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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dic 2022  Epub 16-Feb-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1718 

Artigos

Pedagogia do afeto: articulações entre docência, gênero e sexualidade no cinema

Pedagogy of affection: articulations among teaching, gender and sexuality in cinema

Pedagogía del afecto: articulaciones entre docencia, género y sexualidad en el cine

Éderson da Cruz1 
http://orcid.org/0000-0002-0376-9240

Maria Claudia Dal’Igna2 
http://orcid.org/0000-0002-0566-9606

1Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul, São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil

2Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil


Resumo

Este artigo retoma os principais resultados de uma pesquisa de Doutorado realizada no Sul do Brasil, que investiga de que modos gênero, em articulação com a sexualidade, constitui a docência no âmbito do filme Entre os muros da escola, filme francês, dirigido por Laurent Cantet (2008). A pesquisa dialoga com os campos dos Estudos de Gênero numa perspectiva pós-estruturalista, dos Estudos Queer, dos Estudos sobre Docência, dos Estudos sobre Cinema e dos Estudos Culturais. Por meio do procedimento metodológico de etnografia de tela, busca-se descrever e analisar o filme, a partir de uma perspectiva de que esse é um artefato cultural pedagógico, mas que se propõe a representar, de modo central, a escola, o currículo escolar e a docência em seu cotidiano. Os resultados aqui apresentados estão sustentados também por um projeto de pesquisa mais amplo, intitulado “A produção de sentidos sobre afeto, amor e cuidado na formação inicial docente sob a perspectiva de gênero”. Para este artigo, destaca-se que, a partir da análise do artefato cultural pedagógico em questão, pode-se sustentar a tese de que gênero, articulado à sexualidade, constitui um modo de ser docente que, ao ser colocado em exercício, opera constituindo o que se pode chamar de uma “pedagogia do afeto”.

Palavras-chave: docência; gênero; pedagogia do afeto

Abstract

This article resumes the main results of a Doctoral research carried out in the South of Brazil, which investigates how gender, in articulation with sexuality, constitutes teaching in the context of the film The Class, a French film, directed by Laurent Cantet (2008). The research dialogues with the fields of Gender Studies in a poststructuralist perspective, Queer Studies, Teaching Studies, Film Studies, and Cultural Studies. Through the methodological procedure of screen ethnography, the study seeks to describe and analyze the film, from the perspective that this is a pedagogical cultural artifact, but that proposes to represent, in a central way, the school, the school curriculum, and teaching in their daily routine. The results presented here are also supported by a broader research project entitled “The production of meanings about affection, love and care in initial teacher education from a gender perspective”. For this article, it is emphasized that from the analysis of the pedagogical cultural artifact in question, the supported thesis is that gender, articulated with sexuality, constitutes a way of being a teacher that, when it is putting into practice, it operates by constituting what can be called as “pedagogy of affection”.

Keywords: teaching; genre; pedagogy of affection

Resumen

Este artículo reanuda los principales resultados de una pesquisa de Doctorado realizada en el Sur de Brasil, que investiga de qué modos género, en articulación con la sexualidad, constituye la docencia en el ámbito de la película Entre los muros, película francesa, dirigida por Laurent Cantet (2008). La pesquisa dialoga con los campos de los Estudios de Género bajo una perspectiva postestructuralista, de los Estudios Queer, de los Estudios sobre Docencia, de los Estudios sobre Cine, y de los Estudios Culturales. A través del procedimiento metodológico de etnografía de pantalla, se busca describir y analizar la película, bajo la perspectiva de que esa es un artefacto cultural pedagógico, pero que se propone a representar, de modo central, la escuela, el programa educativo y la docencia en su cotidiano. Los resultados aquí presentados están apoyados también por un proyeto de pesquisa más amplio, intitulado “La producción de sentidos sobre afecto, amor y cuidado en la formación inicial docente bajo la perspectiva de género”. Para este artículo, se destaca que, a partir del análisis de la producción cinematográfica en cuestión, se puede mantener la tesis de que género, articulado a la sexualidad, constituye un modo de ser docente que, al ser puesto en ejercicio, opera constituyendo lo que se puede llamar de una “pedagogía del afecto”.

Palabras clave: docencia; género; pedagogía del afecto

1 TRAILER DO ARTIGO3

Este artigo retoma os principais resultados de uma pesquisa de Doutorado realizada no Sul do Brasil (CRUZ, 2019), desenvolvida com apoio financeiro parcial da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que investiga de que modos gênero, em articulação com a sexualidade, constitui a docência no âmbito do filme Entre os muros da escola (nome da versão brasileira) – Entre le murs –, filme francês, dirigido por Laurent Cantet (2008).

O estudo se inscreve nos campos de Estudos de Gênero numa perspectiva pós-estruturalista, Estudos Queer, Estudos em Docência e Estudos sobre Cinema e Estudos Culturais. A partir desses campos, a pesquisa foi desenvolvida utilizando o procedimento metodológico da etnografia de tela, que consiste num procedimento analítico em que o/a pesquisador/a interage com o filme como se estivesse participando da narrativa fílmica, buscando descrever e analisar o funcionamento deste artefato cultural pedagógico4 que aborda de modo central a escola, o currículo escolar e seu cotidiano. Os resultados aqui apresentados estão sustentados também por um projeto de pesquisa mais amplo, intitulado “A produção de sentidos sobre afeto, amor e cuidado na formação inicial docente sob a perspectiva de gênero” (DAL’IGNA, 2017). Para este artigo, destaca-se que, a partir da análise do artefato cultural pedagógico em questão (filme), pode-se sustentar a tese de que gênero, articulado à sexualidade, constitui um modo de ser docente que, ao ser colocado em exercício, opera constituindo o que se pode chamar de uma “pedagogia do afeto”.

Articulando as ferramentas teórico-metodológicas dos campos já explicitados, e por meio das análises, percebeu-se que: 1) gênero é uma forma de dar visibilidade à “Pedagogia do Afeto” (nesta perspectiva, o afeto é compreendido a partir das palavras de Spinoza, como “[...] as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (SPINOZA, 2007); e 2) a docência do homem cisgênero professor François Marin se institui a partir de uma heteronormatividade cisgênero5.

Como já referimos, no caso deste artigo, o foco das análises é a constituição da chamada “pedagogia do afeto”, a partir de um filme que aborda de modo central a escola, o currículo escolar, a docência e seu cotidiano.

2 PLANOS E CENAS: MATERIAL E METODOLOGIA

A opção pela análise do filme Entre os muros da escola se deu por meio do estabelecimento de critérios que foram sendo elencados ao longo da pesquisa, a fim de sustentá-la como original e também como algo que pudesse, de alguma forma, produzir conhecimentos sobre a docência exercida por homens nos anos finais do ensino fundamental.

Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, constatou-se que já havia – na época – diversos estudos que analisavam docentes brasileiros e estadunidenses em filmes, como ocorria, por exemplo, na pesquisa de Elí Fabris (2005), que, ao analisar filmes produzidos pelos cinemas brasileiro e hollywoodiano, desenvolveu a tese da “Pedagogia do Herói”, ou mesmo de pesquisadores e pesquisadoras que analisaram o cinema numa perspectiva de gênero, mas sem necessariamente olharem para a docência, como no caso da pesquisa de Patrícia Balestrin (2011).

Da mesma forma, o estudo buscou dar continuidade e contribuir com uma agenda de pesquisa sobre trabalho docente, gênero e sexualidade do grupo de pesquisa coordenado pela professora Maria Cláudia Dal’Igna, ao qual a tese está vinculada (2011). As pesquisas que a professora desenvolve e orienta se dedicam a investigar as relações entre docência, profissionalidade, afeto, amor e cuidado (SI LVA M., 2021); os modos pelos quais gênero atravessa e dimensiona o trabalho docente, e os caminhos da profissionalização; estudos que examinam a docência exercida por homens na educação de bebês e crianças pequenas (ZANETTE, 2014); e investigações que analisam a docência exercida por pessoas LGBTQIA+ (SILVA, J., 2021).

Além do que já foi referido, consideramos o filme Entre os muros da escola emblemático, pois o personagem principal se afasta de construções culturais de professores amorosos ou de professores abnegados. De diferentes modos, é abordada uma docência cambiante entre o exercício profissional e os desafios de atuar com jovens em uma periferia de Paris. Entre os muros da escola é uma proposta ousada do diretor Laurent Cantet, produzida a partir do livro de mesmo nome, do autor François Bégaudeau (2009). O filme contém um pouco mais de duas horas de duração, com uma estrutura de enredo e de produção inspirada no neorrealismo italiano, com a utilização de atores não profissionais, cenários reais e imagens com predominância de tons cinza. Além disso, o longa não possui roteiro, mas combinações entre diretor e atores/atrizes, o que lhe confere caráter de semidocumentário. Também, no papel do professor François Marin, está o próprio François Bégaudeau, que na vida real, além de escritor, é docente. Embora o filme fosse o artefato cultural pedagógico principal da pesquisa, para as análises, a investigação também lançou mão do livro, disponível em língua portuguesa.

François Marin, professor de francês do Colégio Dolto – escola localizada na periferia de Paris –, é “acompanhado” durante um ano letivo, exercendo a docência em uma turma de 8º ano. Há, no enredo, muitas situações complexas, organizadas principalmente no entorno das relações entre o professor, seus alunos e suas alunas6, o que confere ao longa um caráter singular e distante da idealização da docência.

O filme é marcado pela representação do embate entre as culturas francesa (que se impõe como dominante naquele cenário) e as demais culturas, representadas por estudantes imigrantes que frequentam as aulas. Isso reforça a afirmação de Tomaz Tadeu da Silva (2007) sobre o currículo, quando o autor afirma que:

Depois das teorias críticas e pós-críticas do currículo, torna-se impossível pensar o currículo simplesmente através dos conceitos técnicos como os de ensino e eficiência ou de categorias psicológicas como as da aprendizagem e desenvolvimento ou ainda de imagens estáticas como as de grade curricular e lista de conteúdos. Num cenário pós-crítico, o currículo pode ser todas essas coisas. (SILVA, 2007, p. 147).

Ao mesmo tempo, entendemos que a aproximação entre cinema e educação produz diferentes efeitos de sentido ao buscar representar sujeitos de um contexto educacional. Mesmo que o longa pudesse ser o mais próximo de uma sala de aula, não há ali uma intencionalidade pedagógica do mesmo modo que identificamos na escola e no currículo escolar; a pedagogia do filme é estabelecida na relação de leitura e de apreensão do longa que o telespectador realiza. Neste sentido, relacionamos a pesquisa ao campo dos Estudos Culturais por entendermos Entre os muros da escola como um artefato cultural pedagógico que se entrelaça à noção de currículo não escolar, pois o modo como o filme é interpretado está relacionado a um processo de negociação entre a narrativa fílmica e os/as espectadores/as como sujeitos ativos no processo. Como nos ensina Elizabeth Ellsworth (2009, p. 20), “[...] A maneira como vivemos a experiência do modo de endereçamento de um filme depende da distância entre, de um lado, quem o filme pensa que somos e, de outro, quem nós pensamos que somos [...]”.

A partir disso, compreendemos o cinema também como um artefato cultural pedagógico não escolar, que constitui modos de representar a escola, o currículo e a docência, em articulação com diversos elementos e marcadores sociais, dentre os quais estão sexualidade e gênero.

O conceito de gênero é tomado como um elemento organizador do social e da cultura, e é entendido com algumas particularidades que o impulsionam na referida pesquisa como ferramenta analítica, a partir de Joan Scott (1995) e de Dagmar Meyer (2011).

Jeffrey Weeks (2018) e Guacira Louro (2018) também conceituam a sexualidade na perspectiva do construcionismo social, afirmando que “[...] embora o corpo biológico seja o local da sexualidade, estabelecendo os limites daquilo que é sexualmente possível, a sexualidade é mais do que simplesmente o corpo” (WEEKS, 2018, p. 38).

Para Michel Foucault, em sua trilogia (FOUCAULT, 2020a, 2020b, 2020c) sobre a história da sexualidade, essa compreende um conjunto de discursos úteis para regulação do sexo, sendo um dispositivo histórico atravessado por estratégias de saber e de poder (2020a). Também, para Foucault (2020b), na contemporaneidade, a sexualidade é o elo que liga prazer a poder.

As autoras e os autores citadas/citados possibilitam-nos refletir sobre as conexões entre identidade, gênero e sexualidade na análise dos processos de regulação e de normalização dos sujeitos.

A partir dessas discussões, a pesquisa se propôs, também, a analisar o que podemos denominar como masculinidades. Nesse sentido, Robert Connell (1995) define masculinidade como um projeto, individual e coletivo, que é afetado por diferentes instituições e práticas. Para o autor,

[...] toda cultura tem uma definição da conduta e dos sentimentos apropriados para homens. [...] Esforçar-se de forma demasiadamente árdua para corresponder à norma masculina pode levar à violência ou à crise pessoal e a dificuldades nas relações com as mulheres. (p. 190).

Nesta mesma linha de raciocínio, Miguel Vale de Almeida afirma ser a dicotomia entre masculino e feminino “(no sentido de ‘macho’ e ‘fêmea’) [...] uma metáfora potente para a criação de diferença [...]” (1996, p. 161). Afirma o autor ainda que:

Masculinidade e feminilidade não são sobreníveis, respectivamente, a homens e mulheres: são metáforas de poder e de capacidade de acção, como tal acessíveis a homens e mulheres. Se assim não fosse, não se poderia falar nem de várias masculinidades nem de transformações nas relações de género. (sic).

Para o autor, dentre as masculinidades, no âmbito das culturas, há uma disputa para o estabelecimento de uma masculinidade hegemônica, e junto a essa – “[...] que muitas mulheres e homens têm vindo a travar nos movimentos feministas, gay e de novas masculinidades” –, outras formas de compreender e de tensionar essa hegemonia, e de pôr em evidência outras formas de ser e de viver essas masculinidades. Também uma observação feita pelo autor é a de que “[...] uma coisa é falar de masculinidade [...] independentemente de homens e mulheres [...], outra é falar, por assim dizer, da ‘masculinidade dos homens’” (p. 162). Isso possibilita realizar um refinamento conceitual na pesquisa, por assim dizer: analisou-se a masculinidade dos homens docentes.

Outro elemento importante a ser destacado na constituição da pesquisa foi o procedimento teórico-metodológico da etnografia de tela, que consiste numa imersão antropologicamente interessada no filme escolhido; trata-se de, quase que literalmente, realizar uma imersão (como no sentido etnográfico antropológico) no próprio filme, no sentido de captar, com o máximo de detalhes, todos os elementos que configuram aquele enredo.

Num primeiro momento de comparação com a etnografia antropológica, apresenta-se a vantagem de que não interrompemos – em nenhum momento – o (per)curso dos acontecimentos, e nossa “presença” nesse contexto é invisibilizada. Como desvantagem, porém, somos impedidos pelo tempo e pelo espaço de dialogar com os sujeitos envolvidos; apenas dialogamos, refletimos e nos posicionamos acerca deles e, desse único modo, eles se fazem presentes conosco.

Podemos, no entanto, tensionar essas (des)vantagens, ao considerar – conforme Patrícia Balestrin (2011 p. 3) – que

[...] o olho que me verá não é um olho só, não é um olho humano, mas um “olho-câmera”, um olho máquina que me vê quando não o vejo. A imagem que vejo projetada na tela é, de algum modo, aquela que este olho-câmera produziu para eu ver, este olho que me viu antes mesmo de eu pensar em vê-lo.

Assim, essa interação entre o olho humano e o olho-câmera possibilita que as personagens fílmicas interajam conosco por meio de olhares, gestos e ações que atravessam a própria vida do/da pesquisador/pesquisadora, a partir do momento em que esse/essa pensa, analisa e reflete o que está em jogo por meio daquela atuação (BALESTRIN, 2011, p. 4). Ismail Xavier (2008) também reflete sobre essa proximidade entre o filme e aquele que assiste, afirmando que olhar para uma cena na tela nos sugere a presença de um todo no espaço externo a ela.

Voltando à questão da relação entre sujeito, filme e etnografia de tela, esse exercício está ligado não apenas a assistir ao filme uma única vez, mas a compreender e buscar todas as informações associadas a ele (detalhes técnicos e de produção, contextualização) e também - claro - assisti-lo, pausada e repetidamente. Na esfera do prazer de assistir a um filme, somos obrigados a concordar com a autora, no sentido de que a etnografia de tela altera as formas de prazer visual, mas não o aniquila, uma vez que, mesmo se tratando de um trabalho analítico, ainda assim nos envolve e emociona.

Na prática, o procedimento teórico-metodológico da etnografia de tela consiste em assistir repetidas vezes a um determinado filme, utilizando como material um caderno de campo para anotações – como na etnografia tradicional –, com foco em tudo o que se vê, o que se ouve e também nas impressões que se tem a respeito da película. Também, para este procedimento, é importante buscar familiaridade com a linguagem do cinema, como abordam Edgar-Hunt, Marlande e Rawle (2013). Realizadas as considerações sobre a organização e construção da pesquisa, na próxima seção passaremos para a discussão das análises.

3 TAKES ANALÍTICOS: ENTRE OS MUROS DO FILME

Observemos, a seguir, um excerto de cena retirado das análises sobre o filme:

O que se vê: Marin está parado, de terno, na porta de sala de aula da turma 8º3ª. Primeiro dia de aula. Os alunos vêm caminhando, rostos e expressões variados. Marin, parado ao lado da porta que dá entrada à sala, cumprimenta os alunos que vão entrando com um “bom dia”. Percebe-se que a câmera está filmando Marin pelo lado de dentro da sala. Os alunos passam por ela cabisbaixos e, no fundo do cenário, há uma grande janela que dá mostra um prédio branco. Alguns alunos entram na sala e outros continuam seguindo pelo corredor. Em off, ouve-se vocês e conversas, cujos conteúdos não podem ser identificados, mas que são conversas dos alunos que vão chegando. Mudança de take, agora por trás de Marin, do lado de fora do corredor. Continua-se vendo os rostos dos alunos um pouco desfocados.

Marin: - Arthur, o boné! Bom dia, bom dia... (alunos passam por ele, agora com rostos um pouco mais nítidos, porém, não se percebe que nenhum dos que passam cumprimentam ou olham para Marin).

[...]

Fonte: Parte da Cena 2 do filme Entre os muros da escola (00:04:24 – 00:06:24), organizada pelos autores (2020).

Entre os muros da escola não é um filme que aborda a atuação docente pelo viés de um heroísmo, nem um longa que analisa um sistema educacional cuja atuação docente se dê pelo viés do resgate social e da valorização da autoestima dos estudantes.

Ao mesmo tempo, o professor Marin, quando observa seus alunos/suas alunas, interage com eles/elas manifestando maior preocupação em que tirem o boné e o capuz, ou em que não percam um minuto sequer de aula, ou ainda, que levantem a mão ao se dirigirem a ele ou ao público da sala antes de falar. Quando olhamos para esse fato isoladamente, talvez isso possa parecer desconectado da realidade brasileira – sem generalizar, obviamente, mas considerando a dimensão salvacionista de nossa educação – e confundamos a cobrança persistente das normas com autoritarismo e não com autoridade. Porém, ao buscarmos entender melhor o contexto de relação que adultos franceses/adultas francesas estabelecem com as crianças, compreendemos que, culturalmente, a educação francesa, escolar e não escolar, está pautada na intencionalidade de que a principal voz seja sempre a do adulto/da adulta. Pâmela Druckerman (2012), embora não apresente um livro que esteja vinculado a uma pesquisa acadêmica, olha para essa relação a partir de sua vivência como jornalista estadunidense correspondente em Paris, estabelecendo um contraponto com a educação americana, chegando a afirmar que, na França, a noção de educação infantojuvenil passa pelo estabelecimento contínuo de regras e também pela presença dos adultos/das adultas como aqueles/aquelas que sabem o que é melhor para as crianças.

Se a escola atua como (re)produtora da sociedade e da cultura, conseguimos entender a transposição que ocorre da educação não escolar, familiar, doméstíca, para a educação escolar, que, além do ensino, ocupa-se a socializar os sujeitos a partír da lógica de uma educação semelhante àquela realizada em casa.

Contudo, analisando as manifestações que ocorrem entre o professor Marin e seus alunos/suas alunas, percebemos que o conceito de afeto de que estamos tratando ainda tem sido pouco abordado no contexto das pesquisas brasileiras, o que pode levar – dada a maior ênfase das pesquisas que discutem o afeto ao aproximá-lo da amorosidade – a supor que, na relação entre Marin e seus alunos/ suas alunas, não haja afeto. Porém, se considerarmos o conceito de afeto mais próximo da noção espinosiana e da noção de afficere, perceberemos que o afeto é um elemento constante nas prátícas docentes de Marin, de modo que, dada sua incidência, opta-se por denominar o que encontramos durante as análises de pedagogia do afeto. Examinando o conceito de afeto como afecção, Vladimir Safatle (2016) explica que,

[...] se amássemos tanto os nossos corpos como são, suas afecções definidas e sua integridade inviolável, com sua saúde a ser preservada compulsivamente, não haveria arte. Há momentos em que os corpos precisam se quebrar, se decompor, ser despossuídos para que novos circuitos de afetos apareçam. (p. 36).

Gênero e sexualidade são tomados aqui, como já referimos, como elementos que operam não apenas como reguladores dos corpos, mas das condutas, de modo a constítuir os modos como são expressadas as afecções nas relações entre os sujeitos. Essa interferência atravessa e dimensiona, no longa, a noção que podemos ter acerca do afeto, compreendido aqui como algo que não deve ser visto apenas como da ordem do amor, mas também, especialmente, no caso do objeto de análise, como algo da ordem dos conflitos e das disputas.

Chamamos esse afeto de pedagógico porque esse conceito (pedagogia), a partir de Fabris, Dal’Igna e Klaus (2013), é compreendido como ciência que estuda as práticas educativas em espaços escolares e não escolares. No longa, percebemos que gênero sustenta essa pedagogia, pois as manifestações de afeto apresentadas ao longo do enredo não ocorrem desconectadas do contexto da turma ou mesmo da tentativa de chamar a atenção da maior parte possível dos sujeitos/das sujeitas ali envolvidos/envolvidas.

Unida à noção de pedagogia como uma forma de preocupação com práticas de ensino, essa pedagogia generificada rejeita uma certa amorosidade, o afectio, lançando mão do afficere como forma de manutenção dos corpos para mostrarem-se vivos, resistentes e, acima de tudo, insubmissos7.

Retornando às análises, no excerto apresentado anteriormente (parte da Cena 2), observa-se que Marin se preocupa com essa vigilância desde a entrada dos alunos/das alunas na sala, quando os/as observa um a um/uma a uma entrando na sala, quando solicita a Arthur que retire o boné, ou quando chama a atenção da turma pela demora na organização. Se analisarmos essa forma de ser do professor com a conduta brasileira, não perceberemos grandes diferenças de postura. Talvez, para um primeiro dia de aula, no entanto, professores brasileiros/professoras brasileiras trabalhem a partir de atividades de integração, de técnicas de sensibilização e de outros recursos que estimulem uma afetividade mais espontânea, antes de realizarem as combinações pedagógicas acerca das regras que a escola considera importantes de serem seguidas. Porém, nessa postura do professor, podemos inferir que há uma necessidade de sobressair-se, pedagogicamente – pelo menos naquele momento – sobre os demais corpos masculinos, principalmente, e também dos femininos, já que, analisando o contexto da cena, Marin não demonstra muito interesse em observar o que as alunas estão vestindo naquele momento de entrada na sala.

Há, aí, uma tentativa de “trazer para a norma” os corpos masculinos (já que o recado é dado em voz alta, permitindo que os outros meninos escutem) como uma forma de manutenção do comportamento submisso de uma forma de masculinidade generificada por outra que representa o olhar do colonizador (Marin), já que Arthur, assim como a maioria dos alunos da turma, é oriundo de uma nacionalidade, cultura e etnia à parte da francesa.

Uma hipótese para o olhar desatento de Marin em relação às meninas neste primeiro momento também pode estar relacionada à forma como são naturalizadas as relações de gênero entre meninos e meninas no contexto da sala de aula. As meninas, dentro dessa norma de gênero, apresentariam, inicialmente, maior docilidade em relação aos meninos, no que diz respeito à condução das condutas dentro da sala de aula. Como afirma Dal’Igna (2007), ao investigar as normas de gênero e de sexualidade na escola, “na medida em que as normas não são problematizadas, elas funcionam para produzir e reiterar as noções de masculinidade e feminilidade” (p. 248).

Outro fato a ser destacado no excerto, no entanto, é que Marin interage com as alunas, cumprimentando-as. Seu tom de voz, embora pareça igualmente afável com todos, não chega a ser considerado acolhedor, pois não se percebe o professor esboçar reação alguma de entusiasmo ou sorriso, nem forma alguma de recepção calorosa que fuja a uma espécie de protocolo de insensibilidade.

Ao mesmo tempo, cabe destacar que a resposta dos alunos/das alunas em relação a esta postura docente é a primeira manifestação discente dessa pedagogia do afeto, uma vez que não o correspondem, nem sequer com olhares e, principalmente, quando se encontram buscando lugares na sala, quando conversam calorosamente e quando, juntos/juntas aparentam demonstrar desinteresse por ouvir as solicitações do professor. Neste sentido, só foi possível perceber a existência de uma pedagogia do afeto, na perspectiva que procuramos abordar, porque a ação dos sujeitos em sala de aula posiciona-se de forma contrária ao afectio, mesmo que não estejamos compreendendo afectio e afficere como conceitos contrários.

Não que a negação do afectio ocorra o tempo todo ao longo do curta; porém, para ser “visto” pelo grande grupo, Marin mostra-se, desde o início da aula, negando a afetividade amorosa na busca por manter a “ordem” na sala, por ser respeitado e ouvido naquele espaço. O mesmo acontece em outros excertos, como a seguir.

[...]

(Câmera mostra o rosto de Wey. Traveling em direção a Esmeralda).

Voz de Marin: - Sim, Esmeralda?

Esmeralda: - Todo mundo sabe o que significa “austríaco”. (Mudança de take. Câmera mostra Marin, com um sorriso discreto nos lábios, encolhendo o pescoço). São os habitantes da Áustria.

Marin: - Sim, só que o Wey não sabe e... (mudança de take, mostrando os alunos. Destaca-se a voz de Esmeralda).

Esmeralda: - Tudo bem, mas é o único aqui que não sabe.

(Mudança de take. Câmera em Marin).

Marin: - Certo, já entendemos. Mas ainda há pouco [você] não sabia o que era “enganador”. Nesse caso, acho que você não pode falar muito.

(Mudança de take para Esperalda, que observa Marin esboçando um sorriso).

Esmeralda: - Sim, mas acho que “austríaco” todo mundo sabe o que significa.

(Mudança de take. Câmera em Marin, que olha para Esmeralda).

Marin: - Sim, mas tem sempre algum imbecil...

(Mudança de take. Câmera em Esmeralda).

Esmeralda: - Imbecil é você.

Fonte: Cena 4 do filme Entre os muros da escola (00:09:39 – 00:09:59), organizada pelos autores (2020).

Nesse anterior, mais uma vez, percebe-se o exercício da pedagogia do afeto, quando Marin tenta justificar o fato de Wey não saber o significado do termo “austríaco” em relação à observação feita por Esmeralda.

Há, nessa cena, uma forma de exercício da pedagogia do afeto um pouco diferente em relação ao excerto anterior, pois Marin posiciona-se a favor de Wey, contrariando as duas meninas. Enquanto, para um, a pedagogia do afeto se aproxima do afectio, para as outras, ela o rejeita. Temos, nessa situação, um professor homem cisgênero francês que, ao defender um aluno homem cis-gênero, exerce uma forma de pedagogia do afeto na relação com duas alunas, uma francesa e outra africana (cuja nacionalidade não é mencionada). Aqui, o movimento realizado por Marin é de prestigiar a participação de Wey na aula, fato menosprezado pelas duas garotas, por ser considerado trivial. Como afirma Dal’Igna (2007, p. 248),

[...] torna-se importante examinar em que medida a escola está implicada com a produção de diferentes modos de conceber e de viver o gênero e a sexualidade, modos que definem, entre outras coisas, aquilo que entendemos por [currículo e desempenho escolar].

Além disso, podemos citar a discussão que Marlucy Paraíso realiza sobre a relação entre gênero e currículo, pois, para a autora, o currículo

[...] governa condutas, inclui e exclui, hierarquiza, normaliza e divide os sujeitos em quem sabe e quem não sabe, quem é bom e quem é mal aluno, quem tem bom e quem tem baixo desempenho, quem segue e quem não segue as regras. (PARAÍSO, 2010, p. 1).

Pela observação dos modos como o currículo é posto em prática no longa, percebe-se que há essa separação, que se estabelece a partir dos padrões de uma visão centralizada num modo de ser específico. Observemos um último excerto para análise, apresentado a seguir.

[....]

(Mudança de take. Câmera em Marin.)

Marin: - Souleymane, por que não está anotando as palavras?

(Mudança de take. Câmera em Souleymane, que segura um colar e o põe na boca)

Souleymane: - Esqueci minhas coisas.

(Mudança de take. Câmera em Marin, que o observa e que se dirige à turma).

Marin: - Alguém poderia lhe emprestar uma folha? (Mudança de take. Câmera em Souleymane).

Souleymane: - Eu posso copiar em casa. (Mudança de take. Câmera em Marin, que o olha com ar de sério. Marin continuar falando da frente da sala).

Marin: - Claro, imagino que sim. Então essa é a sua estratégia (Marin balança a cabeça afirmativamente e vai se movendo pela sala). Não faz nada na aula, mas faz tudo em casa (mudança de take. Câmera em Souleymane. Percebe-se uma menina, com rosto desfocado, que observa Marin).

Souleymane: - Estou falando sério.

Voz de Marin: - Se pudesse ter certeza que você realmente trabalha em casa...

Souleymane (o interrompe): - Não se preocupe.

Voz de Marin: - Eu concordaria...

Souleymane: - Obrigado.

Voz de Marin: - Bem, vamos passar a “suculento”. É uma palavra que eu gostaria (mudança de take. Câmera em Marin, que está de costas, para o quadro-negro anotando algo e se vira novamente para os alunos) de que vocês tentassem adivinhar o significado (mudança de take. A câmera mostra uma aluna, figurante, que segurando uma tesoura rosa em uma das mãos, observa ambas sem prestar atenção). O que há em “suculento”?

Voz de Bourbacar: - Suco...

(Mudança de take. Câmera mostra parte da turma. Percebe-se Wey, Khoumba e Boubacar).

[...]

Khoumba: - E por que é que você não para de dizer Bills (percebe-se, no mesmo ângulo, Esmeralda olhando-o com ar de deboche)?

Voz de Marin: - Que Bills

Khoumba: - Bill, o nome.

(Mudança de take. Câmera em Marin, que se vira para o quadro-negro à procura do nome citado por Khoumba).

Voz de Khoumba: - Você sempre usa nomes estranhos.

Marin (olha para os alunos): - Não é nada estranho. É o nome de um presidente americano recente.

(Mudança de take. Câmera em Khoumba).

Khoumba: - Mas por que é que não usa Aiïissata ou Rochad ou Ahmed ou...

Esmeralda: - Usa sempre nomes de patos [idiotas].

(Mudança de take. Câmera em Marin, que olha para elas com cara de bravo e, ao mesmo tempo, confuso):

Marin: - Nomes de quê?

(Mudança de take. Câmera em Esmeralda)

Esmeralda: - De “babtou” [branquelos].

(Mudança de take. Câmera em Marin).

Marin: - O que é um “babtou”?

(Mudança de take. Câmera em Esmeralda).

Esmeralda: - “Babtou”, franceses, caras de papel higiênico.

Voz de Marin: - Você não é francesa?

Esmeralda: - Não, não sou francesa.

(Mudança de take. Câmera em Marin, que faz feição de desdém)

Marin: - Ah, não sabia.

(Mudança de take. Câmera em Esmeralda. Também se vê Khoumba e Boubacar no enquadramento).

Esmeralda: - Sou, mas não tenho orgulho disso.

[...]

Esse excerto de cena traz outros elementos, que reforçam a presença da pedagogia do afeto dentro da sala de aula de Marin, pois, se de um lado temos um professor que assume uma postura exigente, estando mais preocupado que os alunos/as alunas compreendam as regras, secundarizando o conhecimento do currículo escolar, também percebemos que, a partir desse posicionamento, os/as estudantes respondem a esses estímulos por meio de uma espécie de resistência a isso, o que configura que a pedagogia do afeto, como afficere, está posta em funcionamento.

Aqui, primeiramente, o que está em jogo é a condução da conduta de Souleymane, principalmente quando Marin se dá conta de que o aluno não está atendendo a suas expectativas. Ao perceber que Souleymane não está prestando atenção na aula e que não está utilizando seu material, Marin chama-lhe a atenção. Porém, segundo o aluno, tudo o que foi visto durante a aula, ele retomaria em casa. Marin, mesmo parecendo concordar com a proposta de Souleymane, demonstra descontentamento, o que - a meu ver - contribui para estabelecer a atmosfera de hostilidade que se manifesta nos minutos seguintes de gravação.

A maneira como Marin se reportou a Souleymane foi o pressuposto necessário para que Cherif e, posteriormente, Khoumba e Esmeralda, respondessem ao professor, tentando retirar o crédito de seu direito de ensinar, assim como ele havia demonstrado desacreditar no aluno. Diante disso, Marin foi questionado, primeiramente, sobre a escolha de seu exemplo de alimento, para ensinar aos alunos/às alunas o significado do termo “suculento”.

Há um fato interessante a ser observado por meio da pedagogia do afeto colocada em prática: o principal mobilizador do afficere nas relações entre professor e discentes se dá por meio da (quase) ausência do afectio, tornando perceptíveis as relações de gênero.

Retomando o excerto, ao utilizar como exemplo de alimento o cheeseburger, imediatamente Cherif manifestou-se, afirmando ser esse tipo de lanche “uma porcaria”. O clima da sala de aula esquenta, e isso pode ser percebido pelos sons de risos dos/das demais. Marin, por sua vez, tenta não perder a compostura e manter a intencionalidade pedagógica ao afirmar que, a partir do que Cherif mencionou, todos/todas poderiam ter uma ideia sobre o significado da palavra estudada. Mas, naquela altura, a intencionalidade da negação do afeto e também da aprendizagem era maior. E Esmeralda e Khoumba já haviam encontrado outro motivo para continuar a disputa de poder com Marin.

Dessa vez, o motivo do questionamento não era o cheeseburger ou o modo como Marin se reportou a Souleymane, mas a escolha dos nomes que o professor utilizava quando criava exemplos. Segundo as meninas, Bill não era um nome apropriado, por ser americano e por, na fala de Esmeralda, representar “franceses caras de papel higiênico”. Temos, aqui, uma menina francesa tensionando o estereótipo de francês. Aqui, é possível também refletir que a observação de Esmeralda se caracterizava por aquilo que denominamos “alfinetada” em relação a Marin: o professor de francês, a língua oficial do país, numa sala cheia de imigrantes, etnias e sotaques diversificados, representava esse estereótipo francês, haja vista estarmos falando de um homem branco, aparentemente heterossexual, de olhos e cabelos claros. Tudo que, no campo étnico, Souleymane, Cherif, Khoumba e Esmeralda não eram.

Cabe olharmos para a pedagogia do afeto como um elemento que, articulado com as relações de poder que se estabelecem por meio das relações de gênero, raça e etnia, dentre outras, constitui o currículo escolar. Temos, nesse excerto de cena, o currículo caracterizado pelo ensino de um determinado conteúdo e também de uma disciplina, ou - no caso -, de disciplinas.

O que está em questão aqui, por meio das disputas de poder, que “criam” essa pedagogia do afeto é, justamente, a tensão entre o mundo ocidental francês e o mundo árabe, pois as meninas não querem nomes de, como disse Esmeralda, “babtous”, mas nomes que representem e simbolizem o mundo afro-árabe.

Ressaltamos, no entanto, que, para ambos os lados (professor e alunas), o mundo francês e o mundo árabe estão sendo representados por figuras masculinas, já que o exemplo dado por Marin é um nome de homem, e os exemplos trazidos por Khoumba e por Esmeralda também o são. Sobre isso, talvez se possa destacar que o que as duas alunas estão negando, naquele momento, por meio da manifestação da pedagogia do afeto, não é a hegemonia masculina ou, trazendo o conceito de Connel (2013), uma manifestação de masculinidade hegemônica; o que negam, sim, é a masculinidade que Marin representa, masculinidade essa que assume caráter de pseudoassexuada, por priorizar a disciplina e o conhecimento escolar.

No filme, constantemente as aulas tornavam-se campos de embate, não necessariamente em torno dos conhecimentos, mas, mais do que isso, em torno de disputas de poder, que se materializavam por meio das ações de sujeitos cujas posturas caracterizavam uma pedagogia do afeto. Mais do que simplesmente recusar o outro/a outra nesses embates, por meio da pedagogia do afeto, os sujeitos “conduziam” ou buscavam conduzir o andamento das aulas, de modo que essa pedagogia, no filme, era um elemento cambiante, ora conduzido por alunos/alunas, ora por Marin.

Por isso, a pedagogia do afeto não pode ser considerada algo relacionado à formação inicial de docentes, mas algo que é sustentado por outros pressupostos e atravessamentos, os quais remetem a questões de gênero, conforme procurei mostrar nesta subseção. Além disso, a pedagogia do afeto tensiona que a única forma de afeto que exista dentro da sala de aula seja aquela caracterizada pela linguagem sentimental, “[...] muitas vezes entendida como único atributo necessário para o exercício da docência”, como afirma Carvalho (2014, p. 233).

O autor caracteriza o afeto como um imperativo que sustenta um conjunto de discursos que se proliferaram na docência por meio de pedagogias com ênfase psicológica, como forma de caracterizar um bom professor ou uma boa professora (2014). Porém, nosso tensionamento procura se distanciar desse imperativo, de que um bom professor ou uma boa professora precisem, obrigatoriamente, ter sua prática pedagógica atravessada por esses discursos, pois, para nós, François Marin é um professor de “carne e osso”, cuja docência vai sendo constituída por meio de erros e de acertos.

Além disso, em Marin, vemos um sujeito comprometido com a sala de aula, que planeja, avalia, defende seus alunos/suas alunas quando necessário e que cumpre prazos. Porém, no contexto desse imperativo do afeto, Marin representa uma descontinuidade, pois não possui linguagem, comportamento ou postura afetiva, nem carismática. Sua ação, pelo contrário, é sustentada pelo que chamamos de pedagogia do afeto.

4 CENA FINAL

Ao longo das análises, verificamos que, ao olharmos com cuidado para a relação que vai sendo estabelecida entre o professor Marin e seus alunos e alunas, há um atravessamento de relações de gênero que ultrapassam as noções binárias de bem e mal, de certo e errado ou mesmo de uma polarização cristalizada, mas que se modificam constantemente, constituindo a pedagogia do afeto.

Embora seja um filme, Entre os muros da escola nos ensina que, no cerne da produção de uma pedagogia do afeto, gênero, articulado à sexualidade e a masculinidades, atua fortemente na regulação dos corpos e nas formas de ser e de viver no contexto das aulas do professor François Marin, e isso só se torna possível a partir da movimentação de um currículo não escolar, representando um currículo escolar, num filme em interação com o telespectador. Nessa perspectiva, não há como estabelecer padrões de regulação ou mesmo atribuir juízo de valor às atuações de Marin e de seus alunos e alunas, pois todos/todas estão imersos/imersas nas mesmas relações de poder que se articulam quando a pedagogia do afeto é posta em ação.

Desta forma, podemos compreender e sustentar que, a partir das análises e reflexões realizadas com base no material empírico, no longa Entre os muros da escola, gênero, em articulação com sexualidade, torna possível a constituição de uma determinada forma de ser docente que, colocada em exercício, opera constituindo o que podemos denominar, a partir da contribuição spinoziana, de uma “pedagogia do afeto”. Esse entendimento abre potencialidades para que se investigue a forma como esses mesmos e outros construcionismos sociais operam na constituição dessa pedagogia a partir do exercício docente em contextos escolares e outros contextos não escolares. Assim, encerramos este texto, não com o intuito de ter respondido a todos os questionamentos sobre o tema abordado, mas de manter viva a potência de desnaturalizar aquilo que, pela ausência da suspeição, é considero normal e natural para a docência e para o currículo.

3Pelo fato de o artigo considerar o filme como objeto de análise e, para tal, assim como a tese que o precedeu, buscar apropriar-se da linguagem do cinema, neste artigo, assim como ocorre na tese, optamos por nomear as seções de forma metafórica em alusão a esta linguagem.

4Por artefato cultural, estamos entendendo que o filme é um produto da cultura com componente pedagógico, que é constituído e que constitui representações por meio de significados que circulam em nossa sociedade. Com isso, neste artigo, Entre os muros da escola será compreendido como um artefato cultural pedagógico (CAMOZZATO, 2018).

5Por heteronormatividade cisgênero, estamos compreendendo a junção de dois processos (heteronormatividade e cisgeneridade), que operam como uma matriz de práticas performativas e regulatórias de gênero e de sexualidade (CRUZ, 2019).

6Pela aproximação que este texto tem com os campos dos Estudos Feministas e Estudos de Gênero, será adotada a flexão masculino/feminino todas as vezes em que essa flexão for relevante para a discussão realizada. Da mesma forma, para dar visibilidade a autores e autoras no texto, na primeira vez em que houver a citação, serão referidos nome e sobrenome dos pesquisadores/ das pesquisadoras sendo, à medida que houver nova citação, adotada a escrita do sobrenome e do ano de publicação da obra.

7Destacamos trabalhos que discutem e tensionam, nesta perspectiva, os conceitos de amor e de cuidado relacionados à docência, como as teses de Miriã Silva (2021b) e de Cláudio Mandarino (2020).

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Recebido: 29 de Agosto de 2022; Aceito: 04 de Outubro de 2022

Éderson da Cruz: Doutor e mestre em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Especialista em Gestão Escolar pela Faculdade de Educação São Luís. Graduado em Letras pela UNISINOS, e em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Docente nas redes pública e privada do Rio Grande do Sul, desde 2009. E-mail: prof.dr.edersoncruz@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-0376-9240

Maria Claudia Dal’Igna: Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduada em Pedagogia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professora dos cursos de graduação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISINOS. Coordenadora do Lola - Grupo de Pesquisa em Trabalho Docente, Gênero e Sexualidade (Unisinos/PPGEdu/CNPq). E-mail: mcdaligna@hotmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-0566-9606

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