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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.59 Campo Grande jan./abr 2022  Epub 30-Maio-2022

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v27i59.1568 

Artigos

A Base Nacional Comum Curricular dialoga (ou não) com o princípio da gestão democrática do ensino?

Does the Brazilian National Common Core Curriculum dialogues (or not) with the principle of education democratic management?

¿La Base Curricular Nacional Común dialoga (o no) con el principio de la gestión democrática de la enseñanza?

Rita Schane1 
http://orcid.org/0000-0001-6389-5145

Sandra Regina Bernardes de Oliveira Rosa1 
http://orcid.org/0000-0001-8451-3441

Sirley Terezinha Filipak1 
http://orcid.org/0000-0003-4264-1626

1Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Curitiba, Paraná, Brasil.


Resumo

Este artigo pretende fazer uma reflexão sobre como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) dialoga (ou não) com o princípio da gestão democrática do ensino, partindo da análise das categorias de participação e autonomia. Com a homologação de tal política, constata-se a necessidade de uma proposta de ação que supere as dificuldades encontradas na implementação de um ensino, de fato, democrático, e, por isso, a escola deve ser (re)pensada a partir da recuperação das formas de participação, sejam elas ativas ou passivas, das classes subalternas nas políticas dominantes. Nesse contexto, a leitura e a análise de documentos que envolvem a elaboração, a discussão, a aprovação e idealização concreta, ou seja, os textos referentes à Base Nacional Comum Curricular, tal como a consolidação da gestão democrática a partir da Constituição Brasileira de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, fazem-se necessárias com vistas à presença, ou não, dos princípios legítimos e efetivos da gestão democrática da educação, já consagrada formalmente em nosso país, ainda que, infelizmente, não incorporada à prática social e educacional.

Palavras-chave: BNCC; gestão democrática; participação

Abstract

This article intends to reflect on how the Brazilian National Common Core Curriculum (Base Nacional Comum Curricular, or BNCC, in Portuguese) dialogues (or not) with the principle of education democratic management, based on the analysis of the participation and autonomy categories. With the approval of such policy, there is a need for a proposal of action to overcome the difficulties found in the implementation of truly democratic education and, for this reason, the school must be (re)thought from the recovery of the subordinate classes participation forms in the dominant policies whether they are active or passive. In this context, the documents about the Brazilian National Common Core Curriculum concerning the elaboration, discussion, approval, and the concrete idealization as well as the democratic management consolidation since the 1988 Brazilian Constitution and the must be read and analyzed considering the legitimate and effective principles of the education democratic management which has already been consecrated formally in our country, although, unfortunately, it hasn’t been incorporated to the social and educational practice.

Keywords: BNCC; democratic management; participation

Resumen

Este artículo pretende reflexionar sobre cómo la Base Curricular Nacional Común (BNCC) dialoga (o no) con el principio de la gestión democrática de la enseñanza, partiendo del análisis de las categorías de participación y autonomía. Con la homologación de tal política, resulta la necesidad de una propuesta de acción que supere las dificultades encontradas en la implementación de una enseñanza democrática de hecho, y, por lo tanto, la escuela debe ser (re)pensada a partir de la recuperación de las formas de participación, ya sean activas o pasivas, de las clases subalternas en las políticas dominantes. En este contexto, la lectura y el análisis de los documentos que involucran la elaboración, la discusión, la aprobación y la idealización concreta, es decir, los textos referentes a la Base Curricular Nacional Común, bien como la consolidación de la gestión democrática desde la Constitución Brasileña del 1988 y de la Ley de Directrices y Bases de la Educación Nacional, se hacen necesarias con vistas a la presencia, o no, de los principios legítimos y efectivos de la gestión democrática de la educación, ya formalmente establecida en nuestro país, aunque, lamentablemente, no incorporada a la práctica social y educativa.

Palabras clave: BNCC; gestión democrática; participación

1 INTRODUÇÃO

A educação é um desdobramento da política, e seu conceito, na sociedade capitalista, vem caracterizando-se, infelizmente, como um processo pelo qual o indivíduo adapta-se às exigências e às necessidades do modo de produção capitalista, sendo treinado para desempenhar suas funções em uma hierarquia que divide os dirigentes dos dirigidos. O ato educativo deveria ser um processo de formação para a vida, realizado em uma ideia de civilização, por isso, a educação não pode se restringir apenas ao espaço escolar, mas fazer parte da luta das massas trabalhadoras em busca da sua identidade e autonomia.

Por entender que a educação está relacionada à organização cultural de um determinado país, em um específico momento, ou seja, em um contexto político e ideológico, é preciso questionar para qual projeto de sociedade a escola está posta, pois a política pública educacional discutida ao longo deste artigo não tem, claramente, a intenção de emancipar, tampouco de transformar a sociedade, mas sim de colocar os alunos em situação de alienação e recepção de meros conceitos, e os professores, na condição de transmissores passivos de uma ideologia dominante e capitalista.

[...] o fato de que as propostas se inserem em um movimento universal destinado a reestruturar os sistemas educativos das sociedades ocidentais do bem-estar (Carlgren 1998), desempenham importante papel nos processos de legitimação que ocorrem nessas sociedades (Popkewitz, Pitman e Barry 1998), expressam os interesses conservadores de grupos de direita que procuram aplicar às escolas as leis do livre mercado (Apple1993; Whitty, Power e Halpin 1998) e se concretizam em práticas globais cujas implicações são produzir sistemas de inclusão e de exclusão (Burbules 1998). Acentuam, também, que as mudanças curriculares costumam ser acompanhadas de tentativas de implantação de um sistema nacional de avaliação e de alteração dos arranjos pelos quais se formam e se aperfeiçoam os docentes. (Apple, 1994; Goodson, 1994, Moreira, 1995; MOREIRA, 2000, p. 109-110).

Para Moreira (2000), muito se estuda e se discute sobre as reformas curriculares oficiais, as quais se realizam e efetivam seguindo uma ótica neoliberal, mas pouco se caminha em direção contrária ao discurso hegemônico, e o resultado dessa reflexão feita aqui deve ser capaz de analisar, repensar e discutir não só os padrões de qualidade desejados para a educação pública atual, como também as exigências de uma formação para a vida, voltada para o mundo contemporâneo, cada vez mais complexo e dinâmico.

Por isso, tal artigo tem a intenção de ler, analisar e discutir propostas e conceitos referentes à Base Nacional Comum Curricular, para identificar se esta dialoga, ou não, com o princípio da gestão democrática do ensino, principalmente a partir das categorias de participação e autonomia, bem como as implicações que podem existir em relação à qualidade do trabalho do professor e ao desenvolvimento do protagonismo dos alunos.

A discussão que se propõe vai para além da busca da cronologia (da qual resulta o histórico de discussão e implementação), de reflexões, de respostas, de enfrentamentos com a realidade e do referencial teórico existente quanto a esta temática, pois há o desejo, neste artigo, de indicar mais e novas possibilidades para a escola pública articular esse diálogo, visando à formação integral do aluno, numa perspectiva de desenvolvimento humano integral, considerando as mediações, as especificidades e a individualidade de cada educando, e, ainda, ressignificar o trabalho docente.

Tal discussão considera a importância de se identificar as formas pelas quais se definem as políticas públicas no âmbito da educação, considerando as relações estabelecidas entre Estado e sociedade civil no contexto socioeconômico contemporâneo, analisando os impactos da sua implementação no sentido de, possivelmente, posicionar os alunos em situação de alienação e de recepção de meros conceitos e, ainda, de manter os professores na condição de transmissores passivos de uma ideologia dominante, neoliberal e capitalista.

Neste sentido, tal artigo visa, ainda, a uma avaliação da proposição da Base Nacional Comum Curricular a partir dos tensionamentos existentes no interior da escola em suas condições reais e efetivas, com a finalidade de entender como ela está sendo implementada e efetivada no espaço escolar.

O resultado dessa análise deve ser capaz de responder não só aos padrões de qualidade desejados para a educação pública, mas também identificar as questões que permeiam a implementação de tal política educacional, possibilitando uma maior discussão e análise da BNCC no viés da participação e da autonomia, no sentido da necessidade de uma formação para a vida, voltada para o mundo contemporâneo, cada vez mais complexo e dinâmico.

2 HISTÓRICO

Para a melhor compreensão da política destacada neste artigo - a BNCC -, é importante ressaltar, cronologicamente, como uma possível base comum, no que tange à unificação de um currículo, explicitada desde 1988, foi sendo discutida enquanto política educacional brasileira.

No ano de 1988, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, que prevê, em seu Artigo 210, a Base Nacional Comum Curricular. Mais tarde complementada, em 1996, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que, em seu Artigo 26, regulamenta uma base nacional comum para a Educação Básica.

A partir de então, passaram a existir muitos desdobramentos em relação à constituição de uma base curricular comum a todos os municípios e estados brasileiros, e, nesse sentido, questiona-se a autonomia das redes e dos sistemas de ensino e, em consequência disso, da gestão democrática do ensino.

Com vistas a uma homogeneização curricular e à necessidade de que todas as escolas tivessem um ponto de partida e um ponto de chegada, em 1997, foram apresentados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental, do 1º ao 5º ano, apontados como referenciais de qualidade para a educação brasileira. Foram elaborados, segundo o Ministério da Educação e Cultura (MEC), para auxiliar as equipes escolares na execução de seus trabalhos, sobretudo no desenvolvimento do currículo.

Entre tantos impasses, críticas e rejeições quanto à elaboração e à execução dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Fundamental, por se tratar de documentos oriundos da equipe interna do MEC, não havendo discussão alguma deles com a sociedade, foi realizada, em 2010, a Conferência Nacional de Educação (CONAE), com a presença de especialistas para debater a Educação Básica.

Nessa ocasião, o documento resultante de tal Conferência ressaltou a necessidade da implantação de uma Base Nacional Comum Curricular, como parte de um Plano Nacional de Educação, porém a discussão sobre a sua elaboração deveria ser compartilhada com a sociedade civil como um todo.

Nesse mesmo ano, a Resolução n. 4, de 13 de julho, define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (DCN), com o objetivo de orientar o planejamento curricular das escolas e dos sistemas de ensino.

Com a sociedade envolvida nas discussões acerca da educação brasileira, não existem mais possibilidades de o MEC, junto ao governo, deliberar sozinho sobre assuntos referentes aos rumos educacionais; sendo assim, a Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014, regulamenta o Plano Nacional de Educação (PNE), com vigência de 10 (dez) anos. O Plano tem 20 metas para a melhoria da qualidade da Educação Básica e 4 (quatro) delas falam sobre a uma Base Nacional Comum (BNC).

Vale ressaltar que essa foi uma vitória para a educação brasileira, mesmo que em meio a muitos equívocos e impossibilidades. Pode-se dizer que, pela primeira vez, foram estabelecidas metas e estratégias com vistas à melhoria efetiva da educação, inclusive prevendo aportes financeiros maiores para esse fim. Aqui se observa a possibilidade de uma gestão mais democrática e eficaz para a escola.

Dando continuidade aos processos de participação e decisão da sociedade, em que vez e voz são dados para os segmentos que tratam sobre educação, entre 19 e 23 de novembro desse mesmo ano foi realizada a 2ª Conferência Nacional pela Educação (CONAE), organizada pelo Fórum Nacional de Educação (FNE), que resultou em um documento sobre as propostas e reflexões para a Educação brasileira, um importante referencial para o processo de mobilização e constituição da Base Nacional Comum Curricular.

O ano de 2015 foi marcante para a discussão acerca de uma base nacional para a educação brasileira. Entre 17 e 19 de junho, aconteceu o I Seminário Interinstitucional para elaboração da BNC. Este Seminário foi um marco importante no processo de elaboração da Base Nacional, pois reuniu muitos assessores e especialistas para a sua elaboração. A Portaria n. 592, de 17 de junho de 2015, resultante desse processo, institui a Comissão de Especialistas para a Elaboração de Proposta da Base Nacional Comum Curricular.

Por se tratar de uma política pública que possibilitou conferências, encontros estaduais e envolvimento dos segmentos da sociedade implicados com a educação pública e privada do país, a BNCC para a Educação Básica foi amplamente discutida e, por isso, sua aprovação não foi tão rápida. Três versões foram discutidas antes da sua homologação.

A 1ª versão da BNCC foi disponibilizada em 16 de setembro de 2015. Após a divulgação dela, houve uma mobilização das escolas de todo o Brasil para a discussão do documento preliminar da BNC, e, em 3 de maio de 2016, a 2ª versão da BNCC foi disponibilizada, ou seja, mais de 6 meses para discussão de pontos que foram observados e que requeriam alterações. Nesse momento, muitos embates foram travados, embates que envolviam, também, ideologias e recursos financeiros.

Para dar conta de resolver e decidir tais embates e outros que se estabeleceram, foram propostos seminários locais, nos quais seria possível escutar e atender, na medida do possível, questões regionalizadas e mais pontuais para elaborar uma base que deveria ser nacional.

De 23 de junho a 10 de agosto de 2016, aconteceram 27 Seminários Estaduais, promovidos pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME). Estiveram presentes professores, gestores, especialistas e representantes de diferentes segmentos para debater a segunda versão da BNCC.

Como resultado desses seminários, em agosto desse mesmo ano, começou a ser redigida a terceira versão, em um processo, dito pelo MEC, colaborativo, com base na versão 2. Finalmente, em abril de 2017, o MEC entregou a versão final da Base Nacional Comum Curricular ao Conselho Nacional de Educação (CNE).

O CNE elaborou o parecer e o projeto de resolução sobre a BNCC e os encaminhou ao MEC. A partir da homologação da BNCC, deu-se início ao processo de formação e capacitação dos professores e o apoio aos sistemas de Educação estaduais e municipais para a elaboração e adequação dos currículos escolares.

Esse apoio foi uma ação que deve ser bem pensada, e o artigo tem por essa finalidade, no sentido de saber que tipo de apoio, incentivo e aporte foram direcionados para a formação dos profissionais que executam(rão) a BNCC nas escolas, bem como no viés do entendimento dos processos de participação, autonomia e gestão democrática.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Básica foi homologada pelo ministro da Educação, Mendonça Filho, em 20 de dezembro de 2017, e, em 22 de dezembro de 2017, o CNE apresentou a Resolução CNE/CP n. 2, que instituiu as orientações quanto à implantação da Base Nacional Comum Curricular em todas as escolas brasileiras.

Uma das ações do MEC, além de divulgar amplamente a BNCC por meio do seu site, instituiu o Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular (ProBNCC), ação essa que revela, mesmo que subjetivamente, uma resistência muito grande em relação ao texto final da BNNC diante de alguns aspectos discutidos ao longo do artigo, mas principalmente quanto à ausência dos processos de autonomia e participação com vistas a um processo mais democrático no interior das instituições brasileiras de ensino.

2.1 A implementação das políticas públicas

De acordo com a legislação educacional brasileira, um dos princípios da gestão da educação é a democracia, pois educação é processo, é movimento, é política. Desse modo, a escola é um local potencialmente conflituoso e, por isso, de natureza conflituosa, pois ensinar e aprender assim o são. A constituição da escola também é política, processual e se constitui por regras; nesse sentido, vale destacar que a democracia também necessita de regras para se efetivar, subtendendo-se, então, que a escola deva ser democrática.

A leitura de Gramsci (2002) permite ressaltar que a educação é um desdobramento da política e que seu conceito, na sociedade capitalista, caracteriza-se como um processo pelo qual o indivíduo adapta-se às exigências e necessidades do modo de produção capitalista e é treinado para desempenhar as funções em uma hierarquia que divide os dirigentes dos dirigidos.

Educar, na perspectiva de Gramsci (2002), deveria ser um processo de formação para a vida, realizando-se numa ideia de civilização. A educação não poderia se restringir apenas ao espaço escolar, mas fazer parte da luta das massas trabalhadoras por sua identidade e autonomia. Ela é um desdobramento da teoria política e está relacionada à organização cultural de um determinado país em um específico momento, ou seja, ao seu contexto político e ideológico.

Sabe-se, portanto, que a implementação de políticas públicas educacionais se efetiva e se materializa em ações e práticas, por meio de intenções do poder público, a partir de diferentes dimensões que se desdobram em valores públicos, ou seja, a educação é reconhecida como um direito de todos; em condições de implementação, que se remetem às suas possibilidades e inviabilidades; e ainda; em condições políticas, que direcionam para o que é aceitável de ser realizado do ponto de vista dos dirigentes que estão no poder. Todas essas três dimensões se concretizam, ou não, a partir do diálogo e da negociação.

Em síntese, tais políticas se efetivam (ou não) a partir das intenções do poder público, as quais se configuram em práticas, se assim o governo ou os dirigentes desejarem. O que se usa como desculpa para a sua não efetivação é a escassez de recursos e o excesso de propostas a serem implementadas.

O estamento burocrático nutre-se do patrimonialismo e acolhe da burocracia somente os procedimentos formais. É essa maneira autoritária de funcionamento do Estado que permite que as políticas públicas e que a gestão democrática seja constantemente alterada, ao sabor das conveniências políticas. O imperativo do poder “pessoal” marca a “descontinuidade” nas políticas educacionais, fator que dificulta a implantação de mecanismos de gestão democrática ao mesmo tempo em que favorece a burocratização. (BELLARDO, 2015, p. 141).

É importante ressaltar que, para que as intenções e as políticas educacionais sejam transformadas em políticas eminentemente eficazes, é necessário que sejam travadas discussões a partir das prioridades educacionais, nas quais as relações de poder não sobreponham as necessidades sociais.

O estudo das reformas educacionais é relevante, pois permite elucidar o que vêm, quais as intenções manifestas e não manifestas, seus limites, possibilidades e contradições. Para dimensionar, inclusive, seu alcance quanto aos prováveis impactos que causará sobre a cultura escolar. O nível de detalhamento da reforma permite, também avaliar em que medida é plausível de execução ou em que medida é mera retórica. (SILVA, 2010, p. 33).

Desse modo, percebe-se que as duas políticas públicas educacionais citadas e a sua relação com um projeto de desenvolvimento de uma educação democrática, laica, pública e de qualidade, tal como previsto pela Constituição Federal, são pura retórica, somente, como afirma Silva.

2.2 A BNCC e a democratização

As políticas educacionais e curriculares, em especial, a Base Nacional Comum Curricular, como esperado pela sociedade civil, deveriam privilegiar princípios educativos capazes de levar a uma educação comprometida com a sabedoria e com o conhecimento, a qual prepararia os indivíduos para o exercício da cidadania e os qualificaria para o trabalho, de forma consciente e sustentável; mas o que se observa, pelo contrário, é a defesa da formação de seres individualistas, competitivos, responsáveis por uma sociedade excludente e partidária.

Essas desigualdades e contrastes educacionais, segundo Frigotto (2009), caracterizam-se por um projeto de sociedade com resquícios escravocratas e de estigma colonizador, no qual a economia é dependente, e a educação, a cidadania e a produção de ciência e tecnologia são assuntos de menor importância.

Além disso, a proposição da BNCC não considera os aspectos globais do sistema educacional. Trata-se de uma reforma parcial, pois propõe, apenas, uma reforma curricular, mas em momento algum discute, analisa ou sugere discussões ou alterações para questões voltadas ao financiamento, formação docente, estrutura física, ou outras necessidades para implementação de tal reforma.

As políticas e a gestão educacional tendem, especialmente em países do capitalismo dependente, a se pautar pelas determinações dos organismos internacionais - legítimos representantes do capital mundial. Esses organismos têm forçado políticas focais fragmentadas e a gestão educacional centrada na perspectiva de mercantilização. (FRIGOTTO, 2009, p. 69).

Frigotto (2009) continua afirmando que, mesmo a Constituição de 1988 garantindo, nos termos da lei, direitos sociais, infelizmente não alterou de forma definitiva a questão da educação, ou seja, a educação nunca foi o alvo central ou fundamental para o desenvolvimento do Brasil. No texto proposto pela BNCC, foi atacado somente o problema da quantidade, e não da qualidade, o que leva a crer que tal política educacional é fragmentada, precária e suscitada pelas relações sociais dominantes da sociedade brasileira, a qual era e é, até hoje, fundada na desigualdade.

Mais uma prova de tal fragmentação e precarização é a implantação de uma base nacional curricular que minimiza e homogeneíza os conteúdos para todas as escolas do Brasil, desconsiderando as especificidades de cada região, além de, supostamente, estar preparando os alunos somente para o mercado de trabalho, diminuindo, assim, as possibilidades de protagonismo e autonomia deles.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), e está orientado pelos princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN). (BRASIL, 2017, p. 7).

Segundo o MEC, a BNCC estabelece conhecimentos, competências e habilidades e se espera que todos os estudantes as desenvolvam ao longo da escolaridade básica. Orientada pelos princípios éticos, políticos e estéticos traçados pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica, a Base soma-se aos propósitos que direcionam a educação brasileira para a formação humana integral e para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva, porém o que se esperava dessa política pública, minimamente, seria a educação

[...] vista como socialização para a participação democrática dentro da legalidade dos mecanismos instituídos de participação - a educação para a cidadania e a formação ética e moral. É o fetiche da educação: quanto mais o conhecimento é privatizado, por ser concebido como fator produtivo, e quanto mais ocorre exclusão do efetivo acesso ao conhecimento inerente às decisões econômicas e políticas e à participação cultural, mais a finalidade socializadora da educação é enfatizada como condição de participação social. (TAVARES, 2004, p. 43).

Não é possível identificar no texto da BNCC a atuação participativa, nem do aluno, nem do professor, aspecto esse que deveria ganhar ênfase para o desenvolvimento da autonomia e do protagonismo dos estudantes. Nesse sentido, cabe fazer uma importante ressalva: a ideia de participação não pressupõe autonomia e tampouco gestão democrática, ou seja, a gestão democrática não se resume somente à participação, pois a participação nem sempre se configura em democracia. É preciso então, ter muito cuidado ao discutir os princípios da autonomia e da participação quando se discute democracia. É de extrema importância identificar de que forma as pessoas que estão recebendo a BNCC estão a interpretando e a implementando, de que forma esse texto repercute na prática do professor, e em que medida o texto escrito se distancia da prática em sala de aula.

Não pode se perder de vista que este é um texto meramente instrucional, com a presença de uma leitura codificada, o qual será lido pelos agentes escolares e os significados a serem atribuídos serão próprios de cada realidade escolar. Esse processo ocorre por meio de um movimento de recontextualização a respeito do que está posto no documento e se dá a partir dos tensionamentos existentes naquele espaço, bem como das suas condições reais e efetivas de implementação.

Permitir o “movimento de recontextualização, por meio do qual se opera uma seleção e um processo de deslocamento de significados conceituais em direção ao que é praticado” (SILVA, 2008, p. 34) é, sem dúvida, dar o direito de entender e refletir a política que está posta em razão das escolhas, das condições, das crenças de tal grupo ou sociedade, possibilitando que esse currículo supere sua posição como um simples texto, mas que receba movimento, torne-se regulativo, e isso é, sem dúvida, exercer a autonomia e, por conseguinte, a democracia nos espaços educativos.

E entende por democracia: “Democracia como sistema de vida de um grupo, significa a compreensão inteligente dos fatos que nele se dêem, para situações que atendam a interesses comuns por métodos de ação solidária. (FILHO, 1976, p. 155 apud SOUZA, 2006, p. 45).

Nessa perspectiva, a democracia que se busca nessa política educacional é aquela que se sustenta na emancipação política dos sujeitos, articulada a uma concepção de mundo que o cidadão luta por novas relações de hegemonia, visando à aspiração de liberdade não só para as classes menos favorecidas, mas sim para todas as classes dominadas.

O conceito de democracia sustenta-se no princípio de abertura de espaços de discussão e participação política para as classes populares. Diferentes têm sido as formas da busca pela ampliação do conceito e pela aplicação efetiva da gestão democrática e da participação no contexto escolar, e, por isso, reforça-se novamente a necessidade da discussão, reflexão e redimensionamento das políticas públicas anteriormente citadas no que se refere aos conceitos de autonomia, de liderança, de gestão curricular, de gestão de recursos e de gestão organizacional.

Para Ganzeli (2000), a autonomia não se dá, ela se transfere. A autonomia é a capacidade de um indivíduo, quer no coletivo, quer no individual, dar rumo a sua própria trajetória, valorizando, inclusive, a presença e a importância do outro. Portanto, a Base Nacional Comum Curricular deveria propor a formação de um tipo de autonomia que não se estabelece a partir do outro, mas sim apesar do outro, oferecendo condições e suporte para uma construção autônoma, tanto das suas ações quanto do conhecimento do qual vai se apropriando ao longo da vida. Ganzeli (2000, p. 75): “nesse sentido, a escola pública pode atuar de forma a manter ou transformar as relações de dominação entre as classes sociais, possuindo assim, uma autonomia relativa em relação às mesmas”.

Ganzeli (2000) ainda afirma que os bens e serviços oferecidos pela escola, além de serem analisados enquanto meios para atender às necessidades básicas das classes oprimidas, podem exercer influências no desenvolvimento de políticas que correspondam aos interesses históricos das classes, e isso interfere diretamente na construção de uma escola pública que pode, ou não, estar voltada aos interesses da comunidade.

Está claro que o Brasil enfrenta profundas desigualdades sociais, econômicas e culturais, configurando-se em uma sociedade capitalista e um país dependente, movido por um capital monopolista que exclui as massas populares dos seus direitos políticos e econômicos, estando a concentração de renda nas mãos de agências internacionais que manipulam o país. E o que se percebe na leitura e análise dos textos finais das políticas educacionais citadas é exatamente isso.

O direito à educação se assenta no discurso teórico do liberalismo que gerou o movimento de organização do ensino público como consequência direta dos ideais da democracia e da consolidação do Estado nacional. O compromisso com a educação pública tem se constituído como um mecanismo para a construção da estabilidade democrática. (MENDONÇA, 2000, p. 25-6).

Não se pode perder de vista que os objetivos do neoliberalismo e da crescente globalização são contrários daqueles que a real democracia vislumbra, pois esses movimentos veem na escola a possibilidade de formação de indivíduos adaptáveis ao mercado de trabalho e à manutenção da ordem. Nessa perspectiva, a escola propõe-se a ser uma exímia formadora de mão de obra barata e da mais-valia, mantendo o Brasil como dependente e latifundiário.

Desse modo, destaca-se a importância de se refletir sobre como e se a Base Nacional Comum Curricular dialoga com a gestão democrática do ensino, devendo a escola ser (re)pensada a partir da recuperação das formas de autonomia e de participação da sociedade, sejam elas ativas ou passivas, e das classes subalternas nas políticas dominantes.

Contrariamente ao que a ideologia neoliberal propõe para o reconhecimento da escola eficaz, devemos admitir que a qualidade não se mede só pelos resultados, na medida em que a escola não é a única responsável pela aprendizagem dos alunos. Também admitiremos que a escola é, pela sua natureza profundamente humana, uma comunidade de participação de diferentes atores cuja gestão não se pode basear nos modelos de gestão fabril e empresarial. (PACHECO, 2000, p. 149).

O que não se deseja da escola é que ela seja agente para a capacitação de mão de obra e requalificação dos trabalhadores, de forma a atenderem às exigências do mercado e do sistema produtivo, além de possibilitar a formação de um consumidor exigente para um mercado diversificado e competitivo, uma vez que o que se pretende é tornar “o cidadão eficiente e competente, nessa ótica, capaz de consumir com eficiência e sofisticação e de competir com seus talentos e habilidades no mercado de trabalho” (LIBÂNEO, 2009, p. 112).

A globalização e a revolução técnico-científica, trajadas com uma roupagem neoliberal, impõem aos países periféricos a economia global sem restrições, a competição ilimitada, bem como a minimização do Estado na área econômica e social. Em decorrência disso, vive-se um processo histórico de disputa de muitos interesses sociais, por vezes inteiramente opostos. Para construir a história da sociedade, não basta apenas o cidadão escolher os governantes, mas assumir-se como sujeito, exercendo seu papel dirigente na definição do seu destino, dos destinos da educação e da sociedade. O cidadão deve ser político, capaz de ­questionar, criticar, reivindicar, participar, ser militante e engajado na transformação de uma ordem social injusta e excludente para uma sociedade inclusiva e justa.

Segundo Mendonça (2000), a legislação brasileira apresenta a gestão democrática do ensino público como um princípio constitucional, o que se traduz em uma diretriz que deve ser cumprida. Desse modo, o Estado se utiliza dela para alcançar alguns dos seus objetivos, ou seja, é necessário analisar a gestão democrática como uma política de Estado e “desvendar as dificuldades decorrentes da implantação de mecanismos, que pressupondo vigorosa participação da sociedade, são patrocinadas por um Estado fortemente marcado por ordenamentos patrimonialistas.” (p. 51).

A partir dessa indagação, fica evidente que a contribuição significativa que a escola deve ter em relação à democratização da sociedade, para o exercício da democracia participativa, fundamenta-se no princípio da gestão democrática.

A gestão democrática da educação assenta-se no conceito de democracia, que é o seu princípio. Não da democracia burguesa que se caracteriza pelas liberdades políticas, pelo império da lei e pela competição política em que impera a dominação em todas as suas formas. Trata-se do conceito de democracia que compreende a sociedade como um organismo de interesses homogêneos e solidários em que todos os sujeitos têm direitos e deveres comprometidos com o bem comum, a fraternidade, a equidade, a ética e a justiça social. É o governo do povo que constrói, coletivamente, a sociedade solidária de compromissos, direitos e deveres comuns, alicerçada na liberdade e na possibilidade para todos. (FERREIRA, 2011, p. 80).

Portanto, a concepção de políticas públicas educacionais no viés da democracia está intimamente ligada à posição ético-política adotada pelo grupo que está no poder. Este pode manter a ordem econômica e social que está posta ou transformá-la por meio de políticas que atendam às demandas e necessidades sociais. Como afirma Silva (2010, p. 32), “Estado e povo precisam se educar mutuamente, sem isso não se pode falar de política ou gestão democrática da educação [...]”.

Com a busca pela redemocratização do país, a partir da década de 1980, a sociedade passou a pressionar mais os governos e, em consequência desse novo movimento, esses precisaram dar maior atenção, obrigatoriamente, às áreas essenciais ao desenvolvimento da cidadania. Para Bordignon (2009), a autonomia é um dos fundamentos da gestão democrática, e a participação e o exercício da cidadania significam o exercício do poder. Já a gestão democrática é a condição da qualidade sociocultural da educação, e, por isso, deve ser garantida a participação de todos na elaboração de políticas públicas educacionais.

A democracia é frequentemente associada ao ensino público como instrumento de mudança e como fim a ser alcançado. Todo o processo de luta pela gestão democrática, sua incorporação na legislação e suas tentativas de implantação nos sistemas de ensino brasileiro são um exemplo disso. (MENDONÇA, 2000, p. 68).

No campo da educação, a ideia de democratização vem do princípio de educação para todos, porém democratizar não se resume em somente dar acesso, pois isso se trata de um direito a ser garantido; democratizar remete-se a estender esse direito, ou seja, democratizar conhecimento, com práticas horizontais de atuação e disseminação das informações.

A participação é a categoria central da democracia, porém, toda vez que se regulamenta a democracia, o processo de participação é restringido às determinadas regras impostas, e, por outro lado, não haveria democracia sem regras. A questão central é: quem e como se regulamentam as regras? No campo educacional, é possível se questionar o quanto a escola é democrática porque é obrigatória, e ainda o quanto a sociedade precisa de conflitos para manter-se democrática, pois a ausência de regras e conflitos coloca em cheque a democracia na sociedade e, portanto, as suas políticas.

A partir dessa inquietação, Mendonça (2000) salienta o compromisso com a educação pública na desmitificação de tais regras e na sua constituição enquanto um importante mecanismo para a construção da estabilidade democrática; com isso, torna-se possível resistir às formas de opressão e conservação, sobretudo, na área educacional, buscando ou possibilitando formas alternativas e criativas, que, de fato, contribuam para uma escola democrática a serviço da formação de indivíduos críticos e participativos, transformadores das relações sociais existentes.

Uma das formas de resistência ao neoliberalismo e ao estabelecimento de um Estado mínimo é, sem dúvida, a análise das políticas públicas educacionais, na tentativa de identificar melhores formas de se ofertar um ensino público, gratuito, emancipatório e de qualidade, no viés da democracia, um princípio constitucional.

É necessário que a escola não prepare o cidadão para o mercado e para o consumo, ou seja, para vivenciar o sistema capitalista e ser espoliado por ele. Esse tipo de relação homem/mercado torna-o um ser individualista, imediatista, afetado constantemente no seu modo de pensar, com o objetivo de reduzir a sua capacidade de participar e atuar politicamente na sociedade em que está inserido. A escola precisa, definitivamente, contribuir com a construção da história da sociedade, auxiliando o cidadão na escolha de governantes, permitindo que este se assuma enquanto sujeito, para que exerça seu papel dirigente na definição do seu destino e dos destinos da educação e da sociedade.

Nesse sentido, faz-se necessário discutir sobre uma questão contraditória presente no dia a dia da implementação das políticas púbicas educacionais, no que se refere ao entendimento de que nem sempre quem faz a política é quem a decreta, mas sim quem a executa. A política se faz a partir de resistências e contribuições e quem a opera não precisa entender necessariamente sobre a sua atuação, pois, como o indivíduo reconhece e obedece à autoridade, a dominação desse por outrem é um processo natural, tal como destacado por Weber.

Aproximando esse conceito da realidade escolar, pode-se dizer que as políticas educacionais são as mais difíceis de serem efetivadas, pois elas se estruturam na sala de aula, ou seja, sua efetivação é muito mais difícil do que sua implementação. O proponente de uma política pública educacional domina um tipo de estrutura que a define, enquanto aquele que deve executá-la não a domina da mesma forma ou do mesmo ponto de vista e, por não encontrar razão nela, pode alterá-la ou não a efetivar.

Para Ganzeli (2000), o processo participativo é prioritário no que diz respeito à definição de conteúdos, estratégias e objetivos das políticas públicas, posto que desse processo dependerá a viabilidade dos projetos e atuações que foram propostas.

A efetivação da gestão democrática não só possibilita a participação de todos na (re)construção de uma escola de melhor qualidade e com participação de todos, como também, segundo Ferreira (2011, p. 164), “a autoformação de todos os envolvidos pela e para a ‘leitura’, a interpretação, o debate e os posicionamentos, que podem fornecer subsídios para novas políticas”. Nesse sentido, é preciso elucidar o conceito de democracia como um conjunto de princípios e práticas que protegem a liberdade humana, sendo o principal caminho para a emancipação dos cidadãos e a concretização de uma sociedade livre, na qual os cidadãos determinam a si mesmos, individual e coletivamente.

Desse modo, o Estado deve estar disposto a intervir economicamente, diminuindo os conflitos existentes entre a burguesia e o proletariado, entre integrados e marginalizados. O regime político só se tornará mais democrático quando forem aumentadas a participação e a organização popular, desmascarando a ideia de que o Estado está a favor do povo, e as políticas públicas educacionais podem contribuir nesse sentido, desde que partam daqueles que as necessitam.

Por outro lado, é importante assinalar que a construção do Estado brasileiro foi marcada pela presença dos grupos privados, presença facilitada pela maneira como foi ocupada a terra da colônia e como foi organizada administração do governo. Característica dos Estados patrimoniais, o poder político foi compreendido como uma instância privada, sendo confusa a relação entre a coisa pública - res publica - e a coisa privada - res privata. A forma de dominação política no patrimonialismo não estabelece divisões nítidas entre as esferas da atividade pública e privada. Essa indistinção também dificultou sobre maneira a instalação de uma ordem legal burocrática no Estado brasileiro. (MENDONÇA, 2000, p. 55).

Nesse contexto em que o Estado se encontra fragilizado e que a economia globalizada provoca interdependências defendidas por um Estado mínimo, busca-se incansavelmente a análise e a reflexão acerca da Base Nacional Comum Curricular enquanto recursos para a democratização, para a participação, para a humanização e para a formação para a cidadania, conceitos que se fortalecem como princípios, desde 1988.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A gestão democrática da educação deve ser um processo de envolvimento político da comunidade, podendo auxiliar na produção de tais recursos e conhecimentos, bem como da emancipação política dos envolvidos. Para isso,

a gestão democrática da educação e a construção coletiva do projeto político pedagógico no sentido de assegurar a autonomia da escola são pressupostos fundamentais para o desenvolvimento da cidadania. Nesse sentido, a escola, enquanto agência de formação, não pode vincular-se à lógica do mundo do trabalho, mas cumprir sua função social, isto é, cumprir seu papel político-institucional. (FERREIRA; SCHLESENER, 2007, p. 101).

Pergunta-se, então: para qual projeto de sociedade esse cidadão está sendo formado? Que cidadão se quer formar? Para qual sociedade? Quem elabora as políticas públicas? A quem são elaboradas? Por quem são executadas? É urgente e necessário que a função e a autonomia do Estado sejam recuperadas, como também o seu poder de ação, principalmente na área educacional, para que se efetive uma educação de qualidade e democrática, formando para a cidadania crítica e participativa, na qual os cidadãos sejam capazes de interferir criticamente na realidade para transformá-la e de engajar-se na luta pela justiça social.

Essa nova realidade econômica, social e política delega à educação um novo desafio, pois a escola tem, realmente, compromissos sociais e precisa garantir sua especificidade, que é a de educar, criando mecanismos de enfrentamento da atual organização e da demanda sociopolítica.

A educação, por ser um processo de formação do homem que vive em uma sociedade capitalista, dá-se na vida, nas relações que ele estabelece com outros homens e com o ambiente em que está inserido; portanto, a escola é o espaço principal, mas não único, de formação integral do indivíduo. É importante ressaltar que, quando o sujeito participa das instâncias colegiadas de gestão democrática, exerce os princípios de participação e autonomia, de aprender e de fazer escolhas, os quais são mecanismos de modificação dos processos que acontecem na história. Desse modo, “ao incorporar as experiências e vivências cotidianas na escola e na educação em geral, o homem começa a romper com sua integração ativa ou passiva, à ordem dominante” (FORTUNATO, 2007, p. 168-169), de certa forma, definindo também os rumos da sociedade. Então,

favorecer a passagem dos dirigidos para dirigentes implica elaborar uma nova concepção de mundo e gerar as condições de um processo educativo que possibilite a todos serem conscientemente atuantes e donos do seu destino. (SCHLESENER, 2011, p. 182).

Na atual sociedade, pós-Constituição, caracterizada como democrática, busca-se a participação da sociedade civil na elaboração das políticas públicas educacionais e nos processos de tomada de decisão, os quais devem ser paulatinamente ampliados e estendidos até que se alcancem todos os segmentos sociais, e não apenas os historicamente organizados, pois a democracia envolve mais do que negociação e concessão.

Desse modo, de acordo com Paro (1986), a elaboração das políticas públicas educacionais pode ser compreendida como um processo político explícito, ou não, de disputa de poder, no qual as pessoas que agem na e sobre a educação pautam-se predominantemente pelos seus próprios olhares e interesses, com vistas a garantir que as suas formas de compreender a instituição, a educação e os seus objetivos prevaleçam sobre as dos demais sujeitos, a ponto de, na medida do possível, levar os demais sujeitos a agirem como elas pretendem.

A educação se revela como elemento de transformação social, por um lado, no caráter pedagógico que assume a luta política da classe trabalhadora em seu esforço revolucionário com vistas à desarticulação do poder da classe burguesa e à construção do novo bloco histórico, já que toda ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica. (PARO, 1986, p. 104).

Com isso, redimensiona-se a importância da educação como uma possibilidade às classes dominadas de conquistar os pressupostos necessários para a sua organização e emancipação política. A escola, como formadora para o trabalho e para a vida, é uma das instâncias para o início do processo de emancipação e construção da cidadania, partindo do eixo da gestão democrática e da implementação de políticas públicas educacionais realmente relevantes e emancipatórias que valorizem alunos e professores como seres viventes e pensantes, ou seja, cidadãos de um mundo e de uma cultura em movimento.

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Recebido: 05 de Agosto de 2021; Aceito: 12 de Janeiro de 2022

Rita Schane: Doutoranda em Educação na Linha Políticas Educacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mestre em Educação na Linha Políticas Públicas e Gestão da Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). Especialista em Educação, com ênfase em Psicopedagogia. Graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora da Unisantacruz e Unifael. Supervisora de Avaliação da Editora Aprende Brasil. E-mail: rischane@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-6389-5145

Sandra Regina Bernardes de Oliveira Rosa: Doutoranda em História e Políticas Educacionais do Programa de Pós-Graduação em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mestre em Educação Linha de Políticas Educacionais do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Tuiuti do Paraná (PPGE/UTP). Especialista em Psicopedagogia e Educação Especial Inclusiva pela Faculdade São Braz. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pedagoga escolar da Rede Estadual de Ensino do Paraná e Pedagoga escolar pela Rede Municipal de Ensino de Curitiba. E-mail:bernardesrosa72@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-8451-3441

Sirley Terezinha Filipak: Graduação em Pedagogia Pela Universidade Federal do Paraná (1983). Mestrado em Educação Recursos Humanos e Educação Permanente pela Universidade Federal do Paraná (1992). Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011). Professora doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação e cursos de Licenciaturas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). E-mail:sirley.filipak@pucpr.br, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-4264-1626

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