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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.60 Campo Grande mayo/aug 2022  Epub 30-Ago-2022

https://doi.org/10.20435/serie-estudos.v27i60.1646 

Artigos

Currículos multirreferenciais na ciberpesquisa-formação: uma conversa com o filme “Avatar”

Multi-referential curriculum in cyber-research-training: a conversation with the “Avatar” movie

Currículos multireferenciales en ciberinvestígación-formación: una conversación con la película “Avatar”

1Fundação Getulio Vargas (FGV), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

2Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, Rio de Janeiro, Brasil.

3Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.


Resumo:

Neste artigo, subproduto de uma pesquisa realizada numa turma de um curso de graduação de educação, desenvolvido em uma universidade pública do Estado do Rio de Janeiro, as autoras, num movimento de aproximação entre educação e artes, estabelecem a interface entre o currículo e práticas comunicativas mediadas pelo cinema, tendo como base o filme “Avatar”. Nessa perspectiva, objetivam, no âmbito de uma ciberpesquisa-formação, mostrar como o diário online pode ser usado como dispositivo catalisador e potencializador de atos de currículo, que levam em conta o heterogêneo na tessitura do conhecimento. Amparadas no paradigma da complexidade, nos princípios da multirreferencialidade e na abordagem da pesquisa com os cotidianos, procuram transcender a simples utilização do cinema como criação artística e ilustração da realidade, para englobar aspectos culturais, históricos, literários, pedagógicos e políticos que lhes são inerentes.

Palavras-chave: cinema; currículos multirreferenciais; diários online

Abstract:

In this article, a by-product of a research carried out in a class of an undergraduate education course, developed at a public university in the State of Rio de Janeiro, the authors, in a movement to bring education and arts closer, establish the interface between the curriculum and communicative practices mediated by cinema, based on the movie “Avatar”. In this perspective, within the scope of a cyber-research-training, they aim to show how the online diary can be used as an catalyst and enhancer of curriculum acts, that consider the heterogeneous in the fabric of knowledge. Supported by the paradigm of complexity, by the principles of multi-referentiality and by the research approach to everyday life, they seek to transcend the simple use of cinema as artistic creation and illustration of reality, to encompass cultural, historical, literary, pedagogical and political aspects that are inherent to it.

Keywords: cinema; multi-referential curricula; online diaries

Resumen:

En este artículo, producto de una investigación realizada en una clase de un curso de graduación, desarrollado en una universidad pública del Estado de Rio de Janeiro, los autores, en un movimiento de aproximación entre la educación y las artes, establecen la interfaz entre el currículo y las prácticas comunicativas mediadas por el cine, a partir de la película “Avatar”. Desde esta perspectiva, pretenden, en el ámbito de una ciber-investigación-formación, mostrar cómo el diario en línea puede ser utilizado como dispositivo catalizador y potenciador de actos curriculares, que tengan en cuenta lo heterogéneo en el tejido del conocimiento. Sustentadas en el paradigma de la complejidad, en los principios de la multirreferencialidad y el abordaje de la investigación con la cotidianidad, buscan trascender el simple uso del cine como creación artística e ilustración de la realidad, para abarcar aspectos culturales, históricos, literarios, pedagógicos y políticos que les son inherentes.

Palabras clave: cine; currículos multirreferenciales; diarios en línea

1 INTRODUÇÃO

O desenvolvimento das tecnologias digitais em rede e seus impactos exigem uma reflexão mais profunda sobre os problemas contemporâneos e seus entrelaçamentos com a produção acadêmica em educação. Com a crise do paradigma hegemônico, que caracteriza a ciência moderna, surgem novas formas de pensar as diferentes redes educativas que se instauram – “espaçostempos”4 de reinvenção, de (re)criação, no qual a vida flui, de forma dinâmica e integrada, e os sujeitos se articulam, formando e se formando como cidadãos e profissionais consumidores e produtores de informações e conhecimentos.

Currículos tecidos em rede ganham “sentidosignificação”, na medida em que os sujeitos se tornam mais reflexivos e críticos, dialogando e interagindo com outros sujeitos, ao participarem, ativamente, de comunidades de conhecimento desse universo, transformando o mundo e a si próprios, “dentrofora” da escola, “espaçostempos” nos quais representações individuais e coletivas são expressas, por vezes, contraditoriamente, nas “ práticasteorias” que criamos, transmitimos e reproduzimos, afirma Alves (2008), contribuindo para um projeto de educação mais amplo. Esses currículos exalam vida; explodem nas interações cotidianas para além dos currículos formais prescritos, para falarem de vida, de existência como currículo-formação, impulsionando ações e reconfigurando redes de fazeres, saberes e poderes.

Assim, torna-se impossível desvinculá-los do cenário sociotécnico e cultural, representado pela Cibercultura, cultura contemporânea mediada pelo digital em rede (SANTOS, E., 2019), na inter-relação ciberespaço/cidades, sob o risco de criarmos um gap entre processos culturais e de aprendizagem. A Cibercultura assume, dessa forma, a complexidade da realidade, pondo em evidência as práticas sociais que emergem de diferentes contextos, pois, ao contrário da escolarização, que se desenvolve em ambientes fechados, nessa modalidade, a aprendizagem vai muito além dos muros da escola e da universidade, relacionando-se, de forma híbrida, com os “espaçostempos” que nos cercam. Cria, assim, espaços intersticiais na conjugação do ciberespaço com as cidades (SANTAELLA, 2010), dado que as tecnologias móveis estão construindo um espaço de mistura inextricável entre o virtual e o mundo físico, adicionando-lhe funcionalidade.

A maneira como nos relacionamos com o outro, inventando novas formas de fazer e viver por apostar nas práticas curriculares, “dentrofora” dessas redes que integram valores, éticas e estéticas diversificadas, assume um caráter político, afirma Macedo (2012), e a articulação de conhecimentos, habilidades, comportamentos, funcionalidade e significação constitui uma aprendizagem formadora. Desse modo, essas redes funcionam como campo de lutas - uma estratégia para fugir da imposição dos modelos hegemônicos.

Em tempos de cibercultura, as imagens estáticas ou em movimento vêm ocupando espaços cada vez mais significativos, constituindo as narrativas do mundo contemporâneo e nos fornecendo novos elementos para compreendermos o próprio conceito de narrativa. Para Barthes (2007), o texto não comenta as imagens, nem as imagens ilustram o texto. Ambos, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação e a troca desses significantes: o corpo, o rosto, a escrita; e neles ler o recuo dos signos. Assim, as práticas pedagógicas podem ser analisadas por meio de suas representações imagéticas ou descrições verbais ou, ainda, como acentua Sgarbi (2007) , na articulação entre essas linguagens.

É nesse contexto que, tomando como base o filme “Avatar”, objetivamos mostrar como o diário online pode ser utilizado como um dispositivo catalisador e potencializador de currículos multirreferenciais, baseados em processos de “aprendizagemensino”, que nos possibilitem um olhar multifacetado, pois, ao contrário da narrativa escrita, em que podemos detalhar as características físicas e emocionais dos personagens, nas narrativas cinematográficas, todas essas características ficam por conta do olhar e da percepção do espectador, capaz de captar desde as expressões corporais e faciais dos personagens, até aspectos relacionados à cenografia e à trilha sonora. Ademais, o cinema, por meio de suas imagens e sons, tem o potencial de ousar, experimentar, provocar encontros crítico-criativos com a realidade, o que constitui um valioso objeto de estudo que deve ser explorado nos cotidianos escolares, pois, como afirma Fresquet (2013), entre o real e o ficcional, a realidade e a fantasia, cinema e educação transitam e se encontram, eventualmente. A adoção desse olhar multidimensional requer também explicações plurais, que

[...] podem revelar modos de ser e viver contemporâneos, retratar culturas locais, socializar conhecimentos universais, e tratar de questões sociais e políticas, que podem ser explorados por um currículo plural que dialoga com os cotidianos e com a subjetividade dos sujeitos, indo além da perspectiva de grade curricular. (PAZ; NEVES; ALVES, 2014, p. 1261).

Diante desse quadro, indagamos: o que significa olhar o mundo por meio dessas lentes? O que somos capazes de ver e o que se nos escapa ao olhar? Na medida do possível, as respostas a essas questões estão presentes no diálogo que travamos com o filme “Avatar”, de autoria de James Cameron, a quem pedimos licença para adentrar em sua obra – cuja ficha técnica e sinopse são apresentadas adiante.

Tabela 1 Ficha técnica: “Avatar” 

Título “Avatar” (Original)
Ano de produção 2009
Dirigido por James Cameron
Estreia

18 de dezembro de 2009 (Brasil).

Outras datas

Ação 162 minutos
Classificação 12 – Não recomendado para menores de 12 anos
Gênero Ação; Aventura; Fantasia; Ficção Científica
Países de origem Estados Unidos da América, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte

Fonte: Elaborado pelas autoras, com informações do site Filmow5.

2 SINOPSE

“Avatar” é um filme de ficção científica. Lançado em Londres, em dezembro de 2009, foi indicado a nove Oscars. A história se passa no ano 2154, num planeta chamado Pandora, onde uma espécie humanoide azulada de três metros de altura, chamada Na’vi, vive em conflito com humanos que intencionam explorar o minério Unobtainium, em suas terras.

Na busca de uma relação pacífica com os nativos, é desenvolvido o Programa Avatar, o qual cria corpos híbridos – humano-na’vi – que possibilitam aos humanos respirarem na atmosfera de Pandora, rica em metano, amônia e dióxido de carbono. Jake Sully, um ex-fuzileiro paraplégico, é chamado para participar desse programa, coordenado pela Dra. Grace Augustine, para substituir seu irmão gêmeo – cientista do programa, morto num assalto –, a fim de conhecer a vida dos humanoides. Ainda que não tenha qualquer experiência, nem conhecimento do povo nativo, Jake é escolhido por seu DNA ser similar ao do irmão, podendo, desse modo, usar seu avatar6. Por entender que isso o ajudaria a realizar uma cirurgia que lhe restituiria o movimento das pernas, Jake aceita a proposta do coronel Miles Quaritch para se misturar aos nativos, aprender seus costumes e buscar sua colaboração, haja vista que o território dos na’vi se localiza acima da maior reserva do precioso mineral, tão ambicionado por Quaritch. Inicialmente, a Dra. Grace não aprova sua contratação, por ele, assim como os demais pesquisadores, não terem familiaridade com a área, mas acaba aceitando essa condição.

Numa primeira incursão ao planeta, Jake é atacado por uma criatura e se perde do grupo, sendo salvo por Neytiri (na’vi mulher), que o apresenta a sua família, porque acredita ter sido a mãe-natureza Eiwa - uma divindade à qual tudo e todos se conectam - quem o enviou. O avatar Jake conquista não só a confiança do povo na’vi, como o coração de Neytiri, que lhe ensina os costumes da tribo.

À medida que o tempo passa, Jake começa a valorizar o modo de vida dos na’vi, registrando, em seu diário online, que nada conseguirá fazer com que os nativos deixem aquele lugar; isso é ouvido por Quaritch, que, de forma vingativa, ao descobrir seu romance com Neytiri, manda desligar seu Avatar.

A Dra. Grace e os outros cientistas tentam, em vão, convencer Jake de que ele não pode conter a invasão. A guerra é travada entre os militares e o povo, que os consideram traidores. Muitos são presos, muitos morrem; entre eles, o pai de Neytiri. Todos os avatares são desligados. Trudy Chacon – piloto da nave, revoltada com tanta destruição, adere à causa dos na’vi e salva os cientistas, que retornam aos corpos do Avatar. Durante a fuga, Grace é atingida por uma bala, mas não consegue ser salva, ainda que os na’vi tentem transferir sua alma para o Avatar.

Jake consegue dominar Toruk, uma criatura muito temida e respeitada pelos na’vi, e acaba resgatando a confiança do povo, unindo-se a eles e combatendo os humanos, na defesa de Eywa e do planeta. Quando a derrota parece eminente, Jake ora à deusa Eywa, para que aquela natureza não seja destruída. Em resposta, a fauna de Pandora entra em ação e, com determinação e suas armas rudimentares, os nativos conseguem expulsar os militares de Pandora. O coronel ainda tenta matar Jake, retirando-o da cápsula que controla os corpos dos avatares, mas Neytiri o impede de fazê-lo, matando-o.

Jake, então, torna-se um verdadeiro na’vi, unindo-se à Neytiri. Juntamente aos cientistas, a piloto e os nativos, toma posse da fortaleza construída pelos humanos e faz dela sua nova casa, transferindo, sua alma para o corpo do avatar, por meio da Árvore das Almas, conquistando, definitivamente, esse novo estado de ser.

Em conjunto com os praticantes culturais7, coautores de nossa pesquisa, articulamos o filme às situações de aprendizagem e práticas comunicacionais mediadas e estruturadas por tecnologias digitais em rede, vivenciadas no âmbito de uma disciplina desenvolvida, de forma híbrida, num curso na área de Educação de uma universidade pública, no Estado do Rio de Janeiro, tendo em vista compreender o significado dos cotidianos nas redes de conhecimentos e significações nas quais nos inserimos, bem como a expressão dessas redes nessa ambiência formacional, em que “[...] o complexo enredamento no qual diversas possibilidades de produção intelectual, de invenção, de constituição de rastros são dinamizados e assumidos explicitados e reinventados por um coletivo no seu processo de formação” (SANTOS, R., 2015, p. 43), com ênfase nas relações “dentrofora” da universidade, nos múltiplos artefatos culturais utilizados e nos “fazeressaberes” presentes nos processos curriculares.

3 O DIÁRIO ONLINE COMO DISPOSITIVO CATALISADOR E POTENCIALIZADOR DE ATOS DE CURRÍCULO

Sob diferentes nomenclaturas, como diário online, diário de campo, diário de bordo, jornal de pesquisa, diário de itinerâncias, entre outros, os diários sofreram mudanças, ao longo do tempo, no que se refere ao seu formato: do suporte material ao suporte digital, a partir da agregação de diferentes concepções comunicacionais.

Consistem numa “descrição minuciosa e intimista, portanto densa, de existencialidade, que alguns pesquisadores despojados das amarras objetivas constroem ao longo da elaboração de um estudo”, afirma Macedo (2000, p. 195). Desse modo, além de possibilitarem momentos de análise dos dados produzidos, atuam como produtores de dados, na medida em que a escrita contínua de fatos, encontros, leituras, reflexões, estudos, entre outros, emerge pela ação dos pesquisadores e por sua aceitação, pelos praticantes culturais. Os diários são organizados pelos pesquisadores, em geral, em torno das experiências vividas, seja no trabalho, seja na conjugalidade, na relação com o Outro8 ou consigo mesmo, propiciando-lhes a formação para a pesquisa, ao dialogarem com as questões que emergem no campo; a formação para a escrita, mediante o registro contínuo das narrativas; e, em particular, a formação autoral no contexto da pesquisa, fazendo ressaltar sua dimensão pedagógica, pois consiste, a um só tempo, num dispositivo e num processo, dado que “formar não é instruir... É primeiro refletir, é pensar uma experiência vivida” (BORBA, 2001 apud BARBOSA; HESS, 2010, p. 54).

Como um dispositivo de pesquisa e formação na cibercultura, o diário online caracteriza-se, principalmente, por possibilitar o registro dos acontecimentos, das vivências e experiências cotidianas refletidas por seu autor - anotações sobre aquilo que sente, reflete e poemiza e, ainda, sobre o que retém de uma teoria ou de uma conversação; ou seja, aquilo que constrói para dar significado à vida, configurando-se, portanto, como um ato de fala, um gênero textual, cuja produção se apoia em suportes e mídias diversos.

No filme em pauta, Jake, observado pela Dra. Grace, utiliza um telefone celular para gravar suas primeiras impressões sobre Pandora, dando início ao seu diário online.

“São 21:32. Preciso fazer isso, agora? Estou com sono e preciso dormir”, questiona Jake. “AGORA!”, responde a doutora - “para não esquecer, pois as informações estão frescas’ em sua memória”, afirma, incentivando-o a expressar seus percursos formativos, para compartilhar essas informações com outros sujeitos envolvidos na pesquisa.

“Estou no acampamento da Grace, e os dias estão passando rápido. A língua é difícil. Mas acho que aprendê-la é como desmontar uma arma. Repetição... repetição... repetição”, continua Jake.

Em sintonia com o pensamento de Bogdan e Biklen (1994), que afirmam que as anotações no diário podem ter um cunho descritivo, cuja preocupação é captar uma imagem por palavras do local, pessoas, ações e conversas observadas; e outro, reflexivo, que visa apreender o ponto de vista do observador, suas ideias e preocupações, Jake faz seus registros em tempo real, sempre datados, não se limitando a descrever o que viu, mas atribuindo sentido ao vivido, percebido e concebido, tendo em vista compreender suas ações. Nessa perspectiva, o diário constitui um rico dispositivo quando se opta por fazer pesquisa qualitativa em educação.

Ao iniciarmos nossa pesquisa, não estávamos seguras quanto à reação dos praticantes a nossa proposta de trabalhar os cotidianos escolares de forma online, nem se poderíamos agregar valor às discussões e ao processo formativo – essenciais para o planejamento, problematização e atualizacão de nossas práticas, tendo em vista a tessitura dos conhecimentos. Nesse contexto, utilizamos o diário online como um dispositivo descritivo-reflexivo, tendo em vista conhecer o vivido dos praticantes culturais e apreender os “sentidosignificações” que esses atores dão as suas experiências.

Na aproximação dialética da “práticateoriaprática” e baseados no princípio da pesquisa-formação na cibercultura, que considera que todos os sujeitos envolvidos formam e se formam mediante processos dialógicos, interativos e colaborativos, buscamos movimentos que pudessem promover transformações individuais e coletivas. Assumimos, dessa forma, a complexidade da realidade, pondo em evidência as práticas sociais presentes em contextos diversos de trabalho e aprendizagem. Procuramos, então, registrar, minuciosamente, nossas percepções, refletindo, de forma contínua, sobre nossas (re)ações.

Tomando como inspiração as ideias de Alves (2008), experimentamos o sentímento do mundo”9, para melhor compreender a complexidade das redes de saberes, poderes e fazeres tecidas nesses “espaçostempos”, desvelando o que existe para além de seus discursos formais e permitíndo o fluir de sentímentos, sentídos e atítudes de partilha, cooperação e colaboração; o que, de acordo com a autora, não é tarefa das mais simples.

É muito difícil buscar compreender esses modos de fazer dos q uais se reclama de tudo: do cheiro, da sujeira, das cores mortas ou tristes ou, quando alegres, chamando-as de agressivas ou “suburbanas”. Representando o outro com tudo o que tem de amedrontador e que, para nos tranquilizarmos, classificamos de “más”, “esquisitas”, “violentas” [...] Tudo isso exige, então, o sentimento do mundo, para ir muito além do que o olhar vê, com o qual aprendemos a trabalhar. É preciso entender assim, que o trabalho a desenvolver exigirá o estabelecimento de múltiplas redes de relações. (p. 23).

Despidos de pré-conceitos, concebemos os praticantes como coautores do processo de aprendizagem. Por meio de nossos registros, e à medida que avançávamos em nossas pesquisas, caminhávamos para processos de autonomia e criação, conectando-nos com o nosso próprio interior, ampliando nossa formação e exercitando a independência psíquica e intelectual.

Já nos primeiros encontros, percebemos que os estudantes, de um modo geral, acostumados a aulas expositivas, sentiam-se desconfortáveis em expressar suas opiniões para o grupo, o que prejudicava sua interação com o Outro. Alguns resistiam a usar as redes sociais, sob a alegação de falta de privacidade e a dificuldade de se deslocarem de uma posição mais individualista para uma prática mais coletiva, com vistas à tessitura dos conhecimentos nesses espaços educativos. Pesava, ainda, o fato de muitos não reconhecerem o Outro como alguém que detém saberes diferenciados, possibilidades e limitações, que devem ser respeitados, como ressaltado no depoimento da praticante a seguir:

Algumas pessoas são extremamente tímidas, o que impossibilita a total participação no processo de aprendizagem, devido às aulas terem o intuito de dar voz aos alunos, saber o que ele pensa a respeito dos assuntos abordados. Tal prática é inovadora, porém os indivíduos estão bastante acostumados com aulas expositivas, em que não são convidados para a interação nem construção do conhecimento. (Praticante Luana).

Todas essas constatações contribuíam para nos alertar da importância do diário como estratégia de formação para registro, questionamentos e reações e como instrumento de reflexão acerca das histórias formativas que iam surgindo; fios trançados em rede, de maneira não linear e caótica, que nos pareceram, num primeiro momento, desconexos em sua variedade, mas, pouco a pouco, levaramnos a “aprenderpesquisarensinar” e a “pesquisarensinaraprender”.

Para melhor ilustrar esse movimento, torna-se relevante destacar, entre outras, duas anotações feitas em nosso diário de campo (DC) sobre a experiência vivenciada na disciplina, a respeito de dilemas iniciais que emergiram no campo.

3.1 Docente-pesquisadora : Dilema 1 - Gerenciando conflitos (DC, 04/10/2013)

Observamos que, apesar de portarem celulares, ou tablets, os alunos não exploravam suas potencialidades. Convidados a postarem suas produções numa página da turma, criada no Facebook, dois alunos vieram ao nosso encontro justificar que, por opção, não usavam esse ambiente e que não gostariam de fazê-lo, tendo sido, então, orientados para que se juntassem aos seus respectivos grupos, a fim de aprenderem com eles como se procedia para a inserção desses artefatos naquela interface. Ao final da aula, um deles nos disse:

Não quero fazer uma crítica, mas vocês estão sendo muito invasivos ao nos obrigarem a postar esses produtos e nos filmarem durante as aulas. Além de não ter sido consultado sobre o uso público de minha imagem, aulas com muitas dinâmicas, como as que vocês propõem, mexem com a gente, pois nem todo mundo gosta de se expor

Esclarecemos, então, que as imagens e informações não eram públicas e que, ao término da disciplina, cuja participação era eletiva, somente seriam utilizadas, em nossos trabalhos, com a concordância do grupo, e que nossa proposta fora negociada com todos, no primeiro encontro da matéria. Pontuamos, ainda, que a pesquisa nos cotidianos primeiro inicialmente trabalha a prática, depois a teoria, para, em seguida, refletir sobre a prática com vistas a novas ações. Apesar de o praticante aparentemente ter aceito nossos argumentos, não retornou às aulas subsequentes, preferindo se inscrever e participar de outra disciplina

3.2 Docente-pesquisadora: Dilema 2: Quando o inesperado acontece (DC, 11/07/2013)

Durante uma das atividades propostas, houve uma queda de luz. Quando a energia voltou, a rede Wi-Fi não funcionou direito (pouco ou nenhum sinal). Fizemos, então, o upload das produções, via Bluetooth e 3G, o que tomou um tempo maior do que o previsto, dado que boa parte dos alunos demonstrou não ter muita familiaridade com os procedimentos necessários para tal. Enquanto alguns praticantes tentavam, com nossa ajuda, atualizar suas produções no Facebook, uma aluna reclamou do tempo de espera, alegando que a grande maioria da turma estava “parada”, sugerindo-nos deixar a tecnologia de lado e retomar a aula tradicional, mediante exposição oral.

Sem subestimar a observação da aluna, mas aproveitando a oportunidade, enquanto os grupos concluíam suas postagens – faltavam apenas dois –, conversamos com a turma sobre os “acontecimentos” que atravessavam nossos cotidianos sem aviso prévio e que, de alguma forma, modificavam nossos planos, a exemplo do que havia ocorrido em nossa sala de aula; que isso acontecia em situações diversas, e era preciso escolher outros percursos sem que se perdesse a essência da proposta, ficando decidido que todos, independentemente de terem conseguido ou não inserir seus artefatos na rede, fariam suas narrativas, na aula seguinte. Isso tornou a atividade muito producente, devido ao debate que se instaurou sobre a relação “práticateoriaprática”.

Como pudemos constatar, a tessitura do conhecimento não ocorreu com base tão somente na racionalidade, mas envolveu, entre outros aspectos, motivações, desejos e expectativas na relação com os praticantes, no processo de investigação. Esses episódios nos fazem pensar que o olhar multirreferencial envolve um jogo de influências mútuas e desencadeia “jogos próprios das vontades, dos desejos, da angústia, das manifestações de uma vida inconsciente, de um funcionamento imaginário [...]”, que geram táticas (CERTEAU, 2013), ambivalências, resistências, apontando o caminho das “incertezas” e do “inacabamento”, inconcebível na perspectiva de uma epistemologia positivista.

Vale ressaltar que, ao mesmo tempo que objetivávamos a formação dos praticantes e sua constituição como sujeitos, encontrávamo-nos em processo de formação, o que nos tornou mais sujeitos, na relação de alteridade. Contemplamos e refletimos sobre o ato docente, ações essenciais ao “ser professor”.

Com efeito, o diário de campo nos convida a um contínuo processo de análise no qual avaliamos nossas implicações e produções e planejamos novas estratégias de aprendizagem. Se assim o é, e dada a sua importância para o processo investígatívo, decidimos fazê-lo transbordar do individual para o coletívo e compartilhar nossas impressões, sentimentos, dilemas e interpretações, assim como expressamos dificuldades vivenciadas nas relações com os praticantes culturais, nas quais a ideia de alteridade, autorização e negatricidade10 tornam-se fundamentais. Assim, os dados foram discutidos coletivamente, permitindo-nos repensar o vivido sem as costumeiras “lentes” que ofuscam nossa visão da realidade; analisar com mais segurança aquilo que foi observado e construir novas visões/versões a partir das experiências vivenciadas, assevera Amaral (2014), dado que “esses relatos não se baseiam em opiniões, interpretações ou análises objetivas, mas buscam captar aquilo que emerge plano intensivo das forças e dos afetos” (BARROS; KASTRUP, 2009).

A escrita do diário revelou pontos singulares que nos ajudaram a voltar o olhar sobre nós mesmos e sobre nossa atuação docente, com vistas a uma educação mais ética e mais qualificada. A reflexão propiciada por esses registros permitiu certo distanciamento daquilo que foi vivenciado, o que contribuiu para depurar as ações empreendidas. Nesse contexto, como assevera Santos E. (2019), a escrita do diário não só permitiu a reflexão das experiências, saberes habilidades e valores, como também nos levou a compreender significados, reorientar estratégias e ressignificar práticas, o que contribuiu para experenciarmos a autoformação, a heteroformação e a ecoformação (PINEAU, 1988)11.

Como vimos no filme, em sua missão, Jake tem de aprender a ver Pandora, território iluminado, mágico, que inspira e expira vida, com os olhos de Neytiri; ou seja, a partir de seu ponto de vista, como ressalta a Dra. Grace.

“Estou tentando entender a conexão com a floresta. Ela [Neytiri] diz que uma rede de energia flui das coisas vivas. Todas emprestadas e que têm de ser devolvidas”, registra Jake em seu diário.

Bem sabemos que o ato de “olhar”, diferentemente do ato de “ver”, encerra um processo bastante complexo que, supostamente, leva à essência das coisas do mundo. Nesse sentido, ao longo de seu processo formativo, Jake vai aprendendo a viver em Pandora e já não consegue perceber qualquer diferença entre uma realidade e outra, querendo estar todo o tempo naquele lugar, no corpo do Avatar:

“Não olhe nos olhos da ave. A caça deve escolher você quando estiver pronto”, diz Neytiri.

“Tudo isso é culpa sua. Por que não deixou me devorarem?”, argumenta Jake.

“Porque teu coração é forte, sem medo, mas ignorante como criança. Ninguém pode lhe ensinar a ver”, arremata a nativa.

Para Ardoino (1998), numa perspectiva multirreferencial, as narrativas não dão respostas à complexidade, mas buscam compreendê-la, num movimento constante de indagação sobre a natureza e os processos dos atos de currículo criados. Com efeito, a multirreferencialidade,

[...] constitui muito mais o apelo deliberado através da pluralidade de olhares e de linguagem, reconhecidos como necessários à compreensão dessa suposta complexidade (emprestada aos objetos), de um questionamento epistemológico, atualmente imprescindível nessas áreas, antecessor de toda uma operacionalização de métodos e dispositivos. (p. 41).

De forma similar, a “escuta sensível”, termo cunhado por Barbier (2007), consiste em buscar a compreensão daquilo que é dito, com interesse tanto pela fala do Outro como pela situação informada. Assim, quando alguém compreende o Outro, suas palavras não deixam de atingir a si próprio, de forma empática.

“Tudo está ao contrário. Como se lá fosse o mundo real e este aqui fosse o sonho. Nem acredito que se passaram três meses. Estou quase esquecido de minha vida antiga. Nem sei mais quem sou”, reflete Jake, escutando “a voz das palavras” (experiência) que está em seu interior, como se pode constatar no relato a seguir:

“Neytiri me chama de idiota”, diz Jake. “A atitude de Norman melhorou. Essa é uma parte muito importante: Norman começou a me ajudar; mas acho que ele me vê como um idiota. Estou melhorando. A cada dia corro mais longe. Mas não é só. Te vejo na minha frente. Te vejo dentro de mim”.

Para Larrosa (2004), a experiência é da ordem do acontecimento. É quando algo nos toca e exige de nós uma interrupção, para que possamos sentir e pensar a experiência vivenciada, o que “requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, parar para sentir... [...] aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter a ciência e dar-se tempo e espaço” (p. 24). Sob essa ótica, pusemos em prática a “escuta sensível”, a negociação e a flexibilidade, razões por que a interação ganhou relevo em nossa pesquisa, dado que é no exercício do diálogo que o conhecimento vai sendo tecido.

No primeiro dia de aula, arrumamos a sala em círculo para quebrarmos o gelo inicial comportamento comum quando se adentra um novo ambiente. À medida que iam chegando, os alunos iam formando pequenos grupos. Após as apresentações, solicitamos a cada um que escrevesse em uma folha em branco alguma característica sua, ou mesmo uma imagem que o identificasse. Após dobrarem as folhas com seus escritos e colocá-las em uma caixa, cada aluno pegou uma delas, para tentar adivinhar de quem seria o relato ou a imagem. Mesmo que muitos não se conhecessem, quase todos descobriram seus autores.

Um fato chamou-nos a atenção: uma aluna, praticante da pesquisa, apesar de ter feito a atividade, não colocou seu papel no recipiente, para ser distribuído. Indagada sobre a razão da negativa, ela simplesmente disse que não o fez porque não quis. Resolvemos, então, deixá-la à vontade, ainda que estranhássemos o ocorrido, dado que a referida aluna é bem articulada. Após a aula, procuramos conversar com ela, que nos disse ter escrito coisas negativas a seu respeito, demonstrando autoestima superbaixa. Ficamos atentas e trabalhamos no sentido de valorizar suas ações, convidando-a a pensar a logomarca de nossa página, no Facebook, dado que cursava artes visuais e desenhava muito bem, especialmente mangás. Nesse ponto, torna-se relevante registrar seu depoimento, ao final do curso, evidência de seu crescimento e sua integração ao grupo:

Nas aulas desta disciplina, pudemos perceber a importância de o professor identificar e registrar em suas notas de campo seus dilemas, suas observações, além das dificuldades e potencialidades dos alunos, compartilhando-as com a turma, a fim de buscar e propor novas metodologias de ensino, tendo em vista a superação de barreiras, principalmente numa turma tão heterogênea. A experiência aqui vivida possibilitou refletir sobre metodologias alternativas, que deram ênfase à interdisciplinaridade, criatividade e originalidade, características importantes para a criação de recursos, pelo professor, de maneira autoral e criativa. (Praticante Ana Carolina).

Bakhtin (2011) assevera que as narrativas estabelecem a relação dialógica entre os sujeitos, histórias e personagens de suas próprias histórias e das histórias de outros. Para apreender o movimento do cotidiano em todos os seus detalhes, convidamos nossos praticantes a direcionaram seus olhares para a realidade que os cercava, a fim de elaborarem algo sobre ela, por meio de diferentes linguagens. Desse modo, emergiram diversas narrativas, como, por exemplo, a que segue, em que a praticante, referindo-se ao cotidiano escolar, promove a articulação entre imagem e escrita.

O cotidiano escolar, a meu ver, representa a rotina exercida pelo aluno e professor em suas vidas acadêmicas, na busca pelo conhecimento. Assim, o estudo deveria ser considerado parte do cotidiano ‘natural’ do seu aluno – função também da família e do próprio estudante. Mas, para que o conhecimento seja mais bem aproveitado e absorvido, é preciso que existam estruturas capazes de encaminhar o ato de aprender e ensinar, ligando a prática educativa ao próprio cotidiano, transformando blocos distintos de conhecimentos em algo maior, dinâmico e inter ou multidisciplinar. Acredito, então, que o cotidiano, pelas redes educativas, consiga gerar maior proximidade entre o objeto e o sujeito, fazendo da experiência do saber algo significativo. É como se o conhecimento ganhasse vida, se relacionasse diretamente com o seu receptor. Por isso escolhi esta imagem, pois ela representa, pra mim, o ‘aprendizado enquanto ação. (Praticante Renata).

Fonte: Amaral (2014, p. 129).

Figura 1 O aprendizado em ação 

Observamos nesta narrativa que a articulação do texto à imagem cria a novidade na forma de representar, expressão de uma autoria criadora. A imagem de um livro abraçando uma pessoa, como ícone do “aprendizado enquanto ação”, simboliza o processo formativo, no qual a reflexão sobre o “aprenderensinar” ocorre de forma recursiva.

Para além do uso de efeitos tridimensionais, James Cameron valeu-se do “imaginário”, mediante a utilização de metáforas e alegorias, para se comunicar com o público, ao combinar o mundo real de Jake e o mundo virtual – Pandora, que lhe permite libertar-se de suas limitações, como expresso em sua fala, quando seus olhos brilham e irradiam felicidade: “Melhorando: a cada dia corro mais longe. Preciso confiar no corpo. Tento observar o fluxo e a energia dos animais. Tento entender a forte conexão do povo com a floresta”.

Do mesmo modo, esses artifícios são utilizados na narrativa a seguir, para estabelecer a relação de similitude (analogia) entre duas entidades – o Pêndulo de Foucault e o conceito de “caixa-preta”, utilizado por Alves (2003).

Passando pelo ‘núcleo’ da Universidade, do 12º ao Térreo, entre escadas e rampas, encontra-se o mais novo engenho construído por professores e acadêmicos [...]. Trata-se do Pêndulo de Foucault. [...]. Uns bastões vermelhos colocados sobre a base do pêndulo, a fim de estudar seus movimentos, na tentativa de calcular quais objetos seriam derrubados pelo movimento do pêndulo e pela esfera presa a ele. Diante da engenhoca, alguém diz: ‘Isso parece um ritual de magia negra; colocaram de brincadeira, pura zoação’. Penso no conceito de ‘caixa-preta’, comentado no trabalho de Alves (2003). O Pêndulo de Foucault12 é como se fosse a ‘caixa-preta’ sobre a qual as pessoas que não conhecem a obra fazem ponderações, de acordo com sua livre imaginação sobre o que é o pêndulo. O Pêndulo de Foucault, pra quem é curioso ou gosta de ‘descobrir’ ou redescobrir as coisas, é uma bela de uma provocação, embora ele não exija necessariamente que você o conheça. Aquilo está ali com outro propósito; ele apenas faz parte de nosso cotidiano para que outros estudem os fenômenos que o mesmo descreve. (Praticante Marco Paulo).

Fonte: Amaral (2014, p. 199).

Figura 2 Pêndulo de Foucault (representação) 

Enquanto o real consiste no possível, no estático e no já constituído, o virtual representa o complexo, o problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer e que chama um processo de resolução: a atualização (LÉVY, 1999). Ainda que o filme “Avatar” se enquadre no âmbito da Indústria Cultural13, ao reproduzir uma série de lugares-comuns (perseguições, tiroteio, romance proibido, trilha sonora atraente) para conquistar o público jovem, consumidor de entretenimento e cultura e com poder de compra, também, numa perspectiva multirreferencial, contempla questões contemporâneas, problematizando aspectos da realidade relacionados à preservação do meio ambiente, à crítica político-ideológica, à religiosidade, à tecnologia, à cultura e à própria existência.

As questões político-ambiental e econômica, postas em discussão por Cameron e tão presentes em nossos dias, só poderão ser superadas com a mudança de comportamento do ser humano em relação a sua maneira de ser, de viver e de se relacionar com o Outro. Para Jake, participar do programa era como ir para uma batalha, da qual poderia se arrepender: “Tommy era cientista; eu só sou outro militar, indo para uma missão, da qual vou me arrepender”; e, referindo-se aos demais militares, sugere que, de fato, nenhum deles gostaria de estar envolvido naquelas disputas, abstendo-se do convívio de seus familiares, enfatizando a falta de atenção do governo para com os veteranos no que tange à precariedade do hospital de guerra e à pensão ínfima paga a eles.

Com efeito, o entendimento da realidade cotidiana e das relações dialéticas entre poder, saber e fazer, interioridade e exterioridade, singularidade e totalidade, e razão e emoção, requer de nós, pesquisadores, muita atenção e contínuo questionamento, para ir muito além do olhar que vê, incluindo sentimentos, sentidos e atitudes de compartilhamento, de cooperação e de colaboração. Na interação com os praticantes culturais, deparamo-nos com múltiplas vozes, silêncios e silenciamentos que nos enredam e impregnam nossos discursos da presença do Outro. Com efeito, nesses entrecruzamentos de vozes, há aspectos que não podem ser traduzidos, apenas sentidos – os risos, os aplausos, as lágrimas, as ausências, o cansaço, a tensão e o tédio pela falta de sentido da ação, havendo sempre uma lacuna entre a experiência e a tradução (AMORIM, 2004).

Por outro lado, a tecnologia (criação de avatares) apresentada no filme como algo positivo, capaz de unir na’vis e humanos, em benefício de um bem comum, é utilizada na guerra para subjugar os nativos, o que, na atualidade não é muito diferente. Em sendo uma construção humana, a ela não se pode atribuir propriedades de neutralidade ou não neutralidade. Como afirma (Amaral, 2014), seu uso, para o bem ou para o mal, depende das intenções de quem dela se apropria.

Encerrando seus depoimentos, Jake questiona, a si próprio, por que razão continuar, se tudo que o mandam fazer é perda de tempo, pois os nativos não vão sair de seus territórios. “Não importa o que acontecer essa noite. Não quero chegar atrasado. Afinal, hoje é meu aniversário. Jake, desligando”.

Como podemos constatar, os registros feitos por Jake são pautados por posicionamentos pessoais, resultantes de vivências que tanto podem se referir a sentimentos de atração como de repulsa, conectando, dessa forma, fragmentos de suas observações e narrativas a sua visão de mundo. Tal reflexão lhe desperta o sentido ético e de pertencimento àquele grupo, com quem decide estar de forma definitiva, valorizando suas singularidades e colaborando, efetivamente, para a sua sobrevivência. Assim, essa pluralidade de registros mobilizados pelo diário online configura-o para além de simples instrumento de coleta de dados fornecidos pelos sujeitos das pesquisas; ou seja, como um catalisador e potencializador de currículos multirreferenciais.

4 CONCLUSÃO

Na atualidade, impulsionadas pelo desenvolvimento das tecnologias digitais em rede, emergem novas formas de pensar as diferentes redes educativas (presenciais e online) que se instauram – espaços de reinvenção, de criação e de recriação, em que a vida flui, de forma dinâmica e integrada, e os sujeitos se articulam, formando e se formando como cidadãos e profissionais, consumidores e produtores de informações, conhecimentos e significações, o que exige uma reflexão mais profunda sobre os problemas contemporâneos e seus entrelaçamentos com a produção acadêmica em educação.

Como pudemos constatar, o “olhar plural” das autoras sobre o filme “Avatar” possibilitou analisá-lo para além de um entretenimento fugaz, destinado ao consumo massivo, ou de sua apropriação didática como simples ilustração dos conteúdos formalizados nos programas curriculares oficiais, englobando aspectos culturais, históricos, econômicos, existenciais, ambientais e políticos a ele inerentes.

Nesse contexto, o diário online emergiu como um dispositivo midiático catalisador e potencializador de atos de currículo na pesquisa-formação multirreferencial, capaz de estimular processos reflexivos, críticos e criativos, possibilitando-nos descrever, de forma minuciosa e reflexiva, percepções acerca de nossas ações e reações nos cotidianos da pesquisa realizada. Por meio dele, compartilhamos impressões, sentimentos, inquietudes e interpretações; expressamos dificuldades vividas nas relações com o Outro, nas quais a ideia de alteridade se tornou fundamental. Rememoramos sentimentos, o previsto, o inusitado/inesperado. Os registros realizados constituíram, portanto, apoio recursivo às práticas engendradas, tendo em vista a melhoria do fazer pedagógico.

4Esse termo “e tantos outros que ainda aparecerão neste texto, estão assim grafados porque, há muito, percebemos que as dicotomias necessárias à criação das ciências na Modernidade têm significado limites ao que precisamos criar na corrente de pesquisa a que pertencemos. Com isto, passamos a grafar deste modo os termos de dicotomias herdadas: juntos, em itálico e entre aspas. Estas últimas foram acrescentadas com vistas a deixar claro aos revisores/as de textos que é assim que estes termos precisam aparecer” (ANDRADE; CALDAS; ALVES, 2019, p. 19-20).

5Disponibilizado em: https://filmow.com/avatar-t8531/ficha-tecnica/. Acesso em: 12 dez. 2021.

6Avatar consiste na manifestação corporal de um ser superpoderoso, na religião hindu.

7Pratícantes (ou pratícantes culturais), termo concebido por Certeau (2013), refere-se àqueles que vivem e se envolvem dialogicamente com as prátícas do cotídiano.

8Entendido como aquele com quem nos relacionamos de modo isonômico, respeitando sua identidade, sua bagagem individual, sua intelectualidade, bem como suas ideias e visões de mundo.

9Movimento necessário às pesquisas com os cotidianos que consiste em usar todos os sentídos em busca de referências de sons, variedades de gostos e odores, tocando pessoas e objetos e se deixando por eles tocar (ALVES, 2008).

10A ideia da alteração, cunhada por Jacques Ardoino, afirma o outro, que nos é diferente, não somente como alteridade, mas ainda e fundamentalmente como condição para nos alterar. Essa ideia está totalmente inter-relacionada à experiência da negatricidade, que é o movimento pelo qual todo ator social, em não sendo o mesmo, pode contrariar expectativas postas e desjogar o jogo do outro. O conceito de autorização, por sua vez, implica processos nos quais nos constituímos coautores de nós mesmos, via nossa ineliminável negatricidade (MACEDO, 2012).

11Autoformação – o sujeito reflete sobre seus percursos pessoais e profissionais; heteroforma ção – forma-se nas relações com o Outro; e ecoformação – forma-se por intermédio das coisas, como saberes, técnicas, culturas, artes, tecnologias, entre outros, e de sua compreensão crítica (PINEAU, 1988).

12Pêndulo projetado pelo físico francês Léon Foucault para demonstrar a rotação da terra.

13Indústria cultural é um termo desenvolvido para denominar o modo de produzir cultura no período industrial capitalista. Ele designa principalmente a situação da arte na sociedade cap talista industrial, marcado por modos de produção que visavam sobretudo ao lucro. Criado por Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor Adorno (1903-1969), ambos intelectuais da Escola de Frankfurt na Alemanha, ele surgiu na década de 1940, no livro “Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos”, publicado posteriormente, em 1947.

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Recebido: 14 de Janeiro de 2022; Aceito: 05 de Abril de 2022

Sobre os autoras:

Mirian Amaral: Doutora em Educação pela Universidade Estácio de Sá (UNESA). Professora universitária da Fundação Getulio Vargas. Professora no Programa de Educação Executiva do Instituto de Desenvolvimento Educacional e do Programa de Educação Executiva (PDE/IDE/FGV). E-mail:amaral3378@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-0647-6427

Edméa Santos: Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDUC/UFRRJ). E-mail:edmeabaiana@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-0479-1703

Rosemary dos Santos: Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da UERJ, na Faculdade de Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPED/UERJ). Professora da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, no Programa de Pós-Graduação em Educação, Comunicação e Cultura (PPGECC/FEBF). E-mail:rose.brisaerc@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-4978-9818

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