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Série-Estudos

Print version ISSN 1414-5138On-line version ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.60 Campo Grande May/Aug 2022  Epub Aug 30, 2022

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v27i60.1673 

Artigos

Protagonismo dos professores Terena da Aldeia Tereré em Mato Grosso do Sul na construção do bem viver comunitário

Protagonism of Terena teachers from Aldeia Tereré in Mato Grosso do Sul in the construction of community well-being

Protagonismo de los docentes Terena de Aldeia Tereré en Mato Grosso do Sul en la construcción del bienestar comunitario

Maioque Rodrigues Figueiredo1 
http://orcid.org/0000-0001-9497-7717

Heitor Queiroz de Medeiros1 
http://orcid.org/0000-0001-5313-1811

1Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil.


Resumo:

Este artigo é parte dos resultados da dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), vinculado à linha de pesquisa Diversidade Cultural e Educação Indígena. A pesquisa teve como objetivo geral investigar e entender o protagonismo dos professores Terena da Escola Indígena Cacique João Batista Figueiredo na construção do bem viver na comunidade indígena da Aldeia Tereré, Terra Indígena Buriti, no município de Sidrolândia, em Mato Grosso do Sul. A metodologia utilizada para produção e análise dos dados foi de caráter qualitativo, utilizando o método da história oral, das técnicas de diário de campo, entrevistas, análise documental e revisão bibliográfica. Procurou-se entender como os professores indígenas Terena têm construído sua educação escolar indígena, diante dos mais de 500 anos de história de submissão e exclusão, buscando diálogos com as lideranças tradicionais e políticas a fim de entender o processo de construção do bem viver comunitário. Os resultados da pesquisa apontaram que suas reivindicações são legítimas e justas, como a luta pela demarcação dos seus territórios tradicionais, pelo cumprimento das leis da educação escolar indígena, bem como pelo atendimento da saúde básica de qualidade para a comunidade.

Palavras-chave: professor indígena terena; protagonismo indígena; bem viver

Abstract:

This article forms part of the results of the master thesis defended in the Postgraduate Program in Education at the Dom Bosco Catholic University linked to the Cultural Diversity and Indigenous Education Research Line. The general objective of the research was to investigate and understand the role of the Terena teachers of the Indigenous School Cacique João Batista Figueiredo in the construction of the well living in the indigenous community of the Tereré Village, Buriti Indigenous Land, in the municipality of Sidrolândia in Mato Grosso do Sul. The methodology used for the production and data analysis was qualitative, using the oral history method, field diary techniques, interviews, documental analysis, and bibliographic review. We sought to understand how Terena indigenous teachers built their indigenous school education in the face of more than 500 years of history of submission and exclusion, seeking dialogues with traditional and political leaders to understand the process of building community life. The investigation results showed that their claims are legitimate and just, such as the fight for the demarcation of their traditional territories, for the fulfillment of the laws of indigenous school education, as well as for the basic health care of quality for the community.

Keywords: Terena indigenous teacher; Indigenous protagonism; well living

Resumen:

Este artículo es parte de los resultados de la tesis de maestría defendida en el Programa de Posgrado en Educación de la Universidad Católica Dom Bosco (UCDB), vinculado a la línea de investigación Diversidad Cultural y Educación Indígena. El objetivo general de la investigación fue investigar y comprender el papel de los profesores Terena de la Escuela Indígena Cacique João Batista Figueiredo en la construcción de bien vivir en la comunidad indígena de la Aldea Tereré, Tierra Indígena Buriti, en el municipio de Sidrolândia en Mato Grosso do Sul. La metodología utilizada para la producción y análisis de datos fue cualitativa, utilizando el método de la historia oral, técnicas de diario de campo, entrevistas, análisis documental y revisión bibliográfica. Se buscó comprender cómo los maestros indígenas Terena han construido su educación escolar indígena frente a más de 500 años de historia de sometimiento y exclusión, buscando diálogos con líderes tradicionales y políticos para comprender el proceso de construcción del bien vivir comunitario. Los resultados de la investigación mostraron que sus reclamos son legítimos y justos, como la lucha por la demarcación de sus territorios tradicionales, por el cumplimiento de las leyes de educación escolar indígena, así como por la atención básica de salud de calidad para la comunidad.

Palabras clave: profesor indígena Terena; protagonismo indígena; bien vivir

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), que buscou analisar a efetivação da educação escolar indígena diferenciada e das retomadas das terras tradicionais dos Terena da Aldeia Tereré, no município de Sidrolândia, em Mato Grosso do Sul, caminhando no entendimento sobre a forma que se estabelecem, na comunidade, a qualidade de vida e o bem viver.

É sabido que as políticas públicas indígenas não são trabalhadas de forma isolada, ou seja, não podem ser efetivadas descoladas, principalmente, da questão do território, pois isto é imprescindível para que outras políticas aconteçam. Impossível falar de cultura indígena, da saúde indígena, de educação indígena, sem ter o território tradiconal, pois sem esse não pode haver os outros atendimentos diferenciados, direitos que estão garantidos na Constituição Federal de nosso país.

A educação escolarizada nos moldes da sociedade ocidental colonizadora invadiu a privacidade dos povos indígenas, entrou sem pedir licença, tomando conta das coisas, e os povos originários, na maioria das vezes, abriram as portas de suas casas para ela entrar sem o menor sinal de resistência.

A pesquisa buscou dialogar pirncipalmente com pesquisadores indígenas que, com suas experiências como intelectuais pesquisadores e militantes da educação escolar indígena, já vivenciaram e escreveram sobre os avanços e desafios enfrentados nesse campo.

A metodologia utilizada para produção e análise dos dados, de caráter qualitativo, foi ancorada na história oral, com realização de entrevistas e usando diário de campo, além de análise documental e revisão bibliográfica, bem como a observação participante em diálogos desenvolvidos em rodas de conversa no momento do tereré, uma bebida feita por meio da infusão da erva-mate (Ilex paraguariensis) em água fria e que faz parte da cultura de diversos povos indígenas.

Segundo Gerhardt e Silveira (2009), “O diário de campo, enquanto técnica de pesquisa, foi utilizada inicialmente pela Antropologia, classicamente representada pelo antropólogo Bronislaw Malinowisk, o primeiro a sistematizar as observações realizadas em suas pesquisas etnográficas”.

Com os professores, a produção de dados aconteceu em reuniões da escola, nos encontros da Ação Saberes Indígenas na Escola, programa implementado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI/ MEC), em parceria com as Secretarias de Educação das unidades federativas que buscam promover a formação continuada de professores da educação escolar indígena, especialmente daqueles que atuam nos anos iniciais da educação básica nas escolas indígenas e, também, nas salas de aula em contato direto com os alunos.

2 A ESCOLA NA ALDEIA TERERÉ E SUAS PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA

A Aldeia Tereré nasceu no ano de 1980, mas somente em 1991 a área foi homologada como terra indígena (TI), tendo crescido e implantado organização própria, conforme os costumes e a tradição do povo Terena. Ela está inserida na Terra Indígena Buriti, que está localizada nos municípios de Dois Irmãos do Buriti e município de Sidrolândia, no Estado de Mato Grosso do Sul.

Somente depois de muitas lutas os povos indígenas conquistaram direitos que foram assegurados com a promulgação da Constituição de 1988, como o direito as suas terras tradicionais, reconhecimento de suas organizações sociais e uma educação específica intercultural e diferenciada (BRASIL, 1988); ou seja, uma educação planejada conforme as aspirações de cada grupo étnico, tendo autonomia para construir seu próprio currículo, levando em conta os valores culturais da comunidade em que a instituição escolar está inserida (BRASIL, 2001).

Para os movimentos indígenas, não se faz educação escolar indígena sem professores indígenas, e, na maioria das comunidades indígenas, isso já é uma realidade, os professores não índigenas aos poucos foram sendo substituídos. Tal fato aconteceu em função das demandas das próprias lideranças, que reivindicaram os espaços de ser professor para os professores indígenas.

A inserção dos indígenas nas universidades também foi importante para esse novo contexto, pois o título de graduação para os indígenas provocou uma atenção para o novo momento em que os indígenas reivindicavam seus espaços nas escolas indígenas, até então negados por não terem formação acadêmica.

Observando os movimentos que vêm acontecendo em meio aos povos indígenas e suas organizações sociais, pode-se notar que grandes mudanças estão acontecendo em relação às conquistas e à afirmação da identídade deles, e muitos foram os acontecimentos envolvendo as etnias indígenas em dias atuais, sendo que as manifestações e as retomadas das terras tradicionais deram início a uma nova luta em busca de espaços e garantía de direitos já previstos na Constituição Federal do Brasil de 1988.

Segundo Bhabha (1998, p. 15):

O ‘além’ não é nem um novo horizonte, nem um abandono do passado. [...] Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no meio do século, mas, neste fim de siêcle, encontramo-nos no momento de transito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.

Sendo assim, em vários segmentos da sociedade, nota-se a presença cada vez maior de indígenas, como na política, na saúde e na educação. Aos poucos, os indígenas começam a ocupar os espaços que antes tinham a participação somente de pessoas não indígenas, como nos setores de trabalho e também na representação deles próprios nas questões políticas e sociais.

A educação escolar indígena é também um espaço de desconstrução de tudo que os povos indígenas se submeteram ao longo de 500 anos de história, é espaço para a construção de uma sociedade indígena que valorize suas tradições, a busca da revitalização da língua materna, bem como para romper com paradigmas e estereótipos construídos a partir dos ideais etnocêntricos.

Uma tarefa dos professores indígenas é ler e interpretar as leis sobre os direitos indígenas não só no campo da educação, mas também no direito à diferença, sobre organizações sociais próprias de cada comunidade e do direito às terras tradicionais.

Para falar sobre educação escolar indígena, é preciso considerar que esta educação é desenvolvida em meio a grupos étnicos com culturas variadas e um modo de vida que lhes são particulares; ou seja, para entender a educação escolar indígena, faz-se necessário obter conhecimentos sobre o contexto cultural e a organização social da comunidade em que a escola está inserida.

Segundo Luciano (2005, p. 108), a escola foi criada como um instrumento sociopolítico de reprodução da sociedade europeia religiosa e em processo de industrialização, da expansão marítima e domínio imperialista.

Para Luciano (2013, p. 24):

A escola é um instrumento para garantir o acesso a esse mundo desejável, o que não implica substituir ou desvalorizar os conhecimentos tradicionais, que continua a ser referência identitária e base de direitos, mas não horizonte ontológico e cosmológico da vida. O desafio, portanto, não é querer mais escolas e sim definir como elas devem ser para que possam atender as demandas dos povos indígenas.

Temos muito que descobrir, desconstruir, construir e ressignificar os trabalhos, pois esse processo busca entender as ações dos professores, da forma como ele vai trabalhar e planejar o seu fazer pedagógico.

A possibilidade de aulas com os mestres tradicionais é proporcionar momento de reflexão para o aluno, bem como para os anciões, oportunizar aos anciões momentos com alunos e alunas, no sentido de valorizar seus conhecimentos ao longo de sua vida, pois esses anciões são verdadeiras bibliotecas humanas; para isso, basta os professores estimularem, e eles buscarem em suas memórias as histórias e suas experiência de vida.

Segundo Hall (1997, p. 9):

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas.

Nesse contexto, é importante o evento tradicional da Aldeia Tereré, que é a Semana Cultural, um movimento popular que nasceu como atividade tradicional e só depois foi para os espaços da escola da aldeia. Antes mesmo de fazer parte do calendário letivo da educação escolar indígena do município de Sidrolândia, este evento cultural vem se firmando e ganhando espaços, sendo que o evento acontece na primeira quinzena de abril, desde o ano de 2005.

A Semana Cultural tem como objetivo a reafirmação da cultura e da identidade dos Terena da Aldeia Tereré e é realizada todos os anos pela escola, em parceria com a comunidade, visando fortalecer a luta de resistência dos Terena e a luta pelos direitos constitucionais.

Nesse caminhar, atividades como a semana cultural tem se firmado nos espaços da escola e na aldeia, como projeto de iniciativa de fortalecimento da cultura, estabelecendo-se como espaço de diálogo e reflexão entre professores, alunos, lideranças, pais, mães e comunidade em geral.

Eventos dessa natureza tem possibilitado refletir sobre os tempos atuais, em que as comunidades originárias sofrem com problemas sociais de várias ordens nas áreas da educação, saúde, com a violência, fome, negação dos direitos, preconceitos, desassistência na produção, entre outros. E, de acordo Lescano e Medeiros (2019, p. 14):

É necessária a compreensão sobre as mudanças nesse novo tempo de viver, de mudanças significativas e insignificativas, principalmente no cenário da cultura tradicional, da pedagogia indígena, das condições socia is, da forma de racionalidade, dos espaços geográficos, da participação direta nas decisões políticas internas e externas, na sustentabilidade e, até mesmo, no modo de ensinar e de aprender das crianças. Não podemos só pensar na cultura tradicional, mas também saber transitar em outras culturas que estão presentes no nosso cotidiano, para compreender, de fato, a constituição dos novos segmentos e veículos de informações que permeiam a comunidade. Para isso, a escola é o espaço adequado para confrontar, criar e recriar a epistemologia que dê conta da realidade.

Todos esses problemas estão intimamente ligados à questão territorial, resultado da perda das terras tradicionais, que se deu de maneira diferente com relação a cada povo, sendo, portanto, vital entender que, somente a partir das demarcações dos territórios tradicionais, os povos indígena podem garantir a sobrevivência do seu povo, gerir seu território e garantir o bem viver.

Em diálogo com alunos e alunas da escola Indígena Cacique João Batista Figueiredo, foi detectado o desconhecimento de estudo sobre cultura e história dos povos indígenas. Relatos dos alunos afirmam: “Não sabíamos o que era educação escolar indígena diferenciada”; “Lá na escola de fora não tem Semana Cultural”; “Não sabíamos o que era semana cultural; “Hoje podemos dizer que aprendemos um pouco sobre nossos direitos”.

A partir dessa realidade, no decorrer do evento, os professores da Escola Indígena Cacique João Batista Figueiredo propiciam momentos de atividades lúdicas e recreativas, as quais são realizadas com a participação de todos os alunos e alunas desta instituição, em parceria com a comunidade. Alunos e alunas confeccionam as vestimentas (trajes) indígenas para as apresentações das danças que são apresentadas no encerramento da Semana Cultural.

Nesse evento tão importante, são organizadas várias atividades, como palestras relacionadas a diversos temas, dentre eles: saúde, educação, território. No encerramento da Semana Cultural, o desfile “Beleza Indígena” proporciona momento de reflexão do quanto é rica e belíssima a cultura Terena, em que alunos e comunidades participam juntos, fortalecendo a luta de resistência. Todos se mobilizam para confeccionar as vestimentas, é um grande evento, com muitas pinturas, e o colorido toma conta.

Os alunos aprendem: a confeccionar vestimentas (trajes) indígenas, como saias de fibra de buriti; a praticar arco e flecha; a tocar pife (flauta feita de bambu); a tocar caixa; a dançar o bate-pau (dança Terena masculina); a realizar a dança do cypu-trena (dança Terena feminina); e, também, a fazer pintura corporal.

Para Bhabha (1998, p. 16), “é na emergência dos interstícios - a sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença - que as experiências intersubjetívas e coletívas de nação, o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados”.

É nesse movimento que os professores dessa escola estão pratícando e desenvolvendo atívidades que vão além das salas de aula; portanto, indo além dos muros da escola, como o projeto “Meio Ambiente”, no qual realizam passeios pela aldeia, para observação do ambiente onde vivem; pesquisam e reproduzem jogos e brinquedos a partir dos materiais recicláveis; e realizam exposição dos trabalhos produzidos, de forma que pais de alunos e alunas possam prestigiar esse momento de diálogo e reflexão para um ambiente saudável.

Esse processo traz em si a oportunidade de dialogar com a comunidade e mostrar que o Estado de Mato Grosso do Sul tem uma dívida histórica com os povos indígenas que habitam secularmente estas terras. Esta dívida, de âmbito territorial, ambiental, econômico, social e cultural, precisa ser reconhecida e reparada sobre o desejo de reescrever uma nova história, a qual promova a não repetição de atitudes e políticas genocidas, que violaram e violam o direito de nosso povo, em seus princípios mais vitais.

É necessário socializar com a comunidade escolar que os direitos dos povos indígenas estão garantidos na Constituição Federal Brasileira de 1988, buscando entender que cada povo que compõe o Estado de Mato Grosso do Sul tem organização própria, língua, crença, costumes, processo de ensino-aprendizagem e maneira própria de ver e entender o mundo ao seu redor.

Olhar sobre a diversidade de nosso povo, as suas formas econômicas, relação com o trabalho, concepção de uso da terra, não deve ser visto como empecilho ou estorvo ao dito “progresso” ou “desenvolvimento”; ao contrário, cada comunidade originária tem suas potencialidades próprias que se erradiam de seu local. E, com o devido apoio governamental, tais potencialidades devem desabrochar, para, juntos, promover o bem viver, que, para os povos indígenas, significa proporcionar a dignidade de vida não a partir da ótica dos povos ocidentais, mas a partir das demandas e da cosmovisão dos povos indígenas, que têm como base o território tradicional.

Nos últimos anos, Mato Grosso do Sul entrou para a história como o estado mais racista, truculento e preconceituoso contra os povos indígenas, e, com isso, o resultado se deu com o aumento da violência institucional, física e cultural aos povos indígenas. Racismo e preconceito se combatem com educação, mudanças de comportamento, punição dos criminosos e promoção social das vítimas.

A professora M. S. relata, em sua entrevista:

[...] é com preparo, é conversando, tira dez, quinze minutos da sua aula, vamos conversar um pouco, “Iii, professora já vem a senhora com essa conversa”, é preciso, é prá eles entender um pouco as leis, informação! Eu não tive nenhuma, porque o que era educação indígena na faculdade te dava uma apostila, você lia, respondia às perguntas por cima, lá nem a professora era especialista na área, Pedagogia da UEMS [...].

A escola Indígena Cacique João Batista Figueiredo conta também com a parceria da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), na formação continuada de professores indígenas nas escolas indígenas, com a Ação Saberes Indígenas nas Escolas, um projeto do governo federal que tem estimulado e mobilizado professores, alunos e lideranças para a sua efetivação.

3 A PARTICIPAÇÃO DA ESCOLA DA ALDEIA TERERÉ NO MOVIMENTO DOS TERENA PELA RETOMADA DA TERRA INDÍGENA BURITI E A CONSTRUÇÃO DO BEM VIVER

Antes das retomadas dos territórios tradicionais, houve um grande caminho que os povos indígenas percorreram. Aqui, em específico, os Terena da Terra Indígena Buriti, nos municípios de Dois Irmãos do Buriti e Sidrolândia, no estado de Mato Grosso do Sul, ao longo da história, foram vítimas de manobras do estado brasileiro desde o período colonial, no Império, e isso se estendeu até a República.

O discurso e o subterfúgio do estado brasileiro na apropriação das terras indígenas têm como base legal a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, a chamada Lei de Terras, promulgada no Brasil Império. Nesse momento, por pressão dos colonos neobrasileiros, houve o confinamento das populações indígenas.

De acordo com Azanha (2005, p. 62-71), todo um aparato legal construído pelo estado brasileiro, com início na Lei de Terras de 1850 e seu regulamento de 1854, bem como, no estado de Mato Grosso, a Lei Estadual n. 20/1892, o Regulamento n. 38/1893, o Decreto n. 75/1897 e a Lei n. 336/1946, que institui o código de terra do estado de Mato Grosso, nada disso dava garantia das terras aos índigenas, povos originários desse território que, mais tarde, veio a se chamar Mato Grosso do Sul; portanto, os verdadeiros donos desse território.

Segundo Azanha (2005), todos os decretos do Estado de Mato Grosso que concedem glebas “de terras devolutas” dos Terena não têm base legal, porque estas terras já eram indígenas no conceito da legislação em vigor (a Lei de Terras de 1850 e seu Regulamento de 1854).

Percebe-se que os Terena passam por dois momentos históricos muito distintos, o primeiro é antes da Guerra do Paraguai, e o segundo é o pós-guerra.

Isso é bem visível quando o autor diz:

[...] a abertura para o exterior dos Aruak foi responsável pela incorporação ao seu patrimônio cultural de pautas e equipamentos culturais de outros povos e teria lhes favorecido a adaptação em ambientes diversos - o que explicaria o seu expansionismo e seu domínio sobre outros povos, a quem reputavam de inferiores. Tal tendência seria reforçada com a realização de alianças com povos que reputavam superiores, politicamente falando, desde que isso lhes trouxessem vantagens - como ocorreu no passado com os Mbayá-Guaicuru ou depois com os porutuyé (brancos). (AZANHA, 2000, p. 74).

É evidente que os Terena, antes da Guerra do Paraguai, mesmo que assistindo a esbulhos de suas terras, protagonizavam um momento harmônico entre si e entre outros povos, pois eram autossustentáveis culturalmente falando, adaptando-se a outras realidades, impondo-se ou aliando-se com outros povos em sua organização política.

Com a Tríplice Aliança, no final de 1864, os Terena sofreram a invasão das tropas, com as terras dos Terena sendo o próprio palco da guerra, e, com isso, dispersaram-se, buscando refúgio nas matas e na Serra de Maracaju. Com isso, houve uma mudança no modo de vida dos Terena. Com o fim da Guerra e a alteração no quadro político-social, acentua-se o desprezo aos índigenas, que são chamados de bugres. As suas terras já haviam sido tomadas por terceiros, e os Terena foram submetidos e obrigados a buscar novas formas de organização, procurando se inserir na sociedade envolvente a partir de fragmentos dela (AZANHA, 2005).

Na visão de Cardoso de Oliveira (apud AZANHA, 2005), nos anos 1940/1950, a sociedade Terena foi sendo introduzida a condições adversas, o que causou o fim da sua autonomia, vivendo em situação de confinamento em reservas; ou seja, pequenas glebas de terras sem condições para a manutenção sustentável e cultural, e isso levou à dependência da política do homem branco, do chefe de posto do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, depois, da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), levando os indígenas também a redutos urbanos.

Da fraternidade à perseguição, às imposições dos limites das reservas, os Terena tinham necessidade de continuar existindo e, assim, eles ocupavam as áreas vizinhas para a sua manutenção, e aí caçavam, pescavam, colhiam mel e ervas medicinais. Mesmo já vivendo em condições precárias, isso incomodou os fazendeiros, que se sentiram no direito de reclamar para as instituições públicas.

As reclamações sobre estas atividades por parte dos “proprietários” vizinhos e traduzidas em documentos oficiais arquivados no PIN Buriti, em Cachoeirinha, e no Museu do Índio, são eloquentes, como, por exemplo, em carta datada de 21 de julho de 1956, o gerente da fazenda Miranda Estância SA, na divisa norte da atual reserva e onde se localizam vários pontos de caça e pesca tradicional dos índios Terena, o senhor Alfredo Ellis Netto, dirigia-se ao chefe do Posto do SPI de Cachoeirinha para exigir providências contra os Terena (AZANHA, 2005, p. 82).

Os fatos que ocorreram causaram grande transtorno na vida dos Terena, mas eles não se submeteram às imposições do SPI, aliado dos fazendeiros que castigavam os indígenas, tentando intimidá-los para que não entrassem nas áreas vizinhas. Mesmo assim, os Terena não desistiram de exercer seus direitos da caça e da pesca dentro das áreas que eram suas por direito.

Conforme depoimento de Agenor, da Aldeia Córrego do Meio, 55 anos, em Azanha, (2005, p. 1):

Quando eu era menino, a maior alegria era quando meu pai, meu avô me levava para ‘melar’ (tirar mel). Era uma festa; todo mundo saindo com as latas atrás dos enxames, mulher, gurizada [...]. Porque não tinha açúcar não, como hoje em dia. Nós saia por essas matas, naquele tempo era tudo mata, para catar mel, pra comer com farinha, jatobá [...]. No campo era guavira, nóis pousava nas invernadas, porque a peonzada era tudo patriciada, tudo índio [...].

O depoimento desse Terena remete a pensar nos tempos das retomadas, desde o princípio, no início do ano 2000. Motivados pelas memórias dos anciões que diziam e mostravam, estendendo seus braços, que as terras dos Terena iam além dos marcos impostos pelos limites postos pelo SPI (AZANHA, 2005, p. 84).

Nascia ali uma nova forma de olhar e reivindicar suas terras, o movimento da resistência indígena começava com as grandes retomadas, e isso ficaria marcado na história dos Terena, por meio de uma longa e conflituosa trama de conflitos entre índigenas e fazendeiros, o que levou o mundo a ter um novo olhar para essa realidade.

Nesse momento, comunidades, lideranças, professores, alunos e alunas indígenas, enfermeiros indígenas, mulheres, crianças e anciãos, todos foram para as retomadas, decididos a fazer com as próprias mãos a autodemarcação das suas terras.

O diálogo com os alunos garante o futuro e o fortalecimento das lutas, necessárias, pois houve a tentativa das instituições estatais e privadas, bem como da imprensa, que a todo momento tentavam desqualificar o movimento dos Terena no processo das retomadas. O discurso era de que a FUNAI e o CIMI estariam orientando, patrocinando e estimulando os Terena a entrar nas terras.

Os Terena são tão capazes como quaisquer outros povos e grupos sociais, mesmo com os estereótipos, os discursos que ao longo dos anos foram construídos de que o índigena não é capaz de direcionar sua própria vida. A partir daí, reforça-se a ideia de que “o índigena é preguiçoso; portanto, para que ele quer terra”? Esses discursos preconceituosos não têm colaborado para o desenvolvimento cultural do país, e sim colocam as diferenças em oposição umas às outras.

A retomada é um termo usado pelo movimento Terena da Terra Indígena Buriti para configurar e legitimar que as terras tradicionais que estavam e ainda estão nas mãos dos fazendeiros sempre foram e serão dos Terena, pois, com base nos relatos dos antepassados e anciões ainda em pleno gozo de vida, esses relatam que, antes, essas terras eram habitadas pelos Terena, isto também é legitimado na Constituição Federal de 1988, nos artigos 231 e 232.

Com base nesses dispositivos, as organizações tradicionais de cada aldeia, suas lideranças, anciões, professores, profissionais da saúde, militantes, depois de muitos encontros e reuniões, buscam a melhor forma para garantir o futuro dos Terena. Cada aldeia tem suas especificidades, não só na educação, mas especificidades na organização social e política, cada aldeia almeja aquilo que entende como melhor para o grupo, ou seja, o bem viver.

Portanto, não existem diferenças no momento em que os Terena vão para as retomadas, todos unidos pela mesma causa. Partem rumo às retomadas, e a escola vai junto. Ao levar a escola e toda sua estrutura para a retomada do território, torna-se uma experiência nunca vivida pelo corpo docente, pois este fato colaborou para um aprendizado que jamais viveriam se a escola não fosse participar e ser um agente transformador no processo de retomada do território tradicional.

Foram várias as fazendas retomadas desde o ano de 2000; ao todo, somam trinta e seis fazendas em litígio; dessas, somente quatro não foram retomadas ainda. Mesmo assim, a demarcação da Terra Indígena Buriti ainda se arrasta pela Justíça, provocando desconforto e conflitos entre índigenas e fazendeiros. Em 2013, no processo de retomada da fazenda Buriti no município de Sidrolândia, os Terena tíveram de enfrentar uma decisão da Justíça de reintegração de posse.

No confronto, que durou oitos horas de conflito, o Terena Oziel Gabriel foi assassinado pela Polícia Federal, que cumpria a decisão judicial de reintegração de posse, e vários Terena foram feridos por bala de festim. O hospital filantrópico Elmiria Silvério Barbosa registrou a entrada de vários guerreiros Terena no hospital.

Os Terena conhecem seus direitos ancestral e, segundo Oliveira e Pereira (2007, p. 11), [...] “deve-se pontuar que os antigos Echoaladi, Kinikinau, Laiana e Terena, atuais Terena em Buriti e em outras aldeias próximas, como a Tereré, atuaram como atores históricos importantes na expansão e consolidação de um grande território [...].”

De acordo com a legislação brasileira em vigor, se essas terras forem reconhecidas como indígenas, como atesta o laudo antropológico elaborado em 2001, pelo órgão indigenista oficial (AZANHA, 2001), e a perícia realizada em 2003, para a Justiça Federal (OLIVEIRA; PEREIRA, 2012), elas voltarão a ser propriedade da União e, claro, uma decisão desse nível anulará os títulos dos atuais fazendeiros que se julgam proprietários dessas terras.

Para não perderem as terras que ocupam, os fazendeiros contestaram na esfera da Justíça Federal o laudo administrativo do governo federal e solicitaram uma perícia técnica para reavaliar os procedimentos de identificação que caracterizaram a área como terra indígena.

Os estudos periciais confirmaram tratar-se de uma terra indígena, mas, mesmo assim, um juiz federal deu ganho de causa em primeira instância para os fazendeiros. O Ministério Público Federal e a FUNAI recorreram à instância superior no Tribunal Regional da Justiça Federal em São Paulo e lograram a reversão da decisão tomada em Mato Grosso do Sul. Tudo indica que a decisão final somente será definida no Supremo Tribunal Federal, instância máxima de decisão judicial no país (OLIVEIRA; PEREIRA, 2007, p. 17).

O movimento das retomadas ganhou destaque na impressa internacional e, com isso, vários grupos de indígenas do Brasil prestaram solidariedade aos Terena da Terra Indígena Buriti, bem como esses receberam visitas dos movimentos sociais, como o campesino Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

No ano de 2016, a Organização das Nações Unidas (ONU), em agenda no Brasil especificamente para dialogar e observar de perto os relatos da situação dos povos indígenas do Brasil, em que os Terena levaram suas reinvindicações, tomou conhecimento de que o governo brasileiro não cumpria o acordo internacional de implementar política pública que visa à manutenção da cultura material e imaterial dos povos indígenas, bem como promover a demarcação dos territórios; em vez disso, o governo brasileiro dificulta resolver os problemas existentes, deixando para o Supremo Tribunal Fderal (STF) a responsabilidade de solução desses problemas.

Passados mais de vinte anos do início do movimento de retomada na Terra Indígena Buriti, não se vê uma luz no fim túnel, e os Terena ainda não têm esperança alguma de que o governo brasileiro queira resolver essa questão.

Diante de tudo isso, das trinta e duas fazendas retomadas, nasce a esperança do bem viver ou viver melhor, a partir do território tradicional com as centenas de roças espalhadas pelas áreas retomadas da Terra Indígena Buriti.

Fazendas que eram consideradas patrimônio de um fazendeiro, hoje, são a TI que abriga centenas de indígenas, semeando vida e esperança, alimentando os Terena com a esperança de continuidade do seu povo. Na reintegração de posse, um guerreiro colocava terra em sua boca diante da Polícia Federal e da imprensa, num ato tão marcante do simbolismo de que os povos indígenas têm uma ligação muito forte com a terra, pois a terra é a mãe de todos.

Mesmo tendo a Portaria Declaratória anulada pelo Supremo, os Terena permaneceram na terra produzindo, sabendo que outras reintegrações de posse foram concedidas para os fazendeiros e suspendidas ao mesmo tempo, devido às justificativas dos procuradores da FUNAI e do Ministério Público Federal (MPF), obrigando os juízes a suspenderem as reintegrações de posse em razão, principalmente, do grande número de plantio existente na terra, além, claro, do direito originário dos Terena a seu território ancestral.

Os Terena da Aldeia Tereré vêm, desde 2013, enfrentando uma luta em negociação com o poder público e privado para a ampliação de área da Aldeia Tereré. Nos últimos trinta anos, a Aldeia Tereré passou por um processo de superlotação, sendo que os dez hectares da aldeia hoje não têm mais condições para construção de mais moradias, e, com isso, os Terena reivindicam ao poder público e à iniciativa privada, neste caso, a corretora procuradora legal da Chácara Califórnia, que faz divisa com as terra da aldeia, a ampliação da terra indígena.

Nesse contexto de conflitos e lutas cotidianas, hoje, é crescente o número de acadêmicos indígenas que estão em busca de uma formação superior e estão empenhados na luta para fazer valer seus diretos constitucionais, e isso fica claro quando observamos a realização dos Fóruns de Educação Escolar Indígena.

A escola como espaço de fronteiras entre culturas, particularmente em terras indígenas, segue historicamente no Brasil orientações e tendências político-pedagógicas que vão desde a proposta de aculturação, integração e assimilação dos povos indígenas aos princípios do Estado Nacional, até as decisões tomadas pelos movimentos contemporâneos dos povos de transformá-la em recurso institucional de construção de autonomia e emancipação, garantindo o fortalecimento de suas identidades a partir da articulação e troca de conhecimentos com os quais estão envolvidas as diversas realidades indígenas (NASCIMENTO, 2003, p. 3).

É um grande desafio para os professores responder às novas expectativas de assumir vários papéis coincidindo com o processo histórico.

Para Nascimento e Vinha (2012, p. 64):

Numa virada histórica, a identidade indígena expandiu-se, recuperando os ressurgidos e validando a presença dos índios isolados. Do que foi possível contabilizar, são 734.127 pessoas, segundo indica o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FGV, 2010), atingindo aproximadamente 0,4% da população brasileira. Esse movimento de recuperação consolidou-se e continuamente consolida-se frente às mudanças da condição de cidadania indígena, as quais fortalecem os 220 povos e suas 180 línguas, incluindo outros povos que falam somente a língua portuguesa, por terem incorporado a língua do colonizador.

O impacto dessa virada histórica protagonizada por essa população consiste no fato de que nenhum outro segmento da população brasileira foi capaz de, pela sua presença identitária, provocar a necessidade de o Sistema Nacional de Educação rever sua postura, de forma a atender e respeitar as diversas cosmovisões vindas dessas diferentes sociedades indígenas (NASCIMENTO; VINHA, p. 65, 2012).

Isso está atribuído também na concepção do viver melhor da comunidade ou bem viver, pois agora as formas de vida dos Terena da Aldeia Tereré também estão relacionadas ao atendimento do poder público em todos os sentidos, que vai desde os direitos à diferença legalmente assegurados na Constituição, aos atendimentos nas áreas da saúde, educação e território.

Segundo Luciano (2013), isso também é visível com o povo Baniwá, o termo usado por eles é “melhoria” ou “vida melhor”, que está relacionado aos bens do mundo branco. O autor também fala do termo e a ideia do “bem viver” (p. 105).

O povo Baniwa busca por meio da escola e da universidade, o “bem viver” na concepção dos povos andinos, o “viver melhor” ou “viver bem” na concepção Baniwa. Para os idealistas do bem viver, o conceito de viver bem está relacionado a partir da ideia capitalista, que passa pelo acesso aos bens e a acumulação dos mesmos para alcançar determinada qualidade de vida, mesmo que para isso seja submeter o processo de submissão e exploração entre os homens, e entre estes e a natureza.

O autor cita um especialista em cosmovisão andina, o índio da etnia Aimara, então ministro das Relações Exteriores da Bolívia, David Choquehuanca, que menciona que se pode, sim, pensar na ideia do viver bem sem ferir os princípios do bem viver.

Em diálogo com anciões da Aldeia Tereré, podemos dizer que o entendimento e a concepção do bem viver comunitário estão relacionados ao território, seguido da grande quantidade de subsistência relacionada à casa, ao quintal, à roça. Isso quer dizer, ainda, que o bem viver está relacionado a saciar a fome, ou seja, a partir da filosofia do bem viver ou viver melhor, para os Terena da Aldeia Tereré, é do estômago que também se é feliz, sabendo que se busca, da mesma forma, por meio da escola e da educação superior, o bem viver ou o viver melhor.

No diálogo dos anciões, podemos perceber o que dizem e pensam sobre o bem viver. Neste diálogo, o ancião Milton Francisco, em entrevista gravada em 2016, afirma:

[...] tinha muita fartura na nossa comunidade, peixe à vontade rapadura, mandioca, batata, arroz, milho, feijão, tudo era cultivado ali no nosso quintal na nossa terra. [...] então hoje eu sofri muito, hoje nós somos integrado, mas numa parte nós temos que conservar criançada, é nosso idioma, nós temos que falar, lá em casa eu não falo língua emprestada, só minha língua materna, porque eles vão saber lá na escola falar português, e não ter vergonha de falar que é índio [...] Posso ser o que sou, mas nunca deixar de ser índio.

O depoimento do senhor Milton na roda de conversa na sala de aula do oitavo ano foi muito importante, ele fala da sua experiência de vida, o que ele viu e viveu. Foi um momento muito importante e de muito aprendizado, para os alunos e para todos.

Pode-se ver no depoimento acima alguns pontos importantes: na primeira parte, ele fala sobre a fartura no quintal das casas; isso traz uma tranquilidade na vida dos Terena e está ligado diretamente ao conceito de bem viver ou viver melhor.

Na segunda parte, senhor Milton fala com muita sabedoria e dá exemplo de vida aos estudantes, que ouviam atentamente a sua fala. Ele discorre sobre seu sofrimento e que não teve oportunidade de estudar, e incentiva os alunos a estudar, deixando um exemplo muito importante: “[...] não falo língua emprestada, não ter vergonha de falar que é índio, posso ser o que sou, mas nunca deixar de ser índio”.

O ancião e pastor Ancelmo, em reunião na Aldeia Tereré, em entrevista gravada em 2016, fala o que pensa sobre bem viver, para ele, enquanto Terena:

O bem viver no meu entendimento eu divido ela em duas etapas, o que seria o passado nosso, o que seria o presente hoje: o bem viver no meu ponto de vista e meu entendimento, ela envolve muita série de questões, muita coisa, né, mas hoje, por exemplo, vocês aqui estudante, tem um conceito mais elevado, tem conhecimento melhor, vocês sabe que o bem viver no meu entender é isso que vocês estão fazendo, ampliando o conhecimento, melhorando a coisas, isso pra mim é o bem viver, isso aqui que vocês então fazendo é para amanhã, é o futuro, é andando, errando, conhecimento, melhorando essas questões que vocês estão fazendo, é prá melhorar a educação indígena. Então, no meu ponto de vista, antigamente o bem viver prá nós no passado era aquilo, ter galinhas, criações, alimentos, isso aí prá nós é o bem viver. Hoje é diferente, hoje o bem viver que nós entendemos hoje é isso aqui que vocês estão conseguindo alcançar, graças a Deus alcançamos, essa aqui é uma, eu no meu entendimento, é o bem viver, eu não sei se eu pude responder bem, e outra coisa eu talvez eu não vou responder vocês na altura de vocês hoje, mas o bem viver é isso aqui, mesmo errando, ampliando o conhecimento prá amanhã. Essa questão que está sendo questionada aqui, eu fico feliz, porque às vezes, eu gosto de participar assim, e tudo que estamos passando aqui graças a Deus estou podendo ingerir ela, então eu fico feliz, então eu acredito que o bem viver é isso, o que vocês estão fazendo, errando, ampliando o conhecimento, ampliado o conhecimento escolar, e assim por diante, eu acredito que essas questões que vocês estão fazendo prá ser enviado prá secretaria de educação ou Ministério da Educação, é ampliando o bem viver, ou melhor, alimentando o bem viver.

Para definir o conceito do bem viver para os Terena da Aldeia Tereré, é preciso um olhar especial que percorre por toda a trajetória histórica dos Terena e de outros povos indígenas. Os Terena, como tantos outros povos, tiveram as mesmas imposições coloniais eurocêntricas, o que custou danos irreparáveis materiais e imateriais na vida e no modo de viver do indígenas. O contato com a sociedade ocidental provocou um novo olhar nos povos indígenas, pois são dois mundos muitos distintos. O mundo que criamos/vivemos a partir de nossa cosmovisão e o mundo que temos de nos relacionar, a do homem branco, os purutuya.

O bem viver para os contemporâneos Terena da Aldeia Tereré tem influência de vários outros povos, cujas relações interétnicas obrigam a ressignificar seus conceitos, que passam pela vida espiritual e material, sabendo que a luta pelo território tradicional é muito forte para os Terena e para os povos indígenas em geral.

O território tradicional, nessa perspectiva, dá um significado plural. Primeiro, a terra como espaço material, algo concreto para a sustentabilidade que está ligado à manutenção da vida, que vai desde a construção da casa, até a roça, a mata, os rios, a caça, a pesca. Segundo, a terra na perspectiva cultural, pois a identidade Terena envolve todo o primeiro e mais a espiritualidade.

O conceito do bem viver ou viver melhor é constantemente usado nos discurso dos Terena em reuniões da aldeia. O termo é usado principalmente para fins de organização social, política e econômica.

A comunidade indígena da Aldeia Tereré nasce com um único objetivo, de dar melhores condições de estudo para as crianças que não tinham mais como dar continuidade aos estudos na Aldeia Buriti, e esse continua sendo uns dos principais objetivos para as crianças que hoje residem na Aldeia Tereré.

O bem viver ou viver melhor, por meio da escola indígena, também está relacionado ao não preconceito com alunos indígenas que estudaram nas escolas não indígenas da cidade, pois foi detectado, entre os alunos indígenas que estudaram nas escolas não indígenas, que esses passaram por discriminação nessas escolas, onde sofriam preconceito e eram discriminados pelos professores e alunos. Uma aluna, ao relatar na sala de aula, chorou quando dizia que a professora a chamava de preguiçosa, que não tem jeito.

Hoje, podemos ver esses alunos e alunas com sorriso no rosto, tendo orgulho de estudar na escola indígena, onde se sentem mais felizes e com liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mundo é um palco no qual protagonizamos, somos atores na própria vida, com roteiros que entrelaçam com outros atores, e, assim, professores, lideranças, anciões e militantes Terena da Aldeia Tereré escrevem suas histórias.

Sempre atuante na busca para viver melhor, dentre os desafios, nada mudou suas perspectivas, seus sonhos, seus objetivos, de reivindicar junto ao Estado Democrático de Direito o direito de viver dentro de suas especificidades culturais, tradição e cosmovisão.

Suas reivindicações são legítimas e constitucionais, iniciando-se pela demarcação dos territórios tradicionais, o cumprimento das leis da educação escolar indígena, o atendimento da saúde básica de qualidade. Essas reivindicações têm sido a luta dos atores Terena da Aldeia Tereré.

Das lutas pelas retomadas de Terra à construção da escola, os Terena estão abertos ao mundo exterior sem deixar de ser Terena. O campo político tem chamado atenção nos últimos tempos, é crescente o número de indígenas Terena que vivem nas aldeias hoje no Legislativo municipal, chamados de lideranças políticas e presentes nos movimentos indígenas, nas prefeituras e no governo estadual e federal.

A Aldeia Tereré e seus atores são protagonistas e símbolos da resistência diante do processo histórico de colonização por quinhentos anos. Do despertar para as retomadas dos direitos, de territórios, da retomada da educação diferenciada, da autonomia, até a tradição cultural.

Comemoram a construção de prédio escolar, a autonomia de gestão política educacional, celebram o reconhecimento da educação escolar indígena no município de Sidrolândia, com a participação democrática nas lotações de professores. O ensino médio já é um sonho realizado, com compromisso de emancipação para 2018.

O protagonismo acontece nas manifestações dos grupos insatisfeitos, nas inquietações e na indignação, na recusa de perda dos direitos adquiridos, e esses, por sua vez, manifestam-se e transformam-se em bem viver ou viver melhor.

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Recebido: 18 de Abril de 2022; Aceito: 13 de Maio de 2022

Sobre os autores:

Maioque Rodrigues Figueiredo: Mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (PPGE-UCDB). Professor na Escola Municipal Indígena Cacique João Batista Figueiredo, da Aldeia Tereré, Terra Indígena Buriti, em Sidrolândia, Mato Grosso do Sul. Indígena da etnia Terena. E-mail:maioque.indi@hotmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-9497-7717

Heitor Queiroz de Medeiros: Doutor em Ciências - Ecologia e Recursos Naturais pela UFSCar. Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica Dom Bosco (PPGE-UCDB), Campo Grande, MS. Líder do Grupo de Pesquisa Diversidade Cultural, Educação Ambiental e Arte, CNPq. E-mail:heitor.medeiros@ucdb.br, Orcid:http://orcid.org/0000-0001-5313-1811

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