SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27 issue61Gender, education and fashion: curricular perambulations in a museumFamily literacy and the government of women-mothers: the curriculum of Conta pra Mim and the conformation of female-bodies in the domestic space author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Série-Estudos

Print version ISSN 1414-5138On-line version ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande Sept./Dec 2022  Epub Feb 16, 2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1728 

Artigos

A alma feminina em santinhos católicos

The feminine soul in catholic holy cards

El alma femenina en tarjetas sagradas

Rosângela Tenório de Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0003-1025-4736

1Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, Pernambuco, Brasil


Resumo

O artigo discute os santinhos como elemento de reiteração de condutas na atribuição de uma alma feminina. A análise utiliza elementos teórico-analíticos de estudos de gênero e performatividade, arqueogenealógicos, de estudos culturais e de estudos sobre imagem e comunicação. Aborda-se um corpus de análise constituído de santinhos da iconografia católica, interpolando-o com enunciados de outros materiais culturais para dar visibilidade à rede interdiscursiva e a aspectos performativos que marcam a posição de um sujeito com uma alma feminina.

Palavras-chave: alma feminina; imagem; gênero; santinhos católicos

Abstract

The article discusses the holy cards as an element of reiteration of behaviors in the attribution of a feminine soul. The analysis uses analytical theoretical elements from gender and performativity studies, from archeogenealogical studies, from cultural studies and from studies on image and communication. A corpus of analysis made up of holy cards of Catholic iconography is approached to which statements from other cultural materials are interpolated to give visibility to the interdiscursive network of statements and to performative aspects that mark the position of a subject with a feminine soul.

Keywords: female soul; image; genre; catholic holy cards

Resumen

El artículo trata de las tarjetas sagradas como elemento de reiteración de comportamientos en la atribución de un alma femenina. El análisis utiliza elementos teóricos analíticos de estudios de género y performatividad, de estudios arqueogenealógicos, de estudios culturales y de estudios sobre imagen y comunicación. Se aborda un corpus de análisis conformado por tarjetas sagradas de la iconografia católica al que se interpolan enunciados de otros materiales culturales para dar visibilidad a la red interdiscursiva de enunciados y a aspectos performativos que marcan la posición de un sujeto con alma femenina.

Palabras clave: alma femenina; imagen; género; tarjetas sagradas

1 INTRODUÇÃO

Alma, do ponto de vista etimológico, deriva do latim Anima, que se refere ao sopro da vida. Indica Abbagnano (2007, p. 27) que significa “o princípio da vida, da sensibilidade e das atividades espirituais (como quer que sejam entendidas e classificadas), enquanto constitui uma entidade em si, ou substância”.

No discurso religioso proferido por Santo Agostinho, a alma só pode ser percebida pela interioridade espiritual, e Deus se manifesta na alma. Nessa visão, buscar Deus é buscar a si mesmo, e refletir sobre si mesmo é conduzir a alma a Deus. Em seu texto Confissões, ao falar da alma, Santo Agostinho “refere-se à alma biológica, à alma que existe no tempo, à alma real. E isso é uma ideia que foi aos poucos assimilada pela modernidade e clara e básica na contemporaneidade” (STREFLING, 2007, p. 271).

Mas o que pode ser a alma fora da visão pretendida por Agostinho, ou próxima a essa proposição? É imortal, como defende Platão, é substância, realidade em si, é corpo, sob o ponto de vista de Aristóteles? É corpo imortal como dizem os estoicos?

Michel Foucault, em Vigiar e Punir, fala sobre a alma e traz dois aspectos importantes. Um primeiro é que não se deve tratar a alma como uma ilusão ou um efeito ideológico, mas, sim, como resultado de sua existência,

[...] como uma realidade que é produzida em torno, na superfície e no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce em cima dos que são punidos – [...] sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados [...]. (1996, p. 31).

E acrescenta: “[..] sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência”(p. 31). Um segundo aspecto remete a pensar-se a realidade histórica da alma de forma diferente da teologia cristã. Nesse ponto de vista, a alma “não nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação”. Ressalta que

[...] esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância: é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. (p. 32).

Essa realidade da alma tratada por Michel Foucault mobiliza, como ele próprio indica, conceitos e campos de análise, mas isso não significou qua a alma como ilusão dos teólogos não fora substituída, pois o homem

[...] já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma “alma” o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo. (FOUCAULT, 1996, p. 32).

Judith Butler, em seu estudo sobre gênero e em particular em sua crítica à irredutibilidade da materialidade, afirma que “postular o corpo como anterior ao signo, [é] postulá-lo ou significá-lo como prévio” (BUTLER, 2019, p. 59). Ao mesmo tempo, ao tentar uma análise genealógica da materialidade, retoma essa formulação de Michel Foucault para dizer outras coisas que também nos interessam. Inicialmente, ela traz a proposição de Aristóteles quando defende que “[...] a alma designa a matéria, ou seja, a matéria é entendida como potencial pleno e não realizado. [...] a alma é a primeira atualidade do corpo natural” (BUTLER, 2019, p. 64). Diz ainda que, para Aristóteles, não há distinção clara entre materialidade e inteligibilidade, e não oferece o tipo de corpo que interessa ao feminismo recuperar. Em seguida, vai afirmar que a proposição de Foucault sobre a alma pode ser vista como “uma reformulação implícita da formulação aristotélica”. Diz assim:

[...] compreender o skhema [forma, modelo, figura, aparência] de corpos com um nexo historicamente contingente de poder/discurso é chegar a algo semelhante ao que Foucault descreve em Vigiar e punir como ‘materialização’ do corpo do prisioneiro. (p. 66).

Ou seja, para Butler, Foucault, de certa forma, não se desvencilhou totalmente de uma materialidade ontológica.

Embora consideremos esse debate importante, interessa neste artigo o modo de interrogar de Foucault, com as suas ferramentas, pois vemos essa possibilidade reconhecida, inclusive, pela própria Butler, em uma entrevista a Baukje Prins e Irene Costera Meijer, na qual diz que “desde Foucault que temos um modo de olhar os modos de subjetivação a partir dos próprios operadores que os humanos utilizam na produção de si mesmos” (PRINS; MEIJER, 2022, p. 156). Um exemplo relevante é seu estudo sobre o poder pastoral, que, em nossa análise, é realçado quando pensado em sua relação com o governo das almas.

Bastante elucidativa é a noção de poder pastoral desenvolvida nos estudos de Foucault, em uma comparação entre o poder político dos gregos, relativo a territórios e leis, e o poder pastoral no discurso judaico-cristão, referente ao poder do rebanho e, de forma mais explícita, ao poder com a função do cuidado das almas. O pastor tem como função salvar o rebanho. Instituída pelos hebreus, essa prática vai no cristianismo se tornar mais individualizante ainda. Para apresentar o poder pastoral Foucault observa temas típicos do poder pastoral: a terra na relação com o Deus-pastor (Deus dá ou promete uma terra a seu rebanho; o pastor reúne, guia e conduz o seu rebanho); a crença de que o papel do pastor é a salvação do seu rebanho; e a perspectiva de que há uma benevolência pastoral, próxima ao devotamento, na ação do pastor de velar o seu rebanho (FOUCAULT, 2012, p. 360-61). Podemos falar aqui do governo das almas, do governo das condutas.

Foucault se aproxima dessa perspectiva a partir de uma certeza: essa não poderia ser uma formulação do ponto de vista do pensamento grego, pois, na literatura, vai encontrar metáforas do leme, do timoneiro, do piloto, mas relacionadas com aquele que está à frente da cidade, respondendo por encargos e responsabilidades (FOUCAULT, 2008). Então, Foucault vai buscar em experiências do tipo pastoral, tais como ele encontra mencionadas na figura do rei, o deus e o chefe com a função de pastor, seja no Egito, na Assíria ou na Mesopotâmia – principalmente, no povo hebreu. Algumas características do poder pastoral: “ele se exerce sobre uma multiplicidade em movimento”; “é fundamentalmente um poder benfazejo” – afinal, ele “é a salvação do rebanho” (FOUCAULT, 2008, p. 169-60). Por fim, é um poder individualizante, pois não se pode perder nenhuma ovelha – por isso, ele as conta todos os dias (p. 161). Esse tipo de poder inseriu-se nas sociedades ocidentais por meio do cristianismo, com os seus mecanismos no interior do Império Romano.

O poder pastoral teve, segundo o autor, seu funcionamento pleno durante 16 séculos, do século II ao século XVIII, com deslocamentos, desmembramentos, transformações de formas diversas, mas nunca deixou de existir. Para Foucault, chegou até o século XX, e, a nosso ver, ainda perdura no século XXI. O que interessa são as relações de força que se estabelecem com as técnicas e os procedimentos do poder pastoral, e, também, saber dos processos de resistência que foram se desenhando e transformando as técnicas e os procedimentos em sua função.

Vale assinalar que essas formulações foucaultianas traduzem, na atualidade, uma preocupação permanente com práticas regulatórias que buscam controlar os indivíduos, não obstante, no debate cultural recente, a subjetivação ser analisada como inscrição do corpo, socialmente construída, espacializada, descentrada (ROSE, 2001). Essas interpretações sugerem que os modos de subjetivação produzem um sujeito com fronteira, pele, envoltura: “sua interioridade transborda em contato com o exterior” (DOMÈNECH; TIRADO; GÓMEZ, 2001, p. 122).

Neste artigo, aventa-se que o discurso religioso cristão da alma feminina posto em circulação por textos imagéticos, a exemplo dos santinhos católicos, atua como um discurso performático de gênero. Contudo, não se perde de vista que o discurso imagético sobre a alma feminina, um ato de diferir (dessemelhante e retardado), está condicionado por uma decodificação contextual inscrita numa cadeia de significantes, tais como os escritos em Derrida (SANTIAGO, 1976, p. 25).

A moderna escola e o currículo escolar foram, no século XIX e XX, o lugar por excelência de “expressão prática das tecnologias do governo da alma” (DO Ó, 2003, p. 104). Pela amálgama entre o discurso da pedagogia escolar e o discurso da pedagogia religiosa cristã católica naquele período, destacam-se, na sua iconografia, os santinhos como elementos de uma pedagogia que interpenetra a pedagogia da escola desde o seu advento na modernidade, mostrando uma correlação produtiva no campo da produção do sujeito da educação.

De certo modo, a escola como um acontecimento discursivo, ao deslocar da família e da comunidade a ação socializadora de crianças e jovens, provoca, na verdade, a intensificação dos processos de socialização, questão observada no campo dos Estudos Culturais por Williams (1992), ao defender que as instituições e espaços visam ensinar algo. Se, por um lado, os lugares de aprendizagem indicam que os processos educativos extrapolam a escola, como defende Ellsworth (2001), a nosso ver, o discurso religioso, para além de atuar como uma pedagogia cultural independente da escola, é um discurso que interpenetra a pedagogia escolar, potencializando de forma significativa a sua capilaridade.

2 GÊNERO: UM ATO DE ATRIBUIÇÃO

É preciso dizer da perspectiva de gênero como ato performativo, tal como foi especulado por Judith Butler, e da potente formulação teórica ofertada por esse caminho para o desenvolvimento de estudos de gênero sob os pontos de vista da virada linguística, quando linguagem e discurso passam a ter um lugar específico na teorização social e cultural. De fato, com os estudos pós-estruturalistas, pode-se dizer como os elementos da prática social advêm da produção discursiva.

Graças à aproximação com a filosofia da linguagem (WITTGENSTEIN, 2009), com a indicação de que a linguagem precede o pensamento, demonstrou-se a importância dos jogos de linguagem na produção dos objetos de saber e de ser, e a ideia de parentesco dentro de um campo de linguagem substituiu a ideia de correspondência direta entre as palavras e as coisas. Assim, as clássicas noções de verdade e sujeito passaram a ser tensionadas desde que foram percebidas como um mero efeito discursivo.

Sob a influência de Austin (1990) e, principalmente, de Derrida (1991), Judith Butler desenha um discurso sobre performatividade e gênero, produzindo um debate no seio de interpretações sobre gênero. Afinal, havia duas versões interpretativas a circular e, segundo ela, contrárias entre si: “a primeira nós radicalmente escolhemos o nosso gênero; a segunda era a de que somos completamente determinados pelas normas de gênero” (BUTLER, 2018, p. 44). Butler refuta essas interpretações ao lembrar que, “se a linguagem age sobre nós antes de podermos agir e continua a agir a cada instante em que agimos, [aqui vê-se a iteralidade dita por Derrida], então temos que pensar sobre a performatividade de gênero primeiro como uma ‘atribuição de gênero’”(BUTLER, 2018, p. 45). Muito embora, claro, ela não considere que somos “uma chapa passiva” onde se possa alcunhar alguma marca eterna. O campo das normas tem sido rompido particularmente na representação corporal, e aqui temos o que, a nosso ver, seria o acontecimento em Derrida, o improvável dessas experiências. Voltando a Butler, trata-se de exemplos dados por ela, como o surgimento de transgêneros, genderqueers, butches, femmes e outros modos dissidentes de masculinidade e feminilidade em um movimento de corpos dissidentes.

Butler (2003) já havia indicado, desde o seu texto Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, a assertiva de que o gênero é uma produção de práticas discursivas performáticas. Essa postulação traz a incorporação da autora da noção de citacionalidade, tal como foi usada por Jacques Derrida, termo da semiótica que quer dizer característica repetível do signo. Essa noção, entendida como repetibilidade da escrita e da linguagem, opera com a possibilidade de ser retirada de um determinado contexto e ser inserida em um contexto diferente, para re-dizer, em um processo de citacionalidade que se constitui como uma prática de recolocar em ação um enunciado performativo que se quer reforçar.

Butler mobiliza noções de materialidade, citacionalidade/reiteração e norma para problematizar o gênero. Eis como Butler trata essas noções no contexto das ações performáticas de gênero:

[...] a performatividade deve ser entendida não como um “ato” singular ou deliberado, mas como uma prática reiterativa e citacional por meio da qual o discurso produz os efeitos daquilo que nomeia. O que espero que fique claro no que se segue é que as normas regulatórias do “sexo” trabalham de forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual. (BUTLER, 2019, p. 16).

Os processos de reiteração das normas, portanto, asseguram os atos performáticos. A performatividade como citacionalidade é entendida como uma escrita que pode ser repetida, citada de forma independente do referente. O que quer dizer que não há possibilidade de existência de um sujeito voluntarista que exista fora das normas reguladoras a que se opõe. Diz Butler: “o paradoxo de subjetivação como assujeitamento (assujetissement) é precisamente que o sujeito que resiste a tais normas é habilitado, quando não produzido, pelas mesmas normas” (2019, p. 39).

Butler enfatiza que gênero não é o que alguém é, e, sim, o resultado de um aparato de produção e normalização do que é do masculino e do feminino, associado a “formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e performativas que o gênero assume. [...] mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2016, p. 253). Afinal, a norma persiste e é atualizada na prática social e “reidealizada e reinstituída durante e ao longo dos rituais sociais cotidianos da vida corporal” (p. 262).

Vale ponturar que Butler vê a materialização do corpo em um processo de reiteração forçada, embora nunca completa, pois as instabilidades internas nesse processo normatizador podem voltar-se para si próprias, produzindo rearticulações. A essa posição pode-se associar a possibilidade dada por Giorgio Agamben quando se pensa nos rituais como uma ação performática, tal como estamos trabalhando neste artigo. Por isso, acolhemos suas reflexões sobre a profanação de ritos, tal como fazem as crianças com suas brincadeiras de quebra de regras e profanação de jogos:

O que foi separado ritualmente pode ser restituído, mediante o rito, à esfera profana. Uma das formas mais simples de profanação ocorre através de contato (contagione) no mesmo sacrifício que realiza e regula a passagem da vítima da esfera humana para a divina. (AGAMBEN, 2009, p. 58).

Butler segue sua teorização sobre performatividade e gênero como uma forma também de dizer do poder da linguagem na produção de situações, particularmente em relação ao gênero, quando essa linguagem advém de lugares de enunciação autorizados a colocar as pessoas dentro de um determinado quadro de fixação (médicos/as, educadores/as, pastores/as, padres/freiras e outros/as). Nos últimos anos, associou a questão da performatividade ao tema das vidas precárias e à defesa das lutas nas ruas. Não há, a nosso ver, como essa prática não levar a uma associação com a vida precária, e não apenas no capitalismo neoliberal atual, como observa a autora, mas abrangendo igualmente as relações sociais e culturais de sociedades capitalistas em geral.

3 IMAGEM E DISCURSO DE GÊNERO

O discurso de gênero analisado neste artigo está expresso em enunciados imagéticos em seus desdobramentos estéticos. Embora os dispositivos de visibilidade não sejam proposições estéticas homogêneas, traduzem, no caso dos santinhos, uma certa regularidade enunciativa por traduzirem um discurso doutrinário.

Santinhos são fontes que testemunham tanto a prática discursiva religiosa cristã católica, em seus modos de dizer o que se deseja do sujeito mulher cristã – casta, delicada, sensível, caridosa –, como apresentam outros modos de vida pautados no discurso feminista. Esses enunciados continuam tensionando as práticas discursivas que, em suas regras anônimas e históricas (FOUCAULT, 2008), operam na produção do sujeito mulher em sua feminilidade. Justifica-se olhar a estética dos santinhos no contexto de um ritual como o da Primeira Comunhão, se consideramos a perspectiva de Hameline (2009), quando recorre a Santo Alberto Magno, ao mencionar a qualidade estética nas práticas religiosas.

Roland Barthes (1999) já escrevera, em seu texto Sade, Fourier, Loyola, que talvez possamos inferir que o uso de estampas no discurso religioso está implicado com um deslocamento ocorrido com a modificação hierárquica dos cinco sentidos. Para Barthes (1999), na Idade Média, a primazia estava no ouvido, depois no tato e, por fim, na visão. Com a inversão, os olhos passam a ser importantes na percepção – o autor afirma o barroco como testemunha da arte da coisa vista e aborda como essa mudança tem grande importância religiosa. Essa inclusão se dá com Inácio de Loyola, que enfrenta resistências religiosas, particularmente pelo argumento de que a substituição do tato pela vista pode ser associada ao desejo da carne para o asceta – a vista estaria mais próxima do inconsciente; e pela perspectiva mística, por conta do argumento de que “as meditações, contemplações, visões, vistas e discursos, numa palavra, as imagens, só ocupam ‘a superfície do espírito’” (BARTHES, 1999, p. 69).

Entretanto, Loyola defende o imperialismo da imagem ao advogar pela imaginação dirigida, usando como matéria constante dos Exercícios Espirituais. Depois da morte de Inácio de Loyola, emerge uma literatura de ilustrações e de gravuras que eram adaptadas aos países para servir a evangelização. E ainda: “a imagem é a garantia da fé ortodoxa, porque, sem dúvida (entre outras razões), autentica a especificidade da confissão cristã” (BARTHES, 1999, p. 69). “O acto da fé deve manifestar-se de forma discursiva, a alma deve pedir explicitamente a sua salvação”, como disse Boussuet, citado por Barthes, que interpreta que “não há oração que não seja articulada” (p. 78).

Importa associar a essas reflexões o modo como Eco (1991) propõe analisar as imagens do campo religioso, ou seja, incorporar formas de pensar os escritos e as imagens comunicacionais na relação com aquele que recebe. Para Eco, a obra é interpretada por cada fruidor que a aprecia. Em suas palavras:

O autor produz uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja compreendida e fruida tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual. (p. 40).

Em Eco, a defesa da “obra aberta” mostra como se operou mais com a ideia de fechamento da obra, orientando-se o fruidor para ver uma figura de um único modo possível. Mas distingue dessa forma a experiência desenvolvida no medievo com uma teoria do alegorismo aberta à possibilidade de “se ler a Sagrada Escritura (e mais tarde também a poesia e as artes figurativas). Não só no seu sentido literal, mas em três outros sentidos, o alegórico, o moral e o anagógico” (1991, p. 42). Essa teorização foi acessível graças a Dante e foi desenvolvida por São Paulo, São Jerônimo, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e outros. O autor lembra, todavia, que essa abertura não significa indefinição da comunicação, “infinitas” possibilidades da forma, liberdade de fruição (p. 43). O que é possível é uma quantidade limitada de resultados fruitivos prefixados, condicionados e controlados pelo autor.

Um aspecto importante para operarmos com essas noções é que as imagens na perspectiva medieval, muito utilizadas no discurso do cristianismo, refletiam uma visão do cosmos, ou seja, transcendente e imanente do homem. Nessa perspectiva, o universo, com uma ordem própria, clara, prefixada e imutável, remete ao pensamento doutrinal e dogmático cristão. No campo da arte, é indiscutível a função didático-cristã da alegoria quando subordinada à teologia cristã.

4 A ALMA FEMININA NOS SANTINHOS CATÓLICOS

Os santinhos, diminutivo de santo, por ser uma reprodução de imagens sagradas, esculpidas ou pintadas, têm uma função de lembrança (MAIA, 1996, p. 185). Como recordações da Primeira Comunhão, da Crisma ou de um familiar que morreu, reiteram os enunciados imagéticos de obras de arte e de fotografias e, nesse sentido, operam como artefatos culturais que enunciam os modos de ser feminino e masculino.

Pequenos cartões impressos com imagens de santos e pinturas religiosas são artefatos culturais de significativa divulgação das práticas religiosas. Na infância, fazem parte dos momentos de recepção dos sacramentos quando as famílias católicas os distribuem a amigos, padrinhos e familiares mais próximos como lembranças de eventos importantes. Como outros materiais, eles fazem parte de cenas ritualísticas e são, eles próprios, elementos de definição performática.

Parecem-nos performáticos porque remetem aos registros de obras de arte sacra que, para além das igrejas, compõem catecismos e livros de história sagrada ou livros de arte. Assim, os santinhos de Primeira Comunhão, em conjunto com as fotos da Primeira Comunhão dos álbuns de família, são eles mesmos uma incitação a um modo de ser, não só do ponto de vista da cultura religiosa, mas também pelo que interpelam por meio da racionalidade estética. Tal como outras tecnologias, pode-se ver essas imagens como tecnologias culturais de si. Acionam atos de reiteração de modelos de ser. Ao compormos nossas lembranças, as memórias de nós mesmos, por meio de tais elementos, estamos assumindo a verdade desse tipo de ritual. Essa modalidade de tecnologia traduz uma vontade de produção de subjetividades ordenadas, um desejo de fixar uma alma. Entende-se que não há um texto exatamente intencional na obra de arte, mas ela de qualquer modo, como assevera Susan Sontag, como linguagem,

[...] é experimentada não meramente como algo compartilhado, mas como uma coisa corrompida, vergada pelo peso da acumulação histórica. Assim, para cada artista que a conhece, a criação de uma obra significa enfrentar dois domínios potencialmente antagônicos de significado e suas relações. Um deles é seu próprio significado (ou ausência de); o outro é o conjunto de significados de segunda ordem, os quais, ao mesmo tempo que estendem sua própria linguagem, a oneram, a comprometem, a adulteram. (SONTAG, 2015, p. 22).

Observamos como os anjos aparecem nos santinhos em um lugar privilegiado, ao alto e próximo ao que é mais sagrado, e até do próprio Jesus. No caso de gênero, trazem os marcadores sobre as vestes das meninas, os véus, as tiaras, os gestos. O anjo da guarda, de certo modo, é aquele que vai partilhar os feitos da criança e, ao mesmo tempo, instruí-la no silêncio, apenas pela sua suposta presença a proteger a criança dos perigos da vida, dos pecados.

Fonte: Acervo familiar da autora.

Figura 1 O Anjo da Guarda 

Nessa imagem, a beleza do anjo, suas asas e sua postura protetora em favor das crianças facultam-lhes os melhores caminhos a serem seguidos, afinal, os anjos fazem parte da cosmologia do discurso religioso católico e têm um papel importante na classificação de seres bons e seres maus. Os anjos bons são aqueles representados por crianças em sua inocência, com asas, e os anjos maus, representados por homens adultos feios, são os demônios. A partir dessa imagem, pode-se pensar nas batalhas aladas entre os anjos bons e os anjos maus. No catecismo Doutrina Cristã, de 1934, diz-se dos anjos:

Criou tambem Deus os Anjos em estado de graça e formosura, porém, uma grande parte deles foi ingrata a Deus e ensoberbeceram-se, pelo que, em justo castigo, de tão grande maldade, arrojou-os do céu, precipitando-os no inferno; são os que chamamos demonios. Estão no inferno, sobre a terra e nos ares, em qualquer parte em que se encontrem padecem terriveis penas em castigo de sua soberba e Deus permite que tentem os homens para que eles patenteiem a fidelidade que guardam a Deus, tendo os tambem como verdugos ou ministros de sua justiça, para executar as sentenças que fulmina contra os pecadores. (CLARET, 1934, p. 54).

Os anjos aparecem em muitos enunciados religiosos. O convívio com a imagem do anjo da guarda, tão forte para as crianças, está traduzido em diferentes artefatos religiosos, para além dos santinhos, como imagens nas igrejas compondo-se com as imagens de Deus, de Jesus e de Nossa Senhora; nas recordações da Primeira Comunhão; em recipientes de água benta; e nos textos de poemas infantis da literatura infantil. É preciso, então, rezar para ele, deixá-lo sempre por perto.

Ao interpolarmos os enunciados dos santinhos com outros materiais culturais religiosos, como catecismos e literatura infantil, por exemplo, indicamos a rede discursiva de reiteração desses enunciados. Por certo, um referente importante nos catecismos de preparação para a Primeira Comunhão das crianças é a imagem do anjo da guarda, tratada como um signo de ensinamentos, a exemplo da lição abaixo, com a proposição didática de rezar para o seu anjo da guarda. Não se aprende apenas sobre os anjos, mas também a respeito de uma prática performática de palavra e ação. Rezar significa adotar, todos os dias, a postura de ajoelhar-se, colocar as mãos juntas e dizer as palavras da prece.

Lição

Os anjos são puros espíritos.

Foi Deus quem os criou.

O Anjos adoram e servem a Deus.

Um deles está sempre perto de nós.

Chama-se Anjo da Guarda.

Ele nos proteje e nos defende.

Quais são as criaturas mais perfeitas que Deus criou?

As criaturas mais perfeitas que Deus criou

são os Anjos e os homens.

Reze todos os dias: Meu Anjo da Guarda, protegei-me.

(LENTA, 1953, p. 5).

A orientação para rezar para o anjo da guarda, no caso da formação cristã, sugere que as orações, e não só a do anjo da guarda, têm uma função enunciativa muito clara: reiterar os elementos doutrinários. Mas não de qualquer modo. É preciso que sejam memorizadas e realizadas em vários momentos do dia. Tratase de um enunciado para ser operado em silêncio ou em voz alta, pois é com ele que se chega a Deus, pela humildade que se constitui pela oração. Nos catecismos, estão aquelas que para muitos são ditas universais, tal como desejou São Paulo, quando criou as condições para que a religião dos judeus na sua transição à católica se transformasse em uma religião universal. São as orações básicas da Igreja Católica: Pai-Nosso, Credo, Santo Anjo, Ave-Maria.

“Rezar é a vida da alma. Rezar é a ciência dos santos. Rezar bem deve ser a grande aspiração de todo cristão. Digamos, pois, frequentemente com os Apóstolos: Senhor ensinai- nos a rezar” (ALVES, 1944, p. 5). Trata-se de rezar como um modo de santificar o seu dia, seu trabalho. Como exemplo, há o próprio Jesus, que orou várias vezes, que se prosternou de forma humilde e suplicante no Jardim das Oliveiras. “Pregado à cruz rezava e ao exalar o último suspiro, as suas derradeiras palavras foram uma oração: Pai, em vossas mãos encomendo o meu espírito” (1944, p. 8). O rito da reza foi um ensinamento de Jesus, respondendo a uma solicitação dos apóstolos: “Quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, ora em secreto, a teu Pai; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. Cuidam que serão atendidos pelo seu muito falar” (p. 13).

O exemplo de Maria é evocado em uma singular descrição: “Ela era um vaso de insigne devoção, amando e praticando a oração em toda a sua existência. Maria rezava, rezava sempre, como jamais outra criatura tem rezado” (ALVES, 1944, p. 17). Quando recebe o anúncio de que será a mãe de Cristo, profere “a mais bela de suas orações – Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (p. 18). Talvez possamos dizer que o anjo da anunciação, o anjo Gabriel, tenha sido aquele que trouxe um dos mais significativos discursos fundadores do cristianismo: Jesus, o salvador, e Maria, a Virgem Santíssima.

Convida-se na lição ao rito da reza:

Não queres ajoelhar-te ao lado de Maria, tua Mãe divina e com Ela rezar, adorar a Deus nosso Pai do céu, agradecer-lhe tantos benefícios e pedir-lhe graça para ti e para os que te são caros? Não queres junto de Maria dizer a Jesus quanto o amas, que confias na infinita misericórdia de seu coração, e esperas que as suas mãos abençoadas te prodigalizem todas as mercês? (p. 21).

Os santos também executam o rito da reza, diz-se no catecismo, a exemplo de Santo Antão, São Domingos e Santo Antônio. Convida-se para seguir “a verdade de Santo Agostinho, que diz: Quem reza bem é bom cristão, quem reza mal é mau cristão; quem não reza nem é cristão” (ALVES, 1944, p. 33). Conclui-se, então, que é “rezar é necessário”, mas principalmente rezar bem.

Deve-se ensinar as orações às crianças de modo a “fazer da oração uma necessidade de cristão. Que a criança procure a Deus naturalmente” (NEGROMONTE, 1961, p. 178). Dessa forma, são feitas orações pela manhã, à tarde e à noite, aprendendo-as de várias formas: explicando o seu conteúdo, rezando-se, memorizando e escrevendo. O que importa é que a prece seja incorporada à vida da criança e passe a ser desejada por ela. É assim a orientação da doutrina.

Entra-se como sujeito autor e assume-se uma relação de apropriação do discurso que passa a ser dito na primeira pessoa. Uma forma de se falar com Deus, Jesus Cristo e Nossa Senhora. Reza-se para louvar, para pedir perdão, para agradecer, para confortar-se, para aliviar-se. Por meio das orações, estabelece-se um vínculo com a divindade maior, a exemplo do que ocorre na oração do Pai-Nosso; estabelece-se o desejo de virtude e pureza da Imaculada Conceição com a Ave-Maria. Apreendem-se, com o ato de enunciação da reza, modos de ser singulares na postura (de joelhos, muitas vezes), no olhar suplicante para uma imagem religiosa, no olhar para baixo envergonhado pelos pecados e ainda numa postura com o uso de artefatos como o terço, a mantilha, o escapulário e o relicário.

As crianças leem nas imagens como se portar na oração: qual deve ser o tom da prece, o momento da reza silenciosa e o local adequado. O sinal da cruz para professar a Verdade da Santíssima Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. As mãos juntas, uma mão na altura do coração e a outra na testa. Observe-se o modo como as crianças, em particular as meninas, tal como nas imagens abaixo, estão em aprendizado sobre gestos, posturas e olhares, sobretudo a inscrição da reza nos corpos das meninas.

As mãos assim postas no regaço parecem responder também a uma estética de feminilidade próxima ao que se entende por graça. Graça, uma espécie de beleza que está relacionada à postura e aos ditos movimentos graciosos de leve flexão do corpo, harmonia das partes, “enfim a delicadeza da postura que consiste no encanto” (ABBAGNANO, 2007, p. 488).

Fonte: Acervo familiar da autora.

Figura 2 Santinhos de Primeira Comunhão (Graça) 

O termo graça, muito usado quando há uma referência ao feminino, foi analisado pela filósofa feminista Irigaray. É muito interessante como ela, ao fazer a genealogia dessa noção, encontra pontos de convergênica entre os discursos da feminilidade e da religiosidade. Vejamos o que pontua a referida autora e como podemos pensar sobre o que diz olhando essas meninas graciosas:

Se a palavra “graça” parece, em um primeiro momento, referir-se a uma ajuda do próprio Deus, indica, posteriormente, o encantamento devido às formas ou movimentos corporais, portanto, ao que, da natureza, especialmente da mulher, atrai-nos, mesmo a nível carnal: a sua doçura tem graça, os seus gestos são graciosos como o seu abandono juvenil. (IRIGARAY, 2016, p. 239, tradução nossa).2

O que vamos observar é o sentido da graça como uma oferta generosa de Deus aos cristãos, seja pelo perdão, seja por um milagre, na sua tradução em movimentos, gestos e posturas corporais que não constituem um problema em si. Na estereotipia sobre um modo essencial da natureza feminina, o termo torna-se problemático quando quer significar não apenas a fixação de um modo de ser, mas também uma posição de subalternidade natural para se colocar diante das situações da vida cotidiana. Por exemplo, classificar as práticas sociais de que as mulheres podem ou não participar em função de sua graça e de sua doçura, características da feminilidade. É comum dizer-se da adequação de professoras para as crianças de pré-escola pela condição de feminilidade.

Lembra-se, com Foucault (2006), que, “quando o corpo faz alguma coisa, há um elemento que se serve do corpo”. No entanto, não seria o próprio corpo, ou melhor, o homem de corpo e alma, mas

[...] só pode ser a alma. Portanto, o sujeito de todas essas ações corporais, instrumentais, e da linguagem é a alma: a alma enquanto se serve da linguagem, dos instrumentos e do corpo. [...] É a alma unicamente enquanto sujeito da ação, a alma enquanto se serve [do] corpo, dos órgãos [do] corpo, de seus instrumentos etc. (p. 69).

O véu está também nos santinhos de lembrança de Primeira Comunhão em sua função de reiterar os enunciados estéticos. O véu se manteve por muitos anos, tal como no discurso religioso cristão, como um símbolo de virgindade, pureza e dignidade no contexto das iconografias religiosas cristãs de alegorias da mulher cristã.

Registra Philippe Ariès que, a contar a partir de meados do século XVIII, as lembranças se perpetuaram por meio de uma mensagem inscrita em uma imagem devota. Ele exemplifica o caso da lembrança da Primeira Comunhão de François Bertrand, exposta em 1931, em Versalhes. Nessa lembrança de 26 de abril de 1761, havia uma gravura de São Francisco de Assis e, no verso, estava escrito: “Como lembrança da primeira comunhão de François Bertrand, em 26 de abril 1761, dia de Quasímodo, na paróquia de Saint-Sébastien de Marsy. Barail, cura de Saint-Sébastien” (ARIÈS, 1986, p. 154). Para Ariès, mais que um costume devoto, trata-se de um certificado inspirado nos atos oficiais da Igreja Católica. E acrescenta: “A cerimônia da primeira comunhão tornou-se a manifestação mais visível do sentimento da infância entre o século XVII e o fim do século XIX: ela celebrava ao mesmo tempo seus dois aspectos contraditórios, a inocência da infância e sua apreciação racional dos mistérios sagrados” (ARIÈS, 1986, p. 155).

É preciso dizer mais dos santinhos. Como imagens alegóricas, querem significar, com as crianças ajoelhadas, a humildade; com os véus e roupas brancas, a pureza da alma no recebimento do corpo de Cristo, pela comunhão; com os lírios, a pureza; com os anjos, os protetores vigilantes; com o olhar voltado para cima em contemplação, o reconhecimento do seu lugar abaixo do sagrado, e, em especial, a presença de Jesus a lembrar que é o salvador.

Fonte: Acervo da autora.

Figura 3 Primeira Comunhão (genuflexão) 

A imagem faz rememorar o ato de adoração e veneração a Deus quando da Primeira Comunhão, e, nesse momento, o ato de ajoelhar-se está associado a uma técnica gestual a operar no contexto da ação performática. Combina-se com o dobrar o corpo e baixar a cabeça para mostrar a sua contrição, como modo de se mostrar estar convicto/a do ato em si. Mas, também, no caso de uma mulher, o fato em si dessa postura que é reafirmada em outros momentos religiosos, como no sacramento da Comunhão e no Casamento religioso, conforma com o conjunto da postura aprovada como uma conduta decente da mulher.

Sobre o papel de Cristo como salvador e da oferta da graça a todos os cristãos, vale trazer uma reflexão da filósofa feminista Luce Irigaray sobre a interpretação platônica do cristianismo e, portanto, não cristã, o que explicaria o porquê de se deixar de lado o aspecto do elemento revolucionário da Encarnação de Deus no corpo de um homem que morre crucificado. Nesse sentido, a autora concorda com Nietzsche, quando diz que: “havia apenas um cristão e este morreu na cruz” (IRIGARAY, 2016, p. 240, tradução nossa)3.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os santinhos, como artefatos religiosos com sua função educativa, operam como uma prática de incitação a um modo de ser a partir de valores morais para se conquistar as almas infantis. Sua força enunciativa está na ambiguidade, no modo de acionar uma estética, estimular uma vontade de ser. Na verdade, constitui-se no cenário de uma pedagogia cultural em uma forma delicada e branda de educar para um tipo de “alma feminina”.

O discurso imagético dos santinhos é utilizado, em composição com práticas ritualísticas como a Primeira Comunhão, não apenas para reproduzir, reiterar um acontecimento de significação da infância, mas, principalmente, para a ação de reiteração, citacionalidade de posturas, vestes, adereços e gestos, suscitando pensar-se e almejar-se comportamentos bondosos, delicados, assexuados, discretos, reservados.

A nosso ver, a doutrina cristã católica traz, desde a germinação do discurso cristão católico até os dias atuais, a imagem de um modo de ser mulher que incita uma ambiguidade na maneira de se entrever as mulheres ocidentais de formação cristã pelo outro e por si mesmas. Imagens em santinhos são, assim, interpoladas e evocadas, muitas vezes ao mesmo tempo, nos mais diversos domínios da vida, para justificar, em relação às mulheres, prescrições educativas, modos de vida e formas de trato com o corpo, com a sexualidade e com a condição materna do seu ventre.

2“Se la parola ‘grazia’ sembra, in un primo tempo, riferirsi a un aiuto di Dio stesso, essa indica, in un secondo momento, l‘incanto dovuto a delle forme o movimenti corporei, quindi a ciò che, della natura, specialmente quella della donna, ci attrae, anche a un livello carnale: la sua dolcezza ha della grazia, i suoi gesti sono graziosi come lo è il suo giovanile abbandono”.

3“che non c’è stato che un cristiano e che è morto sulla croce”.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. [ Links ]

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. [ Links ]

ALVES, José Pereira. Assim deveis rezar. Coleção Popular de Formação Espiritual. Rio de Janeiro: Petrópolis; São Paulo: Vozes, 1944. [ Links ]

ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. [ Links ]

AUSTIN, John. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. [ Links ]

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Lisboa: Edições 70, 1999. [ Links ]

BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do sexo. São Paulo: N1 Edições, 2019. [ Links ]

BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e a política nas ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. [ Links ]

BUTLER, Judith. Regulações de Gênero. Cadernos Pagu, Campinas, n. 42, p. 249-74, 2016. [ Links ]

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. [ Links ]

CLARET, Antonio Maria. Catecismo da Doutrina Cristã. Adaptado à capacidade dos meninos. Ilustrado com gravuras. São Paulo: Oficinas Gráficas, 1934. [ Links ]

DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. Campinas: Papirus, 1991. [ Links ]

DOMENÈCH, Miguel; TIRADO, Francisco; GÓMEZ, Lúcia. A dobra: psicologia e subjetivação. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Nunca Fomos Humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. [ Links ]

DO Ó, Jorge Ramos. O governo de si mesmo: modernidade pedagógica e encenações disciplinares do aluno liceal (último quartel do século XIX – meados do século XX). Lisboa: Educa, 2003. [ Links ]

ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1991. [ Links ]

ELLSWORTH, Elizabeth. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.) Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Estratégias de Poder Saber. In: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). São Paulo: Martins Fontes, 2006. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1996. [ Links ]

HAMELINE, Jean-Yves. L’accordo rituale: pratiche e poeticche della liturgia. Milano: Edizione Glossa, 2009. [ Links ]

IRIGARAY, Luce. Il Toccare Della Grazia. Spazio Filosofico, Torino, n. 17, p. 239-50, fev. 2016. [ Links ]

LENTA, Padre Celeste. Doutrina Cristã: Catecismo para a Primeira Comunhão. São Paulo: Pia Sociedade de São Paulo, 1953. [ Links ]

MAIA, Antonio. Pequeno Dicionário Católico. Rio de Janeiro: Imprimatur, 1996. [ Links ]

NEGROMONTE, Alvaro. Pedagogia do Catecismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1961. [ Links ]

PRINS, Baukje; MEIJE, Irene Costera. Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, jan. 2022. [ Links ]

ROSE, Nicolas. Inventando nossos eus. In: SILVA, Tomaz Tadeu. Nunca Fomos Humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 137-204. [ Links ]

SANTIAGO, Silvino. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1976. [ Links ]

SONTAG, Susan. A Vontade Radical. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. [ Links ]

STREFLING, Sérgio Ricardo. A Atualidade das Confissões de Santo Agostinho. Teocomunicação, Porto Alegre, v. 37, n. 156, p. 259-72, jun. 2007. [ Links ]

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. [ Links ]

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2009. [ Links ]

Recebido: 07 de Setembro de 2022; Aceito: 04 de Outubro de 2022

Rosângela Tenório de Carvalho: Doutorado em Educação pela Universidade Porto. Professora Titular do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: rosangela.carvalho@ufpe.br, Orcid: 0000-0003-1025-4736

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado