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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dic 2022  Epub 16-Feb-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1698 

Artigos

Currículo-slasher e dispositivo da catastrofização: nas entranhas de uma subjetividade zumbi

Curriculum-slasher and catastrophization device: in the guts of a zombie subjectivity

Curriculum-slasher y dispositivo de catastrofización: em las entra ñas de uma subjetividad zombie

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, Rio Grande do Norte, Brasil

2Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil


Resumo

O artigo, filiado ao campo das pesquisas pós-críticas em Educação e inspirado em obras do horror gore e slasher, objetiva utilizar a imagem do zumbi para significá-lo como um modo de subjetivação em marcha. O argumento é o de que a subjetividade zumbi é um composto de posições de sujeito que carrega traços de um planeta em colapso e que urde um caráter de modelização e serialização dos sujeitos. Embora essa subjetividade possa ser demandada em diferentes instâncias e espaços, operamos com o currículo das narrativas midiáticas seriadas como um dos principais articuladores que atualizam as linhas de um “dispositivo da catastrofização”. Tal dispositivo tem servido para responder à necessidade de se definir o que conta, em um mundo em ruínas, como vivível ou matável. Concluímos o artigo afirmando que embora o currículo das narrativas seriadas acione uma necropolítica que objetive eliminar o que desordena as normas, ele terá de enfrentar uma resistência tão inventiva, astuciosa e agitadora quanto o poder que exerce.

Palavras-chave: currículo; subjetividade; dispositivo

Abstract

The article, affiliated with the field of post-critical research in Education and inspired by horror gore and slasher movies, aims to use the image of the zombie to signify it as a mode of subjectivation in progress. The argument is that zombie subjectivity is a compound of subject positions that carry traces of a collapsing planet and that weaves a character of modeling and serialization of subjects. Although this subjectivity can be demanded in different instances and spaces, we operate with the curriculum of serial narratives as one of the main articulators that update the lines of a “catastrophization device”. Such a device has served to respond to the need to define what counts, in a world in ruins, as liveable or killable. We conclude that although the curriculum of serial narratives triggers a necropolitics that aims to eliminate what disrupts the rules, it will have to face resistance as inventive, crafty, and agitating as the power it exerts.

Keywords: curriculum; subjectivity; device

Resumen

El articulo, adscrito al ámbito de la investigación postcrítica en Educación e inspirado en obras de terror gore y slasher, pretende utilizar la imagen del zombi para significarla como modo de subjetivación en marcha. El argumento es que la subjetividad zombi es un compuesto de posiciones de sujeto que lleva las huellas de un planeta que se derrumba e insta a un carácter de modelado y serialización de los sujetos. Aunque esta subjetividad puede ser exigida en diferentes instancias y espacios, operamos con el currículo de las narrativas seriadas como uno de los principales articuladores que actualizan las líneas de un “dispositivo de catastrofización”. Este dispositivo ha servido para responder a la necesidad de definir lo que cuenta, en un mundo en ruinas, como habitable o matable. Concluimos el artículo afirmando que, aunque el currículo de las narrativas seriadas desencadena una necropolítica que pretende eliminar lo que desordena las normas, tendrá que enfrentarse a una resistencia tan inventiva, astuta y agitadora como el poder que ejerce.

Palabras clave: currículo; subjetividad; dispositivo

1 NAS ENTRANHAS

Sujos, violentos, perigosos, decrépitos, assustadores. Corpos esfarrapados, deformados, em frangalhos, miseráveis, maltrapilhos. Nômades que vagam pelo mundo em busca de quem se alimentar. Comedores de cérebros, glutões de carne fresca, beberrões de sangue vivo e viscoso. Monstros repugnantes. Monstruosidades. Anormais. Anomalias. Aberrações. Erros de programação. Antinaturais. Gaguejos inorgânicos. Tropeços da natureza. Repulsivos. Bestas à solta. Destituídos de passado, presente e futuro. Figuras apocalípticas e pestilentas. Prenúncio da nossa finitude. Mortos-vivos.

Como imagem paradigmática de um mundo cada vez mais despedaçado e confrontado com a antecipação de seu series finale, o zumbi é o produto de uma subjetividade que emerge das ruínas, dos mangues, das covas, dos vales de ossos secos, dos “submundos”, das valas, das tumbas. É aquele a que tudo é capaz de resistir – intempéries, adversidades de todas as ordens, apocalipses, guerras e cóleras. Por já estar morto, dificilmente há como matá-lo novamente – daí a sua capacidade de “renascer”, a cada aurora, da sua própria decrepitude.

O corpo zumbi é uma expressão semiótica de ameaça à normalidade (CARVALHO, 2013a). A sua existência intimida o estatuto das normas a partir dos desvios que efetua na coerência de um discurso. O zumbi é precisamente o “Outro” que tememos, aquele que não desejamos nos tornar; logo, é dele que devemos continuadamente fugir. Ou, em último caso, atirar em sua cabeça: arrancar-lhe, a golpes de pólvora, o seu rosto. Não parece ser aleatório que a “bala de prata” capaz de eliminar de forma definitiva um zumbi esteja sempre apontada à sua cabeça. Afinal, conforme nos mostra Deleuze e Guattari (2012), o “rosto”, diferentemente do que somos habituados/as a pensar, não marca a nossa personalidade, os nossos traços individuais ou nossos caracteres distintivos; “nada é menos pessoal que o rosto” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 33). O rosto, produzido por uma “maquinaria de rostidade” (CARVALHO, 2013b), marca uma equivalência de identificação. Trata-se da coagulação de traços e de significações conformadas aos modelos hierárquicos, uma ficção de poder capaz de definir todo um campo de possibilidades binárias à qual continuamente nos assujeitamos.

Os rostos, portanto, “não são primeiramente individuais, eles definem zonas de frequências ou de probabilidade, delimitam um campo que neutraliza antecipadamente as expressões e conexões rebeldes às significações conformes” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 36). Em outras palavras, o que está em jogo são as “produções redundantes de significações” (CARVALHO, 2013b, p. 16) que nos fazem recair nas mesmas relações tipificadas. Nesse sentido, “arrancar o rosto” de um zumbi ao fazer explodir a sua cabeça é torná-lo aquém de toda identificação, despossuí-lo de qualquer identidade, extorquir todos os marcadores que o produziriam enquanto um típico e reconhecível “zumbi”. Um zumbi pode até não ter um cérebro; mas, ainda que desfigurado, deve possuir um rosto assimilável, equivalente. Fazê-lo perder a cabeça é, sobretudo, extirpar o seu rosto, sendo essa a sua causa mortis. Morto mais uma vez, dessa vez de forma definitiva, um zumbi destituído de rosto é como um aviso aos demais: há de se arcar com a própria vida quando se opta por continuar existindo no mundo à revelia desse quadro de referências que prontamente nos tornam identificáveis, dando-nos forma e função.

O zumbi é aqui significado como um modo de subjetivação: o processo pelo qual os indivíduos “vêm a se relacionar consigo mesmo e com os outros como sujeitos de um certo tipo” (ROSE, 2001a, p. 36). Compreendemos, a partir de Foucault (2004), que não existe uma subjetividade dada de antemão, produzida de forma definitiva ou a priori, mas que ela é forjada pelos diferentes discursos pelos quais temos contato. Isto é, a subjetividade “não deve ser vista como “dado primordial” ou “capacidade latente”, uma vez que é preciso analisá-la em seu caráter de permanente produção” (MAKNAMARA, 2011, p. 58). Entender a subjetividade “em termos daquilo que os humanos são capacitados a fazer, por meio das formas pelas quais eles são maquinados ou compostos” (ROSE, 2001b, p. 166), tem nos possibilitado assumir que “somos constituídos/as pelos diferentes textos a que temos contato, pelas diferentes experiências que vivenciamos” (PARAÍSO, 2006, p. 4).

Se a subjetividade pode ser compreendida como “constituída por diferentes práticas discursivas às quais os indivíduos se submetem ou estão submetidos” (MAKNAMARA, 2011, p. 58), o que estamos nomeando por subjetividade zumbi é demandada a partir de variadas posições de sujeito disponibilizadas por um determinado artefato cultural: o currículo das narrativas midiáticas seriadas. Logo, ao passo que a subjetividade se expressa como “a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 236), a subjetividade zumbi concorre para a produção de um modo de viver e de ser um “zumbi” nesses tempos catastróficos.

Temos compreendido o artefato cultural das narrativas midiáticas seriadas como um currículo que excede “as limitações impostas pelos esquemas escolares, pela carga horária disciplinar e pelas atribuições dadas pelos/as profissionais da educação regulamentados/as” (GURGEL; MAKNAMARA, 2022, p. 3). Isso porque “os diferentes artefatos acionados pela cultura da mídia podem ser lidos como textos: composições linguísticas que, mais que mediar e comunicar relações entre palavras e coisas, incorporam e produzem significados, saberes e valores” (MAKNAMARA, 2020a, p. 68-69), constituindo-se, portanto, como textos curriculares. Dada a sua multiplicidade de enredos, capilaridade de transmissão e consumo, bem como o atual predomínio dos serviços de streaming em nossos momentos de lazer, temos investido em significar o currículo das narrativas midiáticas seriadas nos termos daquilo que ele tem disponibilizado acerca dos “modos em que nos tornamos nós mesmos/as, desde os estilos e ideais coerentes e estáveis acerca do que é ‘ser homem’ ou ‘ser mulher’”, passando pela sua “capacidade de inscrição em nossos corpos como efeito regulatório dos discursos por ele produzidos” (CARVALHO FILHO; MAKNAMARA; CHAVES, 2022, p. 3). Nossos esforços analíticos partem de visibilizar que esse currículo pode ser um espaço de controle (foco do presente texto), mas também é capaz de soerguer a diferença e constituir-se como um “espaço incontrolável do desejo” (GURGEL; MAKNAMARA; CHAVES, 2021, p. 18). O argumento geral deste artigo é o de que a subjetividade zumbi é um composto de posições de sujeito que carrega traços de um planeta em colapso e que urde um caráter de modelização e serialização do sujeito seriador. Nesse sentido, faz-se necessário compreender a subjetividade zumbi em sua dupla interpelação. Por um lado, é uma referência à maneira pela qual modos de vida são “zumbificados”, modelizados, padronizados, arrancados de sua potência própria de variação. Por outro, é um modo de significar todo esse horror, essa sensação coletiva de esgotamento, essa precarização em jogo com as existências, essa deflagração de um fim iminente, esse pressentimento de que a morte está à espreita.

A catástrofe inescapável enquanto um acontecimento tem composto uma teia de relações que vem acionando tecnologias de subjetivação, de modo a demandar a subjetividade zumbi em diferentes instâncias, espaços e instituições, sendo o currículo das narrativas midiáticas seriadas um dos seus principais articuladores – mas não único. Trata-se, portanto, de uma articulação a um “dispositivo da catastrofização”, que, como qualquer outro dispositivo, tem como função primordial responder uma dada urgência (FOUCAULT, 2017). Logo, a “catastrofização” é significada como um dispositivo no presente texto, porque ela responde à necessidade de se definir o que conta, em um mundo em ruínas, como vivível ou matável, isto é, o que é possível de existir ou o que é passível de exterminação (BUTLER, 2017, 2019). Para tanto, tal dispositivo tem procurado dotar os indivíduos como mais ou menos propensos a sua própria extirpação. É a partir desse eixo argumentativo que desenvolvemos o presente artigo, discorrendo acerca de um certo articulador de discursos, saberes e poderes que operacionaliza cartadas de vida e de morte na contemporaneidade.

2 “E SE NÃO HOUVER AMANHÃ?”: DISPOSITIVO DA CATASTROFIZAÇÃO

Estaríamos cada vez mais próximos/as à meia-noite do juízo final? Segundo o “relógio do fim do mundo”3, nossa humanidade estaria a menos de três minutos da sua completa destruição. Cem segundos é a conta que nos separaria de algum cataclisma nuclear capaz de extirpar a vida na terra, simbolizada por essa aterrorizante “meia noite” à qual somos inclinados/as, em um esforço coletivo, a reiteradamente adiar. Tais investidas, no entanto, parecem não ter surtido tanto efeito na contemporaneidade: a cada ano que passa, o relógio adianta mais alguns segundos. Na esteira dessa terrível previsão, somada à indiferença de países desenvolvidos no que diz respeito às mudanças climáticas4 e ao vacilante comprometimento dos líderes do G20 na mitigação dessas alterações capazes de modificar substancialmente a vida na terra5, fomos tomados de surpresa com uma pandemia cuja realidade parecia saída das ficcionais páginas de “A Peste”, livro de Albert Camus. Desde o início de 2020, temos aprendido que, conforme já previsto pelo escritor franco-argelino, “o micróbio é o que vem primeiro”, e é desse microrganismo que tudo derivaria: “a saúde, a integridade, a pureza, se quiser – é um efeito da vontade, de uma vontade que não deve jamais se deter” (CAMUS, 2017).

Estamos imersos por uma palpável sensação de iminente finitude. O contexto pandêmico serviu apenas para dar espessura às inúmeras e criativas possibilidades em que a natureza poderia se voltar contra nós mesmos/as, algumas delas fortemente “previstas” por artefatos culturais com temáticas apocalípticas. Consequentemente, essa sensação coletiva passa a nos sugerir que, talvez, “o trem da história teria por estação final uma Catástrofe, a menos que se puxasse a tempo o freio de emergência” (PELBART, 2021, p. 1).

Tudo indica que seríamos mesmo incapazes de pensar a dimensão de tempo-espaço sem que a associemos diretamente a essa destruição por vir. É nesse sentido, por exemplo, que se somam esforços de pensadores/as como Ailton Krenak, Suely Rolnik e Donna Haraway, no intuito de deslocar as formas habituais pelas quais pensamos a nossa interação com a natureza e o futuro do nosso planeta. Talvez seja o caso de não mais “adiar o fim do mundo”, conforme a sugestão de Krenak (2019) em sua obra, mas de precisamente antecipar o fim dessa configuração em curso, como sugerido por Rolnik (2019). Isto é, cultivar outras possibilidades de vida, constituir “épocas por vir que possam reconstituir os refúgios” desse nosso mundo repleto de “refugiados, humanos e não humanos, e sem refúgios” (HARAWAY, 2016, p. 140).

Mas enquanto esse “capitaloceno” (2016) persiste e, consequentemente, seguimos com dificuldade de pensar em outros arranjos para essa ficção especulativa que parece constituir o mundo fora dos ditames capitalísticos, seguimos sob a espreita da nossa finitude via apocalipse. Fica a cargo de Deleuze (2011), portanto, mostrar que isso não seria por mero acaso. Afinal, o apocalipse foi capturado como um modo de subjetivação, inspirando “em cada um de nós maneiras de viver, de sobreviver e de julgar” (p. 52). O livro do Apocalipse escrito por João de Patmos, diferentemente do seu evangelho – suave, amoroso, espiritual –, é selvagem, violento, revelador, “é o livro de todos os que se consideram sobreviventes. É o livro dos zumbis” (p. 52). É a partir desse pressuposto deleuziano que pretendemos retomá-lo para entender a ação de um certo dispositivo que, na atualidade, tem procurado conduzir os sujeitos a tornarem-se dotados de um duplo potencial: se, por um lado, seríamos capazes de destruir o nosso mundo devido às nossas ações mais cotidianas; por outro, também seríamos “destruíveis” precisamente por não nos conformamos àquelas normas que tornariam esse mundo um lugar mais habitável.

É preciso, no entanto, resistir à tentação de associar o apocalipse às catástrofes reveladas pelos sete selos quebrados pelo cordeiro e às promessas de que estas se cumpririam em um tempo vindouro. Trata-se, em contrapartida, de significá-lo mais como um sistema de juízo que se infiltra e enxameia em todos os focos de poder, isto é, “uma imagem do poder inteiramente nova” (p. 55), do que assumi-lo em seu caráter eminentemente revelador. Nesse sentido, o apocalipse se atualiza e se mantém autêntico não pela anunciação do seu horror futuro, mas pela “instauração de um poder último, judiciário e moral” (p. 63). O triunfo desse fim programado nos enreda de tal modo que se torna, ainda – ou sobretudo – nos dias de hoje, difícil de se desvincular: “o apocalipse triunfou, jamais conseguimos sair do sistema do juízo” (p. 56). O apocalipse não é o que se gesta para um amanhã, é o que está sendo no aqui e agora.

Pensar o apocalipse – ou melhor, pensar a partir do apocalipse – nos permitiu confabular outros olhares para o campo investigativo da pesquisa que subsidia o artigo em tela. Passamos a imaginar como esse processo de catastrofização tem sido produzido ora como algo já dado e inevitável, ora como algo “em avançado estado de irreversibilidade” (PELBART, 2021, p. 2). Afinal, ao mesmo tempo que cientistas afirmam que as mudanças climáticas provocadas pelo homem são irreversíveis e sem precedentes, também nos é mostrado uma possível saída a partir da estabilização da temperatura do planeta com a diminuição da emissão de gases de efeito estufa6. Em outras palavras, o fim parece ser certo e irreversível; o que mudaria, contudo, é a gravidade desse desfecho e quais seriam as nossas ações na tentativa de ao menos tentar tornar nosso grand finale um evento menos calamitoso. Tal trama é o que compõe o dispositivo da catastrofização.

Entende-se por dispositivo “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” (FOUCAULT, 2017, p. 364) e que consiste em “uma rede cuja composição trabalha a favor de efeitos específicos de poder” (MAKNAMARA, 2020b, p. 144). Esse emaranhado de elementos discursivos e não discursivos funciona como “uma meada, um conjunto multilinear, composto por linhas de natureza diferente” (DELEUZE, 1990, p. 155), assumindo uma “função estratégica dominante” (FOUCAULT, 2017, p. 365), ao disponibilizar modos de subjetivação. Ao articular elementos heterogêneos, um dispositivo, tal qual o próprio nome sugere, “dispõe” os sujeitos “em uma organização peculiar, dentro de uma racionalidade particular” (MAKNAMARA, 2011, p. 69). Nesse sentido, partindo desses componentes díspares de um dado dispositivo, somos capazes de “estabelecer um conjunto de relações flexíveis, reunindo-as num único aparelho, de modo a isolar um problema específico” (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 134). Em suma, é possível entender um dispositivo em sua engenhosa capacidade de regular os corpos, conduzir condutas, instituir modos de existência e produzir sujeitos.

O dispositivo da catastrofização se apresenta tal qual a besta apocalíptica do derradeiro livro bíblico: um monstro gigantesco que operacionaliza cartadas de vida e de morte, cujas curvas de visibilidades e regimes de enunciabilidades (DELEUZE, 2005) produzem formas de se ver e de se enunciar os sujeitos como vivíveis ou como matáveis. Tais curvas e regimes fazem, de um dado indivíduo, um sujeito mais ou menos propenso ao seu extermínio, a partir de uma trama discursiva que instaura campos de racionalidade ao apresentar um certo “score”, isto é, a “pontuação” das dissidências que possibilita a qualificação da vida. Tal modo de ação só é possível a partir desse raciocínio no qual a nossa eminente destruição é tomada como um espetáculo, algo semelhante às figuras monstruosas, às sete taças e às sete trombetas da grande tribulação apocalíptica. Assim como os flagelos do apocalipse parecem reservados àqueles que não estariam inscritos no livro da vida, os tormentos do dispositivo da catastrofização estão destinados aos “não eleitos”, uma “nação” de sujeitos dissidentes das normas e cujas existências tornam-se vulneráveis a uma programação da morte.

As visibilidades de um dispositivo são, portanto, “relâmpagos, reverberações, cintilações” (DELEUZE, 2005, p. 62), isto é, as condições de tudo aquilo que faz uma época (DELEUZE, 2019). Com isso, não estamos afirmando que tais curvas estejam associadas a um modo específico de “ver” um sujeito, uma vez que “as formas de ver são, pois, anteriores à vontade individual” (MARCELLO, 2004, p. 202). Nesse sentido, o sujeito passa a ser considerado como um objeto das curvas de visibilidade, isto é, “uma variável da própria visibilidade, bem como dependente de suas condições” (p. 202). Em outras palavras, “o próprio sujeito que vê é um lugar na visibilidade, uma função derivada na visibilidade” (DELEUZE, 2005, p. 66). “Ver” não corresponde a um mero exercício empírico do nosso aparato visual, não se trata de um comportamento qualquer. Está relacionado à constituição de um campo de visibilidade, aquilo que torna uma certa formação histórica distinguível de qualquer outra (DELEUZE, 2019).

Se uma dada época se define pelo que ela faz ver, ela também está associada ao que dela se diz. Por isso, um regime de enunciabilidades está relacionado com as condições “para o desdobramento de todas as redes de ideias” (DELEUZE, 2019, p. 28) que operam em um momento histórico. Logo, tal regime não irá apenas designar aquilo que se fala acerca de um sujeito, uma vez que “falar” não se encerra em um mero ato da fala e tampouco se reduz às palavras, às proposições e às frases proferidas. Trata-se da produção de enunciados, que correspondem àquilo que, em uma certa formação histórica, faz com que seja possível e justificável falar acerca dos sujeitos. Isto é, são as “múltiplas e proliferantes enunciações que efetivamente encontram condições de entrar na ordem do discurso” (MARCELLO, 2004, p. 202) e, nesse sentido, são capazes de operar como “códigos de normalização” das condutas (MAKNAMARA, 2011, p. 65).

Tais curvas e regimes que sustentam o dispositivo da catastrofização tomam determinados marcadores sociais da diferença – tais como gênero, sexualidade e raça – em um “arquivo audiovisual” (DELEUZE, 2019), um agenciamento que combina visibilidades e enunciabilidades acerca dos sujeitos em torno de suas possibilidades de vida ou de extermínio. Em suma, tais marcadores são tomados nesta investigação como estratos, um “composto de visível e enunciável” (p. 10), em que determinadas conformações dissidentes passam a ser associadas aos micróbios, aos agentes infecciosos, aos organismos patológicos que ameaçam a vida e a pureza. Nesse “apocalipse” em curso, não estaríamos caminhando para um “ponto de chegada”, um “juízo final” ou uma “grande tribulação” conforme prometido pelo texto bíblico. Trata-se, em contrapartida, de uma certa trajetória com diferentes percursos para marcadores sociais distintos. Qualificadores de vida associados à sobrevivência do mundo. Uma forma de extermínio para que o amanhã seja possível. Purificação do planeta. “Um novo céu e uma nova terra”.

O dispositivo da catastrofização, portanto, é um modo muito particular, violento, insidioso e eficiente de gerir aqueles corpos atravessados por dissidências de gênero, sexualidade e de raça em um mundo que associa essas transgressões a sua própria falibilidade. Nesse sentido, tal dispositivo apresenta-se como um conjunto de elementos que atuam de modo a produzir determinados valores, comportamentos, hábitos e significados relativamente a tais marcadores. Sua ação visa à produção de sujeitos particulares a essa racionalidade apocalíptica, a esse sistema de pensamento pautado no julgamento, na moral, na programação da morte e na espetacularização da catástrofe. Para tanto, aciona linhas que possam, de modo estratégico, complexo e relativamente estruturado, ensinar aos indivíduos, a um só tempo: a se reconhecerem como sujeitos de um mundo em colapso; a assumirem a sua função preponderante no conflito homem vs. natureza; e a exercerem o controle das dissidências e o conserto dos desvios das normas ao tomar tais transgressões como aquilo que causaria a ruína do nosso mundo.

Ao ser atualizado pelo currículo das narrativas midiáticas seriadas, tal dispositivo tem produzido uma subjetividade zumbi: um modo de o sujeito relacionar-se consigo mesmo, na fruição de variadas posições de sujeito disponibilizadas por esse artefato, em uma composição modelizada, serializada, programada. A subjetividade zumbi é a coletivização do horror, do pânico, da asfixia da diferença, do estrangulamento do desejo, da extirpação daqueles/as que fogem às normas. É um modo de atravessar os corpos por uma sensação de esgotamento, de letargia, de liquidação das singularidades, reduzindo às identidades preestabelecidas, às capturas do poder, aos ditames de um algoritmo das existências. Trata-se de uma existência “morto-vivo”: obliteração dos possíveis e constituição de um sujeito amputado, fraturado, ausente, em crise. Podemos nos tornar “mortos-vivos” não porque sobrevivemos à morte, mais precisamente porque, conforme nos ensina Conceição Evaristo (2015) em um de seus mais belos contos, não estar morto nem sempre equivale a estar vivo.

3 COVA RASA

A subjetividade zumbi é o simulacro da molaridade, uma projeção multitudinária de indivíduos congelados em um ciclo ininterrupto de gestos e de ações. Fixado em circuitos homogeneizantes, um sujeito zumbi é reduzido a uma identidade facilmente reconhecível. Um zumbi deverá ser um zumbi e se comportar como tal em qualquer parte do mundo. Suas características – seus grunhidos irreconhecíveis, sua fome lancinante, seus movimentos desconexos, sua suposta inumanidade – não podem estar encerradas em feixes territoriais ou confinadas em uma suposta “identidade local”. O zumbi é o próprio protagonista do “Império”, essa nova forma global de regime de poder que pressupõe não haver um centro territorial pelo qual o poder estaria confinado (HARDT; NEGRI, 2001). Desterritorializado, o poder passa a ser pensado em um domínio que “incorpora gradualmente o mundo inteiro dentro de suas fronteiras abertas e em expansão” (p. 12).

Tomando como objeto de governo a vida social em sua totalidade, o Império tornou-se, conforme apontam Hardt e Negri (2001, p. 41), a forma paradigmática do biopoder ao descobrir quais são “os meios e as forças de produção da realidade social, bem como as subjetividades que a animam”. O objetivo dessa expressão do biopoder, portanto, é o de disponibilizar mecanismos de comando que produzem uma espécie de algoritimização dos modos de vida, exercida por meio de uma refinada maquinaria subjetiva. Sistemas de telecomunicação, redes de informações, teias cibernéticas e conglomerados audiovisuais são algumas das engrenagens a urdir esse complexo agenciamento semiótico que tem organizado uma produção biopolítica. Tal produção incide sobre a vida como mais-valia, absorvendo-a, expropriando-a, valorando-a, e só é eficaz porque é capaz de capturar desejos e mobilizar vontades. Se o Império constituiu uma megamáquina (PELBART, 2016), os anseios dos sujeitos dessa biopolítica da algoritimização vinculam-se a essa megamáquina.

Nesse sentido, o que argumentamos como subjetividade zumbi refere-se à modelização das existências em uma forma de vida muito particular. Trata-se do resultado de uma certa “produção de massa” de conjuntura pandêmica, tanto porque se pretende envolver todo o globo, todo o “Império”, como também porque se deseja proliferar, infectar e contaminar cada vez mais os indivíduos. Essa subjetividade resulta em uma “algoritimização das existências”, uma padronização do desejo que estabiliza os nossos territórios existenciais segundo determinados coeficientes de valor. Nesse sentido, são circuitos que tendem à repetição vazia, ao contrário daquela que nos aponta Deleuze (2018) como a repetição que produz a diferença. Trata-se de uma repetição que produz sempre o mesmo, programando os modos de vida e fabricando indivíduos serializados.

Tememos a mordida desses “mortos-vivos” porque ela é precisamente esse vetor de contaminação capaz de supurar os “processos de singularização”. Singularização refere-se aos agenciamentos que nos conduzem à afirmação de outros valores em registros particulares para além daqueles preestabelecidos por uma racionalidade capitalístic, um ponto de inflexão nos processos de serialização (GUATTARI; ROLNIK, 1996). Diante de peles arranhadas ou pescoços abocanhados, o preço a se pagar é a emergência de mais um indivíduo zumbi e a possibilidade de mortificação do seu potencial de singularizar-se. Tornamo-nos, nesse ponto, existências manufaturáveis, centralizadas em torno de uma imagem de referência, de um certo “consenso subjetivo referido e sobrecodificado por uma lei transcendental” (p. 40). A essa altura, parece não haver mais como fugir: tornamo-nos replicantes virais, uma vez que esse modo de produção serializada permite a sua propagação, tal como argumentado por Guattari e Rolnik (1996, p. 40), em um contexto investigativo específico, “a nível da produção e do consumo das relações sociais, em todos os meios e em todos os pontos do planeta”. Com nossos processos de singularização interrompidos, nós, zumbis, saltamos das nossas tumbas em uma notada desfiguração das nossas potências de agir.

Mais do que a produção de mercadorias, tal cenário biopolítico tem forjado um novo tipo de “bens de consumo”: as subjetividades. É nesse sentido que Lazzarato (2014, p. 14) argumenta em torno de uma “economia subjetiva”, evidenciando que o capitalismo, em sua interface neoliberal, tem lançado “modelos (subjetivos) do mesmo modo que a indústria automobilística lança uma nova linha de carros”. A vida tornou-se, ela mesma, um capital desejável. Pelbart (2016, p. 105), por sua vez, afirma que nós consumimos formas de vida: “absorvemos maneiras de viver, sentidos de vida, consumimos toneladas de subjetividade”. Esse verdadeiro sorvedouro de vidas não apenas capitaliza em cima das nossas existências como também as qualificam, a partir de um operador que estabelece cortes entre o que é vivível – ou vendável – e o que é matável – ou excluído das vitrines dos “saldões subjetivos” (CARVALHO, 2021).

Trata-se, portanto, de uma cova rasa. Tão logo as existências passam a ser expropriadas, vampirizadas e usurpadas pelo capital, um novo e supostamente “autêntico” modo de vida torna-se rentável – apenas para, em um futuro próximo, disputar o espaço nessa mesma vala comum quando seu “score” de pontuação subjetiva arrefecer e ele próprio tornar-se marcado por um coeficiente de precariedade (BUTLER, 2019). A “representatividade” na cultura da mídia talvez seja um dos exemplos mais emblemáticos dessa cisão entre os “corpos que importam” (BUTLER, 2019) e aqueles que logo veem o seu “valor” diminuído. Ao grafar “representatividade”, referimo-nos a esse projeto que anuncia um certo caráter de transgressão às semióticas dominantes em suas conformações normativas, cedendo o protagonismo a sujeitos dissidentes de gênero, de sexualidade, de raça etc. No entanto, há cada vez mais indícios reforçando que as próprias armas que ameaçavam perturbar a norma têm sido reconvertidas pela maquinaria capitalístic. Se, por um momento, esses sujeitos dissidentes puderam se “enxergar” nas imagens veiculadas pelas mídias, ao tomar como objeto de investigação o currículo das narrativas midiáticas seriadas, deparamo-nos com uma política de morte em curso.

Quais seriam os sintomas desse confisco das existências e da captura da diferença? Como os nossos corpos podem se manifestar ao menor contato com essas linhas de morte e de destruição capazes de rebater possíveis linhas de fuga? Assumimos uma perspectiva semelhante ao que argumenta Bom-Tempo (2021), entendendo o sintoma como o indicativo político de um corpo capturado por técnicas e estratégias que objetivam cooptar o desejo em uma certa racionalidade capitalístic. Impotência do desejo, neutralização das dissidências, sacralização do “normal” em detrimento daquilo que difere, sedação diante dos horrores ne(cr)oliberais são alguns desses traços somatopolíticos gestados na confluência de forças que amputam as nossas potências e que nos tornam vulneráveis aos afetos tristes. A tristeza passa a ser encarada, portanto, não mais como um mero estado sensorial de ordem pessoal, mas como uma efetiva “política de gestão das massas” (p. 65), isto é, uma estratégia biopolítica para produzir cada vez mais corpos esgotados, angustiados, atemorizados, em crise.

“Tudo é caso de sangue”, lembram-nos Deleuze e Parnet (1998, p. 75). Portanto, um poder que se estabelece em uma lógica necro requer sujeitos desanimados, combalidos, enfraquecidos. Trata-se de um poder que nos comunica afetos tristes e que diminui a nossa potência de agir, de modo a organizar os nossos horrores mais particulares, gerindo os nossos temores mais insuspeitos (DELEUZE; PARNET, 1998). Adoecidos/as do corpo e da alma, pode-se assumir essa relação zumbificada, agindo de modo padronizado e atravessados/as por angústias, ressentimentos e culpas de todas as ordens. O pânico de um mundo em declínio assombra e atravessa como flechas. De tanto que nos rodeia, podemos não estranhar mais a onipresença da morte. Deixamos de associá-la a uma fatalidade e passamos a significá-la como uma certeza. A vida, por sua vez, empalidece. Asfixiada pela sua possibilidade de anulação, passamos a conjurar a vida não mais como potência, como capacidade de recriar e perdurar, mas como um estorvo, incapacitada de enfrentar os poderes que desejam suprimi-la.

Nesse sentido, o que vemos insistindo com a noção de zumbificação da vida não é a simples imolação de um corpo com o objetivo de exterminá-lo. Tal expurgo até pode ocorrer, desde que justificado por um controle biológico em prol da manutenção da pureza desse coletivo molar dos “mortos-vivos” que se aglutinam em nossos dias (FOUCAULT, 2005). Mas a zumbificação da vida tem de ser entendida como um processo de gestão biopolítica que pretende tornar esses sujeitos anestesiados úteis aos valores do capital, procurando conformá-los ao que Guattari (2004, p. 233) denominou de “constelações significantes de referência”. Embora possamos pensar, a priori, que um zumbi não tenha um “sexo” ou que a sua raça não qualifique sua existência nesse quadro de homogeneização post mortem, isso não quer dizer que o seu “passado” não o assombre. Afinal, as suas “antigas” expressões generificadas, sexuais e racializadas podem lhes garantir uma certa “gradação” de persistência no mundo.

O oxímoro “morto-vivo”, mais do que uma simples constatação de um estado de concomitância de vida e de morte, tem dado textura ao emaranhado de formas de existência sociais nas quais “vastas populações são submetidas a condições de vida que lhe conferem esse estatuto” (MBEMBE, 2018, p. 71). Como é possível considerar-se “vivo/a” em uma sociedade em que uma diarista é enclausurada por mais de 100 dias por furtar água para cozinhar para o seu filho7? De que modo podemos associar um corpo negro quilombola à vida quando ele é açoitado em público8 no mesmo país que argumenta ser uma “democracia racial”? Essa mesma nação que vilipendia corpos negros desde o Brasil Colônia também está associada a uma maior vulnerabilidade por parte da população LGBTQIA+ em relação à morte9. Em síntese, é preciso rasurar a ideia de vida como direito comum a todos/as e entendê-la em sua possibilidade de “estado de exceção” (AGAMBEN, 2004), inscrita em uma ordem de necropoder que confere, a partir de determinadas tecnologias, uma capacidade de permanência ou de aniquilação a depender dos distintos marcadores da diferença.

4 CURRÍCULO-SLASHER10

É nessa zumbificação dos modos de existência que o currículo das narrativas midiáticas seriadas procura exercer sua necropolítica: por meio dos investimentos por aniquilação de sujeitos dissidentes, de modo a converter esse expurgo em algo rentável a partir do acúmulo dos corpos exterminados. As covas rasas já parecem não darem conta desse verdadeiro empilhamento de uma massa precarizada. O que está em curso é um qualificador de humanidade a determinadas existências.

A fotógrafa e escritora Susan Sontag argumenta, em uma de suas obras, que imagens que exibem a violação de um corpo são, de certo modo, pornográficas, pois tais “imagens repugnantes também podem seduzir” (SONTAG, 2003, p. 80). É essa sedução que pode incitar, por exemplo, a atração de pessoas em testemunhar acidentes em tráfegos urbanos ou mesmo o ato infracional de compartilhar imagens de desastres, como se elas constituíssem um mórbido suvenir, a despeito de leis11 que criminalizam esse tipo de violação. A familiaridade com o horror faz com que a carnificina, mais do que assustar ou enojar, torne-se atraente; a brutalidade física, por sua vez, “é antes um entretenimento do que um choque” (p. 84). Não é estranho, portanto, que artefatos culturais na contemporaneidade tenham constituído um certo “modo de ver”, no qual aquilo que até algum tempo seria considerado horripilante e nauseante passa a ser interessante e aprazível.

Uma “orgia do intolerável” tem tornado a violência, o horror, a dor e o choque em uma montagem capaz de vulgarizar a experiência do sofrimento. Trata-se de uma iconografia que, segundo Sontag (2003), remete às pinturas de Francisco de Goya, passando pelos registros fotográficos da concentração nazista, pelas gravuras da guerra do Vietnã e, mais recentemente, pelas estarrecedoras imagens do atentado às Torres Gêmeas no 11 de setembro. No entanto, a ficção consegue ser tão brutal quanto essas inscrições da realidade. Suas possibilidades de carnificina são tão mais criativas e apelativas à medida que os corpos vilipendiados estiverem inscritos em alguma dissidência dos marcadores sociais. O sangue utilizado como tintura dessas imagens pode até ser simbólico, mas as consequências desses artefatos no sentido de gravar um “alvo” naqueles/as que desordenam das normas são bastante palpáveis para muitos sujeitos, de modo a evidenciar um discurso de ódio que, segundo Butler (2021, p. 39), constitui “o sujeito em uma posição subordinada”.

Inspirada nos filmes gore, um subgênero dos filmes de horror, a autora Sayak Valencia (2010) argumenta acerca de como a violência tornou-se a pedra angular no atual sistema capitalista. Para Valencia (2010), a violência extrema – o massacre, a extirpação, a mutilação, o desmembramento – não é apenas um recurso com vistas à eliminação daquilo que pode figurar como um perigo, mas configura-se em um exercício de produção de capital, uma necromercadoria. O “capitalismo gore” que a autora defende seria um sistema no qual a violência funde-se ao gênero e aos usos predatórios do corpo como uma poderosa ferramenta necropolítica (VALENCIA, 2010). Tal capitalismo gore, por sua vez, tem se tornado compatível e útil ao dispositivo da catastrofização aqui evidenciado, uma vez que a sua lógica opera precisamente na constituição da figura de um suposto “inimigo”, aquele corpo mais vulnerável à extirpação por oferecer riscos a sua comunidade.

Além disso, o diagnóstico de Valencia (2010) aponta para o acionamento das políticas endereçadas à produção da morte que são direcionadas, sobretudo, aos estratos mais subalternizados e que ocupam certos marcadores da diferença social. Em linhas próximas, Mbembe (2017) argumenta que há a constituição de um certo modelo baseado no discurso da razão da insegurança para produzir a imagem racializada do “inimigo”. Para Mbembe (2017, p. 21), as políticas de extermínio acionadas nesses nossos tempos de “repovoamento e de globalização do mundo sob a égide do militarismo e do capital” se expressariam na imagem idílica de um “reset” das nossas mazelas a partir de uma limpeza étnica e racial. Não é por acaso que, nesse interim, multiplicam-se os muros12, fronteiras passam a melhor delimitar os povos que devem ser protegidos e salvaguardados13 e, consequentemente, aqueles considerados menos vivíveis passam a ser enjaulados14 e separados do convívio social. Trata-se de uma incitação por meio da diferença racial, a partir de estratégias discursivas, do estabelecimento daqueles inimigos a serem neutralizados – precisamente pelo caráter de “desumanização” que a eles lhe são conferidos, isto é, de não poder considerar que há, ali, uma vida.

Diante de todo esse cenário, consideramos, portanto, que a violência gráfica em curso nas narrativas midiáticas seriadas não deve ser encarada apenas como um recurso estilístico. Há determinadas narrativas que se tornam mais “valorizadas” à medida que conseguem explorar a violência de corpos subalternos. Um exemplo mais recente é o caso da narrativa seriada “Them”, que retrata o trauma racial de uma família negra e que se utiliza de violência gráfica para realizar sua crítica. Manchetes divulgadas à época do lançamento de “Them” alertavam quanto ao seu conteúdo passível de traumatizar o/a espectador/a. No entanto, essas imagens não foram ocultadas, sendo inclusive disponibilizadas para que os/as internautas pudessem conferi-las15.

Assumir a perspectiva de Valencia (2010) nos permitiu refletir sobre como o gore está presente no currículo das narrativas midiáticas seriadas: no derramamento explícito de sangue, nas vísceras à mostra e nas formas criativas e violentas de se exterminar aqueles/as considerados/as impuros/as, indignos/as e perigosos/as. Para além do sentido visual, também é um modo de compreender que essa violência, ao incidir sobre determinados corpos, é performática. Logo, atribuir aos corpos dissidentes uma violência inelutável, da qual simplesmente não há como escapar, é um artifício performático. Trata-se do resultado de uma produção discursiva que tem reiterado determinados enunciados e concedido uma “essência” de violabilidade que é própria a esses sujeitos transgressores das normas. Em outras palavras, trata-se da suposição de um ferimento em nível da linguagem, uma consequência pelo fato de sermos seres linguísticos, constituídos em seus próprios termos (BUTLER, 2021).

Embora as argumentações de Valencia (2010) sejam notáveis para a nossa compreensão de como esse currículo tem operacionalizado a violência, não o significamos apenas em sua dimensão gore. Explorando essa violência performática e retomando outros subgêneros dos filmes de horror, passamos a significar o currículo das narrativas midiáticas seriadas como um currículo-slasher. Com isso, o que estamos argumentando é que se trata de um artefato cujas imagens perseguem, mutilam, violentam e exterminam as suas vítimas, notadamente sujeitos dissidentes, como uma forma de punir os seus atos considerados obscenos ou imorais.

No entanto, é preciso seguir o argumento de Hardt (2014, p. 12) de que “a resistência antecipa o poder”, não como um elemento extrínseco, mas como uma estratégia que se dispõe dentro da própria tessitura social, retroalimentando essa relação. Tal mobilização é própria dos filmes slasher, nos quais sempre há, em seu desfecho, uma “final girl” – aquela personagem costumeiramente feminina que enfrentará o assassino e sobreviverá à matança. Logo, embora esse currículo acione uma necropolítica que objetive eliminar os/as infames e obscenos/as, ele terá de enfrentar uma resistência tão inventiva, astuciosa e agitadora quanto o poder que exerce.

Se há vidas nesse currículo sendo alvo de tentativas de determinações, sendo alvo de buscas por normalizações, em sua possibilidade ou não de viver, se há sujeitos tomados sob o signo do irreconhecível, há também possibilidade de resistir, isto é, de estabelecer uma “força que move, atravessa, que torce e se alimenta de outras forças, com o intuito de aumentar a potência dos corpos” (PARAÍSO, 2016, p. 389). Como bem lembrado por Negri (2001, p. 68), “ao lado do poder, há sempre potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais baixo: este ponto é simplesmente lá onde as pessoas mais sofrem”.

4Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59257035. Acesso em: 12 nov. 2021.

7Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59327097. Acesso em: 19 nov. 2021.

9Disponível em: https://observatoriomortesviolentaslgbtibrasil.org/in%C3%ADcio. Acesso em: 19 nov. 2021.

10“Slasher” é um subgênero dos filmes de horror cujos enredos geralmente estão centralizados em protagonistas adolescentes sendo perseguidos/as até a morte por psicopatas, comumente desfigurados ou com apetrechos que dificultam a visualização dos seus rostos. Esses filmes também costumam ser filmados pelo ponto de vista do serial killer e suas ações de extermínio quase sempre são uma resposta moralista às supostas transgressões das protagonistas. Alguns exemplares mais conhecidos desse subgênero são as franquias “A Hora do Pesadelo”, “Sexta-Feira 13”, “Halloween” e “Pânico”.

15Disponível em: https://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-158417/. Acesso em: 6 set. 2021.

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Recebido: 30 de Julho de 2022; Aceito: 30 de Setembro de 2022

Evanilson Gurgel: Professor do Núcleo de Educação da Infância (NEI – CAp/UFRN). Doutor em Educação pela UFBA (2022) e Mestre em Educação pela UFRN (2018). Licenciado em Ciências Biológicas pela UFRN (2014) e em Pedagogia pela UNINTER (2022). Integrante do grupo ESCRE(VI)VER: Grupo de Estudos e Pesquisas com Narrativas em Educação/CNPq. E-mail: evanilsongurgel@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-2018-767X

Marlécio Maknamara: Professor associado I do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Educação pela UFPB. Licenciado em Pedagogia, Ciências Biológicas e em Geografia. Líder do Grupo ESCRE(VI)VER: Grupo de Estudos e Pesquisas com Narrativas em Educação/CNPq. E-mail: maknamaravilhas@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0003-0424-5657

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