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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dic 2022  Epub 16-Feb-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1711 

Artigos

Currículo cultural do YouTube constituindo sujeitos de gênero e sexualidade

YouTube’s cultural curriculum constituting subjects of gender and sexuality

Currículum cultural de YouTube constituyendo sujetos de género y sexualidad

Michele Priscila Gonçalves dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0001-9699-9100

Roney Polato de Castro2 
http://orcid.org/0000-0002-6385-9096

1Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

2Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil


Resumo

O artigo apresenta discussões a partir de uma pesquisa de Mestrado em Educação, com foco nos discursos de gênero e sexualidade que circulam nos vídeos do youtuber Felipe Neto. Tomamos os vídeos como artefatos culturais, cujas pedagogias constituem sujeitos. Nossa análise está centrada em um currículo cultural que ensina modos de ser e de estar no mundo, instituindo modos de regular condutas e interpelando os sujeitos a estabelecerem com seus conteúdos relações de negociação. Elegemos para o artigo as análises relativas a dois dos vídeos presentes no canal do youtuber. O foco dos vídeos é em conselhos e questionamentos sobre práticas e condutas sexuais, envolvendo negociações no uso de preservativos, monogamia, contaminação pelas infecções sexualmente transmissíveis (IST) e construção de masculinidades a partir do exercício de uma sexualidade viril. As pedagogias culturais de gênero e sexualidade, alinhadas a discursos médicos, fazem dos vídeos artefatos potencialmente educativos, à medida que investem na construção de sujeitos interpelados a estabelecer relações consigo mesmos e com as verdades instituídas socialmente.

Palavras-chave: pedagogias culturais; discursos; sexualidade

Abstract

The article presents discussions based on a master’s degree research in education, focusing on gender and sexuality discourses that circulate in the videos of youtuber Felipe Neto. We take the videos as cultural artifacts, whose pedagogies constitute subjects. Our analysis is centered on a cultural curriculum that teaches ways of being and being in the world, instituting ways of regulating conduct and challenging subjects to establish negotiation relationships with their content. We chose for the article analyzes related to two of the videos present on the youtuber channel. The focus of the videos is on advice and questions about sexual practices and conduct, involving negotiations on the use of condoms, monogamy, contamination by sexually transmitted infections (STIs) and the construction of masculinities based on the exercise of a virile sexuality. Cultural pedagogies of gender and sexuality, aligned with medical discourses, make videos potentially educational artifacts, as they invest in the construction of subjects called upon to establish relationships with themselves and with socially established truths.

Keywords: cultural pedagogies; discourses; sexuality

Resumen

El artículo presenta discusiones de una investigación de Maestría en Educación, centrándose en los discursos de género y sexualidad que circulan en los videos del youtuber Felipe Neto. Tomamos los videos como artefactos culturales, cuyas pedagogías constituyen sujetos. Nuestro análisis se centra en un currículo cultural que enseña modos de ser y estar en el mundo, instituyendo modos de regular comportamientos e invocando a los sujetos a establecer relaciones de negociación con sus contenidos. Elegimos para el artículo los análisis relacionados con dos de los videos presentes en el canal de youtuber. El foco de los videos son los consejos y cuestionamientos sobre prácticas y conductas sexuales, involucrando negociaciones sobre el uso del preservativo, la monogamia, la contaminación por ITS y la construcción de masculinidades a partir del ejercicio de una sexualidad viril. Las pedagogías culturales de género y sexualidad, alineadas con los discursos médicos, hacen de los videos artefactos potencialmente educativos, en tanto invierten en la construcción de sujetos interpelados a establecer relaciones consigo mismos y con las verdades socialmente instituidas.

Palabras clave: pedagogías culturales; discursos; sexualidad

1 SITUANDO UM CAMPO DE PESQUISA

O que podemos aprender com o currículo cultural do YouTube? Como nos tornamos sujeitos a partir de vídeos veiculados nessa rede? Sobretudo, como os discursos de gênero e sexualidade que circulam por vídeos do YouTube podem nos ensinar modos de viver e pensar essas categorias? Somos interpeladas/os por esses vídeos, assim como por outros artefatos culturais, como novelas, filmes, clipes musicais, episódios de séries, sites e perfis de redes sociais, entre tantos outros produtos culturais que, acionando diferentes linguagens, divulgam e reforçam representações, valores e comportamentos, ou seja, ensinam a vivenciar a cultura.

Portanto, para além das instituições escolares, existem pedagogias em pleno funcionamento nas mais diversas instâncias culturais, operando como constituidoras de subjetividades. Como argumenta Marlécio Maknamara (2020, p. 59), os diferentes artefatos constituem textos curriculares, os quais precisam ser analisados em suas capacidades de governar e de produzir sujeitos, prescrevendo saberes, modos de ser, pensar e agir, ou seja, operando a partir do estabelecimento de certas estratégias de poder. Assim, “quando informações, aprendizagens, sentimentos e pensamentos são articulados, está-se compondo o texto de um currículo”.

Tomando de empréstimo a ideia de que os vídeos produzidos por youtubers “possuem capacidade de modelar nosso olhar e colaboram para a produção de nossas subjetividades a partir de determinados interesses em voga no tempo presente” (ANDRADE, 2017, p. 14), focalizamos o YouTube como possibilidade de mapear discursos de gênero e sexualidade em circulação, problematizando seus possíveis efeitos como currículo cultural. Assim, neste artigo, apresentamos parte de uma pesquisa de Mestrado em Educação, construída a partir da análise dos vídeos produzidos no canal do youtuber Felipe Neto. A escolha do canal não foi aleatória. Uma das autoras, atuando como professora em uma escola pública do estado de Minas Gerais3, notou a presença marcante dos/as youtubers no cotidiano escolar, sendo mencionados/as pelas crianças em várias ocasiões. Desse modo, a professora iniciou seu processo de pesquisa consultado as crianças sobre quais desses/as produtores/as de conteúdo figuravam como de maior interesse. A consulta se deu de modo informal na escola, entre crianças de 6 a 11 anos.

Ao nos voltarmos para as pedagogias do nosso tempo, pensamos na criação e expansão da Internet nas últimas décadas e nas suas características de potencialização das formas de interatividade e fluidez na produção e nos intercâmbios de saberes e representações, “na medida em que produz imagens, significações, enfim, saberes que de alguma forma se dirigem à educação das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na cultura em que vivem” (FISCHER, 2002, p. 153, grifo da autora). Assim, podemos dizer que a Internet faz parte das vidas de muitas pessoas. Podemos sentir seus efeitos a partir de mudanças perceptíveis nas formas de artícular e comunicar saberes, ideias, valores, que atravessam situações de entretenimento, de instrução e de interação social. Considerando as possibilidades de exposição e interação por meio da Internet, os vídeos, mídias compostas por áudio e imagens, podem ser capazes de fazer circular discursos e educar sujeitos. O YouTube, como plataforma que concentra a produção e divulgação de vídeos, torna-se uma instância cultural importante ao considerarmos os processos de subjetívação contemporâneos.

Os canais do YouTube e seus conteúdos são diversos, interpelando os sujeitos a se identificarem e a interagirem com eles, tornando-se seguidores/as, que reagem com comentários, likes e deslikes, além de compartilhar o que assistem. Os/As youtubers, responsáveis pela manutenção dos conteúdos dos vídeos publicados nos distintos canais, foram se tornando populares e influentes, fazendo participações em programas de televisão, novelas e publicidades, sendo entrevistados/as e estampando capas de revistas, matérias em sites voltados às celebridades, publicando livros e divulgando outros objetos de consumo. A grande repercussão de seus vídeos amplia o alcance dos saberes e representações que compartilham e conduzem ao progressivo aumento no número de seus/suas seguidores/as.

Ao criar seus vídeos, os/as youtubers têm um público com o qual falam e vão adequando seus conteúdos às reações desse público, especialmente ao que mais agrada e faz sucesso com a audiência, em uma relação atravessada por admiração e identificação. Portanto, os vídeos, pensados como textos curriculares, instauram relações pedagógicas de subjetivação, formando opiniões, conceitos, reiterando ou refutando modelos e ideias padronizadas. A popularidade que intensifica as relações de subjetivação nos conduz a pensar no canal selecionado para a pesquisa da qual deriva este artigo. Como explicado anteriormente, na interação com as crianças, foi o youtuber Felipe Neto o mais mencionado, remetendo-nos a essa relação de admiração e identificação com suas ideias, com os conteúdos que produz para o seu canal.

O youtuber é dono do terceiro maior canal brasileiro, considerando o número de pessoas inscritas4. Seu canal possuía, à época da pesquisa, 41 milhões de inscritos/as e mais de 11,6 bilhões de visualizações5. Homem branco, cisgênero e heterossexual, Felipe Neto produz vídeos para o seu canal, faz postagens e interage em outras redes sociais como Twitter e Instagram, sendo seguido por muitos/as fãs. Além disso, lançou cinco livros. São diversas as formas de visibilidade do youtuber, podendo ser considerado, na atualidade, uma das pessoas mais influentes do nosso país. Portanto, o que ele faz ou fala permanece sob olhares atentos e pode adquirir contornos de verdade para quem se identifica com o conteúdo do seu canal. Por isso, é importante problematizar discursos que circulam nessa instância cultural e como podem contribuir para a construção dos sujeitos que o assistem.

Nossa atenção aos vídeos do YouTube e seus currículos engendrados enquanto artefatos culturais, sendo investigados e significados como máquinas de ensinar, artefatos que governam e produzem sujeitos (MAKNAMARA, 2020), dá-se com um olhar sensível às questões de gênero e sexualidade, considerando nossa trajetória e inserção no campo de pesquisas que têm como foco essas categorias. Assim, interessou-nos investigar enunciados que circulam nos vídeos e suas condições de existência como modo de problematizar formas de viver gêneros e sexualidades que são anunciadas, sugeridas, insinuadas nos vídeos do youtuber Felipe Neto.

Filiamo-nos aos estudos que tomam gênero e sexualidade a partir de uma perspectiva construcionista, considerando que são construções sociais, culturais e políticas de um determinado tempo histórico, afastando-nos de quaisquer olhares que essencializem essas experiências. Assim, importa nos debruçarmos sobre a análise de como os elementos associados aos gêneros e às sexualidades são representados ou valorizados, o que se pensa sobre isso e como se processam determinadas relações de poder implicadas na imposição e negociação de experiências que envolvem a organização social e as subjetividades. A inspiração na obra de Judith Butler nos conduz a pensar no caráter performativo dessas experiências, pensadas como construções discursivas reiteradas por atos de linguagem e tendo efeitos protéticos, materializando-as nos corpos. Esse “poder reiterativo do discurso para produzir os fenômenos que ele regula e constrange” ( BUTLER, 2018, p. 196) pode ser analisado a partir da textualidade dos artefatos culturais, que educam para as sexualidades e relações de gêneros, informando e apresentando modos de vivê-las, disseminando concepções a respeito desses modos e, inclusive, orientando-se pelo pressuposto cis-heteronormativo, que apregoa a cisgeneridade e a heterossexualidade como modelos políticos de existência legítimos.

Acompanhar como as sexualidades e os gêneros circulam e se enunciam nos vídeos do canal Felipe Neto é uma forma de problematizar as pedagogias presentes nesses artefatos e como elas agem educando milhões de pessoas que assistem ao canal, subjetivando-as. Como canal de grande visibilidade, consideramos os enunciados de gênero e sexualidade que apareceram em alguns dos vídeos, utilizando as ferramentas de buscas próprias do YouTube. Assim, a pretensão não é julgar o que é dito pelo youtuber em seus vídeos, apontando erros e acertos, mas problematizar discursos que se enunciam a partir deles e como eles nos subjetivam.

Como principal estratégia para estabelecer um olhar investigativo sobre os vídeos, buscamos apoio na análise do discurso de inspiração foucaultiana, a fim de problematizar como nos tornamos o que somos a partir dos discursos, que efeitos eles têm sobre a constituição dos sujeitos. Embora nosso foco esteja nas enunciações de Felipe Neto em seu canal, não consideramos que os discursos são simples atos de fala individual, mas lugar de dispersão e descontinuidade discursivas. Felipe Neto não foi visto como aquele que cria discursos e suas concepções não foram submetidas a juízos de valor. O youtuber foi aqui compreendido como um sujeito construído pelos discursos e modos de subjetivação presentes na nossa sociedade, que tem uma posição de destaque no que diz respeito à divulgação de suas concepções e disseminação desses discursos (FISCHER, 2001).

Considerando-se as decisões metodológicas apontadas e as vinculações teóricas anunciadas, passamos a uma das discussões empreendidas com a pesquisa que tomou como foco discursos circulantes nos vídeos do youtuber Felipe Neto. Nós nos dedicaremos à análise de dois vídeos em que ele aborda questões relativas ao ato sexual, questionando as possibilidades desses vídeos, como textos culturais, na educação dos sujeitos: “Desafio da camisinha (o de verdade!)”, publicado em 2017, e “Qual o tempo médio de uma relação sexual?”, publicado em 2016.

2 “HOJE NÓS VAMOS FALAR SOBRE SEXO”: PEDAGOGIAS DE SEXUALIDADE ENTRE PRESCRIÇÕES E NEGOCIAÇÕES

As palavras que iniciam o título referem-se ao anúncio do tema feito por Felipe Neto no vídeo “Desafio da camisinha (o de verdade!)” (2017). Nele, o youtuber classifica sexo como um tema importante, mas sério, chato, polêmico e sensível de ser falado. Na posição de jovem que fala para jovens, ele usa alguns de seus vídeos para informar o público sobre a importância do uso de preservativos para prevenir infecções sexualmente transmissíveis (IST). Classificadas por ele como sérias, essas produções apresentam dados, críticas e conselhos que podem levar seguidores/as a (re)pensarem seus posicionamentos diante dos temas abordados. O ato sexual é um desses tópicos e foi colocado em discussão em mais de um vídeo do canal.

Após anunciar que o assunto é sexo, ele tenta atrair os/as espectadores/as dizendo:

Calma, relaxa! É muito importante que você assista o vídeo de hoje, que seus pais assistam o vídeo de hoje [...]. As coisas que precisam ser ditas aqui são muito importantes, principalmente para vocês que são mais jovens, que eu sei que compõem a maioria do público que assiste o canal. Então presta atenção. Não vai ser papinho de pai e mãe não tá? Eu vou falar aqui de brother com vocês, de parceiro de vocês. Tenha você 10 ou 80 anos. Pense em mim como um amigo tá? Não como alguém que está dando conselhinho sobre sexo. Aqui vocês sabem que não tem essa pegada aqui no canal. (NETO, 2017).

Ao longo da produção, o youtuber mantém uma linguagem mais próxima do público jovem referindo-se a situações que costumam acontecer nessa faixa etária. Ele começa o assunto citando uma pesquisa que menciona um aumento no número de casos de aids e dizendo que sua preocupação com o fato o levou a falar disso. Afirma também que, nos anos 1980 e 1990, como não havia tratamentos para essa doença, muitas pessoas morriam ao contraí-la. Para diminuir essa consequência, aconteciam muitas campanhas de conscientização sobre o uso de preservativo como forma de evitá-la. Ele argumenta que, com a diminuição dessas campanhas e com o avanço dos tratamentos que possibilitam maior expectativa de vida para quem vive com o HIV, causador da doença, as pessoas estão perdendo o medo de morrer de aids. Ao afirmar que tem visto muitos jovens se vangloriando por terem transado sem camisinha, Felipe Neto manda um recado para esse público:

Então a primeira coisa definitiva que eu queria conversar nesse vídeo, falar pra vocês é o seguinte: se algum amigo teu ou você... mas vamos focar no amigo, vamos fingir que você que está assistindo não faz isso, que você é uma pessoa extremamente consciente. Se algum amigo teu chegar para você se orgulhando de ter transado com uma menina sem camisinha. Ou se uma menina se orgulhar de transar com um cara sem camisinha, embora isso eu nunca tenha visto acontecer, não congratula não. Dá esporro, tira sarro, faz passar vergoínha. Fala com a pessoa: “Vem cá você quer parabéns por ter sido um imbecil? Você quer parabéns por ser um completo idiota? Você quer parabéns por, não só agora estar correndo o risco de ter pego uma doença, como também estar correndo o risco de ter transmitido uma doença para alguém? É por isso que você quer parabéns? Por ‘ter comido no pelo’?” Primeira coisa que você tem que fazer é isso: parem de achar que transar sem camisinha é cult, é legal, é um objetivo a ser atingido. É estupidez, ignorância e pode destruir a tua vida ou a vida da outra pessoa. (NETO, 2017).

Aqui, o youtuber cita um comportamento culturalmente comum em alguns grupos, geralmente masculinos: contar sobre suas atividades sexuais para os amigos no intuito de se vangloriar. Muitas vezes, o homem é exaltado pelas suas práticas sexuais, pela quantidade de parceiras e por condutas que são valorizadas em alguns nichos do universo masculino, como o exemplo citado na fala. O influenciador tenta convencer os/as espectadores/as de que fazer sexo sem camisinha não é motivo de glória. Chama atenção para a importância do outro nesse processo de valorização ou desvalorização de determinadas práticas, pois, se o grupo as criticar, é possível que o indivíduo repense sua concepção individual. Por isso, incentiva os homens a terem uma postura de desaprovação diante da atitude de transar sem preservativo. Faz também uma fala direcionada ao público feminino:

Então o que eu queria dizer nesse vídeo aqui pra vocês mulheres é o seguinte: é ok dizer não. Se chegar na hora do sexo o cara não tiver camisinha e você não tiver camisinha, é ok dizer não. É ok ele ficar puto. Se ele forçar a barra, se ele tentar... “não vamos transar sim, que isso pô, rapidinho, eu sou limpo, não tenho nada !”. É ok você dizer não. É ok você quebrar o clima ou qualquer coisa que ele possa alegar. Não tem problema algum. Primeiro de tudo cuida da sua saúde. Depois pensa no seu prazer. É tão óbvio que nem sei porque eu estou dizendo né? Mas, infelizmente, tem gente que não sabe disso. E, por último, eu queria dizer também um recado para as mulheres. É ok você ter camisinha ! Tá? Porque tem muita mulher que sente vergonha de ter camisinha, não tem camisinha em casa, não tem camisinha na bolsa, não tem camisinha em lugar nenhum. É ok você comprar e ter camisinha, cara, sexo é pros dois, não é só para o homem. Então se você sente que é importante ter camisinha com você pare de sentir vergonha. Se alguém te recriminar você fala “querida, é muito melhor porque amanhã se um cara quiser te comer e não tiverem uma camisinha por perto, você pode acabar querendo dar mesmo assim e você pode pegar doença, eu não porque eu tenho a minha”. Esse é o conselho que eu queria dar. (NETO, 2017).

A fala endereçada ao público feminino sugere um comportamento de resistência diante de duas situações: a insistência de um homem para fazer sexo sem camisinha e a insegurança ou vergonha de comprar/ter preservativos. Ambas advindas de um contexto histórico de diferenciação da sexualidade de homens e mulheres, em que homens são estimulados a explorarem sua sexualidade, enquanto as mulheres são educadas para vivenciá-la com pudor.

Durante um bom tempo a sexualidade feminina foi quase desprezada, considerada apenas com a função reprodutora. A partir do século XVIII, a mulher passou a ser vista como sujeito sexual passível de fiscalização. Michel Foucault (1988, p. 99) aponta a histerização do corpo feminino como um dos “grandes conjuntos estratégicos, que desenvolvem dispositivos específicos de saber e poder a respeito do sexo”. Dessa forma, a sexualidade feminina tornou-se objeto de controle, sendo moldada por preceitos morais advindos de discursos religiosos, médicos e jurídicos. Atitudes como manter a virgindade até o casamento, satisfazer ao marido, não ter outros parceiros, não se masturbar, dedicar-se à maternidade etc. são exemplos do que era esperado para uma mulher “de respeito”.

No Brasil, apesar de muitas mudanças advindas das lutas do movimento feminista no que diz respeito à liberdade sexual da mulher, ainda vemos resquícios desse controle. A forma como homens e mulheres são vistos/as socialmente a partir da maneira como se comportam diante do sexo é extremamente desigual. Convivemos com discursos repressores que desqualificam sujeitos femininos que vivenciam sua sexualidade de forma mais livre. Concomitantemente, homens são incentivados desde pequenos a vivenciarem o sexo com toda a liberdade, inclusive sendo enaltecidos quando expõem suas relações sexuais. Nesse contexto, é possível que alguma mulher sinta vergonha de adquirir e portar um preservativo por medo de ser apontada como aquela que não é “de respeito”. Também pode acontecer algum receio em interromper o ato sexual por falta de camisinha, já que isso pode ser visto como contrariedade ao desejo masculino. Esse cenário é retratado pelo youtuber que ora direciona a fala para homens, ora para mulheres, e, em outros momentos, independe do gênero. O direcionamento dos conselhos nos faz olhar para o contexto cultural que envolve esse vídeo, principalmente para as diferenças entre os comportamentos esperados para homens e mulheres pela nossa sociedade.

Quando Felipe Neto diz que é “ok ter camisinha e é ok interromper o ato sexual”, ele está apresentando um enunciado diferente daquele que julga e condena a mulher. Sua fala pode levar espectadoras e espectadores a pensarem e a agirem de outra forma. Parecendo reconhecer essa influência sobre quem assiste, o youtuber aconselha os/as jovens sugerindo atitudes para ter uma vida sexual saudável. Apesar de defender o uso de preservativo, ele considera a possibilidade de dispensar o utensílio, desde que sejam seguidos alguns protocolos:

Vamos para o que eu mais escuto dos jovens e adolescentes quando eu converso com eles a respeito do assunto. A primeira coisa a é: “Ai Felipe, mas eu já estou ficando com essa pessoa já tem cinco meses, eu ainda tenho que ficar usando camisinha? Que saco!” [diz revirando os olhos e mudando o tom de voz]. Tem! Sim! Tem que continuar usando camisinha. Primeiro, ficar não é namorar. Você ainda não tem estabelecido com essa pessoa um pacto de fidelidade ok? Então a primeira coisa é: continue transando de camisinha não importa o tempo que você esteja ficando com alguém. Se você quer começar a transar sem camisinha eu vou te explicar qual é o processo. Primeira coisa: você tem que estar em um relacionamento estável, um relacionamento onde você sente segurança no seu parceiro ou na sua parceira. A partir do momento em que você está nesse relacionamento, os dois devem fazer exame. “AI QUE SACO FELIPE, NOSSA VOU TER QUE IR NO MÉDICO PRA TRANSAR SEM CAMISINHA?” [imagem em preto e branco, mudança de voz em tom de reclamação, revirando os olhos]. Vai! Qual que é o problema? Vai cair a mão? Vai cair o dedo? Vai morrer? Vai apodrecer a pepeca? É só a tua vida que a gente está falando. Como é que você não vai a um médico para fazer uma coisa que pode pôr em risco a sua vida? Sim os dois devem ir ao médico e os dois devem fazer exames que mostram que os dois não possuem nenhuma doença sexualmente transmissível. Com os exames em mãos e com a segurança de que o seu parceiro ou parceira não vai te trair vocês podem começar a prática do sexo sem camisinha. Se você estiver em um relacionamento comprometido sob esses termos e você trai a pessoa sem camisinha você é abaixo do nível da imundície da podridão do ser humano. Você pode levar para dentro da sua casa, ou para casa do teu parceiro ou tua parceira uma doença que ele pode carregar para o resto da vida, por conta da sua falta de caráter. Então, por favor, respeite isso mais do que qualquer outra coisa. (NETO, 2017).

Esses comentários demonstram sua proximidade com os/as jovens, seja quando diz que conversa com eles/as sobre sexo, seja quando utiliza uma linguagem descontraída, quando apresenta exemplos cotidianos ou quando descreve algumas possíveis reações que uma pessoa na fase da juventude poderia ter diante dos seus conselhos. Isso parece passar confiança, como se os ensinamentos viessem de alguém que sabe o que o/a espectador/a vivencia. Inclusive o influenciador usa a própria experiência para ilustrar o que defende, dizendo: “eu posso afirmar categoricamente, com cem por cento de certeza, que eu, de fato, nunca transei sem camisinha sem estar num relacionamento comprometido, sério e estável, nenhuma única vez” (NETO, 2017).

Dentro do roteiro que aponta como possibilidade saudável para fazer sexo sem camisinha está a estabilidade nas relações. Ele atrela uma união afetiva e monogâmica a uma vida sexual saudável, atentando para o pacto de fidelidade que deve ser firmado quando se opta por um relacionamento estável. Leandro Oltramari e Liliane Otto (2006, p. 60) afirmam que a estabilidade das relações costuma gerar mais confiança, modificando a percepção do risco de infecções sexualmente transmissíveis, “muitos acreditam que a confiança pode ‘imunizar’ contra a infecção pelo HIV. O relacionamento conjugal é construído sobre a forte segurança do confiar e acreditar no outro”. Entretanto, pesquisas (PINHEIRO; MEDEIROS, 2013; LIMA; MENESES, 2020) apontam um aumento no número e infecções por HIV em pessoas que têm um relacionamento estável, mostrando que isso não é sinônimo de pacto de fidelidade e nem de proteção.

Patrícia Chaves do Nascimento e Luciana Kind (2018) chamam atenção para a vulnerabilidade de mulheres ao HIV/aids em relacionamentos conjugais, ressaltando fatores como a violência contra as mulheres, a dificuldade de negociar o uso da camisinha com seus parceiros e a aceitação da infidelidade masculina. Historicamente, os processos de constituição de homens e mulheres são diferentes. Enquanto circulam as ideias de que homens precisam mais de sexo; que não conseguem controlar seus desejos sexuais; que a exigência de preservativo indica falta de confiança; que homem ter relação extraconjugal é natural; que a mulher deve realizar os desejos de parceiro, entre outras; a ideia de amor romântico, incondicional e fiel vem sendo mais estimulada nas mulheres. Embora não seja regra, esses discursos circulam na nossa sociedade subjetivando muitas pessoas. Essas questões merecem ser problematizadas quando o assunto é vulnerabilidade ao HIV/aids nos relacionamentos estáveis, o pacto de fidelidade nem sempre é cumprido, por isso, está muito longe de ser garantia de proteção.

Além da questão dos relacionamentos, Felipe Neto aponta a importância de cuidar do corpo com a ajuda da medicina, reforçando a relação de saber-poder desse campo sobre os corpos. Ele afirma que só a partir de exames médicos é possível saber se a pessoa tem, ou não, alguma IST. Esse procedimento seria uma forma de proteger a si mesmo/a e ao/à parceiro/a. Com isso:

[...] o poder das normas médicas de influir sobre as ações, isto é, de fazer com que o indivíduo se volte sobre si mesmo em observância ao imperativo de saúde, reside no processo através do qual o indivíduo é, ao mesmo tempo, objetivado pelos discursos e práticas científicas e se subjetiva segundo os parâmetros de sua condição de objeto. (PINHEIRO; MEDEIROS, 2013, p. 635).

Dessa forma, a medicina tornou-se responsável por determinados saberes relativos ao sexo que nos levam a esperar dela a verdade sobre a saúde e a doença, o que explica a fala de Felipe Neto sobre a necessidade de ir ao médico para investigar se está saudável. A sexualidade foi um dos aspectos com os quais as biopolíticas começaram a se preocupar na modernidade, colocando o sexo em posição de

[...] responsabilidade biológica” [pois] não somente o sexo podia ser afetado por suas próprias doenças mas, se não fosse controlado, podia transmitir doenças ou criá-las para as gerações futuras; ele aparecia, assim, na origem de todo um capital patológico da espécie. (FOUCAULT, 1988, p. 112).

No fluxo dessa rede discursiva sobre sexo, o youtuber assume uma posição de saber baseada no discurso médico. Defende sistematicamente o uso do preservativo nas relações sexuais, a menos que os/as envolvidos/as tenham um pacto de fidelidade e tenham feito exames para certificarem-se de que não apresentam nenhuma IST. O vídeo estimula a juventude a olhar para a sexualidade, refletir sobre as consequências de como vivenciá-la e seguir um caminho desejável, posto como correto. A crítica a determinados comportamentos, juntamente ao aconselhamento, busca apresentar uma forma desejável de viver a sexualidade do ponto de vista da saúde do corpo. A postagem, visualizada por milhões de pessoas, visa à formação de sujeitos conscientes, responsáveis pela própria saúde e pela saúde do outro. Faz parte do dispositivo pedagógico da mídia (FISCHER, 2002), pois, ao ditar um modo de agir com relação ao sexo, faz com que espectadores/as pensem sobre si mesmos/as, contribuindo com seus processos de subjetivação. Isso não significa que todos/as serão afetados da mesma maneira, pois idade, grau de instrução, localização geográfica, relações de poder nos relacionamentos afetivo-sexuais e classe social são alguns marcadores que podem influenciar na recepção e na prática dos conselhos. A questão de procurar médicos e fazer exames, por exemplo, é mais difícil para quem não tem muitos recursos financeiros ou quem mora em lugares onde o acesso à saúde é mais precário.

3 “VOCÊS ESTÃO TRANSANDO MAL MEUS QUERIDOS”: SEXUALIDADES E MASCULINIDADES EM CONSTRUÇÃO

Além de questões relacionadas à saúde, Felipe Neto também fala sobre sexo levando em conta outros pontos, como pressão sofrida pelos homens, tempo da relação sexual, ejaculação precoce e sexo oral. No início do vídeo “Qual o tempo médio de uma relação sexual?” (2016), afirma que “existe uma pressão no sexo heterossexual depositada em cima do homem” (NETO, 2016 )6. As afirmações e os exemplos usados nesse vídeo são baseados nas experiências do influenciador, que se diz heterossexual. Por isso ele fala de um determinado lugar e com um público que compartilha de tais vivências, delimitando desde o início que o assunto diz respeito a questões vividas por homens heterossexuais. Os pontos levantados nessa produção dizem de discursos que participam da construção desses indivíduos.

O dispositivo de sexualidade (FOUCAULT, 1988) age ditando regras, sugerindo comportamentos e dando lugares aos indivíduos nas relações. A ideia de que o homem viril está sempre disposto a transar e tem uma necessidade biológica de sexo é bastante difundida em nossa sociedade. A construção das masculinidades, principalmente as heterossexuais, passa pela valorização do ato sexual. Desde meninos, são estimulados a vivenciarem a sexualidade, a estimularem o próprio prazer, a observarem o corpo da mulher e tentarem tocá-lo, a compreenderem o desejo como um impulso incontrolável e a valorizarem aqueles que fazem muito sexo. Por isso, muitas vezes, é esperado que o homem assuma uma posição ativa nas relações sexuais, recaindo sobre ele uma certa responsabilidade sobre a qualidade da transa heterossexual. Alguns fatores são popularmente marcadores dessa qualidade, como o youtuber diz no vídeo:

Normalmente quando as pessoas falam sobre qualidade do sexo, inconscientemente a gente remete isso a qualidade do homem no sexo em relação à mulher. É o tempo que o homem leva para gozar. Será se o cara conseguiu fazer a mulher gozar ou não? Será que ele broxou? (NETO, 2016).

Essas questões não costumam ser problematizadas. Ao serem subjetivados por discursos que exigem deles virilidade e destreza para o sexo, muitos homens se constituem buscando atingir tais características, controlando a si mesmos e aos outros. São comuns piadas sobre a sexualidade daqueles que apresentam comportamentos diferentes do que é esperado socialmente para um “Homem com H maiúsculo”. Além disso, também não é difícil encontrar aqueles que se orgulham de contar sobre suas práticas sexuais “exitosas”. Desde crianças, os meninos são expostos a enunciados ligados à virilidade; com o início da vida sexual, isso contribui para constituição deles enquanto sujeitos sexuais. É possível encontrar revistas, sites, vídeos e programas de televisão que falam sobre esse assunto para homens jovens, ensinando-os uma determinada forma de agir sexualmente que vai sendo reforçada nas relações sociais. Ser considerado “bom de cama” em nossa cultura exige alguns atributos, como os descritos pelo influenciador; entretanto, nem todos conseguem seguir esse padrão. Para o influenciador,

[...] a realidade é que as pessoas simplesmente não falam sobre isso. Elas não discutem o tema. Todo homem quer pagar de comedor, de fodão, de transo pra caralho, sendo que um terço goza rápido, quase metade não chupa, um terço tem nojo de buceta, ou seja, tem gente mentindo, mas muito. (NETO, 2016).

As discussões sobre a constituição das masculinidades ainda são muito escassas fora do âmbito acadêmico. Por isso, essa valorização do homem que faz muito sexo, que tem várias parceiras e que precisa afirmar sua virilidade para os amigos é tida como natural. Todavia, as masculinidades são construídas socialmente e a ideia de virilidade pode variar de acordo com contextos culturais, espaciais e históricos. Para Renata Francisco (2014), os homens:

[...] estão socialmente programados para possuir e conquistar o maior número possível de mulheres, onde a lógica é fazer sexo para se satisfazer e para respaldar sua virilidade, uma vez que a autopropaganda é um fator importante entre as conversas masculinas, onde contam as vantagens a respeito de suas relações sexuais. (FRANCISCO, 2014, p. 28).

Os processos de construção social das masculinidades são constituídos de diversas pedagogias: valorização de um padrão, exposição de modelos na mídia, exaltação de determinados comportamentos, críticas, cobranças, piadas etc., sutilezas que tentam moldar o homem para que se encaixe nos padrões. A autoafirmação da potência sexual masculina, citada pelo youtuber, é uma prática cultural dos homens na nossa sociedade. Os dados referenciados por ele costumam ser usados para qualificar o sexo e dizer do comportamento sexual masculino. Tanto que ele mesmo faz o seguinte comentário ao anunciar o tempo médio apresentado na pesquisa:

Mas vocês estão transando mal em queridos! Eu sei que qualidade sobrepõe quantidade quando a gente está falando de sexo, mas 7 minutos, cara, puta que pariu, isso é uma rapidinha de banheiro público [dando pulos de nervoso]. [...] E eu tô aqui pra te avisar, querido, que não importa se você tem ejaculação precoce, se você tem problema de impotência, tudo isso você pode curar, mas se você tem nojo de buceta você é meio bosta. (NETO, 2016).

A pressão pela virilidade, pelo desejo ao corpo feminino, pelo “bom desempenho” sexual está presente nessas falas. Entretanto, há uma ressalva quando se trata de questões que independem da vontade pessoal. A impotência e a ejaculação precoce são tratadas como questões de saúde que fogem ao controle do indivíduo. Apesar disso, Felipe Neto levanta uma possibilidade para superar uma dessas questões. Ele expõe a própria vida sexual, apontando dificuldades que teve quando era mais jovem e contando como resolveu. Fala que sofria de ejaculação precoce e sentia-se pressionado e preocupado com a opinião da mulher, chegando a ficar inseguro em novas relações, “porque a sociedade diz que se você goza rápido você é um merda na cama” (NETO, 2016). Relata também que acreditava sofrer de um problema raríssimo e ser uma aberração. Por isso dá um recado para aqueles que se identificam com essa situação:

Então se você é um homem que tá me assistindo e você sofre de ejaculação precoce, cara, não há vergonha nisso. Você não está sozinho, muito pelo contrário. Busque ajuda, existem tratamentos para isso. O meu caso o que solucionou foi a idade eu fui ficando mais velho e aí de repente o problema foi diminuindo eu li que isso acontece em alguns casos. Mas se não for o seu caso, ou se você quiser uma solução mais rápida, procura ajuda. (NETO, 2016).

Tais comentários retratam que Felipe Neto usa do saber da experiência pessoal para propor uma verdade sobre a relação sexual: aquela que ele acredita ser a mais correta. Entretanto, diante do lugar de onde ele fala, para quem fala e como fala, suas concepções podem ser recebidas como a única verdade. Pois, na “ordem do discurso”, os jogos de verdade dependem da posição ocupada por quem enuncia (FOUCAULT, 1996). O influenciador tem uma familiaridade com o público jovem, usa uma linguagem que o aproxima desse grupo, apresenta um tom normativo e busca argumentos nas próprias vivências. Por isso, os enunciados presentes nesse vídeo podem ser capazes de fazer o/a espectador/a olhar para si mesmo/a e refletir sobre sua vida sexual, seja para modificá-la adequando ao que foi sugerido, seja para discordar do que foi dito. Somos constituídos/as a partir das relações com o outro, ao ver/ouvir o outro refletimos sobre nós mesmos/ as e as figuras públicas, como o youtuber, possuem uma influência considerável nesses processos.

Esses modos de relacionar-se consigo através do modelo do Outro aparecem na mídia sintetizados na figura dos que, simplesmente, pela forma de contar a sua vivência, seja quanto ao modo de resolver os problemas ou viver as emoções, mostram-se exemplares, modelos a seguir, independente de assim se julgarem. (FISCHER, 1996, p. 195).

Felipe Neto personifica a figura de modelo a ser seguido. Ao passar a imagem de bem-sucedido em diversos campos da sua vida, torna-se uma referência para quem o admira. Colocar sua vida em exposição ensina ao outro. Seus vídeos são disseminadores de discursos e educam pelo visível e pelo enunciável (FISCHER, 2002). Não são simplesmente as palavras ditas por ele que fazem o/a espectador/a olhar para si mesmo/a, mas um conjunto que envolve o que ele enuncia, como enuncia, a imagem que transmite de si, a posição que ocupa na sociedade, o que representa para seus/suas fãs, enfim, todo um contexto que contribui para a credibilidade de suas produções.

Aliás, não podemos deixar de abordar o contexto de produção dos vídeos aqui analisados. Eles falam explicitamente sobre sexo e, apesar de terem uma indicação de idade, estão disponíveis para qualquer pessoa. Isso só é possível por se tratar de uma conjuntura de liberdade de expressão, onde há uma plataforma que permite aos/às usuários/as criarem conteúdos sobre os mais diversos temas, além da audiência de espectadores/as que se interessam pela temática e fazem com que as produções tenham visibilidade.

Rosa Fischer (1996, 2001, 2002) aponta, a partir de suas pesquisas, uma tendência da mídia em falar da e para a juventude, em apontar caminhos, mostrar exemplos, discutir temas que geralmente interessam a jovens e, consequentemente, contribuir com os processos de subjetivação desses sujeitos. O sexo é uma temática muito presente na vida de indivíduos jovens, são inúmeros os artefatos que falam de sexo: revistas, sites, novelas, programas de TV, vídeos do YouTube, livros, entre outros. Segundo Foucault (1988), isso é resultado de uma “vontade de saber” estimulada pelo “dispositivo de sexualidade” que incita os discursos sobre sexo desde o século XVIII e que

[...] suscitou um de seus princípios internos de funcionamento mais essenciais: o desejo do sexo – desejo de tê-lo, de aceder a ele, de descobri-lo, liberá-lo, articulá-lo em discurso, formulá-lo em verdade. Ele constituiu ‘o sexo’ como desejável. (FOUCAULT, 1988, p. 146).

Com esse dispositivo em funcionamento, o sexo ganhou visibilidade, adquiriu um status de verdade do sujeito e passou a ser tanto desejado como vigiado. Os artefatos culturais, e a mídia de forma geral, contribuem para que isso aconteça, pois ampliam o contato dos indivíduos com determinados discursos sobre sexualidade, colocando-os em evidência. A partir do que vemos e ouvimos nas mídias

[...] somos convidados a expor nossas culpas, a recebermos dos apresentadores ou dos locutores verdadeiras “lições de moral”, exemplos de vida, da reflexão sobre o vivido, da auto-avaliação, da auto-decifração, da auto-transformação. Se atentarmos bem para o modo como são elaborados inúmeros produtos midiáticos, há um sem-número de técnicas através das quais se propõe a todos nós que façamos minuciosas operações sobre nosso corpo, sobre nossos modos de ser, sobre as atitudes a assumir. Estamos falando aqui do governo de si pelo governo dos outros – tema exaustivamente tratado por Foucault. (FISCHER, 2002, p. 155-56).

É o que ocorre nos materiais aqui analisados, que fazem parte do dispositivo pedagógico da mídia (FISCHER, 2002), trabalhando para educar pessoas e inculcar saberes. Por meio das falas de Felipe Neto, os/as espectadores/as são convidados/as a olhar para si mesmos/as e incitados/as a governarem seus comportamentos sexuais. Os vídeos apresentam um tom imperativo, sugerem formas desejáveis de vivenciar a sexualidade e recriminam determinadas condutas sexuais. Apesar disso, nem sempre atingem às pessoas da mesma forma. Como nos diz Elizabeth Ellsworth (2001), os modos de endereçamento podem errar seus alvos, pois nem sempre a pessoa que assiste é quem o produtor dos vídeos pensa que ela é. Quando dizemos que o material constrói subjetividades, não significa que produz em todos os sujeitos o mesmo efeito, mas que promove processos de subjetivação que consistem em “procedimentos pelos quais o sujeito é levado a se observar, se analisar, se decifrar e se reconhecer como campo de saber possível” (FOUCAULT, 2006, p. 236).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que os vídeos operam por pedagogias, constituindo um currículo cultural do YouTube, determinadas experiências de gênero e sexualidade vão sendo forjadas na interação com esses artefatos. Os seguidores e as seguidoras do youtuber Felipe Neto, ao estabelecerem relações com os vídeos, envolvem-se com suas pedagogias, que funcionam como estratégias discursivas de reiteração de discursos que circulam na cultura e nas relações sociais. Tais pedagogias se potencializam na medida em que tomamos os vídeos como não diretamente incumbidos de abordar questões que se relacionam com os discursos de gênero e sexualidade. Isso quer dizer que os seguidores e seguidoras, ao interagir com os conteúdos dos vídeos, talvez não esperem encontrar ensinamentos como os que analisamos neste artigo. Por princípio, o canal de Felipe Neto não apresenta como missão discutir conteúdos relativos aos discursos de gênero e sexualidade. Com isso, podemos nos questionar sobre a sutileza com que as pedagogias operam nos vídeos. A linguagem, os termos utilizados na fala, as frases de efeito que convocam os sujeitos a se pensarem, a pensarem nas suas sexualidades, nas relações estabelecidas com outros, o acionamento da retórica da experiência como modo de tornar mais próximo o enunciado do público: são todos estratégias que interpelam e convocam os sujeitos a estabelecerem certa relação consigo.

Importante destacar que os conselhos, depoimentos e outros elementos enunciados utilizados por Felipe Neto em seus vídeos não são componentes de uma pedagogia da passividade dos sujeitos, ou seja, o caráter pedagógico dos vídeos opera, justamente, para estabelecer certas relações que convocam os sujeitos a se identificarem ou não com os conteúdos dos vídeos. Diante deles, são produzidas concordâncias e discordâncias, significados são negociados, à medida que a eles se atribuem aproximações ou distanciamentos com o que culturalmente se estabeleceu como verdade. Quando falamos sobre o exercício da sexualidade, um dispositivo histórico de subjetivação (FOUCAULT, 1988), uma discursividade conjugada entre o religioso, o moral, o médico vai compondo subjetividades mais ou menos permeáveis aos questionamentos que Felipe Neto faz em seus vídeos. Ele aciona ideias relativas à monogamia, ao machismo, à masculinidade viril, à negociação sobre o uso de contraceptivos na prevenção de IST, produzindo enunciações cujos fios nos conduzem a uma trama discursiva complexa. Como argumenta Maknamara (2020), os artefatos culturais também estão envolvidos em processos de regulação de condutas a partir dos saberes e das relações de poder que instituem o que é válido, articulando informações, aprendizagens, sentimentos e pensamentos, compondo, assim, um texto curricular que produz modos de ser, estar e se comportar no mundo.

3Trata-se de uma escola estadual de uma cidade do interior de Minas Gerais, em um bairro considerado de classe média, e que atende a aproximadamente 640 estudantes dos anos iniciais do Ensino Fundamental (1° ao 5° anos do Ensino Fundamental).

4Dados da reportagem intitulada “Os 10 maiores canais do YouTube no mundo e no Brasil”, divulgada pelo sitehttps://www.oficinadanet.com.br/post/13911-os-10-maiores-canais-do-youtube. Acesso em: 16 dez. 2020.

5Dados do dia 27 de dezembro de 2020.

6A pesquisa teve acesso ao vídeo no dia 18 de março de 2020. Em 23 de outubro de 2020, retornando ao canal para rever alguns detalhes, notamos que ele havia sido retirado da rede.

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Recebido: 26 de Agosto de 2022; Aceito: 30 de Setembro de 2022

Michele Priscila Gonçalves dos Santos: Mestra em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pedagoga pela UFJF. Professora da rede estadual de educação de Minas Gerais. E-mail: michele_pgs@hotmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-9699-9100

Roney Polato de Castro: Doutor em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Licenciado em Ciências Biológicas pela UFJF. Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF. Coordenador do grupo de estudos e pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (GESED). E-mail: roneypolato@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-6385-9096

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