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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.26 no.58 Campo Grande set./dez 2021  Epub 28-Fev-2022

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v26i58.1596 

Dossiê: Currículo, resistência e criação com as artes

Passos para acionar e efetivar um currículo-dançante

Steps to trigger and implement a dancing-curriculum

Pasos para desencadenar y efectuar un currículo-danzante

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.


Resumo

Este artigo trata dos passos dados no território de um currículo, em uma investigação, para acionar e efetivar um currículo-dançante, composto de experimentações com dança. A pesquisa, realizada em uma escola pública da Grande Belo Horizonte, em turmas do 8º e do 9º ano do ensino fundamental, trabalhou com conceitos e compreensões dos estudos curriculares pós-críticos e da filosofia da diferença. A investigação criou e utilizou como metodologia o dançarilhar, isto é: uma composição feita de cartografia + dança e que se inspira tanto nos estudos de Gilles Deleuze e Félix Guattari como no “Andarilho” de Nietzsche para apostar em um currículo que faz experimentações com a dança. Este artigo traz resultados dessa investigação e mostra toda a movimentação para a criação de um currículo-dançante que convida corpos a dançar no espaço entre um currículo-maior e um currículo-menor, subverte o senso comum em relação à dança e à demanda por dança como um “currículo turístico” e, desde os seus primeiros passos, produz resistências e desencadeia devires.

Palavras-chave: dança; currículo; filosofia da diferença

Abstract

This article deals with the steps taken in the territory of a curriculum, in an investigation, to activate and implement a dancing-curriculum, composed of experiments with dance. The research, carried out in a public school in “Grande Belo Horizonte”, in 8th and 9th-grade classes of elementary school, worked with concepts and understandings of post-critical curricular studies and the philosophy of difference. The investigation created and used dancing as a methodology, that is: a composition made of cartography + dance and that is inspired both by the studies of Gilles Deleuze and Félix Guattari and by Nietzsche’s “Stroller” to bet on a curriculum that experiment with the dance. This article brings the results of this investigation, and shows all the movement towards the creation of a dancing curriculum that invites bodies to dance in the space between a major curriculum and a minor curriculum, subverts common sense concerning dance and the demand for dance as a “tourist curriculum”, and, from its very first steps, it produces resistance and triggers becomings.

Keywords: dance; curriculum; philosophy of difference

Resumen

Este artículo trata de los pasos dados en el territorio de un currículo, en una investigación, para desencadenar y efectuar un currículo-danza, compuesto de experimentaciones con la danza. La investigación se llevó a cabo en una escuela pública de Belo Horizonte, en clases de 8º y 9º grado de primaria, y se trabajó con conceptos y comprensiones de los estudios curriculares post-críticos y la filosofía de la diferencia. La investigación creó y utilizó como metodología la danza: una composición hecha de cartografía + danza y que se inspira tanto en los estudios de Gilles Deleuze y Félix Guattari como en el “Caminante” de Nietzsche para apostar por un currículo que haga experimentaciones con la danza. Este artículo aporta los resultados de esta investigación y muestra todo el movimiento hacia la creación de un currículo-danza que invita a los cuerpos a bailar en el espacio entre un currículo-mayor y un currículo-pequeño, subvierte el sentido común sobre la danza y la reivindicación de la danza como “currículo-viajero” y, desde sus primeros pasos, produce resistencias y desencadena desvíos.

Palabras clave: danza; currículo; filosofía de la diferencia

1 UM CONVITE PARA DANÇAR!

Atentar a tudo

Mantendo a mente alerta

Apertar o passo

O rumo a gente acerta

Assimila à pancada, o tombo e se levanta

Em dobro vai, a dança avança

(O Teatro Mágico)

Para dançar, é necessário dizer um “sim!”. É necessário dizer um “sim, danço” ou um “sim, vou dançar!” ou “sim, aceito dançar!”. É necessário aceitar um convite; aceitar entrar em movimento, aceitar sair do lugar. Deste modo, este artigo é um convite para dançar, movimentar-se e criar currículos que dancem! Traz resultados de uma pesquisa que, semelhante a se deixar ser conduzida/o pelo som em uma dança, foi guiada pelo eco de uma pergunta: O que pode a dança em um currículo que se abra para experimentações, de modo que corpo e pensamento se movimentem e provoquem o aprender com a diferença?

Viver encontros que movimentam corpo e pensamento fez com que se apostasse na possibilidade de criar um currículo-dançante, por meio de experimentações com dança no território de um currículo. Essa aposta foi confirmada logo que a Escola Sagração da Primavera2 se abriu para experimentações, devindo corpo e espaço para dançar. Trata-se de uma escola estadual, localizada na Grande Belo Horizonte, Minas Gerais, que abrange o Ensino Fundamental (EF) e o Ensino Médio (EM). A pesquisa foi realizada com turmas do 8º e do 9º ano do EF, em dias cedidos para a pesquisa por quatro professoras das disciplinas de Português, Geografia e Matemática. O objetivo foi criar um plano para experimentar a dança em um currículo e saber o que pode essa arte, a fim de trazer exemplos e contribuições para os campos da Pedagogia, da Dança e do Currículo, de um modo particular, e para a Educação, de um modo geral. Plano, entendido como uma maneira de “[...] fazer uso do pensamento, se orientar no pensamento” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 47). Não se trata de criar métodos, de criar um plano de organização, mas de orientação, para abrir-se aos movimentos infinitos do pensamento que são intrínsecos à ação (TADEU; CORAZZA; ZORDAN, 2004). Um plano de imanência é traçado “[...] para pensar, para se comportar, para experimentar, para intervir” (TADEU; CORAZZA; ZORDAN, 2004, p. 79).

Esse plano se dá na pura experimentação, um processo sem uma intervenção externa, colocada por algum ente superior (uma pesquisadora, uma professora, um currículo) (TADEU; CORAZZA; ZORDAN, 2004). Esse plano é traçado entre diferentes espaços de um currículo, num movimento que é a criação de saídas, rupturas e resistências. Por isso, “[...] só um plano de imanência pode fazer o currículo dançar” (TADEU, 2002, p. 48).

Tratou-se de fazer uma composição entre a filosofia da diferença, os estudos curriculares pós-críticos e a dança. A esta experimentação deu-se o nome de dançarilhar: uma composição feita de cartografia + dança e que se inspira tanto nos estudos de Gilles Deleuze e Félix Guattari como no “Andarilho” de Nietzsche, para apostar em um currículo-dançante. Currículo-dançante é uma composição entre currículo e dança, um exemplo de um currículo criado com experimentações com dança em uma escola, e não um currículo que todas as escolas devem implementar igualmente.

Este artigo mostra como um currículo-dançante foi acionado na Escola Sagração da Primavera. Semelhante a um/a dançarino/a, propôs-se “tirar para dançar”, e, para isso, foi necessário um aceite, um sim, uma afirmação. Ao fazer esse convite, às vezes insistindo e persistindo nele, como expresso no trecho escolhido como epígrafe para este artigo, foi necessário atentar-se a tudo e se manter alerta às brechas, olhares e gestos que indicassem uma possibilidade de um aceite para dançar. Foi necessário, muitas vezes, apertar o passo e, na busca por acertar esse passo, fazer das pancadas, das frustrações, dos tombos, do levantar, do que parecia desacerto, movimentos para que um currículo-dançante avançasse. O argumento aqui desenvolvido é o de que, para um currículo-dançante ser acionado, foi necessária a formação de um bando feito com professoras que, ao ser efetivado, possibilitou compor, abrir, conquistar e ocupar o território de um currículo escolar.

Um bando consiste em um agenciamento coletivo feito por pessoas de naturezas completamente diferentes, que se juntam por contágio (DELEUZE; GUATTARI, 2012). Uma “[...] potencialização, uma ordenação da existência” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 121). Bando é um modo de resistência porque pratica uma maneira de agir e pensar que rompe com a lógica instituída, pratica o pensamento como criação, e não como reprodução (ASPIS, 2020, s.p.).

No território de um currículo, é sempre possível fazer uma resistência ao currículo-maior3, aquele “[...] elaborado e prescrito por governos, por secretarias, pelo Estado, por pessoas que querem prescrever o que outros/as devem ensinar nas escolas” (PARAÍSO, 2020, p. 31). Ao pensar e agir para abrir brechas e ali romper movimentos, um currículo se volta para “[...] práticas e subjetividades que se sabem múltiplas, desviantes e fora da norma”, isto é, para um currículo-menor, aquele que “[...] aposta nos focos de invenção e resistência que emergem em processos de exterioridade ao Estado” (PARAÍSO, 2020, p. 32). Como explicita Paraíso (2020), “[...] um currículo-menor é feito por nós educadores/as que, todos os dias em nossas salas de aula, produzimos encontros, acolhemos a diferença e fazemos embates com o currículo-maior e sua sede de controle e prescrição4” (PARAÍSO, 2020, p. 32). Mostramos, neste artigo, que um currículo-dançante só pode ser um currículo-menor, já que ele entra em contato com o que está fora do currículo-maior, para criar, ativar e se efetivar. No currículo-dançante, não se trata de formar grupos determinados pela classe social, raça ou gênero, porque não é um contágio por identidade. É justamente o contágio com a diferença. Assim, um bando se produz no currículo-dançante que é um currículo-menor, já que é “uma multiplicidade” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 20), um ajuntamento de corpos de naturezas diferentes, que se abrem ao acontecimento.

Esses corpos, ao serem atravessados pelos mesmos afectos, desencadeados por encontros que lhes convêm, contagiam-se, proliferam-se e formam um bando (DELEUZE; GUATTARI, 2012). Corpos que agem por “[...] modos de expansão, de propagação, de contágio, de povoamento” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 20). Devir, por sua vez, é diferenciar-se. É viver uma intensidade que transforma a natureza dos corpos ao entrar em conexões com o que lhe é diferente.

Exploramos aqui os primeiros passos que acionaram um currículo-dançante na cartografia de um currículo com dança realizada na investigação que subsidia este artigo. Esses passos não seguem uma linearidade dos acontecimentos, mas o fluxo das sensações que tomam as autoras neste momento da escrita, quando é necessário escrever sobre aquilo que possibilitou a criação de um currículo-dançante. Acontecimento é o tempo dos devires, do que provoca o pensamento a devir-outro, num processo imanente, ou seja, um movimento de pensamento que não é da ordem da imaginação ou restrita à razão, mas uma experiência que atravessa o corpo. No acontecimento, há uma conexão de heterogêneos que se dá no acaso, quando não se espera. Trata-se da “surpresa dos devires” (ZOURABICHVILI, 2016, p. 11).

2 PASSOS ENTRE UM CURRÍCULO-MAIOR E UM CURRÍCULO-MENOR

Há diferentes tipos de movimentos dos corpos em um currículo, alguns são rígidos e seguem o ritmo de um currículo-maior, aquele que, pensado por outros/as de fora da escola, que querem “padronizar”, “homogeneizar”, “controlar” e “prescrever”, preocupa-se com o desempenho dos/as estudantes em avaliações; por isso, ordena, delimita, demarca, sequencia, separa, formata, normaliza, cobra, classifica e hierarquiza conteúdos, áreas, disciplinas, corpos. Movimentar seguindo o ritmo de um currículo-maior é seguir a escala de horários, a “grade curricular”; atentar-se aos conteúdos a ensinar – aos muitos conteúdos a ensinar! –, provas, notas, reuniões, início de semestre, fim de semestre. Tudo devidamente demarcado, subordinado a leis e regras para alcançar determinados fins que cabem à instituição escolar promover. Segue-se um caminho preferencialmente linear, passando de um conteúdo para outro, de uma disciplina para outra, de um ano para outro, de uma etapa da educação para outra. Esse ritmo parece privilegiar a razão em detrimento do corpo e produzir um projeto de corpo, com um tipo de postura, de modo de andar, sentar, movimentar-se e não dançar. Produz, junto a uma rotina exaustiva, uma exaustão nos corpos que povoam um currículo, fazendo-os, mais do que viver, sobreviver à educação escolar.

Todavia, há movimentos fluidos dos corpos em um currículo, que seguem o ritmo de um currículo-menor. O currículo-menor é feito e desfeito cotidianamente na escola, na pura experimentação; sem fixidez, sem certezas, sem saber onde vai chegar, sem porto seguro. O currículo-menor é construído a partir dos encontros imprevistos possibilitados na escola. O ritmo do currículo-menor é tocado pelas sensações que atravessam os corpos de minorias que compõem o território de um currículo: estudantes. De acordo com Deleuze (2013), minoria e maioria não se definem por quantidade. Grupos minoritários podem exceder em número os grupos majoritários que remetem a um modelo ao qual é necessário se adequar. Minorias o são em direitos, não são modelos, mas devir, que são processos. Diferenciam-se do modelo “[...] europeu médio adulto macho habitante das cidades” (DELEUZE, 2013, p. 218). Pode-se afirmar que estudantes são minorias no território de um currículo que precisam se adequar a um modelo escolar e a um modo de aprender e ensinar.

O currículo-menor segue o fluxo do desejo dos corpos-dançantes, que são corpos que se movimentam de maneira criativa e inventiva. Nesse currículo-menor, corpo e pensamento não se fragmentam; antes, são conectados, como o Anel de Moebius, que é feito da união invertida das diferentes pontas de uma faixa, tornando ambas as faces interna e externa simultaneamente. O movimento de corpo e pensamento são complementares e harmoniosos. Segundo a artista e pesquisadora Ciane Fernandes (2007, p. 39), Rudolf Laban, importante teórico húngaro do movimento, descreveu esse anel “em termos da dança”, comparando-o aos diferentes movimentos de diferentes partes de um corpo, mas que são, todavia, harmoniosos. Esses movimentos, embora distintos, são complementares e não hierárquicos. Dentro e fora se confundem, como se vê na imagem a seguir, uma obra da artista belo-horizontina e contemporânea Lygia Clark.

Fonte: Disponível em https://br.pinterest.com/pin/392587292492365311/

Imagem 1 O dentro e o fora, 1963, Lygia Clark 

Angélica Munhoz (2011), ao pensar sobre a relação entre corpo, dança e escrita, fala que corpos-pensamentos criam “[...] linhas de fuga para liberar-se da forma. Misturam-se, movimentam-se, relacionam-se, são afetados por ações e paixões, são interceptados por fluxo” (MUNHOZ, 2011, p. 24). Corpo-pensamento, corpo-dançante! Um corpo em que corpo e pensamento formam uma aliança. Juntos, movimentam-se, dançam, libertam-se de formas preestabelecidas e, assim, criam e aprendem.

Um currículo, em uma escola, é feito de elementos díspares e complementares. Um currículo-maior e um currículo-menor são como as faces externas e internas de uma faixa que, unidas, formam essa aliança. Se a única preocupação em um currículo for com a faceta do currículo-maior, a escola se reduz a “[...] transmitir, informar, ofertar, apresentar, expor e explicar conhecimentos e saberes pensados, pensáveis e aceitos” (PARAÍSO, 2016, p. 209). Ao restringir-se a essa função, começa-se a produzir “[...] divisões e separações: quem sabe e quem não sabe, quem é bom/boa e quem é mau/má aluno/a, quem tem alto e quem tem baixo desempenho, quem é e quem não é adequado/a, quem segue e quem não segue as regras, quem é normal e quem é anormal” (PARAÍSO, 2016, p. 210). Esse currículo-maior, cuja importância está em validar e dar acesso a conhecimentos que só se tem por meio da instituição escolar, legitimando e garantindo o direito à educação, requer/produz/privilegia um corpo sentado, quieto, dócil, porque opera com a razão separada da emoção, o conhecimento separado da vida, a ciência separada da arte, o pensamento apartado do corpo; uma lógica cartesiana que privilegia o primeiro elemento da oposição binária5.

Já um currículo-menor é um lugar de (re)existência; de criação de possibilidades, de pensamento e de outros modos de sentir e viver. É o currículo-menor que entra em contato com as forças do caos, com o que está fora do território de um currículo e, portanto, pode ser considerado caótico. Mas pode trazer sentido, exploração de possibilidades para que se crie, por meio do conhecimento oferecido pela escola, ciência, arte e filosofia. Essas são as três formas de organização de pensamento para Deleuze e Guattari (2010). Trata-se do pensamento como criação. Pensar tais disciplinas não é decorar um conhecimento; é saber que esses conhecimentos existem, mas apartados da vida dos/as estudantes. Um currículo-menor relaciona-se com a criação que é repleta de sentido e, nela, dá-se o aprender, pois é no contato com as forças do caos que estudantes podem criar conceitos (pela filosofia), blocos de afectos e perceptos (pela arte) e função do conhecimento (pela ciência) (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Mas o foco aqui é a criação pela arte da dança.

Restringir-se a um currículo-menor pode ser um perder-se no espaço. “O astronauta não dança quando é largado no espaço”, mas ele pôde dançar ao som das valsas de Strauss quando, em 2001,6 encontraram “[...] o ponto de equilíbrio entre a força da gravidade e o movimento centrífugo à volta do planeta” (GIL, 2002, p. 19). O/a bailarino/a faz semelhante ao dançar: o movimento do seu corpo contrabalança o peso, “[...] seu esforço visa um estado de equilíbrio instável entre esses dois vetores, esforço que consiste em transformar o peso em pura gravidade” (GIL, 2002, p. 19, destaque do autor). Para dançar entre um currículo-maior e um currículo-menor, é necessário esse mesmo esforço do/a bailarino/a, bem como semelhante sensibilidade. O currículo-menor leva ao caos, mas ficar no caos é seguir o caminho da loucura, um perder-se no infinito das possibilidades. Encontrar um ponto entre a gravidade e essa movimentação intensa, turbilhonar, é o que faz pensar e, neste artigo, o que faz dançar. É entre o currículo-maior e o currículo-menor, na fronteira que os conecta, que se dá o aprender e que se pode criar um currículo outro.

O primeiro passo para a criação de um currículo-dançante foi compor com corpos de natureza diferente dos nossos e com interesses no currículo diferentes dos nossos: a supervisora e as professoras de diferentes disciplinas. Um segundo passo foi conquistar, fazer com que os corpos dos/as estudantes desejassem se juntar aos nossos e, ao mesmo tempo, ocupar os espaços da escola para dançar. Foi necessário conquistar corpos para juntos ocupar e alterar a estética da escola, chacoalhando o currículo-maior com seu modelo disciplinar que coloca carteiras em fileiras e mapeia os lugares em que cada corpo deve ficar. Para um currículo-dançante ser acionado e efetivado, foi necessário se esgueirar pelas brechas do currículo-maior; improvisar movimentos que o contrapunham; mudar o ritmo e as formas que se requer de estudantes e professoras; precisamos nos abrir para outras possibilidades de pesquisar/escrever/dançar/curricular.

Um currículo-dançante convidou para dançar os corpos que compõem o currículo-maior, tirando-os da “pista de corrida”, da preocupação com “a linha de chegada”, com as “premiações” para quem chega primeiro e com as “punições” para quem chega por último ou nem chega, para inseri-los em uma “pista de dança” e, assim, viver e dançar o instante. Convidou corpos a aprender um pouco de uma arte que, de modo geral, não é devidamente incorporada no currículo-maior. Afinal, dançante diz dos movimentos, dos encontros, de reuniões em que se dança. Um currículo-dançante tornou-se, assim, um encontro para mover, sair do lugar (de conforto, porque também dançamos sem sair do lugar), dançar, experimentar, apreciar e aprender com a arte da dança. Ademais, esse currículo convidou a devirem corpos-dançantes, corpos que se implicaram, de alguma maneira, com esse fazer artístico, passando a expressar uma sensação dançante.

3 PRIMEIRO PASSO: COMPOR PARA ABRIR BRECHAS

No dia em que chegamos à Escola Sagração da Primavera para saber em quais turmas a pesquisa seria realizada, dirigimo-nos à sala da vice-direção, conforme combinado no final do semestre anterior com uma das diretoras da escola. O vice-diretor Rudolf7 estava ao telefone e pediu que o esperássemos. Enquanto aguardávamos, um corpo-apressado entrou na sala. Apesar da pressa, esse corpo parou, saiu da velocidade para a lentidão e trocou olhares e sorrisos conosco. Um corpo é definido por velocidade e lentidão, repouso e movimento e, assim, “[...] um corpo afeta outros corpos, ou é afetado por outros corpos” (DELEUZE, 2002, p. 128).

Sentimos que o corpo-apressado de Mercedes sofreu uma mudança ao ser afectado por nossa presença. Foi como se nossos corpos se tornassem um signo para Mercedes. Um signo se trata de algo cujo significado se desconhece. Pode ser um corpo, no amplo sentido defendido neste artigo, pois diz de algo/alguém exterior ao mundo que a pessoa já conhece. A depender do impacto do encontro com um signo, uma pessoa pode ser afectada de tal modo que não tem paz até decifrá-lo. Nossos corpos também foram afectados com a presença do corpo-apressado de Mercedes, pois os corpos afectam-se mutuamente.

Ficamos surpresas com a mudança de Mercedes quando nos viu, com sua curiosidade e vontade de nos conhecer. É “[...] pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa” (DELEUZE, 2002, p. 128). A mudança de movimento do corpo de Mercedes a deslizou para um encontro com nossos corpos. Ao desligar o telefone, Rudolf nos apresentou. Quando ele disse que estávamos ali para fazer uma pesquisa com dança, Mercedes arregalou seus olhos cor de jabuticaba, alargou seu sorriso e perguntou do que se tratava especificamente a pesquisa. Ao explicarmos sobre as experimentações que gostaríamos de fazer, Mercedes deixou de lado o que ia fazer, mudou sua rotina e disse: “Então venham comigo! Não vão para outro lado, não! Vou apresentar vocês para algumas professoras que são abertas”.

Algo nos conectou: o desejo de fazer dançar. Naquele momento, nossos corpos fizeram uma composição, que é a junção de corpos de naturezas diferentes que, juntos, começam a criar algo novo, um composto de diferentes pedaços. Trata-se de uma invenção que não exclui o heterogêneo para formar algo homogêneo. Isso se deu em questão de segundos, no tempo cronológico. É interessante notar que Mercedes sabia que não poderia conversar com qualquer professor/a. Vimos que um agenciamento teria de ser feito com aquelas cujos corpos davam uma brecha para um currículo-dançante.

Pode-se dizer que, naquele instante, um currículo-dançante foi acionado na Escola Sagração da Primavera, pois esse encontro começou a desencadear movimentos compondo a arte da dança ao currículo. O corpo-apressado de Mercedes deveio corpo-dançante ao se deparar com um signo. Ao decifrar aquele signo, embora Mercedes tivesse entrado na sala da vice-direção para outros fins, mudou o foco da sua atenção. Começou a se agenciar com a arte da dança de tal modo, que entrou em um devir-artista, pois começou a pensar e a agir com foco em uma criação artística.

Devir é ser atravessado/a por sensações, sentimentos e impulsos que nos transformam. Devir-artista diz de uma qualidade de artista, de uma sensação, e não de uma função de artista profissional. Trata-se de exprimir pelo corpo os blocos de sensações que são próprios da arte liberar/emitir. Afirmamos que Mercedes entrou em um devir-artista porque passou a agir não apenas como supervisora escolar, mas como uma artista em um currículo, criando novas possibilidades com a dança. Começou a se agenciar com professoras que ela considerava abertas para realizar uma coreografia. Um/a diretor/a de um espetáculo, por exemplo, age assim: agencia-se com outros/as profissionais, como coreógrafos/as, cenógrafos/as, músicos/musicistas, figurinistas, iluminador/a, a fim de criar uma obra artística. Sentimos uma sensibilidade de artista nos movimentos de Mercedes.

O devir-artista de Mercedes, movimentou o currículo-maior da Escola Sagração da Primavera para que uma coreografia, cujo tema contemplasse o Dia da Consciência Negra, acontecesse. Mercedes viu em nós as coreógrafas que poderiam criar tal coreografia. Agenciou-se com professoras para que tivesse os/as dançarinos/as de que precisava. Pensou em práticas de imersão ao tema, como passar o filme Rainha de Katwe8 para as turmas assistirem. Todas essas qualidades de uma artista nos fizeram ver Mercedes como uma supervisora em devir-artista, pela sua habilidade em organizar e usar meios técnicos para esse feito, por ver a necessidade e a importância da expressão de uma cultura por meio da dança, pela maneira como seu corpo vibrava ao mostrar que visualizava essa dança.

Quando saímos da sala, no pequeno trajeto até o prédio onde ficavam as salas do 8º ano, Mercedes começou a falar de seu desejo de ver uma obra de arte ali na escola. Fomos seguindo seus passos, deixando-nos conduzir como em uma dança, para ver no que ia dar. Mercedes nos apresentou à professora Pina e, sem ter falado nada anteriormente, disse-nos: “Podemos fazer algo especial com uma ajuda profissional da dança!”. Seus olhos brilhavam e seu sorriso parecia não caber no rosto.

Ao ser acionado por um encontro e pelo decifrar de um signo, um currículo-dançante começou a encontrar um espaço para se efetivar. Foi o desejo de Mercedes com uma ideia de dança e por viver uma experiência inesquecível no currículo, junto do nosso desejo de experimentar a dança em um currículo, que acionou um currículo-dançante. Faltava encontrar as professoras abertas. O que já nos sinalizou que um currículo-dançante, para funcionar, precisa se conectar a corpos abertos, ainda que com outros interesses no currículo.

O currículo-dançante, quando acionado, teve hesitações por parte de algumas professoras. A começar por Pina, professora de Português, que se preocupou em ceder o tempo de sua aula e ficar com seu conteúdo atrasado. Um currículo-dançante interferiria diretamente em seu planejamento, parecendo concorrer com o currículo-maior. Pina demonstrou ter sentido que, na pista de corrida do currículo, ela e suas turmas poderiam ficar para trás. Afinal, haveria uma interferência em sua rotina de aula. Mostramo-nos compreensivas, pois sabíamos que não seria possível efetivar um currículo-dançante sem movimentar o currículo-maior, com seus tempos e espaços.

Pina, que começou falando séria sobre seu cronograma e o pouco tempo de que dispunha, e sobre “costurar temas” para que a dança contemplasse o conteúdo da disciplina, no decorrer da conversa, acabou se abrindo às experimentações. Disse para irmos às suas turmas às quintas-feiras, dia de seu maior cansaço, em que ela dá cinco aulas. Além disso, trabalha em outra escola no turno da manhã. Ela disse: “Eles/as precisam de um pouco de ar, sair das grades”, e apontou para as grades que cercavam o corredor. “Eu também preciso de ar! A gente precisa respirar!”. Pina tinha um desejo: descansar, respirar!

O desejo de Pina por respirar, tomar um ar e descansar possibilitou o agenciamento que nós e Mercedes buscávamos. Pina começou a falar do quanto gostava de dança, de arte, de se expressar pelo corpo. Esse desejo foi uma espécie de desterritorialização no currículo; uma “operação da linha de fuga” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 238).

Após a conversa com Pina, nós nos dirigimos com Mercedes para o prédio em que ficavam as turmas do 9º ano. Deixou-nos em sua sala e saiu, agora, com seu corpo-dançante. Começou a ir de sala em sala, falando com as professoras, em busca de mais agenciamentos. Mas, devido às reposições das aulas, as professoras não aceitaram. Mercedes se mostrava inconformada. Então foi falar com Isadora, a professora substituta de Português, que se interessou e foi conversar conosco. Isadora parecia querer atender ao pedido de Mercedes, mas demonstrou preocupações semelhantes às de Pina: “Quantas aulas serão necessárias? E o conteúdo? Podemos combinar de fazer propostas juntas para os/as estudantes não perderem esse conteúdo?”. O currículo-maior parecia pesar nas preocupações da professora e dificultar a abertura para a experimentação de um currículo-dançante.

Explicamos que a pesquisa não se tratava de criar uma coreografia, mas de estar com as turmas e fazer as experimentações com dança sempre que pudéssemos. Poderia ser uma atividade de 5 minutos, e a coreografia seria feita para atender ao pedido de Mercedes. Precisamos abrir os nossos corpos para esse movimento que Mercedes provocava. Enquanto conversávamos, Mercedes foi à procura de outras professoras e não parou até se certificar de que faríamos a pesquisa em todas as turmas do 8º e do 9º ano.

Mercedes conversou com Trisha, professora de Geografia, e Martha, professora de Matemática, que aceitaram liberar algumas aulas, especialmente aquelas em que teriam de corrigir provas e, assim, os/as estudantes poderiam “descansar” um pouco. Enfim, Mercedes conseguiu que tivéssemos uma aula por semana com cada uma das quatro turmas do 8º ano e das seis turmas do 9º ano. Nós nos entusiasmamos, mas sentimos o desafio que teríamos pela frente.

O currículo-maior, para as professoras, oferecia dificuldades para deixar um currículo-dançante aparecer. Mas, quando elas se abriram para uma experiência nova, abriram espaço para um currículo-dançante. Desse modo, um currículo-dançante encontrou espaço nas brechas do currículo-maior, que também é composto pelo currículo turístico, que contemplava uma dança para uma festa, e o senso comum de entretenimento e lazer da dança, bem como o excesso de trabalho das professoras que precisam de tempo para corrigir provas e/ou descansar.

O trabalho para o Dia da Consciência Negra foi um elemento surpresa, pois não havíamos pensado em coreografar nas experimentações. Aliás, era uma das coisas que não pretendíamos fazer, por entendermos que isso é algo comum nas escolas. Queríamos fazer experimentações com as danças Improvisação – que é a criação instantânea do movimento, numa integração corpo-pensamento – e Contato Improvisação – cujo movimento se cria a partir do contato com outro corpo. Mas foi o desejo de Mercedes em relação à festa que estava organizando que abriu as portas para realizar a pesquisa.

O desejo marca a diferença de cada corpo por meio de uma afecção que faz com que esse corpo aja de uma determinada maneira. O desejo provoca a imaginação. A imagem do que se deseja, no caso a coreografia imaginada/fantasiada por Mercedes, intensificou “o esforço ou o desejo” (SPINOZA, 2017, p. 140) por vivenciá-lo, desfrutá-lo. Sim! O corpo fantasia “como ato de criação” (BIATO, 2013, p. 99). Por fim, o processo de desterritorialização culminou em uma composição entre nossos corpos e os corpos de Mercedes, Pina, Isadora, Trisha e Martha. Juntas, formamos um bando! Por mais que não esperássemos que fosse dessa maneira que faríamos a pesquisa, nós nos abrimos e aceitamos seguir aquele caminho inesperado para ver no que ia dar.

4 SEGUNDO PASSO: CONQUISTAR PARA MOVIMENTAR

Embora tendo formado um bando que fez acionar um currículo-dançante, precisávamos garantir sua efetivação. O próximo passo a ser dado seria conquistar estudantes a aceitar nosso convite para dançar. Sem isso, nada seria possível. Passamos a pensar o que faria despertar naqueles corpos o desejo por dançar. Apostamos na potência dos bons encontros. Os bons encontros são evidenciados pela alegria. “A alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior” (SPINOZA, 2017, p. 141).

Conquistar, para nós, foi o mesmo que fazer desejar. Sabe-se que “[...] não há um método para fazer desejar em um currículo”. Por isso, o que se pode fazer “[...] é construir nos currículos encontros convenientes para fazer crescer a potência da vida” (PARAÍSO, 2009, p. 277). Para “[...] saber da potência e da dificuldade do desejo no currículo”, faz-se necessário oferecer o máximo de possibilidades até “[...] que talvez alguém consiga estabelecer um encontro e, então, fazer agenciamentos, expandir território, desejar e produzir experiência” (PARAÍSO, 2009, p. 277).

Pudemos viver isso desde o primeiro dia das experimentações. Na primeira semana, estivemos em oito turmas. A última delas foi uma do 8º ano. A professora Pina estava alegre, mas mudou seu semblante enquanto nos dirigíamos à sala. Ela disse que aquela turma era a mais difícil, pois era dividida e individualista. Antes de entrarmos na sala, Artórias, um rapazinho baixo e magro, de óculos, sorriso bonito e fala educada, perguntou para Pina se poderia sair para beber água. Ela disse que sim. Enquanto ele saiu, Pina nos falou: “Esse é o Artórias. Ele sofre de uma ansiedade muito forte. Passa mal com frequência aqui na escola; faz tratamento, toma medicamento, e a turma sempre o ajuda. Ele está com forte crise esta semana”. Naquele momento, nós nos preocupamos e pensamos: “Como será a reação dele com a dança?”.

Entramos na sala e uma estudante nos disse: “Estou esperando essa aula desde o início!”. Diante dessa fala, ficamos mais esperançosas, pois as falas de Pina sobre a turma e Artórias nos deixaram tensas. Passados alguns minutos, Artórias retornou com um sorriso singelo no rosto, sentou-se na primeira carteira da segunda fileira, próxima à porta. Na busca por superar nossas inseguranças, decidimos nos alegrar e começar as atividades de apresentação.

Pedimos para que cada um/a se apresentasse falando o seu nome e fazendo um gesto que expressasse o que estava sentindo naquele momento, ocupando as cadeiras, carteiras e corredores já como um espaço para dançar. Para encorajá-los/as, começamos por nós e escolhemos a/o próxima/o a se apresentar. E assim foi, até que toda a turma se apresentou, incluindo Pina. A turma se divertiu! Um clima de descontração começou a fluir naquele espaço. O próprio espaço se modificou.

Fizemos mais algumas atividades e, então, retiramos um pandeiro da mochila e propusemos que todos/as se levantassem e afastassem as carteiras. A atividade era simples: se movimentar somente na batida do pandeiro. Começamos a fazer batidas suaves, espaçadas. Ora acelerávamos com batidas seguidas, ora fazíamos pausas. Havia um descompasso que fazia com que o corpo improvisasse sem premeditar. Não dava para racionalizar e prever o que viria em seguida. As batidas faziam os corpos vibrar e provocavam movimentos que pareciam pegá-los de surpresa.

Aquela dança foi tomando uma proporção tão grande, que a atmosfera do lugar mudou completamente. Uma bagunça para quem olhava de fora, um êxtase para quem experimentava. Riso solto, movimentos engraçados, bonitos, estranhos, elegantes, inusitados... Coreografias espontâneas começaram a ser criadas: cenas de boxe em slow motion, danças em duplas, trios... isso sem nosso comando. Só batucávamos o pandeiro. Os corpos foram dançando, envolvendo-se, agenciando-se de tal modo que, de repente, fizeram um trenzinho! Ninguém combinou nada, foi acontecendo. Isso foi, para nós, a evidência da possibilidade de um currículo dançar; foi a efetivação de um currículo-dançante. Fez-se carnaval naquela turma! Pina ria com os olhos arregalados e surpresos. Nós, ao mesmo tempo que parecíamos estar sonhando, ficamos assustadas, com medo da bagunça, mas uma troca de olhares com nossa comparsa de bando, Pina, nos fez seguir. Quando menos esperávamos “cabum!”, uma parte do trenzinho foi ao chão! Pensamos: “Ai! E agora?”, mas todas/os riram alto, levantaram-se e continuaram a dançar. Não era bagunça, era dança! Um extravasar e transbordar de sensações, energias, afectos.

Fomos no fluxo dessa dança! Começamos a fazer batidas rápidas e frequentes no pandeiro. Os corpos agitaram-se ainda mais. Pronto, a alegria transbordou! Bateu o sinal, encontramos o fim daquela dança e todos/as aplaudiram. Então Artórias disse que precisava dar um recado para a turma e concordamos. Ele se dirigiu à frente da sala e disse: “Ó, é o seguinte: Eu amo todos vocês! Vocês moram no meu coração!”. A euforia tomou conta! Aplausos e abraços em Artórias. Os/as estudantes também se dirigiram a nós e nos abraçaram, alguns/algumas faziam um “soquinho” com as mãos e uma estudante nos disse: “Amei a aula! Venham na aula de Matemática!”.

Foram muitas as expressões de gratidão, carinho, animação, amor. Para Spinoza, o “[...] amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior” (SPINOZA, 2017, p. 142). Um currículo-dançante, quando efetivado, afectou o corpo-ansioso de Artórias com amor, transformando sua ansiedade em um transbordar de alegria que o fez devir corpo-dançante. Isso mostrou a força de um currículo-dançante de movimentar, agenciar, surpreender, produzir afectos alegres. Artórias demonstrou, desde o primeiro dia, que amava dançar. Viver esse amor produziu uma satisfação que fortaleceu a sua alegria (SPINOZA, 2017) e contagiou a turma. Na turma rotulada como “individualista e fechada”, um currículo-dançante fez devir-amor. Um bom encontro que potencializou a todos/as e fez Pina entrar em outro devir, como se vê a seguir. O desejo foi despertado, pois desejo “[...] é fábrica, potência, alegria, é fundamental para aprender, para pensar, criar, construir, enfrentar os poderes, as dificuldades da vida, movimentar, deixar passar algo, produzir alegrias, viver” (PARAÍSO, 2009, p. 278).

Ao final da aula, nós nos dirigimos à sala das/os professoras/es. Pina encontrou outra professora e começou a contar sobre a experiência que vivemos. De repente, Pina, em um devir-criança, com um largo sorriso, abriu os braços e correu pela sala falando: “A gente precisa ocupar outros espaços dentro da escola, correr, desfrutar! A gente precisa disso! Os meninos precisam!”. Aquela cena nos atravessou e, mais uma vez, sentimos a atmosfera do ambiente mudar. Sim! Um currículo-dançante pode mudar estados anímicos, fazer movimentar e despertar a vontade de ocupar espaços não ocupados na escola. Pode fazer uma professora se soltar e correr em um desses espaços e contagiar outra/o professora/or, convidando-a/o a fazer mesmo. “A gente precisa!”. Pina, naquele instante, tornou evidente a potência de um agenciamento coletivo, de um bando e de ações que fazem desejar acionar e efetivar um currículo-dançante.

Devir-criança não se trata de imitar crianças, mas de viver com essa mesma intensidade e sensibilidade. Naquela tarde, dançamos e voamos a liberdade e o desejo de vivenciarmos o espaço da escola de outra maneira. Um currículo-dançante possibilitou viver um pouco de possível! Sim, Pina estava respirando, e pensando, com alegria e com sua potência de agir aumentada. Um corpo em devir-criança vivencia a alegria e a liberdade de expressar o que sente, o que lhe toca e, consequentemente, coloca-se em movimento, seu corpo expressa uma potência outra, desfruta e ocupa o espaço de outra maneira. O espaço torna-se um lugar de expressão dessa potência, como um palco para um/a bailarino/a. Na sala de aula toda apertada, Pina ficou sentada, apreciando os/as estudantes. Tinha pouco espaço para ela, e queria deixar os/as estudantes mais à vontade. Mas, durante as apreciações daquele dia, seu corpo foi afectado de tal modo que, quando teve um espaço, extravasou sua alegria, correu, dançou, alçou voo na sala de professoras/es da Escola Sagração da Primavera. A outra professora que estava na sala a olhava com surpresa e um sorriso bonito.

No decorrer do semestre, foi possível notar como Pina fora afectada pelas experimentações, ao ponto de, em uma tarde do ano seguinte, quando já não estávamos mais na escola, enviar uma mensagem de WhatsApp dizendo para voltarmos. A mensagem dizia:

  • Saudades de vocês (emoji com beijo de coração)

  • Oi Pina!!! Saudades tb!!! [...]

  • Achem outra oportunidade de nos presentear esse ano... kkk... com seus trabalhos. (Caderno de Ensaios da Dançarilha)9

A “[...] saudade é o desejo, ou seja, o apetite por desfrutar de uma coisa, intensificado pela recordação desta coisa” (SPINOZA, 2017, p. 148). A mensagem evidencia que Pina foi afectada por esse currículo-dançante. Desde o primeiro dia de experimentações com as turmas do 8º ano em diante, Pina começou a repensar sua prática como professora. “Pois quanto mais o corpo é capaz, de variadas maneiras, de ser afetado pelos corpos exteriores e de afetá-los, tanto mais a mente é capaz de pensar” (SPINOZA, 2017, p. 209). Também começamos a repensar nosso pesquisar de outra maneira e passamos a abrir nossos corpos para vivermos o que um currículo-dançante faria. No final daquele semestre, em entrevista, Pina disse:

A partir do ano que vem quero começar meu projeto já saindo da sala, porque nossas salas serão modificadas. O espaço que o 8º ano vai ocupar será mais apertado e mais quente, pois será no outro prédio. Então eu já falei com a outra professora de Português e a de Geografia que vou trabalhar alguma leitura, alguma expressão usando o que eu tenho, que é a Língua Portuguesa. (Trecho de entrevista. Caderno de Ensaios da Dançarilha)

A professora Pina começou a pensar em outras possibilidades no currículo, a partir de suas práticas, de sua especialidade e de seu conhecimento como professora. Um currículo-dançante provocou seu corpo-dançante e, além de mudar seu planejamento para o ano seguinte, começou a se agenciar a um bando de professoras para ocuparem a escola e desenvolverem projetos que incluíssem a experimentação com o corpo em outro espaço e possibilidades de expressão. Isso se torna evidente, ainda, em outro trecho de sua entrevista, quando diz:

Os alunos têm necessidade de sentar no chão, de falar o que eles querem falar. A questão do toque, eu achei muito interessante e ficou como experiência para mim também, porque acho que eu tenho necessidade [...], o/a professor/a também! (Trecho de entrevista. Caderno de Ensaios da Dançarilha).

Pina sentiu que estudantes e professoras/es têm necessidade de vivenciar um currículo com o corpo, de modo mais sensível. O toque, para ela, foi uma experiência corpórea que a movimentou em criação. Sim, “[...] experiências do corpo são criação em movimento, ao modo de cada um” (BIATO, 2013, p. 100). Parece que o corpo passou a ser sentido por Pina, de outra maneira, de modo a pensar o currículo também de outra maneira.

Outros encontros aconteceram assim que chegamos à Escola Sagração da Primavera. Mas os encontros aqui mapeados foram aqueles que a atravessaram de modo singular e que tornaram evidentes como um currículo-dançante foi acionado.

5 SOBRE A EXPERIÊNCIA DE ACIONAR UM CURRÍCULO-DANÇANTE

Um currículo-dançante é como um/a dançarino/a que tira corpos para dançar e movimenta o currículo-maior. Um currículo-dançante não dança só e só funciona na conexão com a diferença de cada corpo que encontra. Um currículo-dançante precisou ser acionado e o que o acionou foi a composição com uma supervisora em devir-artista. Quando isso aconteceu, um currículo-dançante começou a encontrar espaço para funcionar. Para tanto, precisamos nos conectar com corpos abertos de professoras, enfrentar as oposições, dúvidas e oscilações e, juntas, formarmos um bando em busca de fazer dançar o currículo-maior.

Precisamos nos abrir a movimentos inesperados, mudar nossa maneira de pesquisar e curricular, agir de modo a conquistar os corpos dos/as estudantes e, assim, ocuparmos o território de um currículo de uma outra maneira. Tivemos de subverter o senso comum em relação à dança e à demanda por dança como um “currículo turístico”, que faz turismo na escola, breves passeios tendo um objetivo com uma data específica para acontecer e os entraves com o currículo-maior. Mas, quando foi efetivado, um currículo-dançante fez carnaval em uma turma rotulada como individualista. Isso porque um currículo-dançante muda a atmosfera do ambiente, altera o espaço, muda os ânimos, faz professoras voar, dançar e querer ocupar e viver o currículo de outra maneira: sensível, dançante.

Um currículo-dançante, desde seus primeiros passos, desencadeou devires: devir corpo-dançante, devir-artista, devir-criança, devir-amor. É feito de dança, expressão e alegria! Isso mostra que o território de um currículo é repleto de desafios e negociações, mas é também lugar de encontros e possibilidades. É lugar para dançar! Dança?

2Trata-se de um nome fictício, inspirado na versão da obra Sagração da Primavera, de Pina Bausch, renomada coreógrafa e bailarina alemã da segunda metade século XX. A obra original é um balé do compositor russo Igor Stravinsky, com primeira coreografia de Vaslav Nijinski, importante coreógrafo e bailarino russo do início do século XX. Além disso, boa parte da pesquisa foi realizada durante a primavera, em uma escola que fez primaverar afectos na criação de currículo-dançante.

3Para conceituar currículo-maior, inspiramo-nos no que Deleuze e Guattari (1977) chamam de “literatura maior”, aquela considerada um modelo e que faz uso da expressão de uma língua considerada padrão, de um modo de pensar que responde a interesses hegemônicos.

4Do mesmo modo, para conceituarmos currículo-menor, também nos inspiramos no que Deleuze e Guattari (1977) chamam de “literatura menor”, que é aquilo “[...] que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 25), ou seja, desterritorializa uma língua para nela expressar os sentimentos e desejos de uma coletividade, tornando-se, assim, um ato político, pois resiste a um padrão hegemônico, a um modo único e aceitável de expressar e fazer literatura. Assim sendo, faz literatura, tem essa forma, mas a designa para fins menores.

5A lógica cartesiana trata da divisão e oposição entre corpo e pensamento e faz parte do mesmo processo de transformação da sociedade ocidental, ganhando força na Modernidade, mesmo período em que se criam as instituições disciplinares, que consideram a razão superior ao corpo, enquanto este se torna objeto de poder para alcançar os ideais de produção capitalista. Essa visão cindida do ser humano é ainda mais antiga, oriunda de Platão, filósofo da Grécia Antiga, para quem o mundo é dividido entre “[...] o mundo das ideias e o mundo das coisas. Das essências e das aparências, respectivamente, da luz e das sombras” (ASPIS, 2016, p. 32).

6Referência ao filme de Stanley Kubrick, baseado na obra de Arthur C. Clark, 2001: Uma Odisseia no Espaço.

7Os nomes fictícios do vice-diretor, da supervisora e das professoras são inspirados em artistas da dança moderna e contemporânea. Os nomes dos/as estudantes foram escolhidos por eles/as em entrevista.

8Baseado em uma história real, o filme conta sobre a vida da jovem enxadrista Phiona Mutesi, de Uganda. Com direção de Mira Nair e estreia no Festival Internacional de Cinema de Toronto, no ano de 2016, foi produzido pela Walt Disney Studios. Mais informações em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Queen_of_Katwe#Produ%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 13 abr. 2020.

9O Caderno de Ensaios da Dançarilha foi a maneira como nomeamos o diário de campo com anotações da pesquisa.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 10 de Setembro de 2021; Aceito: 13 de Outubro de 2021

Carla Char: Doutoranda e mestre em Educação e Pedagoga com ênfase em Dança pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Artista da dança, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Currículos e Culturas (GECC), FaE/UFMG – CNPq, e do grupelho Grupo de Estudos e Ações em Filosofia e Educação, FaE/UFMG – CNPq. E-mail: carlacharmes@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6042-0726

Marlucy Alves Paraíso: Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG). Pesquisadora 1C do CNPq. Fundadora e Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Currículos e Culturas (GECC) da FaE/UFMG. E-mail:marlucyparaiso@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3542-4650

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