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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dic 2022  Epub 16-Feb-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1727 

Artigos

Literacia familiar e o governo de mulheres-mães: o currículo do Conta pra Mim e a conformação de corpos-femininos no espaço doméstico

Family literacy and the government of women-mothers: the curriculum of Conta pra Mim and the conformation of female-bodies in the domestic space

La alfabetización familiar y el gobierno de las mujeres-madres: el currículo de Conta pra Mim y la conformación de los cuerpos-femeninos en el espacio doméstico

Maria Beatriz de Freitas Vasconcelos1 
http://orcid.org/0000-0001-7509-6420

Maria Carolina da Silva Caldeira1 
http://orcid.org/0000-0003-0668-1989

1Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil


Resumo

Este artigo apresenta um recorte de uma pesquisa em que se analisou um documento disponibilizado pela Política Nacional de Alfabetização no Brasil (PNA), o Guia de Literacia Familiar. Este artefato cultural é parte central do programa do Governo Federal Conta pra Mim, que foi lançado em 2019, com o objetivo de incentivar um modo de praticar a leitura, a escrita e estímulos ao desenvolvimento da oralidade, com as crianças e suas famílias, em casa. Embora tenha objetivos que se vinculam ao currículo escolar, o Guia se direciona para as famílias, constituindo-se, portanto, como um currículo não escolar, que convoca as famílias a assumirem determinadas posturas que comumente são esperadas da escola. O objetivo deste trabalho é mostrar, com base nos estudos pós-críticos de currículo, como o Guia de Literacia Familiar atua como currículo cultural e recorre a técnicas de biopoder para operar conformando corpos-femininos no espaço doméstico de diferentes formas. Argumenta-se que este currículo, implementado para ser efetivado na esfera doméstica, que aciona evidências científicas com relação ao “hábito materno” para se legitimar, intenciona convocar as mulheresmães para acatarem essa responsabilidade, uma vez que elas ainda são a maioria entre as pessoas que ocupam o espaço doméstico.

Palavras-chave: currículo cultural; relações de poder; mulheres-mães

Abstract

This article presents an excerpt from a Master’s research in which a document made available by the National Literacy Policy in Brazil (PNA), the Family Literacy Guide, was analyzed. This cultural artifact is a central part of the Federal Government’s Conta pra Mim program, which was launched in 2019 with the aim of encouraging a way of practicing reading, writing and encouraging the development of orality, with children and their families, at home. Although it has objectives that are linked to the school curriculum, the Guide is aimed at families, constituting itself, therefore, as a non-school curriculum, which calls on families to assume certain postures that are commonly expected from the school. The objective of this work is to show, based on post-critical curriculum studies, how the Family Literacy Guide acts as a cultural curriculum and uses biopower techniques to operate by shaping female bodies in the domestic space in different ways. It is argued that this curriculum, implemented to be effective in the domestic sphere, which uses scientific evidence regarding the “maternal habit” to legitimize itself, intends to summon women-mothers to accept this responsibility, since they are still the majority among the people who occupy the domestic space.

Keywords: cultural curriculum; power relations; women-mothers

Resumen

Este artículo presenta un extracto de una investigación que analizó un documento puesto a disposición por la Política Nacional de Alfabetización de Brasil (PNA), la Guía de Alfabetización Familiar. Este artefacto cultural es parte central del programa Conta pra Mim del Gobierno Federal, que fue lanzado en 2019 con el objetivo de incentivar una forma de practicar la lectura, la escritura y fomentar el desarrollo de la oralidad, con los niños y sus familias, en el hogar. Aunque tiene objetivos que se vinculan con el currículo escolar, la Guía se dirige a las familias, constituyéndose, por tanto, como un currículo no escolar, que llama a las familias a asumir determinadas posturas que comúnmente se esperan de la escuela. El objetivo de este trabajo es mostrar, a partir de estudios curriculares poscríticos, cómo la Guía de Alfabetización Familiar actúa como un currículo cultural y utiliza técnicas de biopoder para operar moldeando los cuerpos-femeninos en el espacio doméstico de diferentes maneras. Se argumenta que este currículo, implementado para ser efectivo en el ámbito doméstico, que utiliza evidencias científicas sobre el “hábito materno” para legitimarse, pretende convocar a las mujeres-madres a asumir esa responsabilidad, ya que todavía son mayoría entre las personas que ocupan el espacio doméstico.

Palabras clave: currículum cultural; relaciones de poder; madre-mujer

1 INTRODUÇÃO

Este artigo analisa o Guia de Literacia Familiar, documento do Programa Conta pra Mim, implementado pelo Governo Federal, em 2019, como um importante currículo cultural não escolar, promovido pela Política Nacional de Alfabetização (PNA). O programa tem como objetivo incentivar a “literacia familiar”, compreendida como o “conjunto de práticas e experiências relacionadas com a linguagem oral, a leitura e a escrita, que as crianças vivenciam com seus pais ou responsáveis” (BRASIL, 2019, p. 13), com finalidade de “orientar, estimular, e promover práticas de literacia familiar em todo o território nacional” (BRASIL, 2020), na busca por “melhorar a qualidade da alfabetização no Brasil, fomentando o hábito da leitura entre as novas gerações e reforçando os elos afetivos entre pais e filhos” (BRASIL 2019, p. 7). Embora tenha objetivos que se vinculam ao currículo escolar, o Guia se direciona para as famílias, constituindo-se, portanto, como um currículo não escolar, que convoca as famílias a assumirem determinadas posturas que comumente são esperadas da escola.

Tendo em vista que é o “Estado quem, oficial e majoritariamente, regula, normatiza, autoriza e induz ações de leitura em âmbito nacional” (RAMALHETE, 2020, p. 163), analisamos que essa política regulamenta uma forma particular de governo de mulheres-mães e, consequentemente, demanda e produz certas subjetividades. Considerando tais aspectos, este artigo se fundamenta na concepção de que o Guia de Literacia Familiar atua como um currículo cultural que produz e autoriza saberes e sujeitos de determinados tipos. Como argumenta Silva (2013), todo currículo é resultado de uma escolha interessada em representar um grupo social de maneiras específicas e reflete o poder por meio das “divisões entre saberes e narrativas inerentes ao processo de seleção do conhecimento” (p. 191). Sendo assim, o Guia de literacia familiar também está envolvido nesse processo, especificamente no que se refere às questões de gênero, como analisado neste estudo.

O objetivo do artigo é mostrar, com base nos estudos pós-críticos de currículo, como o Guia de Literacia Familiar atua como currículo não escolar e recorre a técnicas de biopoder para operar conformando corpos-femininos no espaço doméstico de diferentes formas. Argumenta-se que este currículo, implementado para ser efetivado na esfera doméstica, o qual aciona evidências científicas com relação ao “hábito materno” para se legitimar, intenciona convocar as mulheres--mães para acatarem essa responsabilidade, uma vez que elas ainda são a maioria entre as pessoas que ocupam o espaço doméstico.

Para apresentar as análises empreendidas, este artigo está dividido em três seções, além desta introdução. Na primeira delas, mostram-se os aportes teóricos-metodológicos que fundamentam a concepção de que um artefato cultural, como o Guia de Literacia Familiar, atua como currículo cultural que “[...] ensina, educa e produz sujeitos, que está em muitos espaços desdobrando-se em diferentes pedagogias” (PARAÍSO, 2010, p. 11), inspirado nas ideias dos Estudos Culturais. Ainda neste tópico, apresentamos também os aspectos metodológicos que abarcam elementos da análise de discurso foucaultiana compreendendo as interdições e os procedimentos de poder acionados no texto do documento Guia de Literacia Familiar. Na segunda, as análises do currículo em questão são apresentadas demonstrando como esse currículo busca posicionar as mulheres-mães como professoras das(os) suas(seus) filhas(os). Por fim, apresentam-se algumas considerações finais.

2 APORTES TEÓRICO-METODOLÓGICOS

O conceito de currículo cultural emerge com base nas contribuições dos Estudos Culturais para o campo da educação. Esse campo teórico tem se caracterizado como uma “alquimia que se aproveita dos muitos campos principais de teorias das últimas décadas, desde o marxismo e o feminismo até a psicanálise, o pós-estruturalismo e o pós-modernismo” (NELSON; TREICHLER; GRASSBERG, 2013, p. 9), no intuito de propor um caráter interdisciplinar que promova o aprofundamento na constituição dos significados dos processos e das relações oriundas de influências culturais. Nesse movimento, emergiu uma concepção de pedagogia cultural que tem buscado a ampliação da noção de currículo, ao mostrar que os artefatos culturais, como documentos direcionados para as famílias, por exemplo, atuam como um currículo, uma vez que “o currículo é feito de culturas, de formas de compreender o mundo social, de produzir e atribuir-lhe sentido” (PARAÍSO, 2004, p. 57).

Nessa linha de análise, compreende-se a pedagogia como um conjunto de habilidades e conhecimentos que nunca é neutro, já que é “uma prática cultural que só pode ser compreendida através das questões sobre história, política, poder e cultura” (GIROUX, 2013, p. 85). Tendo isso em vista, diferentes autoras(es) (CORAZZA, 2001; SILVA, 1995, 2009; GIROUX, 2013; PARAÍSO, 2010) têm entendido que o currículo se constitui como uma pedagogia cultural ou “uma prática cultural; uma prática de produção e veiculação de significados” (PARAÍSO, 2004, p. 57), de modo que “qualquer artefato que possa ser considerado cultural, sem fazer distinção entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura, é objeto importante de análise” (PARAÍSO, 2004, p. 55). Diante disso, os Estudos Culturais possibilitaram que o campo do currículo se alargasse e não se restringisse tão somente à noção de currículo escolar. Concebe-se, de tal modo, o currículo como um “artefato cultural que ensina, educa e produz sujeitos, que está em muitos espaços desdobrando-se em diferentes pedagogias” (PARAÍSO, 2010, p. 11). Não se trata, portanto, apenas de “uma matriz na qual estão dispostos os saberes e os conhecimentos a serem construídos em determinado período de escolarização” (CALDEIRA, 2021, p. 3). Entende-se, ainda, que todo artefato cultural opera como currículo porque ensina às pessoas, e nele se pode aprender uma infinidade de coisas e modos de ser e de estar no mundo. Nessa direção, o Guia de Literacia Familiar é entendido como um currículo que pretende ensinar às famílias (e particularmente às mães) um modo de estar no mundo que é permeado pelas questões de gênero.

O conceito de gênero que subsidia este trabalho inclui todas as formas de construções “implicadas com os processos que diferenciam mulheres de homens, [...] produzem seus corpos, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade” (MEYER, 2013, p. 18). Compreende-se, também, inspirada em Butler (2018), que o gênero é uma norma que se constitui socialmente a partir da relação entre “sexo/gênero/desejo” e que produz uma ordem compulsória heterossexual para os corpos. Não obstante, segundo Butler (2018, p. 55), essa ordem é uma “produção fictícia”, uma vez que sexo e gênero não se referem a nenhuma substância, a nenhum elemento natural dos corpos. Ambos, na perspectiva apresentada pela autora, seriam efeitos discursivos das relações de poder, que, de acordo com Foucault (1988), agem na produção de uma “verdade do sexo”, que produz o gênero a partir dos “significados culturais assumidos pelo corpo sexuado” (BUTLER, 2018, p. 26). Ainda de acordo com Butler, ao mesmo tempo que o gênero é uma construção social e cultural que normatiza e regula sujeitos, também pode ser compreendido como o mecanismo “através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2014, p. 253).

Ao considerar que o gênero dimensiona o modo como as pessoas são posicionadas na cultura, compreende-se que o currículo em questão se inscreve numa economia de governo e pode ser examinado como tecnologia biopolítica, pois é constituído por distintas políticas de Estado que instituem “processos de normalização de corpos individuais (mulheres, homens e crianças [...]) e de corpos coletivos (famílias, populações, [...])”, como também investigam Dal’Igna, Meyer, Dornelles e Klein (2019, p. 9). Um efetivo biopoder, como disse Foucault (1999), que age como uma política reguladora na gestão da vida, autorizando determinadas condutas de gênero, nos variados artefatos culturais, e interditando outras.

Diante disso, a temática do poder, para Foucault, coloca-se como central à busca, por compreender como são constituídos os sujeitos de determinados tipos, em diferentes espaços, tempos e contingências, considerando que todas as pessoas participam de relações de poder “que [são], ao mesmo tempo, de incitação recíproca e de luta” (FOUCAULT, 1995, p. 245). O exercício do poder, nesse sentido, pode ser definido como “um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos” (FOUCAULT, 1995, p. 243). Dessa maneira, a verdade está “circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que induz e que a reproduzem” (FOUCAULT, 2017, p. 54). Isto é, entende-se a verdade como “regimes de verdade” contingenciais, produzidos pelo poder, que ocasiona efeitos de verdade na constituição de sujeitos.

Nessa direção, a metodologia adotada abarca elementos da análise de discurso foucaultiana compreendendo as interdições e os procedimentos de poder acionados no texto do documento Guia de Literacia Familiar. Ao operar com este tipo de análise, é possível perseguir os efeitos da composição entre os conceitos de poder, verdade e subjetividade no currículo em questão, pois, segundo Foucault (2017, p. 54), a “própria verdade é poder”. O poder, para o filósofo, não cessa de exigir dos sujeitos a produção de uma verdade, e, ao mesmo tempo, os submete “à verdade também no sentido de que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder” (FOUCAULT, 2017, p. 279). Essa noção permite compreender que, se o poder produz sujeitos, em determinados regimes de verdade, o efeito de toda essa maquinaria resulta na fabricação de subjetividades, pois a verdade produzirá efeitos nos indivíduos que a ela se submetem (CORAZZA, 2001).

A subjetividade enuncia modos de agir e se constitui a partir de processos de subjetivação modificáveis e diferentes. Ela também não é dada ou interior, mas sim produzida, social e discursivamente, por meio de jogos de força e relações de poder que buscam produzir determinados significados, e modifica-se ao longo da vida. Segundo Paraíso (2014, p. 31), os modos de subjetivação são “as formas pelas quais as práticas vividas constituem e medeiam certas relações da pessoa consigo mesma”. Nessa dinâmica, a subjetividade ocupa um papel importante na compreensão da formação dos indivíduos, visto que é “produzida pelos diferentes textos, pelas diferentes experiências, pelas inúmeras vivências, pelas diferentes linguagens pelas quais os sujeitos são nomeados, descritos, tipificados” (PARAÍSO, 2014, p. 32). Desse modo, as análises a seguir buscam apresentar os efeitos que o currículo cultural, aqui analisado, produz com relação às subjetividades desejadas e incitadas no contexto familiar.

3 O ACIONAMENTO DE EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS NO GOVERNO DE MULHERES-MÃES

O Guia de Literacia Familiar, como já mencionado, é um artefato central do programa Conta pra Mim. Ele se constitui de prescrições às famílias do modo pelo qual elas devem desenvolver as práticas de leitura, escrita, oralidade e contação de histórias com suas(seus) filhas(os) em casa. Ao ler o documento, foi possível perceber como as famílias são orientadas a conduzirem as suas condutas com base em diálogos que se amparam em um regime de verdade, em que personagens clássicos dos contos de fadas representam os posicionamentos binários de gênero, conforme mostra o excerto a seguir.

Antes de começar a leitura, mostre a capa do livro, o título e o nome do autor. Pergunte à criança se ela consegue antecipar o enredo da história considerando as informações presentes na capa: “Veja, filha! O título deste livro é ‘O castelo do feiticeiro’. E há uma torre bem alta desenhada na capa. Você é capaz de me dizer o que vai acontecer nesta história?” (BRASIL, 2019, p. 39, destaques do documento, itálico nosso).

Antes da leitura, fale um pouco sobre o tema explorado pelo livro, ajudando a criança a retomar conhecimentos que ela já tem sobre o assunto: “Filho, o que são dinossauros? Isso! São répteis gigantes que viveram na Terra há milhares e milhares de anos. Hoje eles não existem mais. Esta história é sobre um dinossauro muito especial!” (BRASIL, 2019, p. 40, destaques do documento, itálico nosso).

Partindo de um olhar que compreende a construção cultural do gênero, expressa-se a forma como feminilidades e masculinidades vão sendo fabricadas nesse currículo. Quando se fala com a filha, o tema registrado é sobre castelos e torres, espaços privados ocupados por princesas. Quando a conversa é com o filho, o interesse é direcionado para dinossauros, heróis, cavaleiros, carrinhos e bolas. Esse tipo de cisão de gênero fabrica um feminino atrelado ao espaço privado, ao passo que o masculino se desenvolve no mundo público. De acordo com Walkerdine (1995), na história do Ocidente, a mulher sempre foi apresentada como o lado irracional e o homem como o polo racional: “as mulheres representaram o Outro da Razão: elas continham o irracional” (WALKERDINE, 1995, p. 213). No entanto, é imputada à mulher-mãe a função de formar esse sujeito racional, pois “a mulher é sistematicamente posicionada, governada e regulada de duas formas: como mãe que deve estimular a criança autônoma em desenvolvimento e como mãe culpada por qualquer fracasso” (WALKERDINE, 1995, p. 213). Essa dualidade discursiva parece funcionar estrategicamente nas fabricações desse currículo. Isso ocorre nos excertos já citados e, também, quando são acionadas evidências científicas para destacar a centralidade da presença da mulher-mãe no acompanhamento do desenvolvimento cognitivo da linguagem das(os) filhas(os): “Há uma forte ligação entre o hábito materno de ler diariamente para crianças e o desenvolvimento cognitivo da linguagem e do vocabulário infantil aos 14, 24 e 36 meses” (BRASIL, 2019, p. 66, grifo nosso).

O excerto reproduzido acima, ao apresentar técnicas de interações verbais em família, prescreve a realização de leituras diárias pelas mulheres-mães com as crianças. Para isso, recorre à ideia naturalizada de que as tarefas de cuidado e acompanhamento, em casa, são responsabilidades da mulher-mãe, comunicando como verdade uma condição de “hábito materno” e recorrendo a saberes tidos como científicos, haja vista a menção a fases da primeira infância. O modelo de família prescrito nesse currículo espelha-se no arranjo familiar tradicional, pelo qual o pai é entendido como o racional-provedor, que participa do mundo público, e a mãe, como o polo irracional, cuida do lar e das crianças. Esse modelo faz com que, em nossa sociedade, as mulheres continuem sendo conformadas ao espaço doméstico e que assumam, majoritariamente, os cuidados com as(os) filhas(os) e as tarefas domésticas, mesmo que já tenham alguma inserção na vida pública.

A responsabilização das mulheres-mães fica ainda mais evidenciada quando o Guia prescreve práticas de interação verbal com bebês e destaca que “é recomendável usar a fala materna, aquela fala meiga que alonga as vogais e que naturalmente usamos com bebês, imitando voz de criança: ‘Coisiiinhaaa fooofaaa da mamãeee!’” (BRASIL, 2019, p. 32-33) [Destaques do documento]. A ideia fictícia e essencialista de que a fala de toda mulher-mãe é meiga expressa os atravessamentos de gênero divulgados por esse molde de literacia familiar, que, ao registrar tal prescrição, concebe o feminino como um todo homogêneo. Todavia, há um conflito presente nessa orientação, pois, ao mesmo tempo que o Guia diz que se deve evitar “falar a maioria das palavras no diminutivo, pois elas ficam mais longas e, consequentemente, mais difíceis de serem diferenciadas pelo bebê” (BRASIL 2019, p. 33), prescreve uma linguagem artificial ancorada na ideia de fala materna meiga. Essas estratégias, portanto, reafirmam a responsabilização das mulheres-mães como alvo da biopolítica, o que não se faz sem conflitos e confusões.

Em História da Sexualidade I, Michel Foucault (1988) dedicou-se à temática da “biopolítica das populações” e buscou analisar as novas dinâmicas das relações de poder que indicaram a família como elemento central às práticas de gestão da vida, que atuam por meio de duas grandes tecnologias: “anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida” (FOUCAULT, 1988, p. 131). Parece ser esse o modo de operação nesse currículo, tornando-se um instrumento de governo da família, numa estratégia biopolítica de investimento sobre um tipo de vida e uma forma singular de arranjo familiar, especialmente quando se entende, também com Foucault (2014), que o controle dos corpos e da sexualidade representa uma das mais eficientes formas de governo das populações.

Outro exemplo desse procedimento de poder pode ser visto no caso abaixo. O “seio familiar” ao qual o Guia faz referência diz respeito, exatamente, ao acolhimento, ao cuidado e à presença demandados das mulheres-mães:

Fonte: Brasil (2019, p. 8).

Figura 1 Estudos no “seio familiar” 

As indicações da literacia familiar, ancoradas em “estudos”, parecem funcionar como um artefato curricular para formar famílias que, independentemente de suas reais condições socioeconômicas, devem estar aptas a garantir o “sucesso escolar” das(os) suas(seus) filhas(os) no “seio familiar”. Esse aspecto, inclusive, reforça o caráter neoliberal dessa política de Governo, refletindo o atual contexto brasileiro de governamentalidade neoliberal2 conservadora, pela qual se empreende, como afirma Lockmann, não um “desaparecimento da noção de direito, mas talvez da sua privatização, centrando no sujeito a responsabilidade pelas suas condições de vida” (LOCKMANN, 2020, p. 72).

Diante disso, observamos que uma política implementada para ser efetivada na esfera doméstica, que aciona evidências científicas com relação ao “hábito materno” para se legitimar, só pode ter sido promovida na lógica de convocar as mulheres-mães para acatarem essa responsabilidade, uma vez que elas ainda são a maioria entre as pessoas que ocupam o espaço doméstico. Afirmamos isso em razão das pesquisas que, conciliando a perspectiva de gênero e o uso do tempo por parte dos indivíduos, têm demonstrado a sobrecarga de trabalho por parte das mulheres e problematizado a desigualdade na quantidade de tempo despendido, por homens e mulheres, em atividades cotidianas dentro de casa. Segundo Aguiar (2011), os cuidados com a casa e a família ainda são encarados como atribuição feminina. Para os estudos de gênero, o trabalho desempenhado dentro de casa é considerado invisível e não remunerado, mas deveria ser encarado como uma responsabilidade social e coletiva, com o desenvolvimento de políticas públicas para a equidade de gênero.

O procedimento de poder constituído pelo acionamento de evidências científicas para convencer as famílias de que a literacia familiar, no molde proposto, é a única e verdadeira forma de garantia de sucesso escolar das crianças, convoca uma suposta cientificidade, a “ciência cognitiva da leitura”, para balizar os mandamentos listados no Guia e sugerir ações que, no “seio familiar”, seriam cruciais para o desempenho escolar das crianças: “entre os ramos das ciências que mais contribuíram nas últimas décadas para a compreensão dos processos de leitura e de escrita, está aquele que se convencionou chamar ciência cognitiva da leitura” (BRASIL, 2019, p. 21, grifo nosso).

Tal fragmento mostra a preocupação do currículo em questão no sentido de firmar-se como verdade a partir de um discurso científico. De forma recorrente, o Guia destaca saberes de especialistas de instituições3 estadunidenses4 para balizar suas prescrições. Há uma seleção de saberes, advindos especialmente da fonoaudiologia, por meio da “consciência fonológica”, que é acionada nesse currículo, excluindo outros campos de saber que já se faziam presentes nesse terreno de disputas que é o campo das políticas literárias. Caldeira (2022, p. 6) reforça que a política recente do PNA, que instituiu o Conta pra Mim e faz circular o currículo em questão, tem por objetivo “desqualificar saberes e conhecimentos historicamente construídos no campo da alfabetização [brasileira], e insere-se no processo atualmente em curso de negar certos saberes e estabelecer modos únicos de gerenciar a vida”, afirmando que tal “desqualificação tem efeitos nas subjetividades de docentes, familiares e educandos/as” (CALDEIRA, 2022, p. 3).

Compreendemos, além disso, que o modo como as evidências científicas são apresentadas, estrategicamente, de maneira bastante superficial, parece fazer jus ao confuso jogo político que tem submetido as(os) brasileiras(os) a um contexto marcadamente reacionário e conservador. A racionalidade neoliberal, utilizada pelos movimentos reacionários e pelo Governo Federal, aciona o uso de evidências científicas para prescrever modos de condutas às famílias, mas, recorrentemente, combate a ciência em inúmeros outros campos, quando é de interesse. Deslegitimam diversos estudos científicos já empreendidos em várias universidades brasileiras, rechaçam a defesa da vacina contra o coronavírus, contestam e encobrem os dados estatísticos da covid-19, negam as questões do aquecimento global, balizam as conspirações sobre o terraplanismo, e empreendem, assim, uma discursividade negacionista acerca de um sem-fim de pesquisas científicas. Segundo Paraíso, esses grupos reacionários, em suas oposições e reações às muitas conquistas que beneficiaram o Brasil, “têm substituído o conhecimento científico por opiniões e pelo culto ao achismo” (PARAÍSO, 2019, p. 1416, grifo da autora).

Nesse campo de disputa, é possível problematizar o uso rudimentar de evidências científicas em um documento que parece ser destinado mais às mulheres-mães do que aos homens-pais. Utiliza-se a “ciência” com o objetivo de atuar no convencimento de mulheres. Segundo Dal’Igna (2011, p. 134), “na contemporaneidade, é preciso agir sobre a conduta do sujeito para torná-lo capaz de se autogovernar. Torna-se importante conduzir a família, e principalmente a mulher-mãe, a ver-se, interrogar-se sobre a sua própria conduta” na gestão da vida familiar. Nesse sentido, a demanda pela leitura de um documento que se nomeia como Guia pode ser compreendida como uma estratégia de biopoder relacionado a um conjunto de normas que estabelecem subjetividades femininas aptas a se conformar na posição de mulher-mãe-professora-do-lar que esse currículo pretende fabricar.

Ao recomendar as práticas de interação verbal, o Guia busca assegurar às famílias pobres, público preferencial do programa, uma transformação social que se condiciona exclusivamente à realização da literacia familiar, nos moldes prescritos. O programa demanda, assim, a posição de sujeitos mães/pais como figuras centrais ao aprendizado das crianças em casa, ao mesmo tempo que as(os) colocam como sujeitos faltosos, dependentes de um manual que conduza suas ações: “Quando empregadas por famílias pobres, as práticas de Literacia Familiar têm o poder de mudar a realidade apresentada nesses gráficos” (BRASIL, 2019, p. 16, destaque do documento, itálico nosso). Os gráficos aqui referidos são utilizados para respaldar empiricamente tal pressuposto como verdade e apresentam a quantidade de palavras proferidas e ouvidas, em família, por crianças de “níveis socioeconômicos” distintos:

Fonte: Brasil (2019, p. 15-16).

Figura 2 Gráficos 

Nota-se como esse currículo opera “um governo que se tornou centrado na administração ‘científica’ das populações” (WALKERDINE, 1995, p. 209) e que, ao acionar dados com estatuto de verdade científica, tenta convencer as famílias de classes mais vulneráveis de que a responsabilidade pelo desempenho escolar das(os) filhas(os) é apenas delas, silenciando qualquer problematização com relação às políticas públicas que deveriam garantir tal direito.

Ademais, em um país onde o acirramento da desigualdade social é um dilema socioeconômico cada vez mais complexo e a desvalorização da educação pública caminha a passos largos, tais procedimentos parecem negligenciar o contexto geral brasileiro, marcado, nos últimos anos, por severos cortes de investimentos federais na educação e pelo aumento do desemprego e da miséria5. Mesmo diante de tais circunstâncias, esse currículo recorre a estudos norte-americanos para interditar o modo de vida de famílias pobres, ao declararem uma concepção fantasiosa de organização familiar que, sobretudo, ignora as especificidades da desigualdade social brasileira. Ressaltam, desse modo, a convivência das famílias de classe média alta como sendo o arranjo social e a convivência mais adequada e verdadeira, como mostra o seguinte marcador de interações verbais: “Estudos conduzidos nos Estados Unidos da América evidenciaram que, entre as famílias pobres e as famílias de classe média alta, há um abismo tanto na qualidade quanto na quantidade das interações verbais entre pais e filhos” (BRASIL, 2019, p. 15 destaque do documento, itálico nosso).

Tal excerto explicita um tensionamento desse artefato cultural, denunciando que “enquanto as formas de vida e a cultura de alguns grupos são valorizados e instituídas como cânon, as de outros são desvalorizadas e proscritas” (SILVA, 2013, p. 190). Privilegia-se um modo de ser família de classe média alta e, dessa forma, é fixada uma noção particular de sujeito. Parece que, dessa maneira, colocam em funcionamento outra estratégia de governo da população. Ao apresentar o que é um problema das classes populares para a classe média, deseja-se que a classe média, ao visualizar o problema, não o reproduza. Afirmamos isso considerando que, nos moldes como a política é implementada, dificilmente essas prescrições serão lidas pelo público ao qual o programa diz se destinar (famílias pobres).

Ao relembrar o contexto reacionário e neoliberal que ampara a implementação do Conta pra Mim, concordamos com Ramalhete (2020, p. 156), quando diz que as orientações do Guia podem ser percebidas como mero “fingimento; afinal, em um Estado neoliberal sustentado por reformas, retiradas de direitos, jornadas exaustivas de trabalho, uberização da atividade laboral, precarização da classe trabalhadora”, poucas são as famílias que dispõem de tempo e condições financeiras para efetivarem a literacia familiar nos moldes estabelecidos pelo programa federal.

Dal’Igna (2011, p. 135) mostrou, em sua pesquisa de doutorado, que gênero e pobreza atravessam e constituem, em um contexto neoliberal, “ações de governamento [que] não estão dirigidas a todas as famílias, ou à família de modo geral, mas especialmente às mulheres-mães”. A pesquisadora identificou, a partir dos conceitos de pobreza e gênero, as “tecnologias de governamento que operam sobre as famílias pobres, sobretudo as mulheres-mães pobres, visando a torná-las capazes de contribuir ativamente, com apoio mínimo do Estado” (DAL’IGNA, 2011, p. 136). A pesquisa salientou também como esse tipo de governo age, sob a premissa da participação, no sentido de produzir uma mulher-mãe que se torne parceira da escola e, por conseguinte, responsabilize-se exclusivamente pelo desempenho escolar das(os) filhas(os).

De forma semelhante, ao comentar os estudos de Meyer sobre os processos contemporâneos de gestão da vida de mulheres-mães, a autora analisou uma “intensificação e uma multiplicação de investimentos educativo-assistenciais que focalizam a mulher, visando a transformá-la numa mãe cuidadosa” (MEYER, 2006 apud DAL’IGNA, 2011, p. 136), em articulação, desse modo, com os processos de gestão da vida, uma biopolítica. De acordo com os dois estudos, esse tipo de governo atua sob o “pressuposto de que o amor materno é um sentimento inerente à condição de mulher” (DAL’IGNA, 2011, p. 137), e, dessa forma, o biopoder governa a mulher-mãe cuidadosa para incorporar às políticas públicas uma concepção de que “os problemas sociais podem ser resolvidos, em grande parte, na medida em que a mulher-mãe se torna parceira do Estado” (DAL’IGNA, 2011, p. 136).

O Guia veicula a seguinte afirmação: “literacia Familiar é o reconhecimento de que os pais são os primeiros professores de seus filhos” (BRASIL, 2019, p. 12). De forma semelhante, o documento salienta, na portaria que o respalda, que seu princípio de atuação é “o reconhecimento da família como ator fundamental para o sucesso educacional dos filhos” (BRASIL, 2020). Ainda nessa direção, Caldeira (2022, p. 15) destaca que a PNA, que instituiu o Conta pra Mim, demanda a “posição de sujeito ‘pai/mãe responsável pela alfabetização’” das(os) filhas(os) ao convocar e orientar a família no acompanhamento das práticas de leitura em casa, deixando expresso o entendimento de que o ônus pelo desempenho escolar da criança é da família. Esses dizeres, articulados à informação de que o atual secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim6, “tem como uma de suas principais bandeiras (e também de seus negócios) o ensino domiciliar, ou homeschooling” (VALENTE, 2020)7, demonstram que o Conta pra Mim e o molde prescrito de literacia familiar se inserem em uma racionalidade que visa instaurar uma nova dinâmica educacional, domiciliar, na sociedade brasileira.

Considerando-se tais aspectos e ao analisar o Guia, é possível perceber a atuação de um governo por meio de saberes que afirmam uma lógica de educação domiciliar e um biopoder que pretende desempenhar sob as famílias as normalizações desejadas em uma sociedade conservadora e capitalista. Tendo em vista que o biopoder é elemento indispensável nesse sistema econômico, uma vez que “só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos” (FOUCAULT, 1988, p. 132), é plausível considerar que a manutenção de um modo de vida, gerida por meio de um tipo específico de arranjo familiar, é de interesse desse sistema capitalista, que demanda e fabrica corpos aptos a um modo de produção. Desse modo, a lógica desse currículo segue normalizando o modelo tradicional de família - pai na maior hierarquia, mãe e filhas(os) submissos ao pai -, favorável ao atual sistema político-econômico.

Ramalhete (2020), ao discorrer sobre a literacia familiar como um nicho problemático em defesa da educação domiciliar, destaca a impossibilidade de se discutir o programa Conta pra Mim sem que se preste uma devida atenção à atual conjectura política, que apoia iniciativas privadas de ensino e rechaça os direitos públicos à Educação Básica. Ao longo de todo o documento do Guia, fica exposta a intenção de conformar as famílias, no padrão nuclear heterossexual, para executar ações que se confundem com práticas desenvolvidas nas escolas, como pode ser visto no excerto a seguir, que pretende ensinar à família (mulheres-mães) como narrar o Conto de Fadas dos Três porquinhos:

Assim como na prática da Leitura Dialogada, selecione objetos para o momento da narração. Por exemplo, para contar a história dos três porquinhos, você pode ter em mãos um pouco de palha, um pedaço de madeira e um tijolo. Isso tornará a narração ainda mais atrativa para as crianças. (BRASIL, 2019, p. 54, grifo do autor).

Tal recomendação parece ser destinada às(aos) professoras(es), tendo em vista que esse tipo de orientação é muito comum às qualificações que se destinam a ensinar a contação de histórias nas escolas. No entanto, trata-se de uma orientação para que as famílias (mulheres-mães) executem, em casa, situações e vivências de narração de histórias com vistas a transmitir “valores importantes para a vida”, favorecendo o “desenvolvimento de habilidades relacionadas à compreensão oral” (BRASIL, 2019, p. 51). Os elementos transcritos no documento se assemelham a pressupostos curriculares da educação escolar, utilizados em diferentes planejamentos das práticas de ensino e aprendizagem, como também mostra o excerto a seguir: “as práticas de Literacia Familiar contribuem para o desenvolvimento desses Facilitadores da Alfabetização. Elas são a mola propulsora para aprender a ler, a escrever e a calcular!” (BRASIL, 2019, p. 17, grifo do autor).

A lista dos “Facilitadores da Alfabetização”, proposta pelo documento, contempla sete habilidades que, novamente, confundem-se com prescrições dos currículos utilizados nas escolas e, como já dito, são saberes advindos das “ciências cognitivas da leitura”, como pode ser visto em uma das páginas do Guia:

Fonte: Brasil (2019, p. 22).

Figura 3 Facilitadores da Alfabetização para as famílias 

Conforme salientado, tais prescrições, tão específicas a algumas práticas escolares, demonstram que esse currículo busca posicionar as mulheres-mães como professoras(es) das(os) suas(seus) filhas(os). Ao considerar algumas habilidades citadas pelo Guia, como consciência fonológica, fonêmica, alfabética, coordenação motora fina, entre outras, é inquietante pensar que apenas uma minoria das famílias brasileiras compreenderia tais expressões.

Apesar da complexa relação de poder que envolve os corpos das mulheres-mães e a efetivação do ensino domiciliar, o Guia, mesmo após apontar técnicas especializadas de ensino às crianças, ainda insiste na possibilidade de realização da literacia familiar, em casa, de maneira simples e sem muito conhecimento: “não é preciso ter muito estudo, materiais caros nem morar em uma casa toda equipada e espaçosa para praticar a Literacia Familiar. As práticas de Literacia Familiar são acessíveis a todos! Bastam duas coisas: você e seu filho!” (BRASIL, 2019, p. 13, grifo do autor). Com isso, o documento declara uma sofisticada estratégia de governamento, pois desresponsabiliza o Estado por medidas efetivas de acesso, oportunidade e qualidade educacional nas escolas brasileiras. A estratégia adotada, então, é de responsabilizar as famílias (mulheres-mães), de modo a abonar o Estado, tendo em vista que, se o Governo Federal considerasse a complexidade de tal questão, não haveria como atribuir somente às famílias (mulheres-mães) a responsabilidade pela literacia familiar. Nesse sentido, tal estratégia funciona demarcando a atuação do Estado em um suposto cumprimento de sua obrigação, que investiu recurso público em uma política como o Conta pra Mim a fim de pretender formar as famílias (mulheres-mães) para atuar como professoras(es) de suas(seus) filhas(os).

Ao hierarquizar e classificar a população, o programa atua pela prerrogativa de governar corpos aptos ao ensino domiciliar. José Castilho (VALENTE, 2020, s.p.), ao comentar o programa Conta pra Mim e seu formato de literacia familiar, ressalta que “essas platitudes valem para uma família de classe média alta, talvez dos EUA” (VALENTE, 2020), uma vez que, no Brasil, a impossibilidade financeira e o contexto de precarização do trabalho inviabilizam a efetivação de tal proposta. Ainda segundo o pesquisador, o Conta pra Mim pode ser percebido como fantasia, “já que o próprio Estado não provê as devidas condições para que os pais [as mães e demais responsáveis] possam de fato chegar em casa e encontrar as crianças que, durante o dia, já foram à escola em tempo integral” (VALENTE, 2020, s.p.). O que se vê é um governo dirigido para um tipo específico de família: nuclear, heterossexual e de classe média. Além do mais, no Brasil, é esse o arranjo familiar que costuma ser alvo de políticas, campanhas federais e outros anúncios, como afirma Xavier Filha (2012, p. 314): “os indicativos desta idealização [família nuclear] são facilmente encontrados em propagandas e outros artefatos culturais produzidos socialmente”.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises tecidas, é possível perceber como o Guia de Literacia Familiar está imerso em relações de poder-saber que objetivam a gestão da vida das pessoas que o vivenciam, por meio desse tipo de proposição de literacia familiar. É nesse contexto que ele pode ser compreendido como um currículo cultural que perfaz a técnica de biopoder para prescrever um padrão de família nuclear heterossexual, a partir de procedimentos específicos de poder. Nessa direção, ele demanda mulheres-mães que se ocupem da educação de suas(seus) filhas(os) no espaço doméstico, reforçando as normas de gênero, utilizando-se de evidências científicas simplificadas e tentando fomentar a educação domiciliar. Desse modo, empreende-se uma administração da vida pelo corpo e realiza-se uma “gestão calculista da vida” (FOUCAULT, 1988, p. 131), por meio de divisões e separações dos sujeitos-alvo desse currículo, para obter a sujeição dos corpos e o controle da população.

O poder, assim, funciona na comunicação efetiva de normas de gênero, que naturalizam a conformação de corpos-femininos no espaço doméstico, uma vez que “a produção e a circulação de elementos significantes podem perfeitamente ter por objetivo ou por consequências efeitos de poder” (FOUCAULT, 1995, p. 240). Contudo, como nos mostram os estudos de gênero, bem como os estudos pós-críticos de currículo, tanto gênero quanto currículo não são campos findados, por meio dos quais o poder se exerce apenas para normatizar e regular. O poder, em sua positividade, também produz resistência e, assim, compreendemos que esse currículo cultural assume um caráter transitório e coexiste com outras formas de incentivo à leitura literária, em casa, capazes de privilegiar a expansão da responsabilidade com a educação das crianças, não a associando apenas às mulheres-mães.

2Segundo Lockmann (2020, p. 71), “a governamentalidade neoliberal conservadora, [...], mantém como princípio a inclusão de certos grupos da população, mas não de todos. [...], a imposição de um modelo de família, a exclusão das discussões de gênero e sexualidade [...] demonstram essa nova face da exclusão, que reaparece e se reconfigura no cenário contemporâneo”.

3As instituições estadunidenses são: “University of North Carolina at Chapel Hill” e “Université du Luxembourg”.

4Ademais, além dessa importação de saberes, a política escolhe como mascote do programa um animal que não pertence à fauna brasileira, um urso, com a pretensão de representar de modo “lúdico” as práticas de literacia familiar.

5Notícias que evidenciam tal cenário podem ser vistas nos principais meios de comunicação, especialmente em jornais online, como, por exemplo: Com inflação e desemprego em alta, 'índice de miséria' tem patamar recorde no país, publicada em 11/08/2021. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/08/11/com-inflacao-e-desemprego-em-alta-indice-de-miseria-tem-patamar-recorde-no-pais.ghtml Acesso em: 15 set. 2021.

6As ideias de Carlos Nadalim “circulam na internet desde 2013, quando ele criou o blog Como Educar seu Filhos, e agradam aos entusiastas da Educação domiciliar [...]”. Disponível em : https://novaescola.org.br/conteudo/16065/quem-e-e-o-que-pensa-carlos-nadalim-o-novo-secretario-de-alfabetizacao-do-mec. Acesso em: 2 maio 2021. “Antes de assumir o cargo de Secretário de Alfabetização, em fevereiro de 2019, Nadalim era coordenador pedagógico da escola Mundo do Balão Mágico, em Londrina (PR). Foi cofundador do blog Como educar seus filhos, [...]. Afirma ter ajudado, “pela internet, 1.630 pais e mães a alfabetizarem seus filhos em casa”. Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/noticias/politicas-do-livro/conta-outra. Acesso em: 2 maio 2021.

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Recebido: 07 de Setembro de 2022; Aceito: 04 de Outubro de 2022

Maria Beatriz de Freitas Vasconcelos: Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na linha de pesquisa “Currículos, Culturas e Diferença”. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Professora alfabetizadora do Centro Pedagógico da UFMG. E-mail: mariabeatrizrn@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7509-6420

Maria Carolina da Silva Caldeira: Doutora e mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação Conhecimento e Inclusão Social em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Pedagogia pela UFMG. Professora do Centro Pedagógico da UFMG. Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social, da Faculdade de Educação da UFMG, na linha de pesquisa Currículos, Culturas e Diferença. E-mail: mariacarolinasilva@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0668-1989

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