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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.26 no.58 Campo Grande set./dic 2021  Epub 28-Feb-2022

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v26i58.1606 

Dossiê: Currículo, resistência e criação com as artes

Devir estético da docência da educação infantil

Becoming aesthetic of early childhood teaching

Devenir estético de la enseñanza de la educatión infantil

Ana Paula Holzmeister1 
http://orcid.org/0000-0002-7210-5501

Camilla Vazzoler Gonçalves2 
http://orcid.org/0000-0003-2659-1374

1Universidade Vila Velha (UVV), Vila Velha, Espírito Santo, Brasil.

2Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, Espírito Santo, Brasil.


Resumo

Objetiva discutir a produção estética de um currículo acontecimento nos processos de aprendizagens instauradas por professoras da educação infantil pública desejantes, os quais promovem açõespensamentosdesejos curriculares mediante uma abordagem sofisticada do simples. Modos de expressão que emergem de um cuidadoso trabalho de pesquisa e criação docente que busca romper com a centralidade da criança no processo educativo, destacando a constituição de blocos de devires na produção curricular por efeito da produção de um estilo de inscrição estética que envolve o encontro educativo. Opera-se metodologicamente com a cartografia, desenhando um traçado desejante dos percursos intensivos e extensivos de um corpo infantil que, por força dos signos, impulsiona o pensamento pedagógico das infâncias a se lançar às aventuras do fora acompanhadas por Carvalho, Corazza e Deleuze. Pesquisa-intervenção que, utilizando-se da criação de imagens não recognitivas, introduz um ponto de inflexão nas práticas pedagógicas, criando processos inventivos em tomadas de cenas, as quais, por enquadramentos singulares e diferenciais, narram a descontinuidade da produção curricular com as infâncias, fabulando mundos outros. Evidenciam-se outras montagens, arranjos, imagens menores e descontínuas que estão a forjar um intenso movimento micropolítico pelas forças da docência em devir, imagens que convidam a lançar-se ao fora e estranhar-se em um processo de produção de si na perspectiva ético-estético e política.

Palavras-chave: docência; estética; educação infantil

Abstract

It aims to discuss the aesthetic production of a curriculum happening in the learning processes established by desiring public early childhood education teachers, who promote curricular actions-thought-desires through a sophisticated approach to the simple. Modes of expression that emerge from a careful work of research and teacher creation that seeks to break with thecentrality of thechild in the educational process, highlighting the constitution of blocks of becomings in curriculum production due to the production of an aesthetic inscription style that involves the encounter educational. It works methodologically with cartography, drawing a desiring trace of the intensive and extensive paths of a child’s body that, by force of signs, drives the pedagogical thinking of childhood to launch out into adventures from the outside accompanied by Carvalho, Corazza, and Deleuze. Research-intervention that, using the creation of non-recognitive images, introduces an inflection point in pedagogical practices, creating inventive processes in scene shots, which, by unique and differential framing, narrate the discontinuity of curriculum production with childhoods fabulating other worlds. Other montages, arrangements, smaller and discontinuous images are evident, which are forging an intense micropolitical movement by the forces of teaching in becoming, images that invite to launch oneself outside and find oneself strange in a process of production of oneself in perspective ethical-aesthetic and political.

Keywords: teaching; aesthetics; childhood education

Resumen

Tiene como objetivo discutir la producción estética de un currículo sucediendo en los procesos de aprendizaje establecidos por los maestros de educación infantil públicos deseosos, quienes promueven acciones pensadas en accionespensamientosdeseos curriculares a través de un enfoque sofisticado de lo simple. Modos de expresión que surgen de un cuidadoso trabajo de investigación y creación docente que busca romper con la centralidad del nino en el proceso educativo, destacando la constitución de bloques de devenires en la producción curricular debido a la producción de un estilo de inscripción estético que involucra el encuentro educativo. Trabaja metodológicamente con la cartografia, trazando una huella deseosa de los recorridos intensivos y extensos del cuerpo de un nino que, a fuerza de signos, impulsa el pensamiento pedagógico de la infancia a lanzarse a aventuras desde el exterior acompañado de Carvalho, Corazza y Deleuze. nvestigación-intervención que, a partir de la creación de imágenes no reconocibles, introduce un punto de inflexión en las prácticas pedagógicas, creando procesos inventivos en tomas de escena, los cuales, mediante encuadres únicos y diferenciales, narran la discontinuidad de la producción curricular con las niheces fabulando otros mundos. Se evidencian otros montajes, arreglos, imágenes más pequenas y discontinuas que están forjando un intenso movimiento micropolítico por las fuerzas de la ensehanza en el devenir, imágenes que invitan a lanzarse ai exterior y encontrar extrahas en un proceso de producción de uno mismo en perspectiva éticoestética y política.

Palabras clave: docencia; estética; educación infantil

1 LINHAS QUE ATRAVESSAM O DEVIR ESTÉTICO DA DOCÊNCIA DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Esta escrita parte de uma pesquisa desenvolvida com professoras de três unidades de educação infantil de Vitória, ES, orientada pela ideia de cartografar as imagens disformes que a docência está a criar nas relações de produções rascunhadas na criação de currículos imanentes na educação pública de Vitória. Busca acompanhar as linhas desejantes que se bifurcam em práticas pedagógicas imprevisíveis, sempre atravessadas por outras linhas de vida que as interrogam.

Procura, por meio da produção de imagens díspares, trazer à visibilidade um investimento docente no simples3, mediante um exercício complexo do pensamento docente4, operando em um esforço para desaprender o dado e imprimindo uma liberdade nos pensamentosações engendrados nos modos diferenciais de habitar as escolas no exercício do infantil5.

Busca despir-se de si para encontrar outros modos de praticar a docência, em que as formalizações atuais estão a adoecer o magistério. Busca desaprender as formas idealizadas de atuar e de idealizar os estudantes, para aprender a viver e encontrar. Encontrar no ato de criação um sentido outro para o encontro educativo com as crianças pequenas, destacando que, nessa perspectiva estética, a formulação de uma atuação diferencial na docência é sempre um ato político (FREIRE, 2011). Uma atitude de afirmação da vida e o compromisso ético com a participação na ampliação das aprendizagens de todas as crianças da escola pública, não como promessas de futuro, mas como corpos intensivos que, em suas práticas de infâncias, podem alavancar um corpo mais amplo em composição a graus mais ampliados de entendimentos das causas que nos alegram, mantêm-nos desejantes de vida e nos fazem mais fortes e plenos na atualidade.

Dizemos participação porque, para nós, a atuação docente, como ato de dramatizar uma aula (CORAZZA, 2013), acontece na tabulação de imagens signos que interroguem as ideias/narrativas dogmáticas do pensamento. Ideiasimagens-signos diferenciais que podem afetar os corpos aprendentes envolvidos e implicados, constituindo uma composição intensiva que instaura, por meio de um processo investigativo comum, um percurso de aprendizagem.

Trata-se de modos que se orientam por uma produção de conhecimento que ocorre no agenciamento coletivo de enunciação, no qual as conexões se vão estabelecendo em meio ao acaso do encontro com os signos artísticos: signos que, em sua complexidade, problematizam modos habituais de aprender, exigindo o traçado de linhas de aprendizagens diferenciais; conexões rizomáticas que ligam elementos de campos distintos em uma atuação disruptiva à produção de outros regimes de significância, outros modos de pensar, viver, criar, amar e, ainda, praticar infâncias.

Se antes as linhas tecidas com os ornamentos de rococós pedagógicos nos encantavam, brilhos nos EVA, tintas relevos e purpurinas destacavam as imagens dogmáticas de infância representadas nos móbiles, murais com muitas imagens padronizadas, calendários de aniversários ou chamadinhas que, em seu conjunto, criavam uma perspectiva de tentativa de controle do fluxo vital por meio da efetuação de uma rotina, hoje, sobre uma roupagem neoescolanovista, potencializada por certa leitura das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, entorpecemo-nos, por vezes, por imagens de práticas inovadoras.

São práticas que criam espoçostempos de aprendizagem diferenciais, utilizam materiais orgânicos e outros materiais de descarte na produção local, em que as crianças são convidadas a expressar as ideias que constroem em suas pesquisas em suportes amplos (e de forma singular), criam outros elementos de produção in loco (de forma artesanal), o que lhes confere um compromisso interessante com os modos de produção singulares das infâncias e com a perspectiva da sustentabilidade, que ainda é muito centrada na ideia da pesquisa realizada por um sujeito-criança autocentrado, que produz cultura, mas pouco interroga as relações de produção capitalista, desiguais que se agravam a cada vez.

Manifestações de práticas em educação infantil também afirmam o simples por meio de elementos importantíssimos que têm nos ajudado a pensar, entre os quais se destacam a escuta (que não se restringe à audição), a leitura de um gesto ou postura (que não se restringe à visão), um aroma que é sentido com todo o corpo para além do olfato, mas que, por outra linha, aprisionam os docentes em roupagens metodológicas enquadradas nesses mesmos elementos, mais ou menos padronizadas pelo referido discursivo de fidelidade ao original que o sustentam, no qual os professores e as professoras atuam como mediadores da pesquisa das crianças, distanciando-os da potência do infantil.

Com Corazza e Monteiro (2020, p. 72-3), argumenta-se em circunstância do infantil que

A infância, como criação moderna, não se confunde com o infantil. O infantil em Freud não é da ordem do clichê da “criança sempre viva em nós”. Como quanta de força, infantil é o anúncio do adiamento de que haverá uma suposta idade da maturidade – conjugação do tempo fisiológico com desenvolvimento psicológico. Zaratustra discursa, não com metáfora: “No verdadeiro homem há uma criança escondida, que quer brincar.” (NIETZSCHE, 2011, Das velhas e novas mulherezinhas, ePub). Deleuze interpreta como segmento da vida, junto com “habitar, circular, trabalhar” (DELEUZE, 2012, p. 92) e como aquele que faz “aquilo que o homem superior não sabe: rir, brincar, dançar, isto é, afirmar”. (DELEUZE, 1997, p. 117).

Outra linha de extensão e intensidade nos movimentos de produção curricular em educação infantil traça linhas de fuga para que o infantil tanto escape dos limites do conceito de criança como sujeito de direitos e produtor de cultura quanto rache com o conceito de mediação pedagógica na qual os professores e as professoras possam escapar das amarras limitantes da mediação. Somos envolvidos por um corpo intensivo composto pelo atravessamento da diferença, o qual produz oscilações na centralidade da criança no processo de aprendizagem e aposta em um corpo aprendente mais amplo em devir: corpo aprendente que se articula na composição de corpos, meios e suas intensidades, que, no encontro educativo, produzem um comum; comunidade desejante que, ao investir na conversa como elemento crucial de um agenciamento de enunciação, prepara-se em ato para o acontecimento da aula (já em curso), por efeito dos signos sonoros emitidos nesse encontro.

Assim, o investimento se insere na conversa como potência do encontro, o qual, por meio da fabulação, mobiliza muitos corpos a buscar a produção de pontos de convergência em meio a divergências impostas pelos diferentes graus de intensidades que compõem cada corpo em suas relações de velocidades e lentidões próprias, ou seja, seus ritmos. Corpos que buscam criar uma vibração comum entre diferentes ritmos, capaz de fazer passar uma ideia de uma aula (inventada, fabricada, no acontecimento fugidio do instante). Asimplicidade de uma conversa aparentemente despretensiosa lança-nos à composição entre elementos díspares, que, nas vibrações das palavras, gestos e silêncios, criam uma sintonia-ideia-signo.

Movimento que consiste em uma sintonia-ideia-força-signo engendrada por um corpo em composição que não pertence a mais ninguém, rompendo com qualquer centralidade do sujeito produzida no encontro pelo fluxo incontrolável de uma conversa e os inúmeros questionamentos que partem de cá, de lá, de qualquer lugar, ou mesmo de um grunhido ou um silêncio ensurdecedor.

Constitui uma produção de signos de artes que se expressa nas imagens deformadas que exigem do pensamento um pensar para além dos limites das racionalidades desenvolvimentistas que sempre caracterizaram o trabalho na educação infantil. Práticas que se configuram em traduções docentes que buscam introduzir um ponto de inflexão nos discursos sobre o trabalho com as infâncias, por meio do uso paradoxal da linguagem.

1.1 Imagens disformes: a emergência de uma aula

Ao abordarmos a aula como um encontro intensivo entre os corpos, aberto às diferenças que possam ser produzidas por força das vibrações dos corpos, não tratamos aqui de um espontaneísmo ou improviso, embora haja mesmo um improviso na aula, o qual não nasce de uma ação produzida ao acaso, mas de um cuidadoso preparo para esse encontro-aula-acontecimento. Um longo preparo que nos permite, no instante do encontro com o signo, criar um sentido inédito para a aula. Assim, preparamo-nos para o encontro com as forças diferenciais, com as franjas soltas que se conectem às outras aberturas desejantes, instaurando um campo problemático no qual a aula se desdobra.

O planejamento assume um esforço de pesquisa e ampliação do repertório no campo das ciências, artes e filosofia, para que a docência no encontro com a diferença produza signos artísticos capazes de instaurar um choque, uma violência que força o pensamento a acessar o fora. A atividade6 docente não passa mais por elaborar projetos de trabalho e sequências didáticas para as crianças seguirem, nem mesmo criar formas de acessar, de modo criativo, os conhecimentos acumulados em suas fragmentações artificialmente produzidas, mas praticar múltiplas linguagens, as quais operam por divergência, sobreposição, paradoxos, capazes de produzir imagens que convidem ao encontro. Planejamento aberto às conexões que sejam articuladas no encontro com as crianças na exploração dos meios. Não se caracteriza mais um registro burocrático com uma lista de conteúdos e/ ou objetivos, ou de habilidades e competências como propõe a Base Nacional Curricular Comum naqueles restritos campos de experiências, predeterminados.

Opera-se com princípios pedagógicos, articulados com temáticas de estudos amplas que emergem do arrombamento provocado pelos signos nos encontros entre professoras e crianças. Uma sofisticada costura de ideias-forças que vão emergindo por força de práticas de linguagens que nos lançam ao FORA. Perspectiva rizomática, que vai fazendo conexões inusitadas no próprio movimento de produção, engendradas no encontro-acontecimento-aula.

Esse desenho estético de uma preparação cuidadosa e permanente busca puxar os fios que tecem as linhas de fuga que se desdobram configurando o mosaico não convergente da aula que sofrerá desvios e rupturas pelas forças da vontade de liberdade.

Como docentes que criam suas aulas, trabalhamos em direção ao seu secreto poético, de maneira que, mesmo que lhe atribuamos aparência de similaridade com o original, procedemos a uma mudança de timbre, na maneira de apresentá-la e deslocá-la, sem descaracterizá-la. Logo, somos mais do que intermediadores, pois, na prática de liberdade de recriação dos originais, velamos para que não percam a sua luminosidade de criação. Como autores-operadores, zelamos pela pervivência (Fortleben) não somente das matérias traduzidas, para além da época de sua produção, em que são relevantes (CAMPOS, 2013); bem como implicamos a nossa própria pervivência, ultrapassando a docência que garante a sobrevivência. (CORAZZA; MONTEIRO, 2020, p. 76).

Assim, uma aula passa a ser fabulada nas enunciações infantis que problematizam o vivido com diversas questões, ideias, falas, imagens inventadas que circulam na roda e se estendem para além-aquém do círculo, estendendo-se ainda em franjas que nos levam a comunicar com imagens que pulsam entre as palavras, olhares, expressões, surpresas, suspenses, espantos e curiosidades. Esses movimentos criam um campo de vibração em que a ideia ganha uma forma disforme e vai envolvendo os corpos. Assim, uma linha vai puxando outra linha e outras tantas se embolam em torno delas, levando-nos a uma experiência docente que não tem começo, meio ou fim, apenas fluxo desejante passando por entre uma ou outra formalização que lá também está.

Enquanto os lírios esticam a noite, os passarinhos vêm à janela a cantar e nos convidam a delirar o verbo. Uma linha nos envolve e nos leva ao Cerrado. Encontramos com a melancolia de Bernardo e nos pomos a traduzir esse signo melancólico que toma conta do nosso corpo. Bernardo chegou assim intempestivamente, não sabemos bem de onde, talvez trazido pelo canto de um aracuã?! O certo é que sua chegada mobilizou todo nosso corpo a pensar. Pensar no afeto experimentado no corpo pela introdução das linhas sonoras que passaram por entre as palavras. Foi paixão à primeira vista. Todos os dias, de alguma forma, ele está por ali. Por vezes, indagamos:

Ele morreu?

Está no céu ?

Está voando ?

Entre uma intensidade de uma alaranjado do amanhecer, ele nos convida a pensar sobre a vida, a amizade, a poesia, fazendo-nos discutir sobre o canto dos passarinhos, sobre o desejo de liberdade, conversas que fazem pensar os aprisionamentos da vida, o desejo de possuir o outro e as potências dos guardiões e guardiãs da vida. Aqui a ideia do feminino também ganha um protagonismo no cuidado com o germe da vida guardado em cada semente.

O que estamos a cultivar? Como apreciar a vida, agenciar a liberdade dos pássaros, mantendo-os livres? Como liberar a escrita do estudo mecanizado do alfabeto e suas junções?

Tudo isso se configura como um rizoma das potências do pensamento que não cabem nas determinações de um currículo comum.

1.2 A complexidade do simples: um olhar paradoxal sobre a criação docente

Escrevemos em nome de uma docência menor – uma docência que faz passar sutilmente uma transformação micropolítica. Arquitetada para fazer fluir pensamentos-desejos de uma produção inventiva outra nos contextos da educação infantil. Uma produção de ideias-conceitos que portam uma desconcertante simplicidade capaz de passar despercebido por forças que querem capturar o desejo de se diferenciar em educação.

São conceitos simples que fazem passar uma conexão/tradução entre a linguagem rudimentar infantil aos rebuscados conceitos científicos e filosóficos, experimentando-os estilisticamente de forma singela; conceitos que, quando desmembrados, apresentam a complexidade daquilo que é tecido em meio a linhas de vida que os atravessam, fazendo emergir um platô intensivo capaz de criar um meio problematizador. Questões inquietantes, como as perguntas que só as crianças conseguem formular, fazendo tremer os processos educativos obcecados por controlar os corpos em infinitos processos de assujeitamento do outro.

De tão simples, essas ideias-conceitos, muitas vezes, são associadas a imagens clichês de cenas de uma educação infantil maior. Contudo, enquanto uma maquinaria de guerra, o que essas ideias-conceitos põem para funcionar suscita um sofisticado jogo linguístico que opera por efeitos paradoxais, extraindo do simples a complexidade de um pensamentodesejo que quer se liberar das formas e operar no campo da gestualidade inquietante de um corpo em transformação.

Criam-se, então, signos capazes de afetar os corpos e convocá-los a uma composição de um corpo em devir que quer somente expandir-se. Assim, em outra feita, uma simples manipulação com peças de lego vai remontando a lógica do funcionamento binário da linguagem tecnológica, de modo a ligar os corpos a uma relação diferencial com os elementos da tecnologia capazes de promover um encontro inusitado entre um robô e o voo de uma abelha. Em meio aos atravessamentos que ocorrem entre o robô e a abelha, já não podemos discernir onde acaba o corpo do robô e começa o corpo da abelha, ou onde habita esse encontro entre ambos que ora se passa nas grandes plantações borrifadas por agrotóxicos que, pela força dos ventos, encontram um belo jardim florido, no qual as abelhas são levadas à morte, mas sobrevivem no encontro com a mesma tecnologia que estava a envenená-las. É um corpo que ora compõe produzindo alegria, ora decompõe produzindo tristeza, exigindo a produção de um conhecimento das causas que nos fazem desejar expandir os corpos infantis.

São imagens arquitetadas porfabulações infantis quefazem nascer, em meio à produção curricular da educação infantil, um cenário imagético diferencial, em que a abelha se agencia ao robô, o robô se multiplica em tantos outros, capazes de fazer passar, entre a inteligência artificial, um corpo pulsante por vida. Nessa cena, os personagens vão ganhando corpo para fazer passar os sentidos elaborados por um corpo em devir.

Assim, no terreno rústico de um quintal das abelhas, o infantil faz nascer uma experiência diferencial de si, que articula arte, tecnologia, linguagem, pensamento e desejo às forças de um corpo que busca por assumir o controle sobre a autoria e a criação em uma relação diferenciada, escapando do simples consumo de equipamentos, aplicativos ou plataformas virtuais, mas também do consumo de obras ou técnicas de arte.

Faz nascer, no currículo da educação infantil, uma problematização sobre o uso de agrotóxico na agricultura, alimentação saudável, agricultura familiar, inteligência artificial, tecnologia, extermínio de abelhas, sobrevivência do manguezal, cultura pesqueira no litoral capixaba, entre outros temas na exploração poética e intensiva dos quintais da cidade.

Contudo, de tanto rodeamos no limiar das fronteiras do vivido entre a vitalidade do corpo e a tecnologia, fomos lançados, por ação de um contágio virai mundial (ou pandêmico), para dentro das telas de computadores e celulares. Como em uma cena de De Volta para o Futuro, fomos tragados pela tecnologia e extraídos do encontro sensível com os corpos.

Ao resgatarmos o encontro sensível com as mãos cavando a terra, os pés correndo pelas areias e tocando a água salgada do mar, encontrando o perfume de um bolo assado no fogão de lenha que nem sequer foi aceso, vibramos no trepidar das chamas da vida, fazendo emergir um modo de relação com os corpos infantis que envolvem um cuidado ético com os diferentes ritmos intensivos e potências de aprendizagem.

Desse modo, um corpo que se expressa frequentemente por um ritmo acelerado de ser e estar no mundo busca, no encontro sensível com a terra, a exploração atenta desse meio, solicitando a ampliação dos espaçostempos de contato com a organicidade da vida. Desenha mapas intensivos e extensivos pela desaceleração de suas partículas, buscando, no movimento estático, uma composição mais favorável.

São instantes que, prolongados ao máximo pelo desejo de busca por um equilíbrio rítmico, problematizam as normatizações pedagógicas de que um corpo em aceleração buscaria meios para “gastar sua energia”, quer pelo futebol, judô, quer por qualquer outra atividade física de gasto energético extremo. Nesses encontros, notamos que a frequência rítmica de um corpo acelerado pode se potencializar no encontro com as vibrações íntimas com a organicidade da terra.

Com Carvalho, Roseiro e Lourenço (2020, p. 110), apostamos,

[...] na necessidade de abertura para o aprender e o ensinar na perspectiva do pensamento em movimento, considerando que, para que alunos e professores produzam as suas aprendizagens sem medo, eles necessitam que sejam oportunizados “encontros” de ideias, espaçostempos para capturádas e afetos que potencializem modos coletivos de se constituírem como aprendentes no plano cotidiano de imanência da vida.

A simples cena de um corpo a brincar no quintal da vovó, corpos infantis a correr na praia ou de crianças manipulando peças de encaixe não deixa ver os processos de pensamentodesejo desdobrados em meio ao traçado dos mapas desejantes, de modo que um olhar desatento pode considerar aquela cena corriqueira como a repetição de tantas outras cenas vivenciadas.

Onde estariam, então, as diferenciações presentes em um pensamento docência que pesquisa e cria em meio aos processos de produção curricular de uma escola de educação infantil? Por quais elementos se compõem essas criações? De que experiência estética estamos falando?

2 A SOFISTICAÇÃO DO SIMPLES: CONVERSAÇÕES

Uma produção curricular como acontecimento do sentido deixa ver a criação de um estilo traçado por um infantil que escapa das determinações e delimitações de um sujeito autocentrado para atingir um impessoal. Vetor de passagem de experimentações docentes que não dizem respeito a nada, além do que criar um estilo de inscrição de si-mundo. Para tanto, fala-se o dialeto infantil, aquela linguagem que tem o poder de expressar as forças de um mundo em transformação.

Objetivando fazer passar o desejo de inventar linhas de vida possíveis, de abrir à vida novas possibilidades. Imagens de vida que nascem e trafegam por entre palavras que não querem representar nada, mas fazer passar por entre imagens inusitadas, vidas que escapam do dogmatismo pedagógico. Condição de criar vida, fazer a vida passar...

Escrever com as forças de um corpo em devir. Escreve com as linhas infinitas de uma vida possível. Abertura ao ilimitado ou ao infinito da vida possível, iberta da finitude da vida pessoal. A arte, diz ele, consiste sempre em “passar pelo finito para reencontrar, restituir o infinito”. De modo a explorar na docência as dimensões possíveis da existência, fora do eu. Sentir outro em uma série singular das sensações não pessoais. Com Deleuze, “partir, evadir-se, traçar uma linha” de fuga, sem que isso signifique fugir da vida mas, ao invés, fazer a vida fugir, escapar às suas limitações impostas quer pelo eu quer pelo estado presente do mundo. Traçar linhas de fuga não pessoais pela necessidade da emergência de um agenciamento coletivo de enunciação. Parte-se, portanto, de sensações e percepções do mundo vivido, para operar travessias, extraindo do vivido, sensações inéditas e dar novos sentidos... Busca-se extrair da vida vivida linhas e bifurcações capazes de nos remeter ao ilimitado e imprevisível. Não mais uma narrativa de si, mas universos possíveis que emergem da bifurcação das linhas de fuga. Como dizia de si Rimbaud, alguém com “olhos que transbordam de visões”. (DIAS, 2007, p. 278).

Desse modo, o corpo docente busca experimentar a linguagem de forma intensa. Ao traduzir o infantil em seus exercícios docentes, experimenta, no encontro com as crianças, o uso da linguagem de forma intensa e demasiadamente simples; simples e paradoxalmente sofisticada. A sofisticação põe-se nas ligações inusitadas que criam, nas passagens transversais entre os campos, restaurando um jogo diferencial do sentido, não mais uma linguagem aprisionada às relações entre os significados e significantes, mas um exercício poético de criar uma atmosfera problematizadora, conduzida por toda uma gestualidade que não se restringe a atos de fala, mas que também os implica. Desafia-se a comunicar o incomunicável, de modo a fazer passar todos os campos de resolubilidades que possam ser postos em jogo durante uma conversa.

Notamos uma inflexão gramatical no uso da linguagem que não quer mais descrever, mas fazer o verbo delirar, de modo a criar uma atmosfera propícia à criação de relações de produções abertas ao acontecimento, fazendo nascer sentidos outros.

Assim, a aula acontece em meio e por efeito dessa atmosfera problematizadora que cria a condição de deslizar entre os enunciados do infantil, tecendo, por conexões díspares, um percurso aprendente. Faz passar elementos do campo da ciência, atravessa experimentações corporais e estéticas, criando possíveis para nascimentos outros, de modo que uma aula na educação infantil por uma espontaneidade e uma presença viva do docente atue favorecendo a articulação entre os elementos que vão sendo postos no jogo do currículo.

3Simples: introdução de movimentos horizontalizados nas relações de produção educativas que fazem fluir de forma livre, tranquila, explorando um tempo intensivo e imagens que emergem de forma natural nos processos de criação de uma prática pedagógica no próprio fluxo do movimento desejante da vida.

4Complexo: pensamento docente diferencial que emerge das relações divergentes entre as faculdades mentais. Divergência que produz uma força no pensamento que se vê impulsionado a criar outras relações de sentido para o acontecimento da aula.

5Infantil (Corazza).

6Atividade como uma ação do pensamento que busca compreender as causas que produzem alegria corpórea, ampliando a condição de pensar e agir na docência. Busca do entendimento e da superação das paixões para alçar o conhecimento do terceiro gênero em Spinoza.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Janete Magalhães; LOURENÇO, Suzany Goulart.; ROSEIRO, Steferson Zanoni. Por docências não dogmáticas e existências não mínimas nos cotidianos escolares. In: CARVALHO, Janete Magalhães; SILVA, Sandra Kretli; DELBONI, Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera (Org.). Currículo e estética da arte de educar. Curitiba: CRV, 2020. [ Links ]

CORAZZA Sandra Mara; MONTEIRO, Silas Borges. Transcriação de signos: infantil, aula, docência. In: CARVALHO, Janete Magalhães; SILVA, Sandra Kretli; DELBONI Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera (Org.). Currículo e estética da arte de educar. Curitiba: CRV, 2020. [ Links ]

CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação. Porto Alegre, RS: Editora LJFRGS/ DOISA, 2013. [ Links ]

DIAS, Sousa. Partir, evadir-se, traçar uma linha: Deleuze e a literatura. Educação, v. 30, n.62, p. 277-85, maio/ago. 2007. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/848/84806205.pdf. Acesso em: 10 ago. 2021. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. [ Links ]

Recebido: 14 de Setembro de 2021; Aceito: 26 de Setembro de 2021

Ana Paula Holzmeister: Doutora em Educação pela Universidade Vila Velha (UVV). Professora Titular da UVV. E-mail:holzpaula@hotmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-7210-5501

Camilla Gonçalves: Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail:camillavazzoler@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-2659-1374

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