como forma de expressão e experimentação do mundo. Portanto, neste dossiê, ensejamos desenvolver uma reflexão sobre as possíveis relações entre o currículo, a estética da arte de educar e o saber sensível. A questão é tanto resistir aos currículos racionalizados e fragmentados que vêm sendo propostos para as escolas, que têm por objetivo a didatização, memorização e a preparação para o mercado de trabalho, quanto pontuar como uma educação pautada no saber sensível, possibilitada pela experimentação e vivência artística, pode auxiliar numa educação mais integral e significativa e menos disciplinar.
Propomos o dossiê “Currículos, resistência e criação com as artes” pela necessidade do escape às orientações curriculares verticalmente orientadas e aos saberes domesticadores, assim como de abertura para o sensível e o transdisciplinar.
Nesse sentido, considerando o cotidiano escolar como o plano de imanência no qual as relações de poder, macro e micropoliticamente, atuam nos corpos coletivos, potencializando uma vida em composição com forças heterogêneas, este dossiê busca argumentar os espaçostempos e a ordem institucional que tomam corpo e possibilitam a constituição de coletivos articulados em ações éticas, estéticas e políticas, produzindo ações múltiplas e diversificas dos praticantespensantes.
O dossiê busca, ainda, questionar os conceitos e as práticas pelas quais os corpos que habitam e/ou atravessam os cotidianos escolares são qualificados, passando pelas forças e fluxos que os modelam e criam resistência e/ou fuga ao previamente estabelecido e aos processos recognitivos a que são submetidos, produzindo criações potentes. Entre essas forças, destacamos as artes literária, fílmica, fotográfica e pictórica como potencializadoras de aprendizagensensinos cognitivas, afetivas e políticas.
Objetivamos, portanto, debater os possíveis de currículos – menos baseados em processos de recognição – produzidos por meio de modos coletivos de conversação e criação de docentes e discentes vividos no plano de experimentação de uma micropolítica ativa com os cotidianos escolares, em sua relação com a potencialização de aprendizagens de estudantes e docentes, utilizando a arte do cinema, da literatura, da música, da dança, entre outros, para a problematização dos clichês e o surgimento de movimentos de pensamento que apreendam aprendizagensensinos política e coletivamente articulados. Em síntese, o dossiê visa, por meio do agenciamento com as forças que configuram o diagrama curricular de escolas de educação básica, envolver a multiplicidade de pensamentos e desejos e pensar diferencialmente os processos curriculares em criações tanto de estudantes quanto de docentes, mediante as relações que vão sendo engendradas e potencializadas pelos signos artísticos.
O dossiê é composto de 16 artigos cujos autores buscam relacionar a arte como ato de resistência e criação nos currículos. São eles:
Fabíola Fonseca e Antônio Carlos Rodrigues de Amorim questionam como somos parte da crise ambiental, atributo que vem associado às formas como temos sido forjados a nos relacionar com a natureza, esquecendo inclusive que somos ela. Isso os remete a pensar a experimentação artística como possibilidade de tatear um currículo-nômade.
Carla Char e Marlucy Alves Paraíso apostam em um currículo que faz experimentações com a dança, mostrando uma experimentação para a criação de um currículo-dançante que convida corpos a dançar, que subverte o senso comum em relação à dança e, desde os seus primeiros passos, produz resistências e desencadeia devires.
Gonzalo Vicci e Mónica Cabrera abordam, no contexto das pequenas comunidades rurais no Uruguai, como o acesso generalizado à ligação à Internet e aos dispositivos de informação e comunicação pode ser um desencadeador de mudanças na forma como as crianças em idade escolar estão a construir as suas identidades.
Steferson Zanoni Roseiro, Suzany Goulart Lourenco e Janete Magalhães Carvalho, por meio das imagens-cinema, provocam movimentação do pensamento de professoras que, ao atualizarem enunciações acerca da vida escolar, expõem rasuras produzidas pela emoção criadora e expandem o apego à vida, necessário ao acesso da potência de criação docente.
Aristóteles de Paula Berino, Luciana Dilascio Neves e Vanessa de Andrade Lira dos Santos abordam a questão estética em Paulo Freire. Analisam, em Freire, a relação entre arte, política e educação em sua força de dimensão criadora como abertura de possibilidades e de reexistências e contraponto à política mercadológica dominante, potencializando o surgimento de novas práticas de luta e criação.
Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni e Carlos Pereira de Melo apresentam uma experimentação provocada em processos de formação de professores no encontro com os signos artísticos do cinema, no intuito de produzir movimentos aberrantes, visto que o pensamento pode ser constrangido ao estranhamento, instaurando processos de criação e reexistência ao estabelecido.
Sammy Lopes, em seu artigo, visa discutir a relação diferencial que se pode estabelecer entre a infância e o ato de educar nos currículos da educação infantil. Nesse sentido, questiona: como compor currículos potentes para cultivar e explorar a singularidade da relação que se traça entre a infância e o ato de aprender em meio ao fluxo afetuoso da experiência da brincadeira livre?
Sabina Sebasti, Ana Gabriela da Silva Vieira e Marcio Caetano apresentam uma reflexão sobre os territórios do corpo em manifestações contemporâneas das artes visuais e acerca de sua funcionalidade, seus espaços e seus condicionamentos. Pontuam que as artes significam um caminho para abordar e questionar os territórios do corpo e as multiplicidades sexuais e de gênero nele inerentes.
Nilcéa Elias Rodrigues Moreira, Jaqueline Magalhães Brum, Juliana Paoliello Sánchez Lobos e Roseane Maria Muñoz buscam, por meio da música, compor com o currículo uma potência afirmativa, articulando a perspectiva das redes de conversações ampliadas para as redes de conectividades virtuais da educação a distância como produtoras de encontros, conversas, afetos/afecções e aprendizagens inventivas.
Luciane da Silva analisa a produção curricular do Projeto Africanidades (motivado pela Lei 10.639/2003), o qual, como lócus enunciativo, engendra-se como política de afetos, que transaciona com temporalidades distintas por meio da arte, criando uma cesura temporal em que a agência negra se constitui como diferença.
Ana Paula Holzmeister e Camilla Vazzoler Gonçalves discutem a produção estética de um currículo acontecimento nos processos de aprendizagens instauradas na educação infantil pública. Pela criação de imagens, introduzem, por enquadramentos singulares e diferenciais, a descontinuidade da produção curricular com as infâncias fabulando mundos outros.
Marcia Costa Rodrigues, Lúcia Teresa Romanholli e Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das Chagas narram experiências tecidas com os fios das histórias e dos desejos das autoras sobre os desvios táticos necessários à manutenção da vida e do trabalho, no âmbito da educação e da cultura. Experiências que permeiam as práticas curriculares em redes que transbordam a importância das ciências e das artes.
Augusto Flávio da Silva Roque e Rosane Meire de Vieira de Jesus mostram uma pesquisa cujo enquadramento foram as perfurações que podem devir curriculantes nos agenciamentos musicais disseminados em currículos performativos. Perfuração sonora no agenciamento funk de MC Fioti no pátio de um colégio, as simbioses entre estudantes, as plagicombinações e as mixagens que a pesquisa tentou partiturografar.
Noale Toja, Rafaela Rodrigues da Conceição e Talita Malheiros debatem a arte como manifestação criativa humana e intrínseca aos fenômenos culturais, que, articulada aos componentes curriculares, acessa as transversalidades entre as diferentes áreas de conhecimentos ante a pedagogia de sons, de cheiros, de imagens, gostos e gestos.
Rosimari Ruy, Francisco Rolfsen Belda e Vitor Machado apresentam uma construção teórica fundamentada em uma perspectiva crítica da educação escolar brasileira da atual Base Nacional Comum Curricular, em sua relação com a arte e suas potencialidades propiciadas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação, visualizadas como possibilidade de resistência.
Loïc Chalmel aborda não exatamente a discussão da temática deste dossiê, entretanto, é inspirador para que a pensemos em quatro direções: na história, na filosofia, na psicanálise e na pedagogia, ao trazer: Erasmo e Lutero confrontados quanto ao “livre arbítrio”; Rousseau e Kant quanto à ideia de “autonomia”; Freud, pensando a “transferência” (“transfert”); e os pedagogos Comenius, Pestalozzi, Steiner, Korzack e Freire. Pensa a relação das práticas/teorias nos contextos em que os pensadores viveram, bem como em seus universos de referência. Com isso, o texto permite-nos pensar, de modo bastante estimulante, como e por que as artes têm sido consideradas, com frequência e há muito tempo, como o “outro” em tantas ideias pedagógicas e dos currículos que são decididos oficialmente.
Visto que a arte abre para novos/outros modos de apropriação da natureza, das existências, dos saberes que ampliam e enriquecem as relações afetivas e a solidariedade coletiva, pois opulentam a vida como espaço de trocas afetivas, de criações poéticas, de relações inclusivas que se multiplicam pela potência criativa que refundam as relações de luta poder/saber, ela pode e deve ser entendida como um ato de transgressão.
Transgredir ganha um sentido importante, pois, em diferentes modos e dimensões, ao fazer frente ao que é imposto pelo sistema (incluindo todo tipo de artefato de vigilância, punição e submissão, como a BNCC), o campo dos currículos é uma forma de resistência. Segundo Guattari (1992, p. 115), é nas trincheiras da arte que se encontram os núcleos de resistência dos mais vigorosos ao rolo compressor da subjetividade capitalista. Não se trata, no entanto, de fazer da arte, no caso, o ato performativo curricular revolucionário, mas considerar que a arte evoca toda uma criatividade subjetiva e imprevisível que atravessa os povos e as gerações oprimidas, os guetos, as minorias, os nômades, os anônimos.
Sendo assim, concluímos indicando a necessidade de abertura para o aprender e o ensinar na perspectiva do pensamento em movimento, do impulso vital e criador. A arte, aqui, é entendida como fluxo de resistência criativa atravessada pelo universo da micropolítica da subjetivação e instrumento tático. Esse fluxo é capaz de produzir escapes ante os projetos contemporâneos e os poderes da cultura hegemônica que a tudo quer paralisar, normatizar e controlar.
Desse modo, agradecemos a todos os autores que se dispuseram a acender a vela e iluminar a sala deste dossiê, na certeza de que essa luz será potencializada pela multiplicidade de leituras possíveis e de problematizações e experimentações que, por sua vez, em anéis expansivos de luz, vão induzir a atos de resistência e criação nos currículos pensados e vividos.
Boa leitura!
Organizadoras do Dossiê