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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.60 Campo Grande mayo/aug 2022  Epub 30-Ago-2022

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v27i60.1570 

Artigos

“A vida é bela”: para ler legendas e para humanizar-se

“Life is beautiful”: to read subtitles and to humanize yourself

“La vida es bella”: leer subtítulos y humanizarse

Dagoberto Buim Arena1 
http://orcid.org/0000-0001-9285-6487

Érika Christina Kohle1 
http://orcid.org/0000-0003-0907-4420

Sônia de Oliveira Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-4566-616X

1Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Marília, São Paulo, Brasil.


Resumo:

A aprendizagem de atos de ler em ambientes escolares pode resultar do encontro de crianças com a pluralidade de gêneros dos enunciados, com suportes vários e mídias. Filmes legendados oferecem às crianças as condições para que aprendam a negociar, no silêncio, os sentidos das legendas. Este artigo relata uma atividade de pesquisa e de extensão com o filme italiano “La vita è bella” (“A vida é bela”), desenvolvida com um pequeno grupo de crianças, entre 6 e 10 anos, em uma organização não governamental (ONG), em Marília, SP, apoiada nos princípios de metodologia das ciências humanas desenvolvidos por Bakhtin e no conceito de massa aperceptiva de Jakubinskij. Os diálogos entre crianças e pesquisadores, gravados e analisados sob a lente desse referencial, evidenciam que as crianças aprendem a negociar rapidamente sentidos; interessam-se por debater temas tensos, como a opressão e a violência contra crianças e minorias étnicas e, por essa razão, humanizam-se; tornam-se também, pouco a pouco, apreciadoras de filmes com boa qualidade estética.

Palavras-chave: “A vida é bela”; legendas cinematográficas; humanização

Abstract:

Learning acts of reading in school environments can result from the encounter of children with the plurality of genres of utterances, with various supports and media. Subtitled films offer children the conditions for them to learn to negotiate, in silence, the meanings of subtitles. This article reports a research and extension activity with the Italian film “La vita è bella” (“Life is beautiful”), developed with a small group of children, between 6 and 10 years old, in an nongovernment organization (NGO), in Marília, SP, supported by the principles of methodology in the human sciences developed by Bakhtin and in the concept of apperceptive mass by Jakubinskij. The dialogues between children and researchers, recorded and analyzed under the lens of this reference, show that children learn to quickly negotiate meanings; they are interested in debating tense issues such as oppression and violence against children and ethnic minorities and, for this reason, they are humanized; they also gradually become fond of films with good aesthetic quality.

Keywords: “Life is beautiful”; cinematographic subtitles; humanization

Resumen:

Los actos de aprendizaje de la lectura en entornos escolares pueden resultar del encuentro de los niños con la pluralidad de géneros de enunciados, con diversos soportes y medios. Las películas subtituladas ofrecen a los niños las condiciones para que aprendan a negociar, en silencio, los significados de los subtítulos. Este artículo relata una actividad de investigación y extensión con la película italiana “La vita è bella” (“La vida es bella”), desarrollada con un pequeño grupo de niños, entre 6 y 10 años, en una organización no gubernamental (ONG), en Marília, SP, apoyada por los principios de metodología en las ciencias humanas desarrollados por Bakhtin y en el concepto de masa aperceptiva por Jakubinskij. Los diálogos entre niños e investigadores, registrados y analizados bajo el lente de esta referencia, muestran que los niños aprenden a negociar significados rápidamente; les interesa debatir temas tensos, como la opresión y la violencia contra los niños y las minorías étnicas y por ello, están humanizados; también se vuelven, poco a poco, apreciadores de películas con buena calidad estética.

Palabras clave: “La vida es bella”; subtítulos cinematográficos; humanización

1 INTRODUÇÃO

Desde há muitos anos, a Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) financia iniciativas de extensão e de pesquisa abrigadas em um projeto – o Núcleo de Ensino – destinado a estreitar vínculos entre as escolas públicas e instituições sociais de apoio a crianças em situação de risco social. Desde os primeiros anos da primeira década deste século, temos, minhas alunas de Pedagogia e eu, desenvolvido ações em escolas municipais em Marília, interior de São Paulo, onde há uma unidade da UNESP. Um dos projetos mais ousados no campo do ensino dos atos de ler para crianças no processo de alfabetização e nos anos posteriores, com resultados auspiciosos, foi o de propor sessões de cinema com filmes legendados projetados nas telas de televisores por meio de DVDs. A seleção dos filmes e o modo de exibição obedeciam a alguns critérios: os protagonistas deveriam ser necessariamente crianças; a película ter sido reconhecida como de boa qualidade do ponto de vista estético; a trama deveria exigir informações e promover debates a respeito de dramas sociais e culturais com crianças de outros países; e, sobretudo, a projeção teria de ser com o áudio original, com legendas em português.

Na contramão do costume escolar que projeta filmes ingênuos e dublados, o desafio para nós era a criação de condições para que as crianças sentissem necessidade de ler, que solicitassem ajuda, que pedissem informações, que levantassem hipóteses e, sobretudo, que percebessem a impossibilidade de substituir o ato de ler pelo ato de pronunciar. A atitude inicial de rebeldia contra a permanência por poucos segundos da legenda na tela poderia, pouco a pouco, dar lugar à elaboração do conceito do que seria o ato de ler – e ler legendas, especificamente. Em 2015, um dos projetados foi “A vida é bela”, cujos dados compõem o corpus para análise neste artigo. Inicialmente, será apresentada uma sinopse do filme e sua ficha técnica. Em seguida, o artigo descreverá a metodologia de geração de dados com comentários sobre pesquisas em ciências humanas; serão descritos a situação, meios de registros, apresentação do perfil dos participantes da sessão, o papel e a atuação dos pesquisadores e princípios norteadores dos diálogos.

A metodologia de exposição e de análise dos dados abrigará comentários teóricos a respeito de atos de ler e da função da massa aperceptiva (JAKUBINSKIJ, 2010), a especificidade das legendas nas telas dos filmes e três unidades de análise imbricadas nos diálogos, mas não separadamente analisadas. A primeira revelará o cuidado e a necessidade de recuperação de experiências e vivências das crianças para se encontrarem com os sentidos da película e a sua realimentação pelo pesquisador, com informações necessárias para a apreciação do desenrolar da trama; a segunda evidenciará condutas que ensinam a essência do ato de ler legendas; a terceira destacará a relação tensa entre barbárie, virtudes humanas e humanização. A conclusão alinhavará dois movimentos de construção do artigo: o movimento revelador da conduta necessária ao pesquisador para ensinar a criança a ler legendas e o de formação humanizadora.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=lOO38YXM91c.

Figura 1 Cena do filme “A vida é bela”2  

O filme conta a saga do judeu italiano Guido e seu filho pequeno, Josué, em um campo de concentração nazista, durante o período da Segunda Guerra, na Europa. Separado da esposa ao chegar ao campo, Guido, sempre otimista, emprega estratégias cômicas, em algumas cenas, para esconder do filho o risco de serem mortos e cremados. Em todas as situações que beiram à barbárie, Guido mascara os fatos para que o filho perceba os movimentos e esquemas de sobrevivência como parte de um grande jogo. No final do filme e da guerra, Guido é morto, mas mantém incólume seu filho, até a libertação do campo pelas tropas aliadas.

2 METODOLOGIA DE GERAÇÃO DE DADOS

Desde as primeiras palavras na introdução, demos destaque às legendas cinematográficas, consideradas um gênero agregado às imagens em movimento, já que, por elas, as crianças podem lidar com a linguagem escrita como um instrumento eminentemente dirigido para os olhos e com os quais a mente humana compreende a realidade. Por fazer essa opção, a raiz epistemológica dos construtos teóricos e dos atos de leitura das legendas de filmes somente pode encontrar seu lugar para compreensão e análise no seio das ciências humanas. O olhar do investigador posicionado nesse universo das ciências do homem encontra vozes de trocas intelectuais, no campo da metodologia e da investigação, em enunciados entrecortados de Bakhtin (2017), aparentemente não bem alinhados, por vez até intrigantes, em razão de sua revelada incompletude, no texto “Por uma metodologia das ciências humanas” (BAKHTIN, 2017), escrito no final dos anos 1930.

É nossa intenção incorporar aqui alguns trechos desses estudos bakhtinianos e comentá-los para reforçar a tese de que o objeto de análise são os atos de ler legendas, formalmente inscritas como diálogos face a face na tela, que, por sua vez, provocam perguntas e respostas entre pesquisadores e crianças, seres humanos não coisificados diante da obra de arte. Pelos enunciados afloram os conflitos humanos, expostos e compreendidos na dinâmica dos embates culturais, econômicos e existenciais. Não é a leitura, como coisa gerada, nem os elementos técnicos e naturais a ela atribuídos, como a articulação de sons e o caminho de palavras pelos neurônios, os objetos a serem apropriados.

Caracterizado e definido pelo olhar das ciências da natureza, o objeto se coisifica, torna-se igual a si mesmo. Visto pelas ciências humanas, o ato de ler do homem impede essa coisificação, porque escapa desse lugar a ele destinado como objeto da natureza e dele se distancia, porque o “objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado” (BAKHTIN, 2017, p. 59).

Por se desenvolver graças à apropriação da cultura, a criança lida com a pluralidade de sentidos e por isso se afasta dos limites traçados pelo padrão protocolar e repetitivo da coisa em si, próprios das ciências da natureza, que a faz coincidir com ela mesma, ser exata, precisa, reproduzível e replicável. “A exatidão pressupõe a consciência da coisa consigo mesma”, comenta Bakhtin, mas, para o olhar plural das ciências humanas, o “ser que se autorrevela não pode ser forçado nem tolhido. Ele é livre e por essa razão não oferece nenhuma garantia” (BAKHTIN, 2017, p. 59).

O ato de ler, por se situar na fronteira entre duas ciências, as humanas e as da natureza, sofre investidas frequentes de visões fisiológicas. Sua essência não pode ser encontrada nos neurônios da leitura, mas nos atos culturais apropriados pela mente humana. As legendas dos filmes, fundidas nas imagens e na tela, são incontrolavelmente livres para se submeterem à exatidão, mesmo porque “A interpretação das estruturas simbólicas tem de entranhar-se na infinidade dos sentidos simbólicos, razão por que não pode vir a ser científica na acepção de índole científica das ciências exatas” (BAKHTIN, 2017, p. 64). O sujeito “não pode ser percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode se tornar mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico” (BAKHTIN, 2017, p. 66).

Como seres dialógicos, as crianças telespectadoras se inseriram nos diálogos rápidos, provocadores de perguntas e realimentadores de respostas, quando viram e dialogaram com os enunciados escritos na tela e com os orais das pesquisadoras, que, com olhos bem vivos, acompanhavam as táticas evasivas de Guido para fazer safar seu pequeno Josué das garras do regime nazifascista. Se, para os guardas do campo de concentração, seu filho era uma coisa, um ser biológico a ser incinerado, para Guido, era seu filho e o elevava ao cume da vida humana. Os sentimentos e as atitudes de ambos os personagens humanizavam as crianças, que, diante da tela, com olhos e mentes nela pregados, faziam-se, pelo ato de ler legendas de um filme como esse, homens. Essas crianças se desenvolviam porque, do ponto de vista das ciências humanas, “a precisão é a superação da alteridade do alheio sem sua transformação no puramente meu (substituições de toda espécie, modernização, o não reconhecimento do alheio, etc.)”. (BAKHTIN, 2017, p. 77).

Consolidado o lugar nas ciências de onde estudamos os atos de ler, é tempo agora de descrever os sujeitos, o tempo e o lugar dos eventos analisados. Os diálogos, fonte para análise dos atos de ler como mediadores para a humanização, foram gerados em 2015, em uma organização não governamental (ONG) de assistência social e educação, localizada em uma região periférica de Marília. Na sessão, estavam cinco crianças, entre 7 e 10 anos de idade, e duas pesquisadoras, alunas do Programa de Pós-Graduação em Educação, uma delas professora de alemão, língua que disputava com o italiano, durante a projeção, os ouvidos de crianças falantes do português brasileiro. Uma era a língua do opressor, a outra, a do oprimido.

Algumas condutas foram cuidadosamente planejadas para atender aos pressupostos teóricos e aos objetivos. Antes da projeção, as pesquisadoras anunciaram uma sinopse sem que se tornassem spoilers, com o intuito de adiantar a temática e, por ela, provocar as experiências e as vivências das crianças, constituintes do que Jakubinskij considera massa aperceptiva, isto é, “o conjunto de experiências e saberes anteriores necessários à compreensão e à interpretação de uma ação ou de um enunciado” (JAKUBINSKIJ, 2012, p. 168). As vivências e as experiências compõem a massa aperceptiva, fundamental para possibilitar a troca dialógica entre locutor e ouvinte, entre escritor e leitor, entre crianças espectadoras de filmes, leitoras das legendas que rolam em três segundos, em média, diante de seus olhos. Se essa massa aperceptiva não for alimentada pelas experiências na relação das crianças com os pesquisadores, ou pelos professores, haverá obstáculos para o desenvolvimento dos atos de ler e, neste caso, de interagir com os diálogos e com a sequência de imagens. Essas experiências incluem também as que são geradas na relação com o professor para compreender os caracteres gráficos e os sentidos por eles criados nos enunciados. O invisível, o conjunto de experiências vividas, é crucial para a aprendizagem dos atos de ler:

A massa aperceptiva, que determina nossa percepção, inclui os elementos constantes e estáveis, que são formados entre nós pelas influências constantes e repetitivas de nosso próprio meio ambiente (ou de nossos meios), e os elementos transitórios, que aparecem nas condições a cada vez diferentes de um momento dado. (JAKUBINSKIJ, 2012, p. 109. Grifo do autor. Tradução nossa).3

Os alunos ouviam o áudio em italiano pela boca de Guido e de Josué, o alemão pela boca dos guardas do campo, e o português brasileiro pela boca das pesquisadoras, eventualmente, também tradutoras, e varriam, com os olhos, os enunciados em outra linguagem, a escrita em português brasileiro. Havia misturas de línguas que incorporavam culturas diversas e ampliavam o universo da massa aperceptiva das crianças. A essa apresentação inicial para fomentar o conjunto de experiências se agregavam outras situações durante a projeção, com paradas estratégicas para que as pesquisadoras traduzissem expressões expostas em cartazes, nomes de lugares não traduzidos, acompanhados de comentários com perguntas, com levantamento de hipóteses, com predições, antecipações, com confirmações, ou não, pelos espectadores. As interrupções eram necessárias para que as pesquisadoras ensinassem às crianças as condutas intelectuais de um leitor, ou o que um leitor deve fazer ao ler os enunciados, ou o que elas, crianças, devem fazer quando iniciavam, pela linguagem escrita, diálogos com os quais a escreveram nos suportes.

Para se aprofundar nas camadas densas de um texto, o leitor em formação recorre à composição sempre instável de sua massa aperceptiva e às relações entre textos já lidos ou postos em relação quase simultânea. É ao que Bakhtin (2017, p. 66-7) nomeia correlacionamento de textos:

Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros textos. O comentário. A índole dialógica desse correlacionamento. A interpretação como correlacionamento com outros textos e reapreciação em um novo contexto (no meu, no atual, no futuro). O contexto antecipável do futuro: a sensação de que estou dando um novo passo (saí do lugar).

A mesma conduta pode ser empregada com filmes, sua relação entre si ou sua relação com outras obras não cinematográficas. Um filme se relaciona com outro filme; como um texto cheio de vida, olha para o passado e para o futuro, porque, como afirma Bakhtin (2017, p. 67): “Um texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, fazendo dado texto comungar no diálogo”.

3 A REVELAÇÃO DOS DADOS

A releitura atenta da transcrição dos diálogos gravados entre as crianças identificadas por nomes fictícios e as pesquisadoras nos sugeriu três abordagens de diálogos, organizados em unidades temátícas não apresentadas isoladamente. No primeiro conjunto, foram alinhados os diálogos cujo eixo principal era um tateio que proporcionava aos pesquisadores verificar os conhecimentos e as experiências das crianças, para que fosse promovida a sua atualização e fossem criados os cenários para a realimentação das experiências, de tal modo que as perguntas, hipóteses, respostas, confirmações e não confirmações fossem repensadas. Essas condutas provocadas pelas pesquisadoras formam o segundo conjunto. O terceiro abriga os diálogos da temática do filme: o genocídio perpetrado pelos nazistas. Houve um esforço para agrupar os diálogos em três conjuntos, mas, dinâmicos como são, não se prestam ao isolamento uns dos outros. É a totalidade que revela a progressão do desenvolvimento das crianças do início ao final da sessão, tanto do ponto de vista das condutas intelectuais para sua formação como leitores e espectadores quanto do ponto de vista de seres humanos diante da barbárie da suposta civilização humana.

4 EXPERIÊNCIAS E NUTRIÇÃO DE MASSAS APERCEPTIVAS ANTES DO INÍCIO DA SESSÃO

De início, as pesquisadoras dialogam com Melissa, Sílvio, Teresa, Lívia e Meire (nomes fictícios) para apresentar o filme, para informar que ouvirão áudio em italiano e legendas em português brasileiro. Algumas informações são precedidas por perguntas provocativas. Informações, perguntas e respostas atendem a duas intenções: criar necessidades, mapear conhecimentos, ampliar os conhecimentos já apropriados, levantar possibilidades para que as crianças colocassem em alerta suas projeções intelectuais.

Sônia: Hoje nós vamos assistir ao filme: “A vida é bela”. Do que vocês acham que vai tratar esse filme?

Sílvio: Da vida.

Sônia: O que mais?

Lívia- Que ela é bela.

Sílvio: De uma pessoa que vai para um monte de lugar e ela acha que a vida é bela.

Sônia: Será que esse filme retrata mesmo uma vida que é bela?

Lívia: Nem sempre o que o título fala é o que acontece.

Lívia e Silvio remexem suas experiências em virtude da indagação feita por Sônia e pelo próprio significado do enunciado, fora de seu vínculo com a situação extraverbal. Não há sentídos em uma afirmação isolada. Há um significado estável em que a vida é bela, confirmada pelas histórias de literatura infantil por eles lidas e ouvidas. Os enunciados, nesta situação um enunciado oral emitído por Sônia - o nome do filme –, ganham vida e razão na situação verbal em que se inserem e de onde os homens criam os sentídos pelo diálogo. Sônia tínha a experiência de ter visto o filme e preparado a projeção, mas as crianças não sabiam o que poderia escorrer pelos vãos do enunciado a vida é bela que não fosse mesmo uma bela vida. A isso se agrega uma apreciação valoratíva dada por Sônia ao duvidar do significado estável imóvel, e com essa atitude provocar dúvidas que poderiam levá-las a descobrir sentidos. Este comentário encontra ressonância em Bakhtin (2017, p. 74):

O contexto axiológico-entonacional extratextual pode ser realizado apenas parcialmente no processo de leitura (execução) de um dado texto, porém em sua parte mais geral, particularmente em suas camadas mais substanciais e profundas, permanece fora de dado texto como fundo dialogizante de sua percepção. A isso se reduz, até certo ponto, o problema do condicionamento social (extraverbal) da obra.

A situação extraverbal, o tom valorativo e as informações necessárias para a nutrição das massas aperceptivas vão, pouco a pouco, formando um conjunto de dados que possibilitam às crianças obter êxito como espectadores e leitores de legenda de um filme artisticamente bem construído e com temática densa.

Sônia: Será que o filme dessa vez vai ser em inglês?

Melissa: Sim, como o outro.

Lívia: Não, em português.

Sílvio: Também teve em outra língua!

Melissa: Em português é o que está escrito. Dessa vez vai ter coisa escrita, professora?

Sônia: O filme vai ser em italiano e a legenda em português. A Érika vai falar um pouquinho do filme para a gente e vai dar um panorama geral.

Érika: O filme “A vida é bela” é do Benigni; ele é o diretor e vai ser seu protagonista. Vocês sabem o que é ator protagonista?

Sílvio: É o ator principal, aquele que comanda tudo.

Érika: Sim, então, ele fez esse filme em 1997 e ganhou o Oscar com ele depois. Por que será que ele ganhou o Oscar de melhor filme?

Sílvio: Não sei.

Acostumadas com áudio em língua estrangeira e legendas em português brasileiro, as crianças especulavam sobre as línguas misturadas, e, desde cedo, seus ouvidos ouviam sons, tons, e expressões faciais de outras culturas; seus olhos viam os enunciados escritos na linguagem escrita em diálogos, exatamente o objeto que deviam aprender na relação entre as pessoas no cotidiano da vida. Essa intenção planejada de ampliar a situação extraverbal e o universo de experiências continuou a compor os diálogos entre as duas pesquisadoras e as crianças:

Érika: Quando se fala vida é bela a gente acha que vai contar uma história bonita, não é?

Crianças juntas: Sim.

Érika: Só que ele vai contar uma história de um período muito triste da história do mundo, que foi o período da 2ª Guerra Mundial, mas ele consegue fazer “uma coisa”, que vocês vão ver durante o filme, como ele faz para parecer que não é tão triste; então vocês vão assistir ao filme pensando nisso “tá” bom? Entenderam?

Crianças juntas: Sim.

Érika desmonta a falsa expectativa fornecida às crianças pelo enunciado deslocado da situação extraverbal – o filme e sua temática – ao informar que os sentidos são os opostos ao que imaginavam. Ela as ensina a desconfiar dos significados e a procurar os sentidos que se insinuam pelas palavras e, sobretudo, pela situação que os engendra. A vida muito triste revela os sentidos de A vida é bela. A conduta de lançar uma pista, mas fugindo da atitude de spoiler, incentiva-os a persegui-la; é uma conduta própria de quem sabe ensinar as crianças a ler: “vocês vão ver como ele faz a vida não parecer tão triste”. O cenário que ela anuncia, sem fornecer dados conclusivos, refere-se ao esforço de Guido em mascarar para Josué os perigos ameaçadores de suas vidas. Entre o perigo e a despreocupação, entre o sério e o riso, fazia caminhar a vida. O riso e as máscaras criadas pelo personagem para cobrir os olhos de Josué costuram uma tática humana para bem lidar com a vida. Bakhtin (2017, p. 61) analisou situações semelhantes:

O perigo faz o sério, o riso autoriza a evitar o perigo. A necessidade é séria, a liberdade ri. O pedido é sério, o riso nunca pede, mas o ato de dar é acompanhado de riso. A seriedade é prática e interesseira no sentido amplo da palavra. A seriedade retém, estabiliza, está voltada para o pronto, para o concluído em sua obstinação e autopreservação. Não é uma força tranquila e segura de si (esta sorri), mas uma força ameaçada e por isso ameaçadora, ou uma fraqueza suplicante.

Érika sugere às crianças que os enunciados ditos no áudio em alemão, alguns não registrados nas legendas, são o perigo, o sério, a força ameaçadora. Os enunciados em português, com áudio italiano, que deslizam entre o pai e o filho, são o riso, são a liberdade, são a vida. Guido, desarmado, faz do riso um instrumento de luta contra as metralhadoras ameaçadoras. Os enunciados do pai dirigidos ao filho não podem ser lidos exatamente como estão grafados, como se fossem iguais a si mesmos; ao contrário, as crianças têm de lê-los não como expressões verdadeiras do riso, mas como táticas em defesa da vida contra a barbárie. Érika ensina as crianças a ler os sentidos e aprofunda a provocação para que duvidem da estabilidade dos significados:

Érika: Por que será que o nome do filme é “A vida é bela”, sendo que ele está

falando de uma época de guerra e de perseguição?

Sônia: Quem sabe?

Sílvio: Porque os italianos estavam em guerra.

Sônia: Será que só os italianos estavam em guerra?

Crianças juntas: Não!

Sônia: Vai falar...

Sílvio: Segunda Guerra Mundial?

Sônia: Isso! Sobre a Segunda Guerra Mundial e quantos países estavam envolvidos?

Sílvio: Acho que 4.

Sônia: Alguém sabe de outros países que estavam envolvidos na 2ª Guerra Mundial?

Sílvio: Síria, Itália.

Sônia: Síria?

Sílvio: Só a Itália?

Melissa: Brasil?

Sônia: Vocês já ouviram falar sobre a 2ª Guerra?

Lívia: Não.

As perguntas de Sônia remexem as experiências de Sílvio, que parece ter mais dados que os colegas: as informações sobre países em conflitos na época, entre os quais a cruel guerra civil na Síria, exposta diariamente nas telas da TV. Melissa não recebe resposta para a sua pergunta. Lívia, de seu lado, revela ter menos dados para enfrentar a sessão cinematográfica e as legendas com êxito. Por essa razão, é preciso que ela seja alimentada pelas pesquisadoras.

Sônia: Então a gente vai prestar atenção no filme. Durante o filme vamos ajudar vocês com isso. A Érika vai falar sobre alguns lugares em que ela esteve, que vão aparecer aqui, e nós vamos prestar bastante atenção, porque o filme é bem bonito hoje, tá bom? Se vocês tiverem alguma pergunta ou alguma dúvida, podem ir falando.

Desse modo, antes de botar os olhos nas legendas, de orientar os ouvidos para ouvir e os olhos para ver o filme, as crianças já começaram a ler, porque as duas pesquisadoras mobilizaram as condutas intelectuais fundamentais: dialogar com os sentidos por meio dos enunciados gráficos ancorados nas situações ex-traverbais, nas suas experiências e nas suas expectativas.

5 DURANTE A SESSÃO

Preparada a situação de projeção com perguntas provocativas, reavivadas experiências sobre a tema e levantadas algumas hipóteses, estavam dadas as condições para o início da sessão, com seguidas provocações, com interrupções e pausas, ou mesmo com comentários sobrepostos ao filme, para manter vivo um movimento entre perguntas, respostas, hipóteses, confirmações, não confirmações, predições, criação de expectativas, satisfação ou não delas, em um movimento ininterrupto que sustenta e aprofunda o ato de ler.

Sônia: No começo, vocês se lembram do que ele falou ? Quem estava falando?

Sílvio: O italiano.

Sônia: Mas será que ele faz parte, estava narrando ou ele participou?

Lívia: Faz parte.

Sônia: Vocês se lembram do que ele falou?

Sílvio: De carros.

Sônia: Foi rápido, né?

Melissa: Foi.

Sônia: Vamos voltar um pouquinho.

Sônia: Ele falou que a história passa em qual lugar?

Sílvio: Itália.

Sônia: Tem uma cidade aí, não é? Arezzo?

No início, há uma cerimônia, uma festa, alegria, casamento e um futuro risonho.

Sônia: Quem eles imaginam que sejam?

Sílvio: O rei.

Sônia: E ele é o rei?

Lívia: Não.

Sônia: E esses outros?

Teresa: Esse é o rei e a rainha.

Sônia: Qual é o nome dele?

Sílvio: Príncipe Guido.

Sônia: Ela foi picada por quem?

Melissa: Por uma abelha.

Sônia: Isso mesmo!

Melissa: Você também viu, né? (Demonstrando empolgação)

Sônia: Sim.

Sônia: Qual é o nome do cavalo?

Melissa: O nome do cavalo é Robin Hood?

Sônia: Quem foi Robin Hood?

Melissa: Príncipe dos ladrões, né?

Sônia: Exatamente!

Melissa: (risos – demonstrando satisfação).

Melissa aciona suas experiências, dá a resposta à provocação e sorri de alegria, não apenas por ter arriscado uma resposta, a esperada, mas por partilhar com os demais os conhecimentos necessários para o diálogo com as legendas, elas mesmas compostas por diálogos.

Érika: Vocês viram como é o nome dos filhos dele ? Benito, de Benito Mussolini, e Adolf, de Adolf Hitler, que eram os ditadores do período que eles viviam, porque a Alemanha e a Itália eram aliadas ao Japão na Guerra. Elas formavam o eixo, que foi a parte que perdeu a guerra.

Sônia: O Guido é um judeu.

Érika: Italiano, mas é um judeu. Naquela época lá não eram presidentes, eram ditadores.

A dinâmica do filme impede que mais dados sejam lançados e aprofundados pelas pesquisadoras, mas vestígios desses comentários inacabados podem dar, em outro momento, origem a novas perguntas na mente das crianças. O filme e os diálogos abrem as portas para elas, pelos enunciados escritos na tela e pelos emitidos oralmente por Sônia e Érika, de um universo completamente desconhecido: a Segunda Guerra Mundial, o preconceito étnico, a barbárie, regimes políticos autoritários e brutais. Elas leem para compreender a vida, para se humanizarem e para se imunizarem contra os desvarios de adultos e de seus rompantes autoritários e ditatoriais. Sônia lança perguntas, dá respostas, encadeia novas perguntas para alimentar as crianças para, ao mesmo tempo, ensiná-las a elaborar suas próprias perguntas e a encontrar suas próprias respostas. Ensinar a criança a elaborar perguntas é ensiná-la a ler.

Cenas anteriores são recuperadas para confirmar as que chegam agora aos olhos. Tereza demonstra estar acostumada a ver filmes, ao supor ter sido baseado em fatos reais, por abordar um tema da história com referências a figuras da história mundial, como Hitler e Mussolini:

Teresa: Esse filme é baseado em fatos reais?

Sônia: Acontece na Segunda Guerra Mundial, mas não exatamente assim, porque essa história é a do Guido. Mas o que vai passar depois aconteceu na vida real de algumas pessoas. O filme vai contar de outra forma a história.

Sônia retoma os fatos históricos, mas informa que se trata de uma obra de criação artística, uma obra criada pelos homens para a compreensão da realidade, de sua brutalidade e dos meios para dela escapar. Desvelar os sentídos são os objetívos do ato de ler: ler, compreender, interpretar são atos indissolúveis, fundidos em um só, a totalidade. Não há lugar para sua separação, como fazem metodologias tradicionais. Em suas anotações fragmentadas, Bakhtín (2017, p. 60) toca nesse tema:

O problema da interpretação. A interpretação como visão do sentido, não uma visão fenomênica e sim uma visão do sentido vivo da vivência na expressão, uma visão do fenômeno internamente compreendido, por assim dizer, autocompreendido.

Neste trecho, merecem destaques os termos interpretação, vinculado a sentidos imbricados com vivências, e autocompreendido ou compreensão interna. Compreensão e interpretação se fundem na criação de sentidos nos enunciados.

Sônia : O que ele está tentando resolver? Alguém sabe? Quem vai chegar?

Teresa: Aquele garçom.

Sílvio: Aquele homem?

Sônia: Mas era para ele estar ali?

Crianças juntas: Não.

Lívia: O que será que ele vai fazer?

Sônia: E quem é a amiga dele que trabalha lá?

Teresa: A princesa.

Érika : Ele é esperto?

Lívia: Ele é e já trocou os chapéus.

Érika: E a comida. Ele só falou comida ruim, não é?

Sônia: Ele falou que a sopa era boa, porque ela já estava pronta. E o que ele falou para o outro homem, que não quis comer?

Lívia: Ele está fazendo de tudo para se aproximar dela.

Os jogos, as brincadeiras aparentes, as charadas inventadas, tudo isso parece fazer parte de um mundo encantado que mascara a fome e a perversidade. É o riso nervoso e falso, mas, mesmo assim, um riso estratégico, necessário para lutar contra o sério; o riso contra o perigo; o divertido contra a seriedade; a bondade contra a maldade. São muitos os diálogos criados pelas crianças, como os de Melissa, quando prediz, espera confirmação, confirma e volta a predizer. É o leitor em processo de formação e de humanização.

Melissa: Eles ficam tentando adivinhar, falando charadas.

Sônia: O que será que vai acontecer?

Melissa: Ele vai fazer o homem comer a sopa!

Érika: A sopa que já estava pronta?

Lívia: Sim, para ele não ficar em apuros.

Melissa: Sim, ele vai conseguir convencer o homem.

Sônia: Mesmo que a sopa esteja fria?

Sílvio: Sim, porque ele é muito divertido.

O divertido é, na essência, uma estratégia, como uma ópera que conta uma história. É preciso, contudo, ampliar a massa aperceptiva das crianças.

Sônia : Isso é uma ópera, você já foi numa ópera Érika?

Érika: Eu já fui uma vez.

Sônia: A Érika vai dizer o que é uma ópera, porque eu nunca fui, eu só ouvi falar.

Érika: A ópera é como um teatro, só que é cantada, com um canto bem alto e afinado.

Sílvio: Tem que ir de vestido?

Érika: Lá as pessoas vão com trajes elegantes.

Perguntas e respostas se misturam em torno do jogo de Guido para driblar o sério e o perigo, para proteger a vida espremida entre a liberdade, a prisão e a morte. Perguntas e respostas são motores mentais do desenvolvimento da criança. Bakhtin (2017, p. 76) faz referência a isso:

Pergunta e resposta não são relações (categorias) lógicas; não podem caber em uma só consciência (una e fechada em si mesma); toda resposta gera uma nova pergunta. Perguntas e respostas supõem uma distância recíproca. Se a resposta não gera uma nova pergunta, separa-se do diálogo e entra no conhecimento sistêmico, no fundo impessoal.

E nada é impessoal nas relações humanas, nem na relação entre pesquisadoras e crianças diante da tela.

Sônia: O que ele vai fazer?

Meire: Ele vai tentar procurar chave.

Sônia: A chave vai cair de onde?

Sílvio: Cai do céu.

Meire: Daquela mulher.

Sônia: O que foi S?

Sílvio: Não entendi aquela charada? 7 minutos?

Sônia: A resposta da charada? Vamos ver se entendemos até o final.

Sônia: Implorar para entrar, né? E para onde eles vão agora?

Sílvio: Para um lugar.

Sônia: Como é esse lugar? Será que é um lugar legal? Eles vão ser bem tratados?

Sílvio: Não, é o lugar da 2ª Guerra Mundial.

Sônia: Vamos acompanhar para vermos o que vai acontecer.

Sônia provoca as crianças com perguntas, e Sílvio, já nutrido de informações, localiza o cenário do campo como uma praça de guerra. Érika relata e compartilha suas vivências em um campo de concentração na Alemanha.

Sônia: Érika, você conheceu esse lugar?

Érika: Conheci um lugar como esse, que hoje é um museu deixado para as pessoas saberem como era, como os judeus eram levados para ficarem trabalhando como escravos. Chamavam-se campos de concentração. Existiam os campos de passagem, porque lá os judeus ficavam esperando para ir para outros campos; os campos de trabalho forçado, em que eles faziam armas, e tinha os de extermínio, para onde mandavam quem não aguentava mais trabalhar.

Sônia: Que exterminavam.

A barbárie toca, pouco a pouco, os espectadores, principalmente porque as crianças protagonistas são afetadas pela barbárie nazifascista.

Érika: Isso! E quem começou com isso foram os alemães, mas vários outros povos quiseram fazer isso também. Na Europa inteira foram construídos uns 50 desses campos. A maioria deles ficava na Alemanha. O campo que teve mais mortes foi o campo de Auschwitz, na Polônia. Quem ia para lá, já sabia que ia morrer.

Sônia: E as crianças podiam trabalhar?

Lívia: Sim.

Sílvio: Elas trabalhavam, ficavam ao lado do pai.

Érika: O que eles faziam com quem não podia trabalhar?

Sílvio: Matavam.

Érika: E os velhinhos que estavam bem doentes?

Lívia: Morriam.

A antecipação proposta por Érika aguça o interesse dos pequenos espectadores, os remete para as legendas e para os sentidos sombrios dos enunciados:

Sônia: Nós vamos ver agora o que vai acontecer.

Sílvio: E o que acontecia com as mulheres?

Sônia: Ficavam todas juntas?

Sílvio: Elas estão mortas?

Sônia: As que conseguiam trabalhar, não. A gente vai ver um pouquinho logo.

Sônia: O que ele está tentando fazer com o menino?

Teresa: Tentado ajudar ele, porque o menino está muito entediado.

Érika: E por que será que o menino está triste ?

Sílvio: Porque ele está longe da mãe dele.

Érika: E por que será que ele quer que o menino fique feliz?

Sônia: Ele fala para o menino que isso faz parte do quê? Ele vai falar que é uma guerra?

Sílvio: Não.

Sílvio compreende que a criança era poupada por Guido dos horrores da guerra, por isso era preciso jogar, provocar o riso, mascarar o perigo.

Sônia: Ele vai falar que faz parte de um jogo. Qual é o prêmio?

Meire: Um tanque novo.

Sônia: Um tanque do quê?

Meire: De guerra.

Sônia: Por que estão separando ele?

Melissa: Porque os velhinhos vão morrer.

Sílvio: Os grandes vão para outro lado.

O áudio em alemão, sem legendas, solicita a colaboração de Érika. As crianças entram no jogo das línguas orais e legendas.

Sônia: A Érika sabe alemão. Se vocês quiserem saber o que ele está falando, ela pode traduzir.

Érika: Ele está perguntando se tem alguém que fala o alemão.

Sônia: Só que depois não irão colocar a legenda da tradução do alemão.

Melissa: Aí, meu Deus!

Melissa, mergulhada na trama, preocupa-se com a ausência de legendas para o áudio em alemão:

Sônia: Ele sabe falar alemão?

Melissa: Não.

Sônia: Se ele não sabe, como que ele vai fazer a tradução? Será que vai fazer certinho?

Crianças juntas: Nãooo.

Sônia: Para quem ele está falando? Ele está fazendo tradução para quem?

Teresa: Para o filho dele.

Sônia: Para o filho.

Érika: O soldado está falando que eles só vão comer uma vez e que eles não podem perder o transporte, então eles têm que ser pontuais. Ele está traduzindo do jeito que ele quer, mudando o sentido, para o filho dele pensar que é um jogo. O soldado fala que se alguém sabotar as regras deles, vai para o campo e vai morrer na vala comum.

O riso do jogo que escorre pela tela não se torna riso completo na mente dos espectadores, porque, como afirma Bakhtin (2017, p. 62), “O riso suprime o peso do futuro (do porvindouro), livra das preocupações do futuro; o futuro deixa de ser uma ameaça”. Guido, por essa razão, transforma o futuro ameaçador da morte em jogo vivo do presente. O riso mascara o futuro e dá sobrevida a ele e a seu filho. Os espectadores ali agrupados aprendem que não podem confiar no que está escrito literalmente. Os sentidos que os enunciados da legenda indicam não podem ser lidos tal como estão diante dos olhos. As intenções, os objetivos e as táticas de Guido orientam os espectadores a atribuir sentidos a esses enunciados, em vez de se apoiarem cegamente no significado estável, conduta obediente ensinada na escola. Aprender a ler é aprender a não ser intelectualmente obediente.

Melissa: Nossa! Então todo mundo vai morrer!?

Sônia: Então o que ele vai traduzir para o filho?

Érika: Ele está falando do poder do domínio alemão sobre Europa. Ele fala que tem três regras que não podem ser esquecidas; que eles têm que manter os soldados satisfeitos; que não podem arrumar problemas e que quem continuar trabalhando vai ficar vivo. “Isso é tudo o que vocês precisam saber sobre as regras para ficarem vivos. Mais alguma pergunta?” Eles têm que ir para direita para trabalhar e, se eles forem nesse sentido, ficarão vivos, porque eles ficarão satisfeitos com o serviço deles. Eles têm que ir rapidamente lá para o lado direito e trabalhar, imediatamente.

Os espectadores, realimentados pelas informações dispostas por Érika nas traduções do alemão para o português brasileiro, ampliam o seu universo de troca com os diálogos apresentados nas telas.

Sônia: Eles mandaram o menino para onde?

Teresa: Para câmara de gás.

Érika: E eles falam que é para quê?

Melissa: Para tomar banho.

As informações e os questionamentos de Érika e de Sônia antecipam contextos e dão movimentação ao pensamento das crianças, que não ficam indiferentes, como afirmaria Bakhtin, de modo sempre entrecortado (2017, p. 64): “Antecipação do contexto em expansão subsequente, sua relação com o todo acabado e inacabado. Tal sentido (no contexto não é tranquilo nem cômodo (nele não se pode ficar tranquilo nem morrer)”. O sentido aqui é o da morte que impregna cada palavra dos enunciados no filme.

Sônia: O que é isso? Uma câmera de gás, e o que acontece?

Sílvio: É um lugar que tem muito gás tóxico.

Sônia: E o que vai acontecer com eles?

Melissa: Morrer

Érika: Em vez de água, o chuveiro solta gás de veneno.

Os dramas dos judeus na Segunda Guerra começam a fazer parte da massa aperceptiva das crianças, que, por situações como essas, humanizam-se ao perceberem um mundo, a eles legado, oscilante entre perversidade, ódio, e um outro que promove a justiça, o respeito às diferenças, as virtudes formadores da essência humana.

Érika: Eles matavam um monte de gente nessas câmaras de gás. Era enorme e um monte de gente ficava morrendo lá, se debatendo todos juntos.

Sílvio: Não tinha como escapar?

Érika: Não. Era trancado.

Lívia: Tinha janela?

Érika: Não tinha nem janela para sair o gás. O quarto era todo fechado que nem uma sauna.

Sônia: Você entrou lá dentro?

Érika: Aham! Tinha essas camas grandonas.

A troca permite que um doe ao outro as suas experiências e suas vivências. Professores e crianças trocam dados mediados pelos diálogos que escorrem velozmente na tela.

Sônia: O que vai acontecer com ele? Lembra antes, ele gostava de tomar banho?

Teresa: Não!

Sílvio: Vão matar eles?

O modo de operar do campo para o extermínio causa assombro. Melissa, Sílvio e Lívia completam enunciados e confirmam hipóteses.

Sílvio: O que é isso?

Sônia: Alguém sabe? O que é isso?

Melissa: Eles estão separando as roupas.

Sônia: De quem são essas roupas?

Melissa: Dos soldados.

Sílvio: Dos homens, dos velhinhos e das crianças.

Lívia: Daquele moço lá que ia morrer.

Sônia: É isso mesmo.

Sílvio: Eu acertei.

Sônia: Eles não traduziram essa parte.

Érika: Atenção, que já serão fechadas as portas. (Tradução do áudio em alemão)

Sônia: Os que estavam doentes eles eliminavam?

Érika: Aham!

Sônia: Quem é esse homem aqui?

Melissa: É o cara de quem ele vivia roubando o chapéu.

Sílvio: Não é. É o outro.

Sônia: É o cara das charadas.

Melissa: Ah, sim.

A barbárie atinge o clímax nas conclusões de Sílvio e de Teresa.

Sônia: O que ele falou que fazem?

Sílvio: Botões.

Teresa: E sabões.

Sílvio: Botões e sabões com a gente.

Teresa: É alguma coisa assim.

Sílvio: Ainda fazem isso com os judeus?

Érika: Quando a Alemanha e a Itália vão perdendo aGuerra, aí eles pararam com isso. Os outros países não deixaram mais isso acontecer.

Sônia: Alguns sobreviveram.

A memória gravada nas obras de arte, nos depoimentos e nos documentos, compõe o diálogo do grande tempo (BAKHTIN, 2017, p. 79). Por eles, as crianças pequenas dialogam com o passado no grande tempo (Eles faziam botões e sabões com pessoas), mas encetam diálogos com o presente, o pequeno diálogo (Ainda fazem isso com os judeus?).

Em direção ao final, os pequenos espectadores não se deleitam com o filme, mas por ele compreendem um passado assombroso que pode voltar a assombrá-los no presente, em seu próprio tempo, em seu próprio país.

Sônia: O que ele falou para eles?

Érika: Para eles ficarem em silêncio. (Tradução do alemão)

Sônia: Tem um símbolo ali, né?

Érika, a pedido de Sônia, expõe sucintamente mais informações para as crianças. Melissa, Sílvio, Lívia, Teresa e Meire trouxeram suas experiências, ainda não amplas, encontraram-se e as trocaram entre si, encontraram-se com as das pesquisadoras, tanto em relação aos sentidos quanto em relação à construção gráfica dos enunciados, mas cada qual preservou sua singularidade, sua própria compreensão, construiu suas próprias perguntas e obteve suas próprias respostas. São atos singulares, particulares. A compreensão é um ato singular, como entende Bakhtin (2017, p. 62-3):

A compreensão. Desmembramento da compreensão em atos particulares. Na compreensão efetiva, real e concreta, eles se fundem indissoluvelmente em um processo único de compreensão, porém cada ato particular tem uma autonomia semântica (de conteúdo) ideal e pode ser destacado do ato empírico concreto.

Desconfiar do significado estável e incorporar aportes da situação extraverbal compõem condutas que formam o conjunto complexo do ato de ler. Os enunciados gráficos se incorporam a símbolos visuais, como a suástica nazista abusadamente mostrada no filme:

Érika: É o símbolo do nazismo, uma suástica que o Hitler escolheu para representar o nazismo. Vem lá dos ancestrais que acreditavam que os deuses vinham da raça pura e Hitler queria esse símbolo para representar a raça pura. Ele queria matar judeus para não se misturarem com a raça dele, que seria pura.

O final do filme provoca a estupefação das crianças diante da barbárie.

Teresa: O que é isso?

Sônia: O que era aquilo? As pessoas que morreram empilhadas.

Meire: Elas se transformaram naquilo?

Sônia: Não, eles empilharam as pessoas.

Sônia: O que aconteceu?

Melissa: Acabou a guerra e todos estão fugindo.

Érika: Os soldados que vigiavam eles perderam a guerra. Então eles estão fugindo, porque, quando perde a guerra, a pessoa é presa, punida de alguma forma, porque na verdade eles mataram pessoas. Então precisam ser julgados, por isso estavam fugindo.

Fragmentos de Bakhtin (2017), não muito explícitos, anunciam esse drama que invade as mentes das crianças, com o rosto de Guido e os olhares de seu filho. Seus dramas, seus jogos e suas consciências se encontram e literalmente trombam com as consciências dos algozes nazistas. Assim se manifesta Bakhtin (2017, p. 58) sobre as consciências, a vida, a morte e suas expressões.

Os elementos da expressão (o corpo não como materialidade morta, o rosto, os olhos, etc); neles se cruzam e se combinam duas consciências (a do eu e a do outro); aqui eu existo para o outro com auxílio do outro. A história da autoconsciência concreta e o papel nela desempenhado pelo outro (o amante). O reflexo de mim mesmo no outro. A morte para mim e a morte para o outro. A memória.

As últimas cenas na tela não foram as últimas nas mentes das crianças. Melissa e Lívia queriam o bom fim dos contos de fadas, mas perceberam a crueldade da vida e a memória da morte.

Sônia: O que vocês acharam do filme?

Melissa: Acabou?

Lívia: Não terminou a história!

Sônia: Não terminou a história?

Melissa: Não, porque ela acha que o pai do menino está vivo.

Sílvio: Ele morreu, né?

Érika: Sim.

Melissa: Muito bonito e muito legal.

Teresa: Mas o filho e a mãe não!

E as legendas? Foram lidas? Ora completas, oras fragmentadas, ora rápidas, ora lentas, ora registrando os áudios, ora não, tornaram-se enunciados de troca, de compreensão; foram instrumentos de formação das crianças como leitoras, mas também de formação humana:

Sônia: Vocês conseguiram ler as legendas?

Meire: Mais ou menos.

Sílvio: Sim, algumas!

Teresa: Mais da metade.

Sônia: Foi diferente dos outros filmes que viram?

Teresa: Sim, porque teve mais coisas.

Sônia: Para ler?

Teresa: É, porque aconteceu muita coisa.

Sônia: Vocês perderam muitas partes?

Melissa: Não, deu tudo certo.

Sílvio: Um pouco!

Sônia: Nesse filme, a legenda é mais rápida?

Teresa: Sim!

Sílvio: Certeza!

Sônia: O que a Érika falou ajudou vocês?

Lívia: Sim.

Meire: Ajudou!

Silvio, Lívia, Teresa, Meire e Melissa dão, nas últimas linhas, as indicações de que é preciso, para ler, a criação de situações de perguntas, de predições, de antecipações, de hipóteses, de confirmações, de respostas e, sobretudo, de ampliação do conjunto de experiências por meio do compartilhamento de saberes.

6 CONCLUSÃO

Este fecho do artigo se articula com a introdução e com o anúncio lá registrado que previa a abordagem, no final, de dois movimentos ou de dois eixos evidenciados na análise dos dados, imbricados um ao outro, fundamentais para a formação das crianças.

De um lado, os diálogos travados entre crianças e pesquisadores e entre elas mesmas, e a relação dialógica de todos com os diálogos registrados pelas legendas e os não registrados na tela, para compreender, por uma obra de arte cinematográfica, a natureza humana. As legendas não poderiam ser pronunciadas pelas crianças, porque o fundamental era que aprendessem a usar os olhos, orientados por sua mente, pelas suas experiências, pelas suas perguntas, pelas suas intenções, para captar marcas gráficas que confirmassem ou não suas hipóteses e propiciassem novas perguntas. Eram enunciados plenos de sentidos da vida, de dramas, de tristezas, de alegrias, de esperança e de desesperanças.

As crianças não estavam procurando palavras com os olhos, mas sentidos que pudessem satisfazer sua mente inquieta. Esses enunciados todos, em português brasileiro, em alemão ou em italiano, curtos ou longos, orais ou escritos, afetaram os corações de Melissa, de Teresa, de Lívia, de Meire e de Sílvio. Eles não permaneceram indiferentes em relação ao que viram (vendo enunciados e vendo imagens), porque ler, sobretudo, é ver os sentidos que se enroscam nas palavras. Ensinar a ler é ensinar a criança a mergulhar, pelos enunciados, nas profundezas da sua consciência e da consciência dos outros. Nesta sessão de cinema, as crianças partilharam esse ato com seus colegas; experimentaram o sabor doce e amargo da vida que escorre pelos enunciados escritos.

2Ficha técnica e sinopse - “A Vida é Bela” (“La Vita È Bella”) – Itália, 1997. Direção: Roberto Benigni. Roteiro: Roberto Benigni; Vincenzo Cerami. Elenco: Roberto Benigni, Nicoletta Braschi, Giorgio Cantarini, Giustino Durano, Sergio Bini Bustric, Marisa Paredes. Duração: 118 min.

3La masse aperceptive, qui détermine notre perception inclut des éléments constants et stables, qui sont formé chez nous par les influences constantes e répétitives de notre milieu environnant (ou de nos milieux), et des éléments transitoires, qui apparaissent dans les conditions à chaque foi différentes d'un moment donné. A tradução do francês é de responsabilidade de Dagoberto Buim Arena.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. São Paulo: Editora 34, 017. [ Links ]

JAKUBINSKIJ, L Sur la parole dialogale. In: JAKUBINSKIJ, L Une linguistique de la parole (URSS, années 1920-1930). Limoges: Lambert Lucas, 2012. p. 109-27. [ Links ]

A VIDA é Bela. Direção de Roberto Benigni. Melampo Cinematografica. Arezzo: Cecchi Gori Group, 1997. Vídeo (116 min.), son., color. [ Links ]

Recebido: 08 de Agosto de 2021; Aceito: 09 de Março de 2022

Sobre os autores:

Dagoberto Buim Arena: Doutor e mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Graduado em Letras Pela UNESP. Professor livre-docente pela UNESP. Professor do Departamento de Didática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP. E-mail:dagobertobuim@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-9285-6487

Érika Christina Kohle: Doutora e mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Especialização em Língua Portuguesa e Literatura pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Graduada em Letras – Português e Alemão pela UNESP e Português e Inglês pela Universidade Cruzeiro do Sul. Graduada em Pedagogia pela UNESP. Diretora de Escola de Educação Infantil da rede Municipal de Marília. E-mail:erika.kohle@unesp.br, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-0907-4420

Sônia de Oliveira Santos: Doutora e mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Graduada em Pedagogia pela UNESP. Coordenadora Pedagógica em escola de ensino fundamental da rede estadual paulista em Marília. E-mail:soniliver2014@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-4566-616X

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