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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.26 no.58 Campo Grande set./dic 2021  Epub 28-Feb-2022

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v26i58.1577 

Dossiê: Currículo, resistência e criação com as artes

A energia criativa em favor da educação: tecnologia e arte para a disrupção curricular

Creative energy in favor of education: technology and art for curriculum disruption

Energía creativa a favor de la educación: tecnología y arte para la disrupción curricular

1Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Araraquara, São Paulo, Brasil.


Resumo

Neste trabalho, apresenta-se uma construção teórica fundamentada em uma perspectiva crítica da educação escolar brasileira, da atual Base Nacional Comum Curricular e das novas abordagens de formação dirigidas particularmente aos jovens das classes sociais menos favorecidas. A Arte e suas potencialidades propiciadas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) são apresentadas como possibilidade de resistência, a partir de uma apropriação criativa dos novos currículos. A construção teórica desenvolvida apoia-se nas ideias e análises de Luis Althusser, Antonio Gramsci, Michael Apple, Paulo Freire e Demerval Saviani, tomando obras de Candido Portinari, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto e Chico Buarque como exemplo para uma abordagem criativa do currículo. Deste modo, espera-se que o presente trabalho sirva como contribuição aos debates em torno das novas abordagens curriculares, ao apontar alternativas possíveis de ruptura com os condicionamentos ideológico-culturais implícitos no currículo vigente através da Arte e do uso assertivo da tecnologia.

Palavras-chave: Arte; TDIC; currículo

Abstract

This work presents a theoretical construction based on a critical perspective of Brazilian school education, the current Common National Curricular Base and new training approaches aimed particularly at young people from less favored social classes. Art and its potentials provided by digital information and communication technologies (TDIC) are presented as a possibility of resistance, based on a creative appropriation of the new school curriculum. The theoretical construction developed is based on the ideas and analysis of Luis Althusser, Antonio Gramsci, Michael Apple, Paulo Freire, and Demerval Saviani, taking the works of Candido Portinari, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, and Chico Buarque as an example of creative appropriation of school curriculum. Thus, it is expected that the present work will serve as a contribution to debates around new curricular approaches, by pointing out possible alternatives for breaking with the ideological-cultural conditioning implicit in the current school curriculum through Art and the assertive use of technology.

Keywords: Art; TDIC; curriculum

Resumen

Este trabajo presenta una construcción teórica basada en una perspectiva crítica de la educación escolar brasileña, de la Base Curricular Común Nacional actual y de los nuevos enfoques de formación dirigidos especialmente a los jóvenes de clases sociales desfavorecidas. El Arte y sus potencialidades proporcionadas por las tecnologías digitales de información y comunicación (TDIC) se presentan como una posibilidad de resistencia, basada en una apropiación creativa de los nuevos currículos escolares. La construcción teórica desarrollada se basa en las ideas y análisis de Luis Althusser, Antonio Gramsci, Michael Apple, Paulo Freire y Demerval Saviani, tomando los trabajos de Candido Portinari, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto y Chico Buarque como ejemplo de apropiación creativa de los currículos escolares. De esta forma, se espera que el presente trabajo sirva como un aporte a los debates en torno a nuevos enfoques curriculares, al señalar posibles alternativas para romper con el condicionamiento ideológico-cultural implícito en el currículo actual a través del Arte y el uso asertivo de la tecnología.

Palabras clave: Arte; TDIC; currículo

1 INTRODUÇÃO

A Arte, mais do que um campo específico, tem um poder espetacular de penetrar todas as áreas, povoando a razão e a emoção, o concreto e o abstrato, o real e o imaginário, enfim, subvertendo qualquer noção de limite que se queira impor. Essa característica faz dela um elemento coringa, capaz de virar o jogo se lançado à mesa por jogadores hábeis.

Num tempo em que as disputas ideológico-culturais se acirram e o lado mais forte parece estar vencendo de lavada, é preciso sacar essa carta da manga e inseri-la no jogo, de modo a desestabilizar o adversário. Para isso, é preciso que haja meios que instrumentalizem os que estão em posição de defender os interesses da maioria.

Se associarmos essa descrição à escola básica brasileira, podemos conjecturar que o jogo que vem se desenrolando há tempos se pauta nas relações de poder que nela se manifestam: de um lado, as classes dominantes a quem não interessa o fim da estratificação social e que usa todo seu poder político e econômico para manter seus privilégios; de outro, as classes menos favorecidas e os profissionais da educação (a maioria também parte desse grupo), que luta cotidianamente por um lugar ao sol.

Nessa disputa, a imposição de currículos ideologicamente construídos tem sido uma forte arma usada sem constrangimentos para a conservação do status quo. Diante disso, é necessário que formas de resistência se estabeleçam e, nesse sentido, a Arte pode ser o elemento surpresa capaz de equilibrar o jogo. Porém, para que ela possa efetivamente cumprir esse papel, é preciso que se construam pontes entre a escola e o infinito universo em que as Artes habitam, função que as tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) têm a plena capacidade de assumir.

Assim, esta reflexão teórica propõe a Arte apoiada pelas TDIC como possibilidade de resistência a um modelo de escola, moldado pelas novas abordagens curriculares, que inviabiliza a equidade de oportunidades entre estudantes das diferentes camadas sociais. Para isso, revisa e se fundamenta na obra de pensadores proeminentes, que, a despeito de terem discorrido sobre suas perspectivas teóricas em outros contextos ou épocas, parecem estar falando diretamente sobre a realidade educacional brasileira atual, para finalmente sugerir estratégias de ação que usem da mediação das tecnologias digitais de informação e comunicação para fazer das Artes um caminho para a disrupção das intencionalidades tácitas intrínsecas à nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O termo ideologia, na perspectiva de Marx, é tomado como um sistema de ideias, de representações, que domina o espírito de um indivíduo ou um grupo social (ALTHUSSER, 1983). De acordo com Apple (1989, p. 172), “A formação de ideologias [...] não é um simples ato de imposição. Elas são produzidas por atores concretos e corporificadas em experiências vividas que podem resistir, alterar ou mediar essas mensagens sociais”.

Segundo Althusser (1983), todos os aparelhos ideológicos do Estado concorrem para a reprodução das relações de produção, das relações de exploração capitalistas. O autor explica que os aparelhos ideológicos do Estado funcionam através da ideologia e se apresentam como instituições distintas e especializadas, sendo a escola, pública ou privada, um de seus representantes. De acordo com o autor, a escola, enquanto aparelho ideológico do Estado, funciona sob a ideologia das classes dominantes e, de modo secundário, como aparelho repressivo do Estado, seja de forma atenuada, seja de forma dissimulada ou simbólica, moldando os sujeitos por métodos particulares de sanções, exclusões, seleção, entre outros.

Conforme Gramsci (1995), a escola dividia-se racionalmente entre clássica, destinada às classes dominantes e aos intelectuais, e profissional, voltada às classes instrumentais. E, ao que tudo indica, as reformas em curso na educação básica brasileira, particularmente no ensino médio, tendem a reproduzir esse modelo (TAFFAREL; BELTRÃO, 2019). De acordo com Freire (1983), as classes dominantes não têm interesse de que mudanças na estrutura social ocorram. Assim, “Seria uma ilusão ingênua pensar que não se organizassem em instituições, organismos, grupos de caráter ideológico, para a defesa de suas opções, criando, em função destas, sua estratégia e suas táticas de ação” (FREIRE, 1983, p. 29).

Deste modo, de acordo com Apple (1989), ocorrem mudanças no aparato estatal, empoderando grupos que desejam uma educação estreitamente alinhada às necessidades relacionadas ao capital econômico e cultural, ao mesmo tempo que as forças capitalistas tornam mais explícitas “[...] suas tentativas para utilizar as escolas em favor das necessidades de legitimação e acumulação da esfera econômica” (APPLE, 1989, p. 152).

O aparelho ideológico escolar “[...] assumiu a posição dominante nas formações capitalistas maduras, após uma violenta luta de classe política e ideológica contra o antigo aparelho ideológico do Estado dominante” (ALTHUSSER, 1983, p. 77), a igreja, ou seja, “[...] o par escola-família substituiu o par igreja-família” (ALTHUSSER, 1983, p. 78). Nesse sentido, o currículo escolar torna-se, segundo Apple (1989), mais um instrumento de legitimação do capitalismo, em favor da acumulação; o controle técnico subjacente a esse modelo de currículo reproduz o indivíduo possessivo, com “[...] uma visão de si mesmo que está no âmago ideológico das economias capitalistas” (APPLE, 1989, p. 167).

Segundo Althusser (1983), a relação explorado-explorador é reproduzida através da inculcação maciça da ideologia da classe dominante promovida pela aprendizagem de determinados saberes. O autor aponta que “Os mecanismos que produzem esse resultado vital para o regime capitalista são naturalmente encobertos e dissimulados por uma ideologia da escola universalmente aceita” (ALTHUSSER, 1983, p. 80), apresentada como uma escola ideologicamente neutra, cujos professores devem conduzir as crianças à liberdade, moralidade e responsabilidade adulta.

A ausência da reflexão sobre si mesmo e sobre o estar e agir no mundo, característica desse modelo de educação, tolhe o sujeito em sua capacidade de transpor limites que lhe são impostos e de comprometer-se com causas mais amplas (FREIRE, 1983). Outro aspecto ideológico-cultural desse modelo é o empobrecimento em relação ao domínio da cultura, essencial à participação política das camadas populares, oferecido ao educando, desarmando as massas na defesa de seus interesses “[...] contra os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e consolidar sua dominação. [...] Dominar o que os dominantes dominam é condição de libertação” (SAVIANI, 1999b, p. 51).

Na educação brasileira, o novo ensino médio escancara o esvaziamento científico-cultural curricular relativo aos saberes historicamente construídos, minando a capacidade de refletir criticamente e resistir (TAFFAREL; BELTRÃO, 2019). Conforme explica Apple (1989), o capital vem reduzindo o currículo a um conjunto de destrezas, formatando identidades sob uma lógica que torna significados e práticas culturais mercadorias e em que a marca do bom estudante “[...] é a posse e a acumulação de uma vasta quantidade de destrezas a serviço dos interesses técnicos. Como um mecanismo ideológico de manutenção de hegemonia isto é bastante interessante” (APPLE, 1989, p. 168). Assim, como aponta Gramsci (1995), a escola desinteressada, promotora de uma educação de base geral, perde espaço para um modelo escolar focado na formação profissional, de modo a satisfazer interesses práticos imediatos. Conforme o autor, esse tipo de escola apresenta o paradoxo de ser louvada como democrática, quando, na realidade, perpetua e cristaliza as diferenças sociais.

De acordo com Apple (1989), não basta combater esse tipo de incursões explícitas do capitalismo em nível de documentos ou planos, pois as influências ideológicas e materiais a que professores e estudantes estão sujeitos também se manifestam “[...] ao nível da prática social no interior das atividades de rotina das escolas” (APPLE, 1989, p. 154); assim, a batalha pode ser perdida no interior da própria escola. Segundo Gramsci (1995, p. 131), somente o mestre “[...] consciente dos contrastes entre o tipo de sociedade e de cultura que ele representa e o tipo de sociedade e de cultura representado pelos alunos” pode promover o nexo instrução-educação e acelerar e disciplinar a formação dos estudantes para um nível superior de conhecimentos. Entretanto, como afirma Althusser (1983), são raros os professores que suspeitam do trabalho que lhes é imposto pelo sistema, que lhes ultrapassa e esmaga e, sem questionar, fazem-no de acordo com as últimas orientações e novos métodos, com todo seu empenho e engenhosidade, contribuindo para manter e alimentar a representação ideológica da escola como algo natural, indispensável e benfazejo, como era vista a igreja séculos atrás.

Apple (1989) argumenta que esses modos invisíveis de controle são aceitos quando vindos de uma estrutura considerada legítima − aprovados pelo Estado, materiais com poucas distinções entre si, cujo cerne contém a homogeneização do essencial do currículo, são apresentados para os professores que, acreditando deter algum poder de escolha, dificilmente manifestarão alguma oposição. Assim, relegado a um papel medíocre, o professor pode até conferir certo grau de instrução aos alunos, sem que, contudo, “[...] sejam mais cultos: ele desenvolverá — com escrúpulo e com consciência burocrática — a parte mecânica da escola, e o aluno, se for um cérebro ativo, organizará por sua conta — e com a ajuda de seu ambiente social — a bagagem acumulada” (GRAMSCI, 1995, p. 132).

No entanto, conforme aponta Freire (1983), os educadores precisam se comprometer solidariamente com aqueles que o sistema converte em coisas, sob pena, no caso de não o fazer, de também desumanizar-se, de alienar-se, e isso implica superar a autoimagem de superioridade, a visão salvacionista, de donos da verdade e proprietários de um saber que deve ser doado aos ignorantes e incapazes. Esse compromisso, segundo o autor, é válido se carregado de um humanismo fundado cientificamente, e deve pautar-se na práxis a partir do conhecimento da realidade e no constante aperfeiçoamento profissional, de modo que sejam ampliados saberes acerca do ser humano, “[...] de sua forma de estar sendo no mundo, substituindo por uma visão crítica a visão ingênua da realidade, deformada pelos especialismos estreitos” (FREIRE, 1983, p. 10).

Nessa perspectiva, entende-se o estudante como ser pensante, com vivências e conhecimentos prévios que devem ser considerados, e cuja participação em seu próprio desenvolvimento deve ser incentivada. Mas, de acordo com Gramsci (1995), uma participação realmente ativa do estudante só pode acontecer se a escola estiver ligada à vida, à realidade contextual experimentada por ele.

Saviani (1999b) afirma, porém, que há uma tendência em se desvincular os conteúdos específicos de cada disciplina das finalidades sociais mais amplas, pensando-se que valem por si mesmos sem necessidade de serem referidos à prática social em que se inserem ou que não têm importância e, assim, “[...] dissolve-se a especificidade da contribuição pedagógica, anulando-se, em consequência, a sua importância política” (SAVIANI, 1999b, p. 72). Os especialismos apontados por Freire (1983) precisam, portanto, ser superados também em nível curricular, suplantando as fragmentações e o descolamento da realidade sem prejuízo de uma consistente formação científico-cultural.

Entretanto, a educação básica brasileira experimenta, atualmente, um contexto que desfavorece as resistências, e uma das razões pode ser compreendida à luz do exemplificado por Apple (1989): o currículo como os materiais de trabalho, tudo vem pronto, predeterminado, prescindindo da interação entre os professores, desfazendo os vínculos dos docentes entre si e com a matéria concreta de seu trabalho. Assim, conforme afirma o autor, “Podemos esperar, ao nível da prática da sala de aula, que será mais difícil para os professores obter em conjunto o controle sobre as decisões curriculares, por causa de seu isolamento crescente” (APPLE, 1989, p. 162).

De acordo com Saviani (1999a), as classes dominantes não têm interesse que o saber elaborado seja socializado e, deste modo, atuam para esvaziar a escola de sua função específica, “convertendo-a numa agência de assistência social, destinada a atenuar as contradições da sociedade capitalista” (SAVIANI, 1999a, p. 85). Nesse sentido, conforme indica o autor, ao mesmo tempo em que percebem a necessidade de generalização da escola para que haja trabalhadores capacitados a conservar o desenvolvimento da sociedade capitalista, entendem que essa generalização deve se ater a uma escolarização básica, limitada ao mínimo para que possam desempenhar esse papel. É essa certamente a ideia que se encontra na raiz da ênfase dada à educação profissional no novo ensino médio brasileiro, de modo a conservar as desigualdades intrínsecas à sociedade de classes (GONÇALVES; DEITOS, 2020). E, embora as reformas a respeito também se apliquem às escolas da iniciativa privada, as oportunidades de formação técnica profissional ou para a aquisição dos conhecimentos clássicos imprescindíveis ao acesso à educação de nível superior apresentam-se de formas completamente distintas para as diferentes classes sociais. Isto resulta em dois tipos de escola, uma com possibilidades mínimas de escolha (quando existem) e que direciona a classe trabalhadora para a inserção praticamente imediata no mercado; e outra que prepara os herdeiros das classes mais abastadas ou de intelectuais para o prosseguimento dos estudos nas universidades.

A marca social dada a um tipo de escola, como afirma Gramsci (1995, p. 136), “[...] é dada pelo fato de que cada grupo social tem um tipo de escola próprio, destinado a perpetuar nestes grupos uma determinada função tradicional, diretiva ou instrumental”. Nesse sentido, conforme aponta Althusser (1983), a escola inculca nas crianças de todas as classes sociais, desde o maternal e durante anos, os saberes contidos na ideologia dominante ou a ideologia dominante em estado puro − a cada grupo, é dirigida uma abordagem ideológica de acordo com o papel que deve ocupar na sociedade de classes: de explorados, de agentes da exploração, de agentes da repressão ou de profissionais da ideologia.

Atenuar a disparidade de oportunidades entre as diferentes classes sociais implica, de acordo com Gramsci (1995), que sejam evitadas, na educação básica, as escolas com ênfase no ensino profissional, em favor de uma escola única preparatória (elementar-média) que proporcione aos jovens possibilidades de escolha profissional diante da formação da capacidade de pensar, estudar, dirigir ou controlar quem dirige. Segundo o autor, uma escola verdadeiramente democrática não é aquela que proporciona ao trabalhador menos qualificado alcançar maior grau de capacitação profissional, mas é a que coloca qualquer cidadão em posição de se tornar governante.

Para Saviani (1999b), um processo educativo só pode ser considerado democrático distinguindo-se a democracia como possibilidade no ponto de partida e como realidade no ponto de chegada, quando o nível de compreensão dos alunos eleva-se ao mesmo do professor, ou seja, “[...] manifesta-se nos alunos a capacidade de expressar uma compreensão da prática em termos tão elaborados quanto era possível ao professor [configurando] uma desigualdade no ponto de partida e uma igualdade no ponto de chegada” (SAVIANI, 1999b, p. 65).

De acordo com Gramsci (1995), a escola unitária deve prover aos estudantes das camadas populares noções e aptidões que jovens provenientes das camadas mais favorecidas, particularmente as intelectuais, têm acesso naturalmente e que os privilegia na carreira escolar, garantindo a equidade de acesso e permanência das diferentes classes sociais por meio de um sistema cuja função de educação e formação das novas gerações seja inteiramente pública, custeada pelo Estado, de modo a envolver a todos sem divisão de grupos ou castas. Essa escola “[...] de cultura geral deveria se propor a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade: à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na criação e na iniciativa” (GRAMSCI, 1995, p. 121).

Althusser (1983) aponta que as classes exploradas podem encontrar o meio e a ocasião de expressar suas resistências nos próprios aparelhos ideológicos do Estado, usando de contradições existentes ou conquistando posições de combate pela luta.

É preciso que se construa, de acordo com Saviani (1999b), uma pedagogia revolucionária, articulada com as forças emergentes da sociedade, centrada na igualdade concreta, que, “[...] longe de secundarizar os conhecimentos descuidando de sua transmissão, considera a difusão de conteúdos, vivos e atualizados, uma das tarefas primordiais do processo educativo em geral e da escola em particular” (SAVIANI, 1999b, p. 59). Segundo Apple (1989), o conteúdo deve ser questionado tanto em relação às ideologias expressadas ou representadas por ele quanto às significações produzidas a partir dele, bem como às contradições que possa trazer em si, investigando-se tanto o que diz como o que exclui, o que propositalmente deixa de dizer.

Ao atuar e refletir, a percepção do indivíduo muda, e a realidade, que até ali poderia parecer imutável, passa a ser compreendida como histórico-cultural criada por seres humanos e, portanto, passível de ser transformada (FREIRE, 1987). Perceber a escola como aparelho ideológico do Estado, com um papel determinante na reprodução das relações de produção de um sistema ameaçado pelo conflito entre as classes, dá um sentido político à crise que abala a escola (ALTHUSSER, 1983).

A maior participação na sociedade ensejada pelas classes menos favorecidas, considerada absurda pelas elites, tem desencadeado a implementação de políticas assistencialistas para domesticar as massas, impedindo seu amadurecimento (FREIRE, 1983). O esvaziamento do conteúdo científico-cultural do currículo, alinhado à prática da profissionalização irrefletida precoce em instituições escolares assistencialistas, faz parte dessa abordagem política.

Saviani (1999a, p. 84) aponta que “[...] é preciso, pois, resgatar a importância da escola e reorganizar o trabalho educativo, levando em conta o problema do poder sistematizado, a partir do qual se define a especificidade da educação escolar”. O autor salienta que a tentativa de desvalorização da escola visa “[...] reduzir o seu impacto em relação às exigências de transformação da própria sociedade” (SAVIANI, 1999a, p. 84) e ocorre por vivermos em uma sociedade de classes com interesses opostos, em que uma boa base educacional a toda a população pode ameaçar a estratificação social.

Segundo Gramsci (1995, p. 118), a solução da crise na educação básica passa pela adoção de um sistema escolar inicial único “[...] de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual”.

O sistema educacional brasileiro, além de estar longe desse modelo de escola, tem sofrido, ao longo das últimas décadas, com reformas que se sucedem ano após ano sem nunca chegar a uma estabilidade que permita delinear um perfil claro e traçar estratégias de resistência. Muitas dessas reformas coadunam-se com parâmetros de organismos internacionais de alto poder econômico (SANTOS; MELO; LUCIMI, 2012) ou seguem efetivamente tendências mercadológicas. Nesse sentido, Saviani (1999a) critica os modismos na educação, que diminuem a importância do elemento clássico, cuja validade extrapola o momento em que ele foi proposto, como elementos da cultura greco-romana, da filosofia moderna e da literatura brasileira. Secundarizar esses aspectos, segundo o autor, é inverter o sentido da escola, o que o faz defender que o termo currículo deveria ser reservado às atividades essenciais da escola e que tudo o mais deveria ser classificado como extracurricular, só fazendo sentido “[...] quando enriquecem as atividades curriculares, não devendo, em hipótese alguma, prejudicá-las ou substitui-las” (SAVIANI, 1999a, p. 88). Assim, as mais recentes reformas da educação básica brasileira, cujo cerne é a implementação de bases curriculares rasas em termos científico-culturais e difusas quanto a uma enormidade de novos aspectos incorporados ao currículo, estariam caminhando na contramão de um modelo de escola verdadeiramente (trans)formador e democrático (CUNHA JUNIOR, 2021).

Essas reformas têm sido impostas de modo que não sobre tempo para a reflexão. A formação de professores com foco específico nos novos currículos e os materiais didático-pedagógicos a eles relacionados são modelados de forma a não deixar brechas à contestação, em meio ao conturbado cotidiano escolar.

De acordo com Apple (1989), os sistemas pré-planejados de currículo, ensino e avaliação que os professores são obrigados a adotar em sua prática pedagógica cotidiana configuram-se em sistemas de controle técnico embutidos na forma curricular e fazem parte de um processo de desqualificação do papel docente; tudo vem pronto, até as palavras que devem ser ditas aos estudantes, fazendo com que habilidades antes essenciais à docência, como o planejamento e a elaboração de currículos e estratégias de ensino, tornem-se paulatinamente desnecessárias. Simultaneamente, de acordo com o autor, ocorre a requalificação docente, com a substituição da arte e das habilidades pedagógicas pelas habilidades e visões ideológicas capitalistas.

Urge que um movimento de resistência, afim aos interesses populares, seja articulado, fomentando, segundo Saviani (1999b), uma pedagogia de valorização da escola, atenta ao que ocorre em seu interior, ao seu bom funcionamento, e interessada em métodos eficazes de ensino.

Serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em conta os interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos. (SAVIANI, 1999b, p. 62).

Como observa Apple (1989), se, por um lado, os professores são controlados, por outro, as resistências permanecem, embora seja difícil de efetivá-las. O autor ressalta que a proletarização da categoria docente, com a queda no padrão de vida e a retirada da estabilidade de emprego, pode impulsionar mobilizações. Contudo, o autor alerta que a formação de coalizões, a educação política dos trabalhadores do Estado e uma adequada reforma do currículo encontrará muitos entraves para acontecer.

Dadas as presentes condições econômicas e dada a habilidosa integração feita pela direita entre as demandas democráticas populares e as do capital e a incorporação também por ela realizada dos temas populares à retórica de uma esfera progressiva de relações sociais capitalistas, as implicações são exatamente na direção oposta. (APPLE, 1989, p. 177).

Apple (1989) afirma que isso não significa, porém, que docentes e estudantes não possam se apropriar desses modelos mercantis de currículos e materiais, respondendo criativamente às ideologias das classes dominantes ao usá-los “[...] sob formas jamais imaginadas pelos burocratas do Estado ou pelas editoras capitalistas” (APPLE, 1989, p. 170).

3 POR UMA APROPRIAÇÃO CRIATIVA DO CURRÍCULO: ACESSANDO O MUNDO DAS ARTES COM O APOIO DE TECNOLOGIAS DIGITAIS E CONSTRUINDO LEITURAS E RELEITURAS CRÍTICAS

Apropriar-se criticamente do currículo preestabelecido, procurando perceber as imposições ideológico-culturais que vão de encontro aos interesses da maioria da população, presentes tanto nas diretrizes curriculares quanto nos materiais didáticos e paradidáticos que delas derivam, bem como as ênfases reducionistas para a abordagem pedagógica de conteúdos cada vez mais rasos, embutidas nas dinâmicas de formação de professores, pode representar uma pródiga forma de resistência, gérmen de transformações necessárias.

Um caminho promissor encontra-se no campo das Artes, cujas possibilidades quase infinitas podem propiciar uma ampliação da gama de conhecimentos científico-culturais em relação ao que é inicialmente proposto e disponibilizado, a inserção e o aprofundamento de outros estrategicamente empobrecidos ou silenciados pelas novas abordagens do currículo e a construção de saberes verdadeiramente críticos, não no sentido superficial com que essa palavra é repetidamente usada na Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2019), mas sob uma perspectiva de análise fundamentada da realidade socioeconômica e ideológico-cultural que permita aos jovens, principalmente os oriundos das classes menos favorecidas, refletir, avaliar e agir, individual e coletivamente, em prol de uma sociedade mais justa e equilibrada em todos os âmbitos.

As tecnologias digitais de informação e comunicação podem ser grandes aliadas na superação das dificuldades de acesso ao patrimônio artístico e cultural da humanidade. As visitas virtuais a museus, o contato com obras literárias clássicas de domínio público e apresentações musicais e teatrais proporcionadas pelas TDIC, entre outros exemplos, são uma forma de democratização do acesso às mais diversas manifestações da Arte produzidas em diferentes tempos, espaços e culturas. Essas obras retratam uma multiplicidade temática capaz de fomentar aprendizagens intrínsecas a variadas áreas do saber, quer no âmbito da ciência, quer no popular, além de trazer em seu bojo as potencialidades de análise crítica, do incentivo à pesquisa, da realização de debates sobre o contexto socioeconômico, espacial e histórico-cultural em que foram produzidas, propiciando o estabelecimento de relações com as realidades atualmente vividas.

Essas relações podem ser compreendidas a partir de uma leitura crítica dessas obras, ao se traçar paralelos com a história de vida e o cotidiano dos educandos na escola, nas famílias e na comunidade a que pertencem, bem como em um contexto mais amplo, como o regional e o nacional, mas que os afeta direta e profundamente. E as formas de resistência à conservação do status quo, cuja primazia se expressa na concretização dos preceitos ideológico-culturais das classes dominantes através dos novos currículos, podem encontrar, nas imensas potencialidades propiciadas pela rica diversidade de formas e espaços de manifestação da Arte, o lócus pulsante capaz de dar eco às vozes das minorias através de releituras criativas, fruto de amplos conhecimentos científico-culturais solidamente construídos e criticamente elaborados.

Tomemos como exemplo a obra Retirantes, pintada pelo brasileiro Candido Portinari em 1944 e que compõe o acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP).

Fonte: MASP (https://masp.org.br/acervo/obra/retirantes-da-serie-retirantes-1944-1945). Créditos da fotografia – Pedro Campos, Elizabeth Kajiya e Marcia Rizzuto (IFUSP).

Figura 1 Retirantes (1944), de Candido Portinari (1903-1962) 

Esta obra, disponibilizada como tantas outras do acervo do MASP em sua página eletrônica (MASP, s.d.), pode ser apreciada no endereço https://masp.org.br/acervo/obra/retirantes-da-serie-retirantes-1944-1945. Portinari retrata, nessa pintura, um grupo de sertanejos nordestinos, adultos e crianças, fugindo da pobreza e da fome.

Castro (1968; 2008) descreve essa mesma realidade em seus livros Geografia da fome e Geopolítica da fome, cujas primeiras edições foram publicadas, respectivamente, em 1946 e 1951, denunciando a ingenuidade daqueles que associam a miséria dos sertanejos à seca, que, segundo o autor, é apenas um fator de agravamento cujas verdadeiras causas remetem à exploração colonial ou neocolonial que continua sendo exercida sobre diversas regiões do planeta. A revista eletrônica Prosa Verso e Arte (2018), usando a obra Retirantes, de 1944, como capa, apresenta uma matéria com 25 excertos extraídos de obras desse autor, entremeados a 28 gravuras, entre pinturas e esboços, de Portinari, todas relacionadas ao tema do êxodo rural nordestino. Explorando interpretações da obra Retirantes, pode-se encontrar textos com uma linguagem simples e acessível a estudantes do ensino médio, como a monografia de Rocha Neto (2006), que estabelece relações entre a obra de Portinari e o contexto histórico e social em que a referida pintura foi produzida.

É ainda possível estabelecer paralelos com as obras literárias Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1938), e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (1955). Vidas Secas, romance narrado em terceira pessoa, e Morte e Vida Severina, poema regionalista narrado em primeira pessoa, também se baseiam, tal qual a pintura Retirantes, no êxodo rural nordestino, e, em ambas as obras, a pobreza, a fome, as desigualdades sociais e a luta de classes são temas recorrentes. A produção literária de Graciliano Ramos entrará em domínio público a partir de 2024, e a de João Cabral de Melo Neto, apenas em 2070, passados setenta anos de seu falecimento, conforme preconiza o artigo 41 da lei 9610/98 (BRASIL, 1998), o que impede que essas obras sejam disponibilizadas gratuita e integralmente para leitura on-line ou download sem a expressa autorização dos detentores dos direitos autorais de suas obras. Para o estudante que não tenha acesso ao livro impresso, é possível conhecer as obras através de suas adaptações audiovisuais, disponíveis on-line.

Quando da realização da pesquisa para a elaboração deste texto, Vidas Secas estava disponível em audiolivro no canal Simplificando, do YouTube, no endereço virtual https://youtu.be/PGqEouKs6W0. Sua adaptação para o cinema, de 1963 (VIDAS..., 1963), em preto e branco, sem remasterização, podia ser vista pelo endereço virtual https://youtu.be/m5fsDcFOdwQ, canal de Tatiane Pereira, também no YouTube. Morte e Vida Severina foi adaptada para o formato de animação, com desenhos do cartunista Miguel Falcão, preservando o texto original de João Cabral de Melo Neto. Estava disponível no canal TV Escola, do YouTube, podendo ser apreciada no endereço virtual https://youtu.be/clKnAG2Ygyw.

Por fim, o tema de Retirantes também foi expresso artisticamente na forma de música, cujo exemplo emblemático é a canção Funeral de um lavrador (1965), composta por Chico Buarque para uma adaptação teatral do livro Morte e Vida Severina (GARCIA, 2011), e que veio a fazer parte, mais tarde, da adaptação cinematográfica da obra, em 1977 (MORTE..., 1977). No endereço virtual https://youtu.be/PULZd-ZeQxQ, podia-se ouvir, até o momento da escrita deste texto, uma versão remasterizada da interpretação impactante dessa música por Chico Buarque.

Neste exemplo, a leitura crítica e dialógica de um conjunto de manifestações artísticas com o mesmo foco temático, produzidas a partir de e em um contexto histórico e sociocultural fortemente marcado por contrastes e desigualdades (PUCCI, 2021), pode se configurar no mote para uma exploração aprofundada, pedagogicamente planejada, de seus inúmeros vínculos com as diversas áreas do conhecimento que compõem o currículo escolar, rompendo com a superficialidade, a carência de conteúdos e a amortização dos sentidos que as atuais abordagens curriculares parecem propor.

A crítica social latente em todas essas obras, nas mãos habilidosas de professores bem preparados, cujo discernimento em relação à escola enquanto campo de disputas ideológico-culturais entre grupos com interesses opostos já encontrou lastro, pode suscitar a ruptura das intencionalidades implícitas em um currículo desenhado para a conservação da estratificação social, por meio de uma educação rasa, castrante e despolitizadora. Nesse sentido, uma atualização dessas obras pode ser proposta aos educandos, um incentivo à sua releitura com base no contexto vivido por eles, por suas famílias, pela comunidade em que estão inseridos, local, regional e nacional, em sua história de vida e de seus antepassados recentes e em suas aspirações e projeções para o futuro. Quais são as semelhanças entre o contexto retratado nessas obras e a realidade atual? No que diferem os condicionantes ideológicos, culturais e socioeconômicos de nossa sociedade presente dos que serviram de pano de fundo à produção dessas obras? Como isso tudo nos afeta particularmente e enquanto membros de um grupo social específico? Que impactos isso tem no projeto de país em que teremos de viver, de envelhecer, de construir nossa própria história? Segundo Pucci (2021), o momento nacional parece conter mais aproximações do que distanciamentos da realidade social retratada na obra de Portinari. É possível resistir?

As potencialidades da expressão artística, crítica e criativa, construída coletivamente a partir de debates ricos em argumentos embasados no amplo acervo científico-cultural acumulado pela humanidade e incrementada por elementos do cotidiano e da história de vida dos estudantes, são praticamente infinitas. A disrupção do currículo através da Arte, de modo a minar o poder de suas intencionalidades ocultas, brota do aprofundamento dos temas, da pesquisa pelo que há além, do aprimoramento da percepção, da expansão do olhar e do desenvolvimento da capacidade para a crítica fundamentada inerentes ao esforço necessário à construção de qualquer manifestação artística que traga em seu bojo significados mais profundos. Concretizada essa dinâmica de autonomia na construção do conhecimento, diante do reconhecimento das vantagens de o possuir e/ou saber onde e como encontrá-lo, o empoderamento da comunidade escolar acaba sendo uma consequência natural.

A apropriação criativa do currículo, mediada pelas Artes e possibilitada pelas tecnologias digitais de informação e comunicação, pode, assim, ser o pontapé inicial de todo um movimento de resistência potencialmente transformador e emancipatório, em que, finalmente, possam ressoar as vozes de um povo que não aguenta mais tanta injustiça e opressão.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os ataques sofridos nesta passagem entre os anos 2010 e 2020 pela educação brasileira, em geral, e pela escola, em particular, mostram como essa instituição continua sendo um importante aparelho ideológico do Estado, conforme aponta Althusser (1983). A atualidade do pensamento de Apple (1989) em relação à manipulação curricular para a conservação da estrutura da sociedade de classes nunca foi tão evidente, e suas observações em relação ao papel dos professores como colaboradores ingênuos ou, ao contrário, como possíveis pilares de resistência descrevem muito bem a realidade vivida em nossas escolas de educação básica.

O esvaziamento do currículo apontado por Saviani (1999a; 1999b) é visível na Base Nacional Comum Curricular em vigor, e a reconfiguração da educação básica, especialmente no ensino médio, escancara tanto o empobrecimento científico-cultural da formação de jovens oriundos das camadas menos favorecidas da sociedade como seu condicionamento precoce à educação técnica profissionalizante, de modo a preservar a estratificação social, tornando a equidade de oportunidades que, segundo Gramsci (1995), deveria ser o objetivo de uma educação unitária, para todos, uma possibilidade cada vez mais distante.

Freire (1983; 1987) há décadas denuncia a articulação das classes dominantes para a manutenção do status quo e ressalta a necessidade de que os educadores assumam o compromisso solidário com a formação de seus educandos, prezando por uma práxis fundamentada e humanista que vise superar as desigualdades. Nesse sentido, a apropriação criativa do currículo sugerida por Apple (1989) é condição essencial e talvez a única realmente possível momentaneamente para a construção de um movimento de resistência aos ataques sutilmente engendrados no cotidiano escolar por meio de propostas pseudobenevolentes, cujos fundamentos ideológico-culturais visam apenas à manutenção dos privilégios dos grupos dominantes.

Assim, um despertar que possa colocar a educação escolar nos caminhos da transformação social e da emancipação dos cidadãos presume a apropriação do currículo mediante o uso sem moderação da criatividade, pautada no direito a uma formação crítica e complexa de alta performance, tanto em relação aos conteúdos como às abordagens didático-pedagógicas, para o que o campo das Artes, fortalecido pelas possibilidades proporcionadas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação, tem indubitavelmente imensas potencialidades.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 10 de Setembro de 2021; Aceito: 13 de Outubro de 2021

Rosimari Ruy: Doutoranda em Educação Escolar na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Mestra em Educação pela Unesp. Especialista em Educação: Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Graduada em Ciências Exatas pela Universidade de São Paulo (USP), e Pedagogia pela Universidade Nove de Julho (Uninove). E-mail:rosimariruy@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-7974-2044

Francisco Rolfsen Belda: Doutor em Engenharia de Produção e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Graduado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCamp). Docente na Faculdade de Arquitetura, Artes, Comunicação e Design (FAAC/Bauru) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). E-mail:francisco.belda@unesp.br, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-6350-7026

Vitor Machado: Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Docente na Faculdade de Ciências (FC/Bauru) da Unesp. E-mail:v.machado@unesp.br, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-3082-4310

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