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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dez 2022  Epub 16-Fev-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1730 

Artigos

O currículo das ruas: instâncias efêmeras, móveis e de luta pelo direito à cidade

The street curriculum: ephemeral, movable and fight instances for the right to the city

El currículo callejero: efímero, móvil y de lucha por el derecho a la ciudad

Glaucia Carneiro1 
http://orcid.org/0000-0002-2236-223

Marlucy Alves Paraíso1 
http://orcid.org/0000-0002-3542-4650

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil


Resumo

O artigo traz resultados de uma pesquisa realizada para a tese de doutorado que investigou o que chamamos de Currículo das Errâncias com a Pedagogia da Hesitação. A partir de procedimentos retirados da Filosofia da Diferença, de Gilles Deleuze, da noção de Corpos em Aliança, de Judith Butler, este artigo detalha alguns signos desencadeados pelo currículo clandestino da rua, mostrando como funcionam e quais os encontros/saberes que provocam. O argumento desenvolvido é que aprender da/na rua exige, acima de tudo, estar sensível às variações materiais que ocorrem em nosso imaginário. O artigo mostra que muito se aprende com o corpo em trânsito pelas ruas quando o corpo consegue se abrir aos signos políticos, desencadeados pelos artivismos urbanos.

Palavras-chave: currículo; cidade; artivismo

Abstract

The article brings the results of research carried out for the doctoral thesis that investigated what we call the Curriculum of Wandering with the Pedagogy of Hesitation. Using procedures taken from Gilles Deleuze’s philosophy of difference, from Judith Butler’s notion of bodies in alliance, this article details some signs triggered by the clandestine street curriculum, showing how they operate and what encounters/knowledge they provoke. The argument developed is that learning from/on the streets demands, above all, to be sensitive to the material variations that take place in our imagination. The article shows that a lot is learned from the body in transit through the streets when the body is able to open itself to political signs, triggered by urban artivisms.

Keywords: curriculum; city; artivism

Resumen

El artículo trae resultados de una investigación realizada para la tesis doctoral que investigó lo que llamamos el Currículum de las Andanzas con la Pedagogía de la Hesitación. Utilizando procedimientos tomados de la filosofía de la diferencia, de Gilles Deleuze, de la noción de cuerpos en alianza, de Judith Butler, este artículo detalla algunos signos desencadenados por el currículo callejero clandestino, mostrando cómo operan y qué encuentros/conocimientos provocan. El argumento desarrollado es que aprender de/en la calle exige, sobre todo, ser sensibles a las variaciones materiales que se producen en nuestra imaginación. El artículo muestra que mucho se aprende del cuerpo en tránsito por las calles cuando el cuerpo es capaz de abrirse a los signos políticos, desencadenados por artivismos urbanos.

Palabras clave: curriculum; ciudad; artivismo

1 NOTÍCIAS DE LUGAR ALGUM: O CURRÍCULO CLANDESTINO DAS RUAS

Notícias de Lugar Nenhum é um livro que foi escrito em 1890, pelo romancista William Morris, reeditado pela Editora Expressão Popular (2019), em parceria com a Fundação Perseu Abramo. Trata-se de um instrumento de imaginação política. Imaginar como poderia ser uma outra cidade, um outro tipo de sociedade, pode ser bastante útil. O livro narra a história imaginária de alguém que adormece e acorda em Londres, vai passear e descobre que tudo mudou. É outro mundo, onde já não existe capitalismo, dinheiro e exploração, e a natureza volta a florescer. É feito também com bastante humor. Morris (2019) afirma, por exemplo, que não precisamos mais de parlamentos. Aliás, no livro, o edifício do parlamento inglês agora serve de estoque de adubo para a agricultura. Esse é o feitio desta obra, que é um dos grandes livros da história das utopias em meio a tanto livros e cenários distópicos que conhecemos.

É importante ressaltar que são as pessoas que vivem naquele mundo novo que contam ao visitante (que veio do passado) como eles estabeleceram essa nova realidade. Contam como tiveram de fazer uma revolução radical para chegar onde chegaram. No caso de Notícias de Lugar Nenhum, mais do que um instrumento de análise política, a obra é um poderoso instrumento de imaginação. Imaginar como poderia ser uma outra cidade, como viveriam as pessoas fora do capitalismo, é uma maneira de fabular possíveis. Em vez de fazer isso de forma abstrata ou puramente teórica, Morris (2019) oferece essa forma viva que é a arte, no caso, a literatura, o romance.

Neste artigo, realizamos um exercício parecido com o que é feito em Notícias de lugar nenhum: imaginamos outros possíveis para os currículos e para a cidade. Nesse exercício, desejamos narrar as potência dos currículos das ruas, com suas idiossincrasias, estranhamentos e sutilezas. Mostrar detalhes de alguns desses currículos clandestinos e menores que, frequentemente, são invisibilizados pela correria do dia a dia nas cidades. Um currículo-menor, como explicita Paraíso (2020), “aposta nos focos de invenção e resistência que emergem em processos de exterioridade ao Estado” (p. 32). Ele é feito no embate com “o currículo-maior que tem sede de controle, prescrição e normalização” (PARAÍSO, 2018, p. 36).

Reinvenção é o nome que damos para a possibilidade de olhar sob tantas outras perspectivas para um mesmo objeto, uma mesma situação. Então, por que não fazer isso com a cidade? Por que não fazer isso com os currículos? Insuflar uma grande e nova leveza lúdica? Existe uma multiplicidade de currículos de rua, currículos menores que rasgam o currículo maior da cidade em uma infinidade de pedaços. Esses currículos têm em comum o que denominamos neste artigo de política do encontro. Isso significa que, quer ligados ou não a algum tipo de artivismo urbano2, muitos signos de luta e resistência estão sendo disparados por aí pelas ruas das cidades. Ocorre, portanto, que os currículos da rua – diferentemente dos currículos escolares que são “máquinas a ensinar” (GIROUX, 1999) – não se propõem a ensinar ninguém e muito menos resolver a vida de quem quer que seja. Nesse sentido, o encontro com os signos das ruas, traduzidos em gestos, performatividades, emissão de cores, luminosidades e sons, enuncia o que não precisa ser dito, mas, sim, compartilhado.

Os currículos das ruas são clandestinos, fragmentados e fugazes, de existência temporária e incerta. São currículos que curiosamente não são planejados para ensinar, mas que ativam muitos aprenderes, como mostramos neste artigo. O objetivo deste artigo é, então, detalhar alguns signos disparados por esses currículos clandestinos, mostrando como operam e que encontros/saberes provocam. O argumento aqui desenvolvido é o de que aprender com/nas ruas é, antes de tudo, ser capaz de estar sensível às variações materiais que têm lugar em nossa imaginação, isto é, aprende-se muito com o corpo em trânsito pelas ruas quando o corpo é capaz de abrir-se aos signos políticos, disparados pelos artivismos urbanos. Para desenvolver tal argumento, nós nos inspiramos em procedimentos extraídos da filosofia da diferença, de Gilles Deleuze, da noção de corpos em aliança, de Judith Butler, e parte dos resultados da tese de doutorado que investigou o que chamamos de Currículo das Errâncias com a Pedagogia da Hesitação.

O presente artigo encontra-se, portanto, dividido em três partes. Na primeira, discutimos as Pedagogias do Controle e as potências libertadoras dos artivismos que povoam o Currículo da Cidade3. Isso porque entendemos que a cidade pode ser lida como um currículo que ensina, que possui uma pedagogia e que também faz parte das lutas pelos processos de formação. Na segunda parte, mostramos como é possível aprender com os saberes clandestinos, disparados pelos Currículos das Ruas, mediante três linhas de força. Entendemos que os currículos das ruas fazem parte do currículo da cidade em sua maquinaria de ensinar. Na terceira parte, apresentamos alguns desdobramentos do agenciamento entre o campo dos currículos e a política dos encontros fortuitos, fugazes e estranhos que ocorrem nas ruas, com o objetivo de mostrar como o aliançar, produzido pelos artivismos que combatem a precariedade induzida, pode reforçar a luta por mais justiça: econômica, social e política nas cidades.

2 PEDAGOGIAS DO CONTROLE4 E AS POTÊNCIAS LIBERTADORAS DOS ARTIVISMOS NO CURRÍCULO DA CIDADE

As cidades são verdadeiras plataformas de educação dos corpos. As cidades investem muito nos corpos. De acordo com as mais diversas imposições culturais, os corpos são construídos para se adaptarem aos critérios econômicos, estéticos, higiênicos e morais das cidades onde circulam e habitam tais corpos. As imposições de saúde, vigor, vitalidade, juventude, beleza e força são distintamente significadas e diferentemente atribuídas aos corpos nas ruas. Por meio de muitos processos, cuidados físicos, exercícios, roupas, odores e adornos, inscrevem-se as marcas daquilo que chamamos de “identidade” e, que, consequentemente, tornam-se dispositivos que operam como formas de diferenciação dos corpos nas ruas.

De inúmeras maneiras, o modo de vida nas cidades contribui com a educação do nosso jeito de perceber e decodificar todas essas marcas. Desde cedo, aprendemos a classificar as pessoas pelas formas como se apresentam corporalmente, pelos comportamentos, gestos que empregam e pelas várias maneiras como se apresentam nas ruas. Tudo isso implica na instituição de hierarquias, ordens e desigualdades que estão, sem dúvida, na base da redistribuição de poder na/da vida urbana.

As corpografias urbanas5 são, também, frequentemente transformadas em mercadorias intercambiáveis, mediante um conjunto de arranjos em que indivíduos são reduzidos a consumidoras/consumidores, cuja lógica operante é a da produção e circulação de produtos. Por outro lado, homens e mulheres não brancos/as, indígenas e africanos/as, foram considerados “diferentes” – e vistos como inferiores – por não seguirem as mesmas regras de socialização e convivência que pessoas consideradas brancas. O reconhecimento do “outro”, daquela/daquele que não partilha dos mesmos atributos, é feito a partir da condição de precariedade que ocupa. Para além do conceito de raça, os conceitos de gênero e sexualidade – no sentido daquilo que qualifica e identifica a diferença sexual – também foram introduzidos nas vivências cotidianas das cidades latino-americanas, como forma de dominar e controlar tanto a força de trabalho quanto os próprios corpos.

As ruas, como qualquer outro tipo de currículo, disparam pedagogias, produzem relações de poder e jogos de força que encontram apoio e expressão em aspirações de domínio, temores, expectativas de reconhecimento, interesses vitais, desejos e estratégias de resistência. Essas pedagogias costumam ser sutis, contínuas, mas quase sempre eficientes e duradouras. Nossos corpos são educados, isto é, esquadrinhados, segmentados pelas horas do dia e da noite, dias da semana, momentos de trabalho, domingo e feriado, práticas de lazer, mas, também, pelos deslocamentos feitos na cidade a pé, de metrô, de ônibus. Há toda uma linha de ordenamentos que corta a cidade, os corpos, os grupos. Tal forma de ordem cria o currículo da cidade que ensina modos segmentados de ser e de se comportar diante dos diagramas de poder que controlam o movimento dos corpos nas ruas. Desta forma, são estabelecidos os contornos e demarcadores das fronteiras entre os que representam a norma e que são, de acordo com seus padrões culturais, aceitos, e os que estão fora dela, isto é, em suas margens.

Mas nem só de linhas duras vive uma cidade. Existem linhas de poder capilares. Linhas de fuga. Tais linhas minúsculas não operam por grandes cortes, e sim por fissuras quase invisíveis. Elas não desenham o mesmo caminho dos grandes segmentos. Essas linhas formam currículos menores que atravessam o denso tecido do currículo da cidade de diferentes modos. Se pegarmos o caso do RAP, podemos destacar, por exemplo, o currículo das Batalhas de MCs6 que, antes da pandemia, aconteciam embaixo do Viaduto Santa Tereza, localizado no centro de Belo Horizonte, MG. Tais batalhas se constituíam em territórios alternativos para a politização da juventude da periferia, atuando no combate ao preconceito e ao estigma social desses/dessas jovens.

Além do RAP, é possível encontrar nas grandes cidades muitos outros currículos, como o currículo das ocupações urbanas; dos saraus de rua; das hortas e dos jardins sustentáveis; das danças e performances, além de muitos outros currículos artivistas como o que é traçado por Ed Marte, artista da performance, teatro, cinema, educadore popular e ativista dos direitos humanos, que atua, sobretudo, nas ruas do baixo centro da capital mineira. Todos esses movimentos constituem o que chamamos de “currículos menores” (PARAÍSO, 2010; CARNEIRO, 2020), que acionam diferentes modos de existência, mediante a atualização de uma rede de saberes clandestinos e insurgentes. Como afirma Paraíso (2020), um currículo-menor, por “emergir em processos fora do Estado” e por estar em diferentes espaços, “valoriza e multiplica práticas e subjetividades que se sabem múltiplas, desviantes e fora da norma” (p. 31). Além disso, ele está “sempre aberto a reinvenções” (p. 32). Tais currículos traduzem-se em acontecimentos que resistem e reinventam-se em direções diversas. Anunciam faíscas de mundos por vir, como veremos nos relatos contidos no Caderno de Achados e Inventados. Esse caderno, de acordo com o método da cartografia de inspiração deleuzeana, além de dados coletados no campo, continha poemas, recortes, imagens, narrativas de si e outras composições da pesquisadora.

2 AS LINHAS DE FUGA ACIONADAS PELOS CURRÍCULOS DAS RUAS PRODUZEM MODOS DE APRENDER COM A DIFERENÇA

Narrativa 1: vai andar e voa

Quando eu tinha mais ou menos treze anos eu tive a minha primeira experiência de ir sozinha ao centro de Belo Horizonte. Foi uma experiência desconfortantemente marcante para mim. Tanto que eu jamais esqueci as inúmeras sensações que atravessaram meu corpo naquele dia. Saí de casa com muitas recomendações: não demonstrar nervosismo (meu pai só podia estar de brincadeira, né?), mas é óbvio que eu desci do ônibus tremendo; não parar para conversar com gente desconhecida; atravessar somente na faixa; pedir informações, só para um “guarda”. Com o coração a mil e uma espécie de mapa rabiscado nas mãos eu deveria “me virar sozinha” na cidade pela primeira vez. No mapa feito pelo meu pai havia os traços da trajetória que eu deveria realizar para conseguir chegar até o banco e fazer o depósito, razão daquela minha ida ao centro da cidade. Mas, o que me dava segurança eram as informações que eu havia coletado com minha mãe antes de sair de casa. Naquela época eu não sabia ainda a força dos mapas sensíveis. Dentro do ônibus, com o mapa rabiscado nas mãos, eu me lembro de ir rememorando os dois mapas, um traçado no papel, o outro na memória corporal. O mapa rabiscado sinalizava que eu deveria descer no segundo ponto da Av. Paraná. O mapa invisível dizia para eu descer no ponto da “Elmo”, uma loja de calçados que existia em frente ao nosso ponto de ônibus. Lembro que muitas pessoas desceram neste ponto e o ônibus ficou quase vazio. O próximo desafio era chegar à Rua Carijós, olhei com receio para os rabiscos do meu pai. Ele estava certo! Fiquei feliz quando li na placa os dizeres: “Rua Carijós”. Mas certeza mesmo que estava no trajeto correto eu tive quando avistei as Lojas Americanas, onde sempre comprava guloseimas com a minha mãe, o mapa invisível e afetuoso, me dava conforto. De acordo com o mapa rabiscado eu teria que seguir em direção à “Praça Sete”. O mapa invisível me fazia lembrar que, na verdade, não havia uma praça, mas um monumento que as pessoas chamavam de “Pirulito”. Até que não foi difícil chegar à praça. Fácil de chegar, difícil era atravessar a Av. Afonso Pena para o outro lado. O sinal fechava muito rápido e uma infinitude de sensações atravessaram o meu corpo naqueles instantes que pareceram durar uma vida. A impressão foi a de sair do meu corpo por segundos. Essa espécie de “transe” acontece algumas vezes comigo, especialmente quando me encontro com algo que bagunça os meus sentidos. Quando tenho esse tipo de experiência, a sensação é de poder enxergar certos sons ou escutar as cores das coisas... não sei explicar, mas, o encontro do meu corpo com signos urbanos, algumas vezes, provoca no meu corpo o efeito parecido com o que Clarice Lispector afirma no livro Um sopro de vida: “tenho que ter paciência para não me perder de mim porque sou vários caminhos” (LISPECTOR, 1994, p. 31). Nesses momentos de desdobramento corpóreo, um ser pode ver sua existência se duplicar, se triplicar; pode, enfim, existir em vários planos distintos, permanecendo numericamente num único plano físico. Talvez pelo fato de não ser nem criança e nem adulta, ou estar sozinha naquele território selvagem, que é o centro da cidade, naquele momento – que durou o tempo de abrir e fechar do sinal de trânsito – sem que eu conseguisse atravessar para o lado do quarteirão fechado da R. Carijós, eu parecia completamente arrebatada pelo movimento do mar de gente que vinha de todos os lados: formas, cores, odores, enfim, espectros que pareciam atravessar o meu corpo feito hologramas. E havia ainda o barulho da parafernália de sons que vinha dos vendedores ambulantes ao redor, que se juntava às buzinas dos carros e iam se misturando à explosão colorante que irradiava de todas aquelas bugigangas oferecidas aos gritos junto às inúmeras caixas de frutas da estação. Sem falar na balbúrdia do grupo de pessoas reunidas em volta do senhor que segurava um microfone, cuja voz estridente anunciava o fim dos tempos e que se juntava ao som dos instrumentos do quarteto (de bolivianos?) com sua pilha de discos de músicas tradicionais. Demorei alguns segundos para voltar a obedecer a razão que, naquele momento, se esforçava para lembrar porque meu corpo estava parado naquele sinal... Depois de fazer o que meu pai havia pedido para fazer, voltei para casa, naquela tarde, com a sensação de que algo havia mudado. Não porque havia conseguido decifrar os mapas: um extensivo e o outro sensível. Naquela época eu sequer tinha esse tipo de compreensão. Estava simplesmente contente, de uma satisfação boba e alegre simplesmente por ter conseguido ir e voltar sozinha do centro da cidade, felicidade banal daquelas que atravessam os corpos que se entregam aos giros do existir, se entregam à vida, aos encontros que vida oferece. Apenas por isso. Iniciar a cartografia na cidade me fazia de algum modo retomar as intensidades vividas naquele dia e sentir novamente essa “primeira vez” que experimentei, sozinha, os signos disparados pela cidade. (CARNEIRO, 2020, p. 63).

Trago a narrativa de uma experiência vivenciada em minha saída da infância, relacionada ao agenciamento do meu corpo com o centro da cidade, para mostrar como o encontro com certos signos podem produzir em um corpo um cruzamento de fluxos, um mar de sensações que podem disparar aberturas no corpo. Nesse sentido, a primeira linha que podemos extrair do currículo da cidade é a do rizoma que o constitui. Num rizoma, entra-se por qualquer lado, cada ponto conecta-se com qualquer outro. Ele é feito de direções móveis, sem início ou fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda. A cidade é toda ela uma plataforma de emissões de signos diversos, portanto, um rizoma. Contudo, os corpos já anestesiados pela vida cotidiana encontram-se bastante codificados para se afetarem ou afetarem outros corpos. Corpos codificados são corpos fechados. Todavia é exatamente aí que a arte urbana se instaura e tende a produzir alguns ruídos, certas variações no currículo da cidade, a fim de criar algumas aberturas nos corpos passantes, conforme detalharemos neste artigo.

O currículo da cidade é entendido como um rizoma porque não sabemos de antemão qual é a sua potência, nem a nossa, de que afecções nosso corpo é capaz. É sempre uma questão de experimentação. É por meio dos encontros que aprendemos com os signos, que aprendemos a selecionar o que convém ao nosso corpo, o que não convém, o que com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o que a diminui, o que aumenta sua potência de agir, o que a diminui.

No livro Metamorfoses do corpo, José Gil (1997) afirma que um “corpo sozinho” nada diz. Com contornos bem definidos e funções impostas pela aceleração capitalista, um corpo torna-se cada vez mais fechado e impermeável aos afectos, às intensidades, apesar de aparentar o inverso em suas redes sociais. Nas redes sociais, os corpos aparecem sempre felizes, abertos, permeáveis, disponíveis. Todavia, quando se caminha pelas ruas de uma grande metrópole, não é isso que é percebido. O corpo codificado pelo capitalismo ocidental é um corpo cada vez mais fechado às intensidades. De acordo com Gil (2004), os corpos das crianças são os mais porosos, porque ainda não se encontram totalmente codificados, educados.

Atentemo-nos, então, à ideia de “abertura” que discute o filósofo José Gil (2004), para quem “abrir o corpo é abrir o espaço de agenciamentos de fluxos de intensidades”. Agenciar, isto é, “tecer, serzir, atar, anexar, conectar, forjar dispositivos apropriados” à intensificação das forças de um corpo. Abrir-se para criar uma zona em que o corpo entra em contágio com o mundo. Tal é a zona do devir em que as crianças brincam, as palavras agem e os gestos falam, em que um corpo virtual se atualiza nas forças que se conectam com as forças dos signos. O currículo da cidade torna-se um rizoma em que o tempo é o próprio aberto. É o que possibilita a mudança. Aquilo que muda e não para de mudar de natureza a cada instante. Numa cidade, há sempre algo de “aberto” e imprevisível acontecendo. Trata-se mesmo da fluidez do tempo ou da duração que não cessa nunca de mudar, que não para de fazer-se. Você pode pegar o mesmo ônibus uma centena de vezes, mas o que vai se repetir, infinitamente, é a diferença por trás da aparente sensação de déjà vu.

É aqui, nesta possibilidade de “abertura”, que podemos fazer cruzar a segunda linha extraída dos currículos das ruas: a linha dos afectos. Os signos mundanos se desdobram em uma tipologia sem fim. Em Proust e os signos, por exemplo, Deleuze (2003) nos apresenta quatro linhas temporais, conforme o signo que corresponde a cada uma: o tempo perdido, o tempo que se perde, o tempo que redescobrimos e o tempo redescoberto. De todos os signos, os signos sensíveis e os signos da arte são os que nos afectam de uma forma mais arrebatadora. Nem os signos mundanos, nem os signos do amor, conseguem criar em nosso espírito o caráter original de um mundo por vir. A obra de arte “constitui e reconstitui sempre o começo do mundo” (p. 112), o caráter original de um mundo. O tempo da arte se opõe ao tempo sucessivo que passa e ao tempo em geral que se perde. O encontro com os signos da arte nas ruas pode conservar sempre a frescura de um começo de mundo.

Na narrativa-relato que abre este tópico, mencionamos a apresentação direta de imagens ópticas e sonoras que atravessaram o corpo da adolescente que foi sozinha ao centro, provocando nela uma espécie de rarefação de seus sentidos. Tal lentificação ou suspensão pode ser sentida por um corpo sempre que esse corpo for atravessado pelos afectos. Somente um corpo afectado pode entrar em relação com o tempo, com o pensamento. Os signos da arte tem a potência de nos arrebatar, fazendo-nos apreender sensivelmente o mundo. Daí a terceira linha que pode ser extraída do currículo da cidade é a da experimentação; errância ou “criar uma tentativa” (DELIGNY, 2015).

Fernand Deligny (1913-1996) foi um psicólogo francês que montou uma rede de cuidados feita de trajetos e mapas de uma convivência diária de anos com crianças autistas, na qual abdicou de todo tipo de pressupostos e domesticação simbólica, inclusive, da própria linguagem – já que as crianças autistas que participavam desta rede não se comunicavam por meio de uma linguagem usual. Os currículos das ruas se atualizam no currículo da cidade porque, assim como os trajetos e mapas das crianças autistas de Deligny, podem ser experimentados para além da linguagem e da mentalidade utilitarista do capitalismo. As linhas de Deligny são errantes porque “as crianças não funcionam pela consciência dos atos” (DELIGNY, 2015, p. 22). O currículo das ruas funciona de um modo semelhante ao modus operandi das crianças autistas de Deligny: é todo ele feito por meio de “tentativas” e “erros”.

Os saberes disponibilizados pelos currículos das ruas se organizam como um feixe de linhas que inventam entradas e saídas por todos os lados (um rizoma). Uma cidade, um agrupamento ou até mesmo um corpo é feito dessas “linhas” (DELEUZE; GUATTARI, 1996). As linhas de segmentaridade dura são as que enredam as corporeidades de um modo mais ou menos fácil de visualizar, já que os corpos estão sempre sendo domesticados pelas linhas mais duras. Elas constituem o pacote de que opera mediante estratos de poder e que fazem funcionar, de maneira ordeira, os corpos na cidade.

Todavia, porque se trata de um rizoma, existem, também, linhas mais capilares, as linhas moleculares, como as dos signos da arte urbana, por exemplo. Elas são de uma segmentação muito fina, formada por fiações muito sutis, sempre em vias de se atualizar para depois esvanecer. Tais linhas de fuga são produzidas na cidade pelos signos que compõem os artivismos urbanos. São formas mais frágeis e também mais evanescentes. Há uma diferença importante entre perceber e apreender tais linhas. É que apreender (ou aprender) se dá por meio de um encontro que afecta o corpo. Por isso a terceira linha do currículo das ruas é a da experimentação, porque elas surgem de encontros que são como lufadas de ar na realidade.

Ser afectado pelos signos da arte não é simplesmente perceber esses signos. É, antes de tudo, querer testemunhar ou atestar o seu valor. Quem testemunha, isto é, o corpo que tem ou teve uma experiência com a arte, tem a responsabilidade de cocriação com aquilo que experimentou. Tem a responsabilidade de fazer-ver aquilo que o atravessou, que teve o privilégio de ver, sentir, pensar. Tomemos por instantes a performance Réquiem para uma Noiva, de Ed Marte, que caminha lentamente pelas ruas do centro de Belo Horizonte vestida de noiva, tocando uma triste melodia em um acordeom. À medida que o corpo da artivista vai se deslocando pelas ruas, um pequeno cortejo a acompanha silenciosamente. Ed Marte avança em direção à Rua Rio de Janeiro, onde um palco estava sendo montado para o show de Johnny Hooker que aconteceria logo mais. A cidade havia sido tomada pela arte por causa da Virada Cultural de Belo Horizonte, que já estava acontecendo em vários pontos da capital mineira naquela noite de dezesseis de julho de 2016, conforme detalha o relato a seguir.

Narrativa 2: Réquiem para uma noiva

São quase 19 horas. João, Gabriel e eu estamos na fila aguardando a distribuição de ingressos para a oficina-espetáculo do grupo Uzyna Uzona, de Zé Celso Martinez. A oficina giraria em torno da vida e obra de Antonin Artaud. Estava marcada para acontecer à meia-noite dentro da programação da “Virada Cultural” de Belo Horizonte. De repente, nossos ouvidos são atravessados por uma melodia suave, mas estranha, melancólica e misteriosa. Dobrando a esquina, vemos um vulto branco, fantasmagórico, deslizando em nossa direção. No lusco-fusco daquela anoitecer gelado, um ser telúrico, disforme e espectral avança cada vez mais em nossa direção. Mas àquela distância, não era ainda totalmente percetivel aos nossos sentidos. Não sei porque, mas meu coração começa a bater como se fosse saltar pela minha boca, numa disritmia tectônica... Enquanto isso, a imagem vai ganhando os contornos de um corpo vivo, e não o de um fantasma, como sugeria a princípio. Era uma noiva. Hesito: não! Nada disso! Era o corpo de um homem “vestida-de-noiva” com uma barba reluzente e prateada em composição com o um véu transparente que deslizava a nossa frente, tocando uma espécie de réquiem em seu acordeom. “Intensidade” deve ser o nome dado a esse frio congelante na espinha, essa aceleração de partículas produzida pelo encontro do meu corpo com aquela noiva desterritorializada feito uma tela de Francis Bacon em movimento. Imposição de uma pura imagem-sensação. (CARNEIRO, 2020, p. 82).

Trago o encontro com a performance e a audição da melodia tocada por Ed Marte por provocar em meu corpo e em outros corpos na rua, naquele instante, um misto de melancolia e beleza. Porém, daquele tipo de beleza trágica, que causa estranhamento, cria um desconforto. A imagem espectral de Ed Marte, um homem coberto de pelos, “vestida de noiva”, deslizando palidamente pela cidade, tocando um réquiem, evoca em nós a estranha beleza inerente à presença na cidade de criaturas não inteligíveis, como no célebre romance Frankenstein, de Mary Shelley (1998), em que uma espécie de Prometeu costurado de múltiplos pedaços de carne sofre com a hipocrisia e a baixeza humana capaz de eliminar tudo o que não é espelho de si. Há sempre algo de trágico e mágico no monstruoso. Só a arte é capaz de afirmar o tempo puro, da hybris. Ali onde havia um deus, resta o tempo, como nos faz rememorar as tragédias, em seu furor. Mary Shelley se recusa a colocar deus (ou mesmo a humanidade) como o “centro” do universo. Assim como na performance Réquiem para uma Noiva, Ed Marte se recusa a aceitar um único enquadramento para os corpos e nos desafia a fabular o advento de outras corpografias possíveis para noivas na cidade.

A abertura de um rizoma é capaz de produzir encontros inesperados, a potência dos afectos que atravessam o corpo, bem como a experimentação. Essas constituem as três linhas de força dos currículos das ruas. Para que se aprenda com o corpo na rua, é necessário, antes de tudo, desfazer-se do “já dito” e “já feito” sobre os corpos, desmontar pensamentos e raciocínios que os aprisionam. É importante se colocar em um outro lugar que não seja o lugar de quem decide “quem e o quê é faltoso” (PARAÍSO, 2016, p. 152) na cidade. Para isso, há de se “abrir os corpos” a fim de fazê-los se encontrar com a diferença pura. Aprender pela e com a diferença não é o mesmo que aprender pela e com a semelhança: a identidade. Aprender por meio da semelhança é um simples ato de recognição, algo que não força o pensamento. Não obriga o pensamento a pensar. Na obra Mil Platôs, Deleuze e Guattari explicam a “imagem do pensamento” quando a associam mais diretamente à forma do Estado. Um pensamento já conforme um modelo emprestado do Estado, que lhe fixaria objetivos e caminhos, condutos, canais, órgãos, organização. O currículo-maior da cidade e toda a sua estrutura, seu organon cria essa imagem do pensamento como “forma”. Trata-se de uma imagem que recobre todo o pensamento e que seria como a forma-Estado. Ideais de gênero, raça, etnia e sexualidade também fazem parte desse currículo-maior que nos é imposto na cidade. Homens e mulheres indígenas, negros, pessoas com deficiência e LGBTQIA+7 são interpretados como “diferentes” por não seguirem as mesmas regras de socialização e convivência entendidas como “normais”. O reconhecimento do “outro” passa a ser, portanto, baseado em ideias de inferioridade, fracasso e precariedade. Já os currículos-menores das ruas, com suas idiossincrasias vindas do campo da arte e do artivismo, criam o pensamento em seu encontro com o fora, com a exterioridade, trazem sempre algo de estranho ou estrangeiro, como as performances de Ed Marte, que implicam na demolição da imagem do pensamento em sua forma-Estado.

Os currículos das ruas podem ser assim compreendidos como inventários de uma variedade de modos de existência, de modo que cada existência é tão perfeita quanto pode ser. Nesse plano, não pode haver nenhuma hierarquia; nenhuma avaliação possível, já que, como afirma David Lapoujade (2017), “um por do sol, uma fachada de um edifício, uma ilusão de ótica, uma dança de elétrons [...], uma ideia abstrata possui seu modo de ser, intrínseco, incomparável” (p. 27), como cada uma das manifestações da arte das ruas que compõe o currículo da cidade.

3 O ALIANÇAR: AGENCIAMENTOS POSSÍVEIS ENTRE O CAMPO DOS CURRÍCULOS E A POLÍTICA DO ENCONTRO DAS/NAS RUAS

Abrimos o artigo mencionando as potencialidades fabuladoras da obra Notícias de Lugar Nenhum, a fim de afirmar a relevância da arte como a prática de imaginação política, por abrir questões que relacionam a vivência estética com a ética. Há todo um domínio interdisciplinar sendo gestado nessa direção, em diferentes áreas do conhecimento. É o que podemos abstrair, por exemplo, das discussões feitas no livro: Corpos em Aliança e Políticas das Ruas, escrito por Judith Butler (2018).

Entre tantas questões, o livro desdobra uma que é crucial em nossos dias: a da ética de si. É possível viver uma vida boa em meio a uma vida ruim nas cidades? Como viver bem em meio à desigualdade, exploração e tantas formas de apagamento de direitos? Ou ainda, como formula a própria Judith Butler (2018), como alguém pode viver bem a própria vida, de forma que possamos dizer que estamos vivendo uma vida boa em um mundo no qual a vida boa é sistematicamente vedada a tantos ou se torna uma expressão que faz sentido ou parece denotar um modo de vida que se mostra de algumas maneiras bastante ruim?

Faz sentido, então, perguntar qual configuração social de “vida” entra na questão sobre como viver melhor. Isso implica em se perguntar sobre o que é viver e o que é a vida, principalmente quando a vida encontra-se mediada pela biopolítica. Entendemos biopolítica como a define Butler (2018), como modos de organização e administração da vida em meio a relações de poder. Entendemos, assim, que “os poderes que organizam a vida, incluindo aqueles que expõem diferencialmente as vidas à condição precária como parte de uma administração maior das populações por meios governamentais e não governamentais, estabelece um conjunto de medidas para a valoração diferencial da vida em si” (BUTLER, 2018, p. 145).

Mais do que buscar respostas para essas questões, no próximo tópico, discutimos como a estética da resistência advinda do aliançar dos corpos nas ruas produz toda uma reconfiguração da noção de cuidado de si, inaugurando comunidades de afinidades, novas práticas colaborativas, novas formas de expressão para combater o apagamento das formas de vida dissidentes e que não se submetem à imagem do pensamento atrelada à forma-Estado.

De quem são as vidas que não importam como vidas, não são reconhecidas como vivíveis ou contam apenas ambiguamente como vidas? Butler (2018) nos desafia a nos perguntarmos quais vidas são passíveis de luto e quais não. A administração biopolítica daquilo que não é passível de luto se mostra crucial para abordar a questão do modo como conduzimos nossas vidas nas cidades. Durante o período em que realizamos a cartografia, que subsidia este artigo, com o objetivo de mapear as potências do artivismo das dissidências de gênero na cidade de Belo Horizonte, deparamo-nos com alguns desses “corpos não passíveis de luto”, mas, também, com encontros que podem ser compreendidos na esteira do que Butler (2018) denominou como “política das ruas” produzida por “corpos em aliança”. Um desses encontros foi com uma artivista chamada Jota Mombaça, no 14º Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte, o FIT, ocorrido em setembro de 2018.

Jota Mombaça realizou, junto da Academia TransLiterária8, uma leitura performática de um de seus textos chamado: O mundo é meu trauma. Destacamos o encontro de Jota Mombaça com a Academia TransLiterária para mostrar como “a política de gênero deve fazer alianças com outras populações amplamente caracterizadas como precárias” (BUTLER, 2018, p. 192), para colocar em ação o que Butler (2018) denominou de “corpos em aliança”. Jota Mombaça abre-se, então, íntima, corajosa e dolorosamente, por meio de sua leitura-performance. Cria ações e palavras-conceitos que podem operar tanto na linguagem quanto em espaços acadêmicos e/ou fóruns como o do 14º Festival Internacional de Teatro, bem como fora deles.

Ocupando politicamente esses espaços de luta e outros de rua, um pouco mais difíceis de traduzir, Jota Mombaça tensiona questões raciais e de gênero, padrões estéticos, origem periférica, entre outras problemáticas de cunho “colonial”. A artivista considera a “democracia racial” uma ficção. Suas performances, que disparam questões que rompem com as fronteiras entre o humano e o monstruoso, provocam no/a espectador/a um desconforto. Sua presença errática denuncia a captura dos corpos pela lógica da “representatividade branca”, isto é, pela imagem do pensamento, aprisionadora, a forma-Estado. Mombaça denuncia, mediante suas ações e performances antirracistas e decoloniais, como o “sistema branco” apropriou-se das imagens dos corpos, normalizando-os. No fim, conclama tanto a possibilidade de visibilidade dos que estão sob um “regime de apagamento” quanto a liberação destes do peso do olhar de estranho, estrangeiro, exótico, quer dizer, dos que são tornados “invisíveis como sujeitos, e expostos como objetos” (MOMBAÇA, 2016, p. 76).

Destacamos um trecho que detalha as sensações que o encontro entre Jota Bombaça e a Academia TransLiterária provocou no corpo da pesquisadora, a fim de mostrar como um “corpo aberto”, que se deixa afectar pelos “signos do artivismo”, no caso da arte da “performance”, é capaz de estar à altura da vida, da trepidação da vida, mesmo que, em alguns momentos, uma certa dor tenha de ser experimentada no corpo que investiga as vidas inteligíveis. É a dor que força a vida a ir ao seu limite, para que o corpo se torne em algum momento digno da vida.

Narrativa 3: Quando o aliançar neutraliza afectos que diminuem a vida

Eu, mulher branca e cis, que em meio a tantos privilégios que me cercam, não pude deixar de ouvir “o canto de fouror” (CORAZZA, 2008) que emerge das margens da cidade, tampouco pude virar a cara para o lado e prosseguir minhas errâncias como educadora, fingindo que não fui atravessada pela performance de Jota Mombaça, que teve a força de um flechário inteiro, disparando fogo e desassossego, incendiando meu território existencial. Ao ler a escrita de Jota Mombaça e em seguida acompanhar sua vinda a Belo Horizonte por ocasião do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte em 2018, senti mais uma vez a intensidade que atravessou meu corpo quando iniciei minhas perfografias e, não sem hesitação, decidi seguir Ed Marte até São Paulo me aventurando sozinha pela bienal internacional de arte e ruas da capital paulista com o objetivo de disparar o estudo que ora se iniciava. Quando assisti Jota Mombaça fazendo a leitura-performance de O mundo é meu trauma, chorei... da mesma maneira que me emocionei outras vezes durante esta investigação tomada por afecções difíceis de traduzir em palavras. De todos os afectos que atravessaram o meu corpo-de-mulher-branca-cis-repleto-de-privilégios, os “tristes” foram os que me fizeram parar, congelar, mesmo que momentaneamente, os movimentos das perfografias em processo. Sempre que eles me atravessavam, algo de dor se fazia sentir nesse meu corpo-mapa-de-vida: um pé esquerdo que torcia e eu era obrigada interromper as caminhadas com a artivista pela cidade; uma infecção urinária; uma crise de hemorroida; as crises intermitentes de enxaqueca. Sim, é estranho descrever tais intercorrências do corpo no corpo de uma tese. Mas eu achei que não seria honesta com a experiência que marcou o meu corpo, se eu não o fizesse. E, bem, desde o início o que estamos falando aqui é do corpo/com o corpo; de um “aprender com o corpo”. O que foi cartografado nessa investigação foi perfografado com pés, peitos, vagina, útero, coração, entranhas, ânus... que costumam ser silenciados em textos acadêmicos, principalmente em tempos de censura como agora. Eu comecei as perfografias no início de 2016 e, ao longo desses quatro anos, o meu corpo experimentou muitos afectos, alegres e tristes. Mas conectá-lo à força de Jota Mombaça teve o sentido de um puro acontecimento: Acontecimento-Mombaça; Vetor-Mombaça; Efeito-Mombaça no currículo das errâncias experimentado. E se o mundo é um “trauma” para corpos ininteligíveis - como os de Ed Marte/Jota Mombaça/Academia TransLiterária, tão diferentes do meu, mas que eu tive o desejo e o prazer de me aliançar – é esse mundo-trauma que eu me recuso sustentar/habitar e por isso decidi realizar esta pesquisa. (CARNEIRO, 2020, p. 117).

Se nos currículos das ruas a criação de possíveis passa pelo aprender em sua correlação com o desaprender, esse duplo aprender-desaprendendo (PARAÍSO, 2016, p. 199) é operacionalizado por uma política dos encontros. Todavia, o aliançar que aqui se propõe trata-se de uma ligação que não tem o caráter circular e fechado como o das alianças baseadas na noção do sujeito em sua identidade, com seus modelos, semelhanças e sua imagem do pensamento. O aliançar que detectamos nos currículos das ruas se aproxima da noção de “alianças intensivas”, desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro (2015), e se apoia nos conceitos de “rizoma” e de “multiplicidade” desenvolvidos por Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Mil Platôs. Pois é diferença, e não a identidade, o que sacode o corpo, o que faz um corpo vibrar. Sem os fluxos produzidos pela diferença, a vida seca, engessa e morre. O diferençar mostra que sempre é possível um recomeço. Mesmo os rios mortos podem renascer dos filamentos que correm debaixo da terra. São rios invisíveis, possíveis, esperando uma fissura para jorrar de novo de outras maneiras.

É a inconstância que compõe e decompõe a vida e os currículos, entre eles, o currículo das ruas aqui abordado. As formas de persistência e resistência, disparados pelos artivismos urbanos, em aliança intensiva de seus corpos, escapam e contestam os esquemas pelos quais são desvalorizados. As persistências e resistências produzem, mediante a política dos encontros, uma maneira de uma “vida passível de luto poder ser valorizada” (BUTLER, 2018, p. 178). Afinal, apenas a “vida boa” faz a vida valer a pena. A vida boa é resistência; é uma vida possível de ser vivida em aliança intensiva com outros corpos. Inconstâncias, persistências, resistências, alianças, escapes, encontros, aberturas! É isso que o currículo das ruas cartografado e aqui explorado pode fazer com os corpos no currículo da cidade.

Fonte: Hamm Clovis (Facebook da artista).

Figura 1 “Sobreposições de Imagens e Sensações”. Réquiem para uma Noiva 

Fonte: Gláucia Carneiro (Caderno de Achados e Inventados).

Figura 2 Aplicando o método Maiô na Bienal, 2016 

2Artivismo é o nome dado a ações sociais e políticas, produzidas por pessoas ou coletivos, que se valem de estratégias artísticas, estétícas ou simbólicas para amplificar, sensibilizar e problematizar, para a sociedade, causas e reivindicações sociais (ver: https://outraspalavras.net/blog/artivismo-criacoes-esteticas-para-acoes-politicas/).

3Currículo inspirado nos escritos do pesquisador espanhol Jaime Bonafé. Currículo desenhado por linhas duras, codificadoras, mas, também, linhas mais flexíveis, como as da arte urbana e dos artivismos. Ensina modos de ser e de se comportar na cidade. Ver: Carneiro (2020).

4Para Deleuze, os espaços de confinamentos da disciplina estudados por Foucault, os quais funcionavam como produtores de subjetividades, cederam lugar para novos tipos de controle que não a da “sociedade disciplinar”. Trata-se agora de uma “modulação”, isto é, uma moldagem que pode ser transformada continuamente, produzindo a situação da subjetividade flexível como chave desse novo “controle” (DELEUZE, 1996, p. 221).

5A corpografia é, segundo Paola B. Jacques, uma cartografia corporal (ou corpo-cartografia), em que a experiência do corpo é inscrita pela paisagem urbana, em diversas escalas de temporalidade, mesmo que involuntariamente. Ver: Jacques (2008).

6As batalhas de MCs, também conhecidas como duelos de Freestyle, são encontros de hip-hop em que dois mestres de cerimônia (MCs) batalham entre si com rimas improvisadas, podendo ser a capela (sem som) ou com um beat (batida) tocada por um DJ; o tempo varia de acordo com a organização da roda cultural.

7LGBTQIA+ Sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexuais.

8Academia Transliterária é um coletivo de artistas e escritores transgêneres, com sede em Belo Horizonte, Minas Gerais. Surgiu como intuito de agregar trabalhos artísticos, literários e demais vertentes culturais da população transexual, travestí e transgênero (Ver https://academiatransliteraria.wordpress.com).

REFERÊNCIAS

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Recebido: 07 de Setembro de 2022; Aceito: 30 de Setembro de 2022

Glaucia Carneiro: Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. E-mail: glaucia.carneiro.bh@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-2236-2235

Marlucy Alves Paraíso: Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: marlucyparaiso@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-3542-4650

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