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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dic 2022  Epub 16-Feb-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1734 

Artigos

O currículo “imita” a arte: relações fronteiriças potencializadas na dança-teatro de Pina Bausch

The curriculum “imitates” art: border relations potentiated in Pina Bausch’s dance-theater

El currículo “imita” el arte: relaciones de frontera potenciadas en la danza-teatro de Pina Bausch

Ana Paula Pereira Marques de Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0003-0398-3893

Rita de Cássia Prazeres Frangella1 
http://orcid.org/0000-0001-6392-4591

1Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil


Resumo

O texto em tela parte do mote “O Currículo ‘imita’ a Arte”, visando suscitar reflexões sobre o campo curricular como um movimento fluido que não se encerra nos muros da escola. Trazemos ao debate experiências de experimentações artísticas e a dança-teatro de Pina Bausch, as quais mobilizam debates que extrapolam lógicas binárias, incidindo sobre a concepção de significação como processo fluido, híbrido. Nas fronteiras entre a tradição do ballet e as próprias performances dessa tradição, os palcos de Pina trazem a dança como experiência, algo ambivalente, em que o novo sempre eclode, rompendo essa tradição, em função dos processos de enunciação cultural. Nesse percurso, trazemos Homi Bhabha e Jacques Derrida, os quais, em diálogo com a dança-teatro de Pina Bausch, permitem-nos adensar uma perspectiva discursiva pós-estrutural sobre currículo como movimento que se hibridiza na relação com o outro em que as tentativas de reprodução – imitação – são processos de diferimento. Assim, as apropriações que fazemos para o campo do currículo – e que trazemos neste texto – nos permitem problematizar os sentidos de currículo como um novo contaminado. Defendemos, portanto, a provisoriedade e a experiência sempre outra da produção curricular que é sempre fronteiriça, tal qual nos propõe a dança bauschiana.

Palavras-chave: currículo; arte; negociação

Abstract

The text on screen starts from the motto “The Curriculum ‘imitates’ Art”, aiming to provoke reflections on the curricular field as a fluid movement that does not end in the walls of the school. We bring to the debate experiences of artistic experimentation and the dance-theater of Pina Bausch that mobilize debates that go beyond binary logics, focusing on the conception of meaning as a fluid, hybrid process. On the borders between the ballet tradition and the performances of this tradition, Pina’s stages bring dance as an experience, something ambivalent in which the new always breaks out, breaking this tradition, due to the processes of cultural enunciation. In this path, we bring Homi Bhabha and Jacques Derrida, who, in dialogue with Pina Bausch’s dance-theater, allow us to deepen a post-structural discursive perspective on curriculum as a movement that hybridizes in the relationship with the other in which the attempts of reproduction – imitation – are deferral processes. Thus, the appropriations that we make to the curriculum field – and that we bring in this text – allow us to problematize the meanings of curriculum as a new contaminated. We defend, therefore, the provisionality and the always other experience of the curricular production that is always borderline, as proposed by Bauschian dance.

Keywords: curriculum; art; negociation

Resumen

El texto en pantalla parte del lema “El Currículo ‘imita’ al Arte”, para provocar reflexiones sobre el campo curricular como un movimiento fluido que no termina en las paredes de la escuela. Traemos al debate experiencias de experimentación artística y la danza-teatro de Pina Bausch, las cuales movilizan debates que van más allá de las lógicas binarias, centrándose en la concepción del sentido como un proceso fluido, híbrido. En las fronteras entre la tradición del ballet y las representaciones de esta tradición, los escenarios de Pina traen la danza como experiencia, algo ambivalente en el que irrumpe siempre lo nuevo, rompiendo esta tradición, debido a los procesos de enunciación cultural. En este camino, traemos a Homi Bhabha y Jacques Derrida, quienes, en diálogo con la danza-teatro de Pina Bausch, nos permiten profundizar una perspectiva discursiva posestructural sobre el currículo como un movimiento que se hibridiza en la relación con el otro, en el que los intentos de reproducción – imitación – son procesos de diferimiento. Así, las apropiaciones que hacemos al campo curricular – y que traemos en este texto – nos permiten problematizar los sentidos del currículo como un nuevo contaminado. Defendemos, por tanto, la provisionalidad y la siempre otra experiencia de la producción curricular siempre fronteriza, como propone la danza bauschiana.

Palabras clave: currículo; arte; negociación

1 INTRODUÇÃO

“Não me preocupo como meus dançarinos se movimentam, mas o que move meus dançarinos”. (Pina Bausch)

Em 2020, em meio ao auge da pandemia provocada pela covid-19, muitos museus viabilizaram visitas on-line. E, em meio a esse movimento, o projeto holandês Tussen Kunst & Quarantaine, que significa “Entre Arte e Quarentena”, lançou um desafio para estimular a criatividade, bom humor e, por meio da diversão, provocar também o processo de experimentação e invenção entre os internautas. Os interessados deveriam escolher uma obra de arte de sua preferência e, inspirados nessa obra, utilizar três itens de casa para imitá-la e partilhar numa conta pública do Instagram2.

O projeto holandês, o qual suscitou a reportagem “A vida imita a arte ou a arte imita a vida?”3, que tomamos como mote para nossa reflexão, foi um sucesso e vem sendo divulgado nas redes de outros museus que se enredaram no movimento incitado pela proposta, instando o público a “imitar” as obras que compõem seus acervos. Nesse movimento, inserem-se, entre outros, o GettyMuseum/Los Angeles, Metropolitan/New York, National Gallery/Londres4.

Fonte: @tussenkunstenquarantine (Instagram).

Figura 1 Fotos do Projeto holandês Tussen Kunst & Quarantaine 

Fonte: @tussenkunstenquarantaine (Instagram).

Figura 2 Iniciativas similares em outros museus (1ª – Mauritshuis/Haia/Holanda; 2ª MET/NY) 

Fonte: @mauritshuis_museum (Instagram)

Figura 3 Girl with a Pearl Earring 

Fonte: @metmuseum (Instagram).

Figura 4 Re-create the #MetAnywhere 

Tal iniciativa reverbera e provoca diferentes interrogações sobre autoria, recriação, arte, educação, original e cópia (PIRES; PINTO-COLELHO, 2021). Interessa-nos destacar os sentidos de realidade/original – cópia/ficção, algo que Derrida (2004 apudALMEIDA, 2018) menciona como a impossibilidade de se evadir da metafísica que alicerça o pensamento. Com Ranniery (2018), pomos em suspensão esses pares para buscar a fricção e daí pensar com a arte na possibilidade de provocar, de convidar ao entrelaçamento, ecoando o que nos desassossega com/como o autor: “Fri(c) ção: produzir pesquisa em currículo, como quem roça os corpos, borrando os limites entre o eu e o outro, entre qualquer território chamado de ‘si mesmo’ e a alteridade que o habita e que busca encobrir” (RANNIERY, 2018, p. 997).

O convite que o museu faz traz em si a ambivalência que se move numa linha tênue entre uma dimensão pedagógica e uma dimensão performática, como discutido por Bhabha (2013). Sendo movimentos que se interpenetram, o pedagó gico se relaciona à tradição, impossí vel de ser descartada; porém , devido ao pró prio ato de repetiç ão , os sentidos são sempre enunciados de forma diferente, produzidos de modo ambivalente, em função dos processos de tradução, por meio dos quais os sentidos são contestados continuamente, reconfigurados e se deslocam entre o verdadeiro e falso, realidade e ficção, como um “re-curso de luz” (BHABHA, 2013, p. 183) que envolve capacidade, estraté gia e agê ncia do outro.

Mais que imitações, as reproduções postadas nas redes sociais podem ser lidas como atos de tradução que borram a literalidade; performances criativas que explodem o processo de significação das obras de arte e re-afirmam a irredutibilidade do outro ao mesmo, o que contribui para pensarmos nessa produção que se dá de forma contingente e indeterminada. Apesar de haver um “modelo”, o traço da diferença é perceptível.

Bhabha (2011, p. 97), em sua profusa argumentação acerca das enunciações culturais e dos processos de subjetívação, investe na discussão acerca da articulação entre a aura e a ágora, no que afirma:

O que é revelado entre o extático e o cotidiano é um entrelugar mediatório que não pertence nem à aura nem à ágora e isso em todo o seu mistério e em toda a sua habitualidade – é “a posição humana”.

Dessa forma, o autor propõe pensar nos interstícios e nos instíga a pensar na arte como acontecimento e significação que incita a negociação, problematizando uma pseudopassividade da audiência. Um entrelugar mediatório que ressignifica a interpretação como intervenção.

As interpretações não são meras leituras de segunda ordem que elaboram, em atraso, alguma pura essência ou expressão que o trabalho emana ab novo, em um tipo de espontaneidade sublime. A interpretação, quase literalmente, leva o trabalho de dentro para fora: ela enuncia, até mesmo exacerba, os múltiplos campos da visualidade e as superfícies de significação que estão articuladas no trabalho. Puxando esses elementos, como quem puxa o fio de um pedaço de seda, todo o tecido é transformado, a sua estrutura fica frouxa e visível, as suas conexões e casualidades se mostram contingentes, as suas “totalidades” se tornam texturais e tendenciosas. A interpretação não é tanto uma atividade adjunta como é um processo disjuntivo que questiona a própria presença ou o “ser” do trabalho artístico como um começo, como uma atividade autoral. (p. 97).

A interpretação como intervenção desloca e desvela a ambivalência do acontecimento da arte que abala fronteiras as quais delimitam dentro/fora, arte e não arte. Uma fabulação iterativa que se dá no momento da articulação. O autor pergunta: “Existe uma passagem que vai da aura do gozo à ágora, ou praça do mercado, da negociação?” (p. 96).

É essa passagem, esse entrelugar tradutório que, na experiência intersticial recusa o binarismo e incita a negociação com a diferença. Experimentação, negociação, a passagem com e pela arte que tem nos permitido ressignificar o currículo.

2 TRANSGREDINDO O CURRÍCULO NA ARTE DE PINA BAUSCH

Nas nossas próprias passagens pela arte – da arte ao currículo –, nossos corpos se entregaram à inventividade dos corpos performados no ballet de Pina Bausch, uma bailarina que inventivamente é considerada precursora da dança-teatro, produção híbrida em meio à luz, ao som, a cores, movimentos que se repetem, mas irrompem novas possibilidades, sensações outras que o encontro corpo-som-movimento provoca, sempre outras. A arte bauschiana abriu espaço, inclusive, para refletirmos sobre os tradicionais repertórios dos espetác ulos de ballet que, mesmo sob a marcação ritmada da tradição, da música e do enredo, abrem-se para variações e permitem o trânsito dos corpos fluidos e movimentos tradutórios, numa tensão permanente do paradoxo da transmissão/tradução, da encenação que remete a uma origem e, ao mesmo tempo, à rasura em suas variações (CARVALHO; FRANGELLA, 2020).

A bailarina, coreógrafa e diretora Pina Bausch deixou em seu legado uma proposta de contestação às formas prontas e à reprodução de coreografias que buscam conformar corpos. Nascida em Solingen, Alemanha, Pina iniciou seus estudos pela dança clá ssica aos 15 anos, formando-se em Dança e Pedagogia da Dança, em 1958. Passou por escolas de dança em Nova Iorque e na Alemanha e, aos 33 anos, foi contratada para dirigir a companhia de danç a Wuppertaler Tanztheater, que, anos mais tarde, agregou o seu nome ao título, passando-se a chamar Wuppertaler Tanztheater Pina Bausch. O processo de criação de seus espetáculos envolve a experimentação do corpo, sem a preocupação com a prescrição dos movimentos. Esse era o grande diferencial de suas peças, que variavam a cada apresentação. Cada gesto deveria remeter a um outro gesto imprevisível (ALMEIDA, 2018).

Almeida (2018, p. 120) analisa as obras de Bausch como performances em constante processo de diferimento que se lançam, continuamente, à possibilidade de surgimento do novo em um não lugar que não é “um fora” e nem “um dentro”, mas um “entre” a realidade e a ficção. Os trabalhos de Pina fissuram a dualidade entre dança e teatro na contemporaneidade, de maneira que o teatro adentra a dança e vice-versa, por meio do estímulo ao improviso de cada um do seu elenco, no movimento das memórias de infância, desejos e angústias (2018). O filósofo portuguê s José Gil (2004, p. 178-79) observa que, em suas criações, a bailarina não se limita aos gestos habituais de cada situação:

[...] não se limita a atualizar a géstica do pensamento e das emoções que envolve qualquer situação. As improvisações a propósito de um tema podem provocar associações de palavras que o gesto transporta consigo e que remetem eventualmente para outros gestos, outras palavras e outros pensamentos [...] não utiliza, pois, de uma só maneira a relação palavra-gesto; sobretudo, porque não constrói um tipo apenas de gestos. [...] Os seus gestos podem assim parodiar os do ballet clássico ou reproduzir uma cena “real” de violência entre os dois membros de um par; podem sugerir os gestos do circo, bem como dos jogos infantis; etc. O enxerto, a associação, o cruzamento, a sobreposição incessante de inumeráveis tipos de gestos codificados e conhecidos tornam-se apêndices, variações e prolongamentos de um outro gênero de gestos [...]. (apudALMEIDA, 2018, p. 120).

Suas coreografias eram pensadas em conjunto com seus atores-bailarinos e se baseavam nas experiências de cada um, incorporando um pedaço de suas vidas, por meio de atos transgressivos, em que as criações bauschianas tensionam as fronteiras dos campos das atividades humanas, realçando as descontinuidades e avivando uma atitude desconstrucionista ao levarem para o palco gestos cotidianos presentes em diversas práticas que, por meio da repetição e de remetimentos contínuos, rompem significados únicos de movimentos padronizados. Nos trabalhos de Bausch, o significado nunca é fixo e estável, ou seja, a significação se encontra num movimento permanente de busca do “significante do significante”. “Dessa maneira, os remetimentos constantes acabam por impedir que o significante esteja presente em si mesmo, passando então a se constituir a partir dos rastros de outros” (ALMEIDA, 2018, p. 120). Assim, a dança-teatro bauschiana conta histórias por entre fronteiras que transbordam significações por meio de múltiplos gestos performáticos que estão sempre em processo de criação e recriação.

Os trabalhos da Pina nos remetem ao processo de significação do currículo como a arte do outro que rompe continuamente a linearidade do tempo e nos coloca diante da impossibilidade da transparência na sua totalidade. Essa arte do outro transita numa linha tê nue entre o pedagógico e o performático.

Cada gesto, sendo um gesto, convoca-nos a refletir sobre a “coisa que se esquiva sempre” (DERRIDA, 1994 apudHADDOCK-LOBO, 2013, p. 1) e nos traz a impossibilidade da experiência na sua totalidade. A experiência, então, é produzida como a experiência da aporia, sendo a aporia um não caminho. Haddock-Lobo (2013) menciona que o não caminho sublinha um processo sob rasura, de que fala Derrida (1999 apudHADDOCK-LOBO, 2013), afastando o próprio sentido de experiência como uma presença plena. Ao retratá-la sob rasura, Derrida (1999 apudHADDOCK-LOBO, 2013) destaca a estrutura da não presença das coisas, chamando atenção para a necessidade de considerarmos o sentido de experiência de forma mais ampla, num jogo que transita entre a possibilidade e, ao mesmo tempo, impossibilidade de entender o mundo. O jogo é justamente a presença e ausência em constante movimento de suplementaridade.

Em um dos espetáculos de Pina Bausch – “Macbeth” –, os bailarinos se recusaram a trabalhar da forma pouco tradicional que Pina vinha tentando desenvolver. Ela decidiu, então, reduzir o elenco. Com poucos bailarinos, ela decidiu montar uma coreografia por meio de perguntas associativas ao tema da peça e tarefas que passava aos artistas. O resultado foi o trabalho “Ele a pega pela mão e a conduz até castelo e os outros o seguem”. Estreando em 1978, foi recebido com protestos pela plateia. E foi aí que o ballet de Pina rompeu os elementos da dança, expandindo a sensibilidade, por meio do movimento dos bailarinos em vestes cotidianas, e os espaços do cenário interagiam com os movimentos dos dançarinos. Montes de areia, rocha e água corrente se tornaram elementos presentes nas peças. E com isso a dança-teatro se abre para o mundo, não deixando no palco aquilo que supostamente deveria ficar no palco. Ao dialogar com o universo, com o mundo, a arte de Pina se lança à “outridade”, fazendo surgir outros corpos e subjetividades, abrindo-se a um feixe de atividades físicas e mentais. O ballet de Pina abre-se à tradução que faz parte dos nossos movimentos diários. E “é justamente na im-possibilidade, condicionada também pela oscilação entre práticas de rotina e o novo constante, que está a produtividade da tradução, seu potencial poético, social e cultural” (KLEIN, 2018, p. 400).

Daí que podemos, a partir do fragmento da obra de Pina, destacar questões que marcam sua produção: a composição coreográfica a partir do processo de perguntas e respostas, colagens e repetições (SOUSA, 2020). Como explica Schlicler (2016, p. 232):

As inumeráveis questões formuladas por Pina Bausch durante os ensaios conduzem os dançarinos às respostas corporais e verbais – são milhares de começos e milhares de dúvidas, para ela conceber uma peça, para Pina Bausch alcançar uma determinada forma. Uma forma que deixa reconhecer a pluraridade de começos, que não tenta encontrar um denominador comum.

Pluralidade de começos que colide com a própria ideia de princípio do movimento. Não há um roteiro prévio a ser seguido, mas uma composição em fluxo, que se faz no acontecimento, contingencialidade, uma linguagem corporal que atravessa a fronteira entre a corporificação e aquilo que é impossível prever. O trânsito da imprevisibilidade que compõe experimentações que Derrida chama de espectral (DERRIDA; STIEGLER, 2002); isto é, “já é a experiência da vida, ou melhor, da sobrevida: a experiência da vida em sua indecidibilidade com a morte, ou seja, a vida como sobrevivê ncia” (FREIRE, 2014, p. 151), possibilidade de romper as experiências da sobrevida do corpo; o espaço carnal a que estamos acostumados, ampliando a géstica do pensamento e das emoções.

Assim, esse outro que chega compõe o acontecimento coreográfico, nas colagens, ligações, nos nexos fabulados por Pina Bausch na composição das obras encenadas. O que pode parecer contraditório à primeira vista é o recurso a repetições que se observa nas suas montagens. As repetições não conservam, mas fazem eclodir outros sentidos. Não se trata da manutenção, na linguagem gestual do mesmo movimento – uma repetição que é sempre outra e que retoma o jogo de perguntas e respostas que marca seu processo de criação. No dizer da própria Pina Bausch:

Não acho que sou repetitiva da maneira que eles entendem. A minha repetição é apenas a repetição em formas sempre diferentes [...]. Os que me acusam de ser repetitiva não compreendem nem veem, talvez sejam cegos. Há sempre muitíssimas coisas que sucedem em cada espetáculo. Talvez aqueles que dizem que me repito devessem comprar óculos. (apud BENTIVOGLIO, 1994, s.p.).

Assim, nas metáforas corporais performadas, as repetições, em suas variadas formas e intensidades (SOUSA, 2020), ampliam e conectam leituras que se desdobram e, paradoxalmente, mantêm presente o traço de indecidibilidade. Aqui é possível retomar a discussão de Bhabha (2013, p. 49) sobre o entrelugar mediatório, a negociação como “temporalidade de construção e contradição social que é iterativa e intersticial; uma intersubjetividade insurgente que é interdisciplinar [...]”. Um jogo que tensiona entre autoridade cultural e práticas performativas, uma intermediatidade que coloca a encenação como questão como sempre aberta.

Sobre esse jogo, essa tensão que nos incita a pensar sobre negociação, entre-lugar e aí também tradução, é possível alinhar com as cidades em que Pina Bausch fez residências artísticas e que se fizeram presentes em suas obras; por exemplo, na elaboração de uma de suas obras, intitulada “Masurca Fogo”, os bailarinos fizeram uma residência artística durante três semanas em Lisboa, Portugal. Eles trazem a sensibilidade sobre a vida e os costumes portugueses e apresentam no palco uma multículturalidade de sentímentos: engano, alegria, pobreza, tradição, prostituição, saudade, inocência, tempo, riso e choro. Logo no início, o narrador comenta: “[...] chegam de olhos e ouvidos bem abertos, de veias bem temperadas, atentíssimos aos sinais, às cintílações, aos sons, aos perfumes e às emoções que a cidade lhes for sugerindo [...]” (TOSTA, 2013). Sousa (2020) elenca tantas outras cidades percorridas por Pina, tal como na obra de Calvino (1990, p. 25-26), em que o viajante relata as cidades visitadas ao grande Kublai Khan:

Marco Polo não podia se exprimir de outra maneira senão com gestos, saltos, gritos de maravilha e de horror; latidos e vozes de animais, ou com objetos que ia extraindo dos alforjes: plumas de avestruz, zarabatanas e quartzos, que dispunha diante de si como peças de xadrez. Ao retornar das missões designadas por Kublai, o engenhoso estrangeiro improvisava pantominas que o soberano precisava interpretar [...] O grande Khan decifrava os símbolos, porém a relação entre este e os lugares visitados restava incerta: nunca sabia se Marco queria representar uma aventura ocorrida durante a viagem, uma façanha do fundador da cidade, uma profecia de um astrólogo, um rébus ou uma charada para indicar um nome.

Assim, obras como “Mazurca Fogo” ou “Água”, produzidas a partír da residência artístíca no Brasil, demarcam performances mobilizadas pela estrangeiridade da tradução. No dizer de Bhabha (2013), que tão bem se artícula à obra bauschiana, performances que movimentam significados, negociados na disjunção de temporalidades culturais que dão a ver a opacidade e rasuram lógicas binárias.

Uma produção híbrida, uma companhia híbrida em sua estrangeiridade constítutíva (bailarinos da companhia vinham de 17 países diferentes na época da residência no Brasil), em que “o elemento estrangeiro destrói também as estruturas de referência a comunicação de sentido do original” (BHABHA, 2013, p. 312). As residências não pretendiam representar as cidades, mas, como linguagem in actu (BHABHA, 2013), movem-se com ela, cidade-acontecimento, experiência intersubjetiva intraduzível, indizível, evocada no gesto, também acontecimento, no dizer de Pina, como apresentado no documentário sobre sua trajetória que tem o seu nome (ROBLEDO, 2017)5, “dance, dance, senão estamos perdidos”.

3 NA PASSAGEM DA ARTE AO CURRÍCULO

Inspirações bauschianas para pensar o currículo implicam em observar que não se trata da negação da tradição, no caso, do ballet e sua técnica, mas um processo criativo que se move no terreno da contingência e com ela negocia; sua iterabilidade desestabiliza uma autoridade posta como dada e absoluta. Iterabilidade que se dá na inscrição performática da repetição – o gesto repetivel, mas sempre outro; repetição que não é mesmidade, mas outro atravessado pela alteridade. (CARVALHO; FRANGELLA, 2020, p. 202).

A arte nos traz a possibilidade de pensar o amplo processo de significação em que o currículo é mobilizado, ajudando-nos a problematizar, inclusive, o sentido de contexto – no caso, contexto escolar. Subsidiadas na perspectiva da desconstrução com a qual trabalhamos, questionamos o sentido de contexto como algo restrito à esfera física, circunscrito a esse ou aquele local. O contexto a que nos referimos é discursivo, ou seja, é móbil, articulando-se no jogo da linguagem inerente à relação com o outro, sendo mobilizado em função das tentativas de significação que se deslocam continuamente. Nesse sentido, não há definição e fechamento desse ou daquele contexto como algo predeterminado, tampouco está restrito às demandas individuais. É um processo alteritário que compreendemos como “[...] um tecido, uma composição heterogê nea feita de muitos fios, os quais, uma vez entrelaç ados, implicam mú ltiplas camadas de leitura” (NASCIMENTO, 2004, p. 15 apudLOPES; CUNHA; COSTA, 2013, p. 398).

Assim, o contexto escolar como esses muitos fios que extrapolam a materialidade dos portões nos traz as passagens6, como o fez Benjamin (2007), para pensarmos na possibilidade de surgimento do novo em um não lugar que não é “um fora” e nem “um dentro”, mas um “entre”, que está na esfera da negociação de diferentes linguagens, ações, imerso em processos de tradução, como enunciado na epígrafe: “um processo de decomposição de uma arquitetura” ou um processo de desconstrução contínua de uma arquitetura.

As passagens por entre currículo e arte – trazendo a arte para o diálogo com o campo curricular – contribuem para pensarmos o currículo como um processo de diferimento que se lança, continuamente, à inventividade. Nesse sentído, interpelamos o currículo como enunciação cultural, a partír de uma perspectiva discursiva e pós-estrutural, buscando abalar a ideia de edifício curricular que sustenta um projeto previsível e antecipável de educação ou, em outras palavras, a educação como um processo de conformação. Nessas passagens pela arte, tentamos romper essa ideia do corpo organizado – conformado – que se caracteriza pela originalidade. A perspectiva da enunciação cultural abala essa conformação e, brincando com o jogo infinito de sentidos da língua, remete-nos a um processo de con-formação. A formação seria, assim, algo inventivo que abala as insígnias da representação do outro, trazendo esse outro para um processo contíguo e contingente. Algo que perturba as tentativas de previsibilidade e nos traz a dimensão temporal do borramento.

O “con” em separado demarca, portanto, a contaminação que permeia as nossas relações que são mobilizadas de forma ambivalente, nos jogos da linguagem em que se encenam e emergem, sempre, outras possibilidades de significação, como produções híbridas, incontroláveis. Nas nossas apropriações de Bhabha (2013), a con-formação seria Einstellung (BHABHA, 2013): o processo de deslocamento, distorção, desvio, repetição, destacando a impossibilidade de uma homogeneidade para os sentidos de currículo, uma vez que os sentidos são negociados no entre-tempo de movimentos errantes, híbridos, cujos caminhos são indecidíveis e ambivalentes. O currículo em con-formação traz a ideia de corpos inventivos que se deslocam num espaço agonístico, entre “origem e deslocamento, disciplina e desejo, mimese e repetição” (BHABHA, 2013, p. 183).

Esses sentidos colidem com o que é perceptível nas polítícas curriculares no Brasil, que, nos últímos anos, têm mobilizado campos de força em torno dos sentidos de currículo que se articulam às tentativas de fixação dos sentidos para a prática em sala de aula, com vistas ao alcance de resultados. Previsibilidade, repetição como tentativa – sempre frustrada – de conter os movimentos errantes e híbridos a que fizemos alusão.

Nossa intenção, neste texto, foi transitar além dos binarismos, destacando a potência da ideia de produção de sentidos como atravessamento de espaços fronteiriços, em diálogo com a arte, com a dança-teatro de Pina Bausch, no diálogo com Homi Bhabha. Voltamos à do autor: “Existe uma passagem que vai da aura do gozo à ágora, ou praça do mercado, da negociação?” (BHABHA, 2011, p. 96), no que podemos responder: “pensar que as passagens, mais que caminhos tranquilos, são marcadas pela ambiguidade: não se trata de pensá-las sob uma ótica binária, mas como entrecruzamento” (FRANGELLA, 2016, p. 201-222). Como passagem que perturba a ideia de fronteira, mas constitui o “entre”, mais que dualidade, duplicidade em que a impossibilidade de fixar começo/fim e direção inaugura outros fluxos.

Mais uma pergunta, dessa vez, apresentada a nosso modo: pode o “currículo imitar a arte”? Defendemos essa possibilidade no entendimento de que a imitação, tal como a experiência relatada no início do nosso texto, é convite à inventividade, é negociação não totalizadora. Pensar em produções curriculares como as residências bauschianas, como espaço significativo de construção de múltiplas histórias que não se unificam, mas podem dialogar construindo outras, hibridizadas e que incitam negociações que provocam rupturas, criando campos de significação na articulação-desarticulação-(re)articulação de enunciados que evidenciam e deslocam a diferença.

Há espaço em nossas produções curriculares para as perguntas e respostas que evocam o indizível e nos põem em movimento? Para compor entre falas, gestos e silêncios, movimentos que emergem como ato tradutório?

Talvez, nossa reflexão neste texto seja de certo modo um outro desafio – incitar experimentações curriculares em que o currículo imite a arte.

2O Instagram é uma rede social on-line de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus usuários, que permite aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma variedade de serviços de redes sociais. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Instagram. Acesso em: 1º set. 2022.

5Resportagem sobre o documentário produzido por Wim Wenders sobre a obra de Pina. O docuementário foi indicado ao Oscar de melhor documentário de 2012 e ganhou o Prêmio Europeu de melhor documentário, em 2011, entre várias indicações e premiações.

6A obra “Passagens” é composta por anotações de pesquisa de Walter Benjamin, produzidas em diferentes momentos para discutir a história material da cultura em Paris. O autor agrupa suas anotações por temas e assuntos, sendo a maior parte da obra composta pelo manuscrito “Notas e materiais”, que engloba os seguintes arquivos: A – Passagens, I – O Interieur, P – as ruas de Paris, C – Paris Antiga, I – O Sena, M – O flâneur, N – Teoria do conhecimento, teoria do progresso, Q – Panorama, R – Espelhos, T – tipos de iluminação, “Passagens”, “Passagens Parisienses I” e “Passagens Parisienses II” (BENJAMIN, 2007).

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Marcia Furlan de. A desconstrução derridiana e o processo criativo de Pina Bausch. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v. 20, n. 1, p. 118, 15 jan. 2018. DOI 10.20396/etd.v20i1.8647809 [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2007. [ Links ]

BHABHA, Homi. O local da cultura. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2013. [ Links ]

BHABHA, Homi. O bazar global e o clube dos cavaleiros ingleses. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. [ Links ]

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Recebido: 07 de Setembro de 2022; Aceito: 03 de Outubro de 2022

Ana Paula Pereira Marques de Carvalho: Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com ênfase em Políticas Curriculares, Formação de Professores e Tecnologia. Atualmente, é coordenadora do Programa de Bolsas de Iniciação Científica da UERJ. Atua também em projetos firmados entre a UERJ e a Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (SEEDUCRJ), na qualidade de coordenadora pedagógica do Curso de Especialização em Alfabetização, Leitura e Escrita, e coordena o Projeto (En)Caminhando à Universidade, em escolas públicas das regiões Metropolitana II e Baixadas Litorâneas do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: app_marques@yahoo.com.br, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-0398-3893

Rita de Cássia Prazeres Frangella: Doutorado e mestrado em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Professora associada da UERJ. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PROPED/UERJ). Coordena o grupo de pesquisa Currículo, Formação e Educação em Direitos Humanos. Bolsista de Produtividade CNPq, Cientista do Nosso Estado/ Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), Procientista/UERJ. E-mail: rcfrangella@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-6392-4591

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