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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.26 no.58 Campo Grande set./dic 2021  Epub 28-Feb-2022

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v26i58.1595 

Dossiê: Currículo, resistência e criação com as artes

Infância e currículo: políticas microcurriculares para uma pedagogia da brincadeira

Childhood and curriculum: micro-curricular policies for a pedagogy of play

Infancia y currículo: políticas microcurriculares para una pedagogía del juego

1Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


Resumo

O trabalho visa discutir a relação diferencial que pode se estabelecer entre a infância e o ato de educar nos currículos da educação infantil. Neste sentido, questiona-se: como compor currículos potentes para cultivar e explorar a singularidade da relação que se traça entre a infância e o ato de aprender em meio ao fluxo afetuoso da experiência da brincadeira livre? Mesmo que sob a forma de um ensaio, o texto se elabora, também, a partir do contexto de um movimento de pesquisa ainda em andamento, baseando-se nas conversas tecidas com professoras de duas creches públicas do município do Rio de Janeiro e no projeto de extensão universitária que aborda o tema e a problemática propostos. O escrito desenvolve-se no sentido de afirmar que a experiência de concepção do ser da infância, imanente à experiência em que brincadeira livre se desenrola, pode se constituir como força motriz para a produção de currículos que se conformem como verdadeiros campos de composição para o devir de processos inventivos de aprendizagem. Conclui que tomar o espaço-tempo diferencial da brincadeira livre como uma experiência afetiva de aprendizagem tende a abrir perspectivas singulares para se pensar relações mais criadoras entre infância e currículo.

Palavras-chave: infância; currículo-aprendizagem; experiência-afeto

Abstract

The work aims to discuss the differential relationship that can be established between childhood and the act of educating in early childhood education curriculum. In this sense, it questions: how to compose powerful curriculum to cultivate and explore the uniqueness of the relationship that is traced between childhood and the act of learning amidst the affectionate flow of the experience of free play? Even though in the form of an essay, the text is also elaborated from the context of a research movement still in progress, based on conversations with teachers from two public daycare centers in the city of Rio de Janeiro and on the project of university extension that addresses the proposed theme and problem. The writing is developed in the sense of affirming that the experience of conception of the being of childhood, immanent to the experience in which free play takes place, can constitute a driving force for the production of curriculums that conform as true fields of composition for the arising from inventive learning processes. It concludes that taking the differential space-time of free play as an affective learning experience tends to open unique perspectives for thinking about more creative relationships between childhood and curriculum.

Keywords: childhood; curriculum-learning; experience-affect

Resumen

El trabajo tiene como objetivo discutir la relación diferencial que se puede establecer entre la infancia y el acto de educar en los currículos de educación infantil. En este sentido, la pregunta es: ¿como componer currículos potentes para cultivar y explorar la singularidad de la relación que se traza entre la infancia y el acto de aprender en medio del fluir afectivo de la experiencia del juego libre? Aunque en forma de ensayo, el texto también se elabora a partir del contexto de un movimiento de investigación aún en marcha, a partir de conversaciones con profesores de dos guarderías públicas de la ciudad de Río de Janeiro y del proyecto de extensión universitaria que aborda el tema y el problema propuestos. La escritura se desarrolla en el sentido de afirmar que la experiencia de concepción del ser de la infancia, inmanente a la experiencia en la que se desarrolla el juego libre, puede constituir un motor impulsor para la producción de currículos que se conforman como verdaderos campos de composición para el que surgen de procesos de aprendizaje inventivos. Concluye que tomar el espacio-tiempo diferencial del juego libre como una experiencia de aprendizaje afectivo tiende a abrir perspectivas únicas para pensar en relaciones más creativas entre la infancia y el currículo.

Palabras clave: infancia; currículo-aprendizaje; afecto-experiencia

1 PROBLEMÁTICA

No âmbito diferencial dos movimentos curriculares que se engendram na educação infantil, o ato de aprender não deixa nunca de ser, ele mesmo, um ato complexo.

Às causas que dizem respeito aos critérios e perspectivas socioeconômicas e histórico-culturais sob as quais certo componente de estudo e aprendizagem será selecionado e ganhará este ou aquele enfoque, modo de desenvolvimento e sentido político, somam-se outras causas que se reportam à necessidade de saber como articular e potencializar o próprio ser da infância enquanto componente essencial para o acontecimento do fazer educador.

De tal forma, entende-se que, nos processos educadores movimentados na educação infantil, o próprio ser da infância se configura como componente diferencial e singular que se desenrola tanto como plano de constituição do currículo quanto como produção derivada desses mesmos currículos.

De modo que, para além das usuais considerações de caráter pedagógico, gnosiológico2 e metodológico, as singularidades dos processos de aprendizagem que buscam se engendrar a partir e com o devir ser da infância precisam ser tomadas como causas que, naturalmente, forçam as professoras a traçarem práticas curriculares conforme dimensões e perspectivas educadoras singulares.

Os processos de tessitura dos currículos na educação infantil enfrentam, assim, o desafio de promover uma afinidade especial entre o ser da infância e o ato de aprender, configurando-se como movimentos que devem se diferenciar em relaçã’o aos modelos e padrões curriculares formais.

Sob tal perspectiva, o currículo da educação infantil é convocado a articular a constituição de movimentos aprendentes nos quais a infância possa assumir um papel plenamente ativo no processo. Ou seja, quando o infante aprende, não se trata apenas de fazer com que, de uma maneira ou de outra, ele/a se aproprie de um conteúdo disciplinar já formatado e preexistente, e sim que possa buscar produzir entendimentos que se tracem sob relações significativas para as demandas próprias da infância.

Nesse contexto, sabe-se que o infante busca aprender experimentando certos modos de relação do seu corpo-pensamento com as coisas do mundo com as quais interatua na experiência dos encontros; e que vai criando formas singulares, inventivas e, progressivamente, mais adequadas para conformar uma ideia própria que manifesta a potência atual do seu corpo-pensamento para se expressar como força de produção do real.

A efetuação desse estilo afetivo-corporal de aprendizagem que se compõe com o ser da infância tenderá, assim, a se efetuar tanto como produto quanto como produtor dos processos infantis de subjetivação, isto é, das formas pelas quais o infante busca enunciar ou atribuir sentido ao mundo.

O ato de aprender se manifesta dessa forma como um processo subjetivo e reflexo que tende a afetar e ser afetado pelos modos sensíveis, por meio dos quais a infância procura estabelecer uma interface possível de contato e troca entre si e o real no fluxo da experiência vivente, sobretudo, via a experiência fundamental da brincadeira livre.

Uma vez que a relação que se rabisca entre ser da infância e a ação de aprender ganha contornos muito complexos e inusitados, as experiências curriculares que com ela se tecem não poderiam se fundar sobre uma noção técnica, disciplinar e aparentemente neutra de aprendizagem – associando o ato de aprender, por exemplo, à mera apropriação, reconhecimento e construção de conceitos científicos já instituídos.

Assim, o padrão clássico de currículo que se manifesta nos moldes formais do ensino fundamental não se alinha adequadamente às especificidades das práticas educadoras que se deseja promover no domínio da educação infantil, uma vez que tal modelo se nutre de certa vontade de verdade que se efetua tal como sistemas outros de exclusão.

[...] ela [vontade de verdade] é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia [...] o sistema [de produção] dos livros [didáticos][...], mas é também reconduzida, e de um modo mais profundo sem dúvida, pela maneira como o saber [científico] é disposto numa sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e, de certa forma, atribuído. (FOUCAULT, 1996 p. 17).

Procurando traçar uma linha de escrita que tangencie a complexidade dos contornos que envolvem a relação entre o ser da infância e os processos de educação-aprendizagem engendrados pelos currículos da educação infantil; isto é, uma linha de escrita aberta à possibilidade de pensar a infância, ela mesma, enquanto experiência singular e essencial à composição dos referidos currículos, questiona-se...

Se não é possível predeterminar e fixar uma certeza ou garantia acerca de como o infante, verdadeiramente, aprende3, como pensar possibilidades educadoras e curriculares que se engendrem a partir da própria experiência da infância; ou seja, dos estilos singulares de aprendizagem que se compõem imanentemente aos modos infantis de ser e pensar o real?

2 METODOLOGIA

O ensaio se desenvolve em articulação com uma pesquisa ainda em andamento, na qual tecemos encontros com professoras de duas creches públicas do município do Rio de Janeiro (2019) e, adicionalmente, com docentes de pré-escolas e creches da mesma rede que participam de um projeto de extensão (2020/2021) que visa debater a problemática proposta: como produzir currículos/ práticas educadoras a partir de e com a própria experiência da infância? Nos dois contextos de trabalho, a investigação se desenrolou por meio de estratégias de interação discursiva que buscam colocar em jogo os modos pelos quais os territórios existenciais-profissionais das docentes se constituem e, ocasionalmente, se desterritorializam e reterritorializam nos diferentes discursos traçados acerca de suas próprias práticas curriculares. Neste processo, utiliza-se, sobretudo, das insídias imanentes ao recurso da conversa – quando esta assume a própria mundanidade4 como cerne de práticas de tabulação que tendem a tornar legível formas emergentes/diferenciais de pensar e fazer currículos-educação sob influência das potências da infância. Nas citadas conversas, faz-se uso tanto da cartografia das artimanhas curriculares produzidas pelas professoras, para experimentarsensibilidades e estilos de entendimento e enunciação inusitados acerca do sentido do ato de educar com a infância: que perspectivas se abrem (qual a sua força e impotências) quando tentamos alargar as fronteiras do real para o fora dos modelos estabelecidos; quanto do recurso crítico da problematização: que riscos enfrentamos se nossas reflexões/ações profissionais permanecem sob a condução de noções instituídas e subjetivamente reificadas?

3 A CENTRALIDADE DO SER DA INFÂNCIA

O desafio que uma possível pedagogia da brincadeira se impõe na contemporaneidade diz respeito a saber como produzir currículos nos quais a própria experiência de constituição do ser da infância se configure, ela mesma, como força motriz do fazer educador. De forma conexa, tal desafio implica rever, também e necessariamente, o problema da aprendizagem, já que tal pedagogia

[...] difere-se [em profundidade e extensão] das pedagogias centradas na criança que tiveram sua emergência nos movimentos da Escola Nova [...]. Se as pedagogias ativas, centradas na criança, estabeleciam a crítica à pedagogia tradicional, a partir dos conhecimentos sobre a criança produzidos pelas investigações do campo da biologia e da psicologia evolutiva, uma Pedagogia da Infância compreende que toda e qualquer ação educativa exige considerar as crianças e os contextos socioculturais que definem sua infância. (BARBOSA, 2010, p. 1-2).

Nestes termos, o traçar dos currículos no âmbito dessa possível nova pedagogia se afirma sob a noção da centralidade da infância (não da criança), mas buscando escapar tanto das causas biológicas e psicológicas que sobrevalorizam o processo de desenvolvimento cognitivo quanto dos funcionalismos estruturais que tentam impor as causalidades de cunho sociológico como critério determinante para a educação da infância.

Extrapolando o dualismo supracitado, considera-se que o ser da infância se constitui no processo aprendente a partir, sim, dos encontros e trocas tecidos em certo contexto sociocultural, mas que tais encontros complicam também, de modo muito dinâmico e cinético, as múltiplas dimensões vitais que compõem o corpo-pensamento infante: dimensões de natureza afetiva, sensível, ética, estética, intelectual, psíquica, entre outras. Trata-se de um processo no qual o infante se engendra (sobretudo pela via da brincadeira) no sentido de buscar atribuir um sentido propriamente infantil ao real, segundo experimentação de estilos diferenciais ou propriamente infantis de aprender.

É esse movimento de composição e exploração educadora dos estilos diferenciais de aprendizagem que desabrocham a partir e com o nascimento do ser da infância que chamo propriamente de currículo. Destacando que as referidas dimensões vitais (afetiva, sensível, ética, estética, intelectual, psíquica, entre outras) se imbricam e (co)engendram-se, afetando-se mutuamente no movimento em que o currículo se rabisca, no sentido de viabilizar que a infância possa pronunciar-se no próprio ato de aprender.

Dessa forma, no domínio de uma possível pedagogia da brincadeira, traçar currículos implicará sempre tecer um estilo diferencial de relações educadoras nas quais afirmamos a centralidade da infância no fluxo de produção do movimento aprendente.

4 EXPERIÊNCIA E PARTICIPAÇÃO

De um ponto de vista filosófico, entende-se com Deleuze (2006, 2005, 1998, 1988-1989) que, enquanto processo, a infância se desenrola na temporalidade diferencial do devir-criança; ou seja, na irrupção da força criadora do extraordinário que abala o corpo-pensamento.

Nessa perspectiva, a infância, tomada enquanto certa modalidade de intensidade de vida, extrapola a imagem cronológica, contínua e sucessiva do tempo (a infância como etapa da vida), pronunciando-se no tempo-fluxo em que o devir-criança se articula na relação do corpo com a força da diferença, relação esta que instaura a possibilidade de concepção do ato de pensar no pensamento.

Sob tal perspectiva, afirma-se que, no contexto de uma nova e possível pedagogia da brincadeira, a relação entre currículo5 e o processo de aprendizagem necessitará se compor, fundamentalmente, sob o signo da experiência na qual o devir-criança expressa a concepção do ser da infância. Experiência na qual o corpo infante tenta inscrever as intensidades vivenciadas nos encontros com o mundo no plano de um movimento aprendente muito singular.

Dessa forma, podemos tomar o espaço-tempo da experiência da infância como um verdadeiro...

[...] território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece [...] produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos... o sujeito [infante] da experiência é um ponto de chegada, um lugar a que chegam as coisas, como um lugar que recebe o que chega e que, ao receber, lhe dá lugar... [se] a experiência soa como “aquilo que nos acontece, nos sucede...o sujeito [infante] da experiência é sobretudo um espaço [tempo] onde têm lugar os acontecimentos. Em qualquer caso, seja como território de passagem, seja como lugar de chegada ou como espaço [tempo] do acontecer, o sujeito [infante] da experiência se define não [somente] por sua atividade, mas [também] por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial. (LARROSA, 2009, p. 19).

Abrindo-se e articulando-se ao acontecimento do sujeito da experiência, os currículos engendrados na pedagogia da brincadeira se dedicam, sobretudo, à promoção dos encontros nos quais o movimento de constituição do ser da infância possa devir como motor de um ato de educar comprometido, essencialmente, com a possibilidade de nascimento do novo no pensamento (e não exclusivamente com a necessidade de adaptação biológica, psíquica e/ou sociocultural do ser ao meio).

Deste modo, o currículo se traça para criar as condições que viabilizem o acontecimento e a exploração educadora da experiência da infância a partir e por meio do artifício da brincadeira livre, compreendida como plano artístico primordial que o infante desdobra no sentido de efetuar o seu direito político de participação no jogo social de invenção do real.

Por consequência, que a ideia de participação, adequada ao contexto político de uma possível pedagogia e prática curricular da brincadeira, dirá respeito à promoção de processos nos quais a infância possa enunciar-se livremente acerca da experiência afetiva vivenciada nos encontros que o currículo agencia, ou seja, processos nos quais o infante possa atribuir sentidos propriamente infantis à referida experiência, sentidos a partir dos quais o ser no mundo da infância ganha significações singulares.

De forma que tal modalidade de participação (expressão dos afetos experimentados nos encontros brincantes que o currículo engendra entre a infância e o mundo) servirá como plano de composição para processos aprendentes potencialmente inovadores: não determinados por certa necessidade de adaptação6, mas simplesmente por uma vontade de ser, saber e criar imanente às imagens, curiosidades, interrogações produzidas pelo infante no fluxo afetivo dos ditos encontros.

4 CORPO E AFETO

Em face do exposto, faz-se mandatório desenvolver a natureza muito específica do conceito do que estamos a entender aqui por afeto.

O corpo infante encontra-se permanentemente aberto à experimentação dos efeitos provocados sobre ele nos encontros que traça com outros corpos. Parafraseando Deleuze (2002), um corpo pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, um corpo sonoro, uma alma ou uma ideia; pode ser um corpus linguístico, um corpo social e cultural ou uma coletividade, de forma que são essas afecções – isto é, os efeitos de toda espécie produzidos no encontro dos corpos – que designam as modificações intensivas ou sensíveis que o corpo infante experimenta no seu enlace com as coisas mundo.

Seguindo ainda com Deleuze (2002), as referidas afecções se exercem provocando a formação de imagens ou de certas marcas que se inscrevem sobre os corpos envolvidos no acontecimento do encontro. Por consequência, tais imagens ou marcas desencadeiam a produção de ideias primárias, as quais se conformam considerando-se, simultaneamente, tanto a natureza do corpo próprio afetado quanto a natureza do corpo exterior afetante.

Neste plano elementar de concepção do entendimento, pode-se indicar que as ideias formadas das coisas são determinadas pelas afecções experimentadas pelo corpo infante, ou seja, são ideias que se constituem por meio da produção de relações cuja base é essencialmente de natureza afetiva, pois arquitetadas a partir da consideração da natureza do corpo próprio e da natureza do corpo exterior.

Em adição, a ordem das afecções-imagens e das ideias primeiras então formadas passa a determinar o estado atual do corpo-pensamento afetado, implicando a experimentação de um maior ou menor grau de perfeição ou de potência em relação ao estado precedente ao acontecimento do encontro; isto é, o corpo experimenta uma variação para mais (alegria) ou para menos (tristeza) em sua capacidade de ser, ou seja, de agir e pensar.

[...] de um estado a outro, de uma imagem ou ideia a outra, há, portanto, transições, passagens vivenciadas, durações mediante as quais passamos para uma perfeição maior ou menor. Ainda mais, esses estados, essas afecções, imagens ou ideias, não são separáveis da duração que as relaciona ao estado precedente e as induzem ao estado seguinte. Essas durações ou variações contínuas de perfeição [posse de potência] são chamadas afetos. (DELEUZE, 2002, p. 55).

Sob tal ótica, os afetos assumem uma função fundamental na possibilidade de concepção de uma possível pedagogia / prática curricular da brincadeira, uma vez que a busca pela elaboração do entendimento se vincula aqui diferencialmente à ideia de corpo – tomado então sob a perspectiva de sua natureza afetiva (inerente à atividade brincante); isto é, ao corpo pensado enquanto um conjunto de relações interiores-exteriores que se configuraram e reconfiguram em um movimento permanente, conforme a ordem afetiva dos encontros que rabiscam incessantemente entre os corpos.

5 O QUE SIGNIFICA APRENDER

No plano que se procura traçar para o desdobramento de uma possível pedagogia/currículo da brincadeira, a composição do ato de aprender na e com a infância não se limita, em primeira instância, à aquisição de capacidades cognitivas para executar habilidades de resolução de problemas lógicos conformes às tradicionais áreas do conhecimento científico.

Aprender na e com a infância diz respeito, sim, e, primordialmente, a fazer devir e explorar a vontade de saber que força o corpo-pensamento infante a investir em um processo afetivo de busca pela produção da ideia adequada, processo no qual a infância tende a entrar em uma relação criadora/inventiva com as coisas do mundo.

E, a partir daí, fazer com que o infante se detenha e explore as dessemelhanças experienciadas ou as causas sensíveis que desencadearam sua curiosidade, indagações, ideias e imagens primárias.

Isto é, fazer com que o infante se detenha e explore o entre espaço-tempo em que a dessemelhança experimentada no encontro desterritorializa seu corpo-pensamento, forçando-o a buscar pela formação de uma ideia primeira como forma de reterritorializar-se: selecionar no caos do não saber um conjunto mínimo de pontos fulgurantes e traçar com esses pontos as ditas relações ou ideias primárias.

Todo esforço educador parte daqui. Vejamos mais um pouco sobre como isso funciona.

6 DOS AFETOS À BUSCA PELA NOÇÃO COMUM

De modo fundamental, defendeu-se até aqui que é a partir da vivência de um afeto-sensação que o infante pode experimentar um estilo intensivo de aprendizagem, conforme o fluxo de um tempo-movimento microcurricular no qual o corpo aprendente se concebe e expressa-se, simultaneamente, como causa e efeito de um puro afeto de alegria.

De maneira mais específica, compreende-se o afeto-sensação como uma experiência causada no fluxo do acontecimento do encontro do corpo infante com as forças informes do mundo. A natureza de tal afeto diz respeito à condição de sentir diretamente no sistema nervoso o efeito da diferença que se faz passar entre os corpos envolvidos no encontro: um desnível qualitativo que abala a sensibilidade a partir das intensidades violentas que os signos emitidos por outrem nos forçam a experimentar, segundo a percepção de sentidos inconclusos acerca da natureza do seu corpo.

É, portanto, o afeto-sensação que qualitativamente impõe ao corpo a dita vontade de saber: desejar-pensar-compor-enunciar uma ideia/imagem possível...

A sensação é o contrário do fácil ou do já feito, do clichê, mas também o contrário do “sensacional”, do espontâneo.... A sensação tem uma face voltada para o sujeito (o sistema nervoso, o movimento vital, o “instinto”, o “temperamento”, todo um vocabulário comum ao naturalista...), e a outra face voltada para o objeto (o “fato”, o lugar, o acontecimento). Ela pode também não ter face nenhuma, ser as duas coisas indissoluvelmente, ser o estar-no-mundo como dizem os fenomenologistas: por sua vez eu me torno na sensação e alguma coisa me acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro... a sensação é aquilo que transmite diretamente, evidenciando o desvio ou o desgosto de uma história a ser contada... (DELEUZE, 1981, p. 19).

Assim, a diferença vivenciada pelo corpo infante a partir da experimentação de um afeto-sensação, conforme uma causa qualitativa, intensa e múltipla (pré-consciente, pré-linguística e pré-individual), funciona como uma espécie de descarga elétrica que incita os neurônios do sistema nervoso central a acolherem e retransmitirem quimicamente os sinais ou impulsos nervosos gerados pelo abalo que então percorre o corpo-pensamento.

Forçado assim a acolher e explorar a diferença que se manifesta no encontro a partir dos signos emitidos pelo corpo de outrem, o corpo próprio procurará saber que relações podem ou não se constituir entre os corpos, ou, em outras palavras, como constituir com o corpo de outrem a ideia de uma noção comum apta a viabilizar a possiblidade de que o encontro se configure como uma alegria.

Entendendo-se que...

[...] Quando as relações que correspondem a dois corpos se compõem, os dois [...] formam um conjunto de potência superior, um todo presente nas suas partes [...] [Assim] a noção comum é [...] uma composição entre dois ou vários corpos e [...] [mais profundamente a] unidade dessa composição [...] ela exprime as relações de conveniência [...] dos corpos existentes [...] com efeito, ao [manifestar] uma unidade de composição, elas estão tanto na parte como no todo e não podem ser concebidas senão adequadamente [...] quando encontramos um corpo que convém com o nosso, experimentamos logo um afeto ou um sentimento de alegria-paixão, apesar de ainda não conhecermos adequadamente o que tem de comum conosco. Jamais a tristeza, que nasce do nosso encontro com um corpo que não convém com o nosso, nos induziria a formar uma noção comum; mas a alegria-paixão, como aumento da potência de agir e de compreender, induz-nos a fazê-lo: é a causa ocasional da noção comum. (DELEUZE, 2002, p. 98-102).

Deste modo, os afetos-sensação experimentados nos encontros da infância com o mundo desencadeiam uma espécie de circuito dinâmico-cinético entre desejo e pensamento infante: o corpo mobilizará todas as suas forças, toda a sua potencialidade de ser (agir-pensar), em função da necessidade de engendrar uma ordem relacional capaz de articular ou tecer na ideia um sentido possível e suficiente para os componentes simbólicos-intensivos-afetivos experimentados no encontro.

É verdadeiro que, no contexto de uma pedagogia da brincadeira, a quantidade da potência de entendimento do corpo infante se manifestará segundo sua maior ou menor capacidade de ser afetado; e que, nestes termos, o corpo aprendente se constituirá a partir de determinações de ordem essencialmente intensiva, afetiva e sensível.

Seguindo Deleuze (2006, p. 239), pode-se asseverar que, no caminho que leva ao que existe para ser pensado, tudo parte da sensibilidade. E, nesta perspectiva, move-se entre o desejo e o pensamento em função da necessidade de participação imanente ao ser da infância.

7 ARREMATES PARCIAIS

Produzir currículos a partir de e com a experiência da infância implica, portanto, decidir-se por tentar engendrar relações de composição entre processos e componentes educativos inabituais e insólitos, usualmente estranhos ao contexto de uma educação e de um currículo escolar formalmente instituídos. Ou seja, implica em aprender a lidar com os estilos inusitados por meio dos quais o devir do ser da infância se articula diferencialmente no tempo e espaço nos encontros com as coisas do mundo.

Contudo, isso não significa que estaremos totalmente imersos em uma desordem intratável para tecer tais currículos e práticas educadoras. Compreende-se que, no contexto complexo de tais currículos-práticas (ético, estético, político), é primordial que se promovam encontros significativos. Isto é, encontros aptos a abrir um espaço-tempo de participação a partir do qual o infante poderá produzir/atribuir sentidos propriamente infantis à experiência afetiva do encontro em função da diferença que percorre seu corpo-pensamento, fazendo-o passar qualitativamente de uma intensidade sensível a outra.

É a experimentação dessa variação sensível, qualitativa e intensiva pelo corpo infante que poderá produzir um aumento e/ou uma diminuição da sua potência vital de ser, pensar e agir; noutro termo, um afeto.

Por consequência, será sempre a experimentação de um afeto de alegria (aumento da potência vital do corpo infante) que, com mais força, poderá se configurar como disparador de uma vontade de saber capaz de desencadear a busca pela enunciação de um sentido propriamente infantil para a experiência vivenciada.

De maneira que tal vontade de saber/desejo de enunciação se que afirmará então como causa essencial do esforço primário (sensível-memorial-imaginativo-intelectual) que o corpo infante comete para aprender, ou seja, para engendrar uma ideia apta a expressar a singularidade da experiência em curso.

Suscitado por uma vontade de saber/desejo de enunciação que irrompe diante do constrangimento de não saber/incapacidade de pensar imposto pela violência dos signos emitidos por outrem, o esforço para produzir a ideia no pensamento brota conforme um processo de busca conformado pelo exercício discordante que então se instaura entre as faculdades (sensibilidade, memória, imaginação, intelecto). Exercício este que funciona como uma verdadeira

[...] cadeia de força e pavio de pólvora, em que cada uma [das faculdades] enfrenta seu [próprio] limite e só recebe e comunica (ou só comunica à outra) uma violência que a coloca em face [do alcance] de seu elemento próprio. (DELEUZE, 2006, p 233).

É justamente para disparar, cultivar e explorar essa busca ou esforço por aprender (conceber uma ideia progressivamente mais adequada) que uma pedagogia da brincadeira e, correlativamente, os currículos da educação infantil podem se traçar conforme uma relação de composição com o ser da infância no plano de imanência da brincadeira livre.

2A gnosiologia é o campo da filosofia dedicado à compreensão da natureza das causas e dos processos que tornam possível o ato de conhecer tomado enquanto experiência humana.

3Avalia-se que as teorias da aprendizagem (a partir de estudos sempre muito específicos e, naturalmente, parciais) determinam noções estritas sobre o que significa aprender para, em seguida, erigirem uma espécie de função cujos termos relacionam as normas gerais sob as quais tais noções podem se efetuar... abrindo caminho para que a pedagogia edifique seus preceitos didático-metodológicos.

4A mundanidade é um conceito de natureza ontológica que expressa o esboço dos acontecimentos cotidianos constitutivos de ser-no-mundo (Dasein). O conceito aponta para um mundo, em certa dimensão, desde sempre “já descoberto pelo humano vivente, ressaltando que... A construção do mundo cotidiano das ocupações não é cega, mas guiada por uma visão de conjunto, a circunvisão, que abarca o material, o usuário, o uso, a obra, em todas as suas ordens” (HEIDEGGER, 2002, p. 314). De forma que esta circunvisão caracteriza uma espécie de engajamento anterior e instintivo que preexiste na relação do Dasein com o mundo, configurando-se como um estilo de compreensão, de certa forma objetivo e imediato do real. Nestes termos, a mundanidade do mundo se relaciona diretamente com a cotidianidade, isto é, com as circunstâncias em que as noções habituais ou cotidianas de mundo e da vida são concebidas. De modo que a mundanidade do mundo precede qualquer noção instituída de mundo.

5Sob tal perspectiva, o currículo se caracteriza como processo ou movimento afetivo que se traça entre os corpos no nível de produção das relações educadoras, isto é, movimento/processo em que o sentido do ato de aprender-ensinar se constitui sob o impulso da força da diferença. Configurado sob tal plano, o currículo alcança sua dimensão micropolítica.

6Ainda que tal consequência possa derivar-se, em segundo plano, no movimento aprendente.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Maria Carmen Silveira. Pedagogia da infância. In: OLIVEIRA, D. A.; DUARTE, A. M.C.; VIEIRA, L. M. F. Dicionário: trabalho, profissão e condição docente. Belo Horizonte: UFMG/Faculdade de Educação, 2010. [CD-ROM]. [ Links ]

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Recebido: 10 de Setembro de 2021; Aceito: 17 de Setembro de 2021

Sammy Lopes: Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor do Departamento de Estudos da Infância da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail:samwlopes@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-6017-5844

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