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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dic 2022  Epub 16-Feb-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1726 

Artigos

Currículo cultural na aula de História: um estudo de caso

Cultural curriculum in History class: a case study

Currículo cultural en la clase de Historia: un estudio de caso

1Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil


Resumo

Partimos da compreensão de que os diferentes espaços sociais em que circulamos divulgam e instituem práticas discursivas, que podem ser lidas como currículo que fomenta modos de vida e que participam do jogo da produção de verdades. Isso signifi ca dizer que seguimos as perspectivas teóricas pós-críticas que entendem que os currículos não se restringem às disciplinas escolares e aos saberes nelas constituídos, mas se fazem presentes em diversas culturas e artefatos culturais. É o conceito de currículo cultural que nos conduz a problematizações em torno de um artefato cultural que foi utilizado como suporte para uma aula de História sobre os silenciamentos na Revolução Russa realizada numa escola pública federal, em 2022. Trata-se de um vídeo com o discurso da vereadora Marielle Franco, no Dia Internacional da Mulher. Nosso propósito é assumir a problematização como metodologia, a qual nos convida a pensar os discursos que organizam a fala, assim como a utilização do vídeo como artefato cultural potente para pensar as relações entre currículo escolar e currículo cultural não escolar.

Palavras-chave: currículo cultural; ensino de História; feminismos

Abstract

We start from the understanding that the different social spaces in which we circulate disseminate and institute discursive practices, which can be read as a curriculum that promotes ways of life and that participate in the game of producing truths. This means that we follow the post-critical theoretical perspectives that understand that curricula are not restricted to school subjects and the knowledge constituted in them, but are present in different cultures and cultural artifacts. It is the concept of cultural curriculum that leads us to problematize around a cultural artifact that was used as a support for a History class on the silencing in the Russian Revolution held in a federal public school, in 2022. It is a video with the speech of councilor Marielle Franco, on International Women’s Day. Our purpose is to assume problematization as a methodology that invites us to think about the discourses that organize speech, as well as the use of video as a powerful cultural artifact to think about the relationships between school curriculum and non-school cultural curriculum.

Keywords: cultural curriculum; History teaching; feminisms

Resumen

Partimos de la comprensión de que los diferentes espacios sociales en los que circulamos difunden e instituyen prácticas discursivas, que pueden leerse como un currículo que promueve formas de vida y que participa del juego de producir verdades. Esto significa que seguimos las perspectivas teóricas poscríticas que entienden que los currículos no se restringen a las materias escolares y los saberes constituidos en ellas, sino que están presentes en diferentes culturas y artefactos culturales. Es el concepto de currículo cultural lo que nos lleva a problematizar en torno a un artefacto cultural que sirvió de apoyo a una clase de historia sobre los silenciamientos en la Revolución Rusa realizada en una escuela pública federal, en 2022. Se trata de un video con el discurso de la concejala Marielle Franco, en el Día Internacional de la Mujer. Nuestro propósito es asumir la problematización como una metodología que invita a pensar los discursos que organizan el discurso, así como el uso del video como un poderoso artefacto cultural para pensar la relación entre el currículo escolar y el currículo cultural no escolar.

Palabras clave: curriculum cultural; enseñanza de la Historia; feminismos

1 INTRODUÇÃO

Essa é a mais justa razão de uma aula de História: tornar o mundo o que ele ainda não é! (PACIEVITCH et al., 2019, p. 1612)

“Não serei interrompida, não aturo interrompimento dos vereadores dessa casa. Não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita”. Com essas frases Marielle Franco2 barrou a manifestação de um senhor, presente na tribuna da Câmara dos Vereadores. A vereadora carioca discursava no dia 8 de março de 2018, na comemoração do Dia Internacional da Mulher, quando percebeu a manifestação de um senhor que assistia à sessão. Na ocasião, ela destacava a necessidade de resistência das mulheres como enfrentamento à violência, recorrendo à História para chamar atenção ao fato de que essa luta não é de agora.

Neste 8 de março, um março histórico. Um março que a gente fala de flores, de lutas, de resistências, mas um março que não começa agora, muito menos um mês para pautar a centralidade da luta das mulheres. A luta por vida digna, a luta pelo direito humano, a luta pelo direito das mulheres, precisa ser lembrada e não é de hoje, é de séculos. Inclusive com uma origem de séculos passados aonde nas greves e manifestações, principalmente as russas no período pré-revolucionário, lutaram com firmeza, lutaram por direitos trabalhistas [...] A luta das mulheres que começa lá atrás na revolução que reverenciamos, que comemoramos em 2017 de um século, na luta por demarcação das mulheres indígenas, da luta das minhas irmãs mulheres negras que vieram antes de nós, que resistiram tamanho absurdo que foi o período da escravidão. A luta de toda forma... pelo fim de toda forma de opressão que se reflete no racismo, na misoginia, na luta contra o patriarcado. E assim a gente segue lutando. (Informação verbal).3

O que nos chama atenção no trecho acima é como a História é acionada para demonstrar que a luta das mulheres não é de hoje e, mais do que isso, que ela exige a continuidade. Ela é parte de um processo histórico e, portanto, de certo compromisso com um novo tipo de mundo, um futuro que só parece possível na medida em que a História seja entendida como construção, como algo que está em constante reconstrução. Marielle Franco, mulher negra, favelada e lésbica convocava Rosa de Luxemburgo, as mulheres indígenas e suas irmãs negras para reivindicar outras narrativas da História, para que possamos pensar outras formas de existências.

Uma narrativa que contava uma outra história, a história da luta das mulheres. Foi neste momento que surgiu um grito que festejava a ditadura militar. Um grito que interrompia o discurso. Um senhor branco que também acionou a História. Como reação. Como provocação. Com isso, ele requeria a continuidade da violência, do silenciamento e do autoritarismo. Defendia uma outra história diferente dessa que Marielle estava construindo. Reivindicava, assim, a continuidade de uma história da violência. Ao festejar, ele colocava a história da ditadura como positiva. A manifestação em favor da ditadura militar teve a pretensão de silenciar Marielle Franco. Em tempos de cultura visual, tudo foi devidamente gravado e disponibilizado nas redes socais. A disputa pela História se transformou num artefato cultural, num vídeo que pode servir para diferentes fins, inclusive para problematizar essas práticas de silenciamento. Foi esse embate que foi levado para a sala de aula de História por duas professoras do nono ano do Ensino Fundamental, numa escola pública federal na cidade de Juiz de Fora, MG, que utilizaram esse trecho como suporte para uma aula sobre o silenciamento das mulheres na revolução Russa de 1917. E são esses dois movimentos – o discurso de Marielle e o vídeo na aula de História – que vamos tomar como foco de análise das nossas problematizações sobre os currículos culturais na aula de História.

Quando Marielle Franco destaca a luta das mulheres na História, ela classifica essas ações como resistência. Com isso, fornece um sentido social para as ações desse grupo social quase sempre ausente no currículo de História. O que pretendemos demonstrar com isso é que a fala da vereadora dialoga com o currículo escolar de dois modos. Por um lado, a fala serve para anunciar um campo de silenciamento, qual seja, a ausência do protagonismo das mulheres na história. Por outro lado, anuncia a existência de um outro currículo não escolar que embasa sua fala. Podemos supor que esse currículo não escolar tenha sido incorporado nos diferentes espaços em que a vereadora circula e aprende. Currículos não escolares que se articulam com os currículos dos movimentos sociais, dos feminismos e das relações de gênero e raça.

Tanto Marielle quanto o senhor, ao se manifestarem, dialogam com o currículo escolar. São falas que partem de um currículo, de uma forma de conhecer e de lidar com a realidade a partir de uma determinada compreensão da História. O currículo oficial não dá protagonismo às mulheres (FERRARI, 2021; BAPTISTA, 2021). Na Base Nacional Comum Curricular, as discussões de gênero sofreram uma perseguição e um apagamento que mantiveram a História como uma ação do homem enquanto gênero masculino e que tem efeitos nos livros didáticos, por exemplo. Neles o debate de gênero segue de forma pontual e marginal, como destaca Bruna Cruz Baptista (2021), para quem a falta da “centralidade a este assunto quanto à participação das mulheres enquanto agentes da história” as mantém invisibilizadas. Estamos diante da manutenção de “uma história linear, dos “grandes feitos históricos”, a partir de uma narrativa eurocêntrica e masculina” (p. 424-425). O discurso de Marielle parece contribuir para a denúncia desse silenciamento e dessa falta. No entanto, assim como não temos o protagonismo da história das mulheres, tampouco há uma limitação da discussão da ditadura às suas ações de repressão e violência. Podemos dizer que o tratamento ao período da ditadura civil militar brasileira, entre 1964 e 1984, é marcado pelas ações de resistência ao regime autoritário, como, por exemplo, nas artes, na luta urbana e rural. No ensino de História, o período da ditadura militar é entendido como um momento de reflexão sobre os efeitos nefastos aos/às cidadãos/cidadãs quando a democracia é destruída. Portanto, comemorar a ditadura militar é propor um outro currículo, em favor do silenciamento das mulheres, e limitar seu entendimento à violência, como se não tivessem ocorrido resistências.

Onde estão, supostamente, os currículos não escolares que embasam a fala de Marielle Franco? O que acontece quando os currículos culturais não escolares se encontram com o currículo escolar? São essas perguntas que tomamos como problematizações para construir o argumento defendido no artigo, ou seja, de que a fala da vereadora carioca está embasada nos currículos culturais não escolares que constituem como verdades conhecimentos outros, muitas vezes silenciados e invisibilizados nos currículos oficiais e escolares. No entanto, por não estarem isolados da cultura, que acontece fora do seu território, os currículos escolares são atravessados e tensionados pelos currículos culturais não escolares. Para desenvolver esse argumento, nosso propósito é, primeiramente, problematizarmos a História e o Ensino de História como campo de disputa, para, em seguida, pensar na construção de aulas em diálogo com o cotidiano dos/as alunos/as e que considere o funcionamento de currículos culturais não escolares.

2 A HISTÓRIA E O ENSINO DE HISTÓRIA COMO CAMPOS DE DISPUTA

Podemos supor que o enfrentamento entre a vereadora e o senhor diz da discussão sobre o ensino de história, sobre os encontros e desencontros entre os currículos escolares e não escolares, sobre nosso atual debate das políticas de identidade. Esse fato, por si só, já nos fornece condições para problematizarmos a História como campo de disputa e para pensarmos o currículo como parte constituidora desse campo. Com isso, queremos partir da ideia de que o ensino de História e o currículo de História são espaços de “hibridização epistemológica onde se mesclam teorizações produzidas em diferentes áreas de conhecimento e campos disciplinares. Lugar fronteiriço, o ensino de história se apresenta como um terreno movediço, contestado e de difícil apreensão” (ANHORN; COSTA, 2011, p. 128). Os currículos são reivindicações sociais, são resultados de um processo de fabricação que ocorre nos espaços sociais, sejam nas escolas e salas de aula, sejam na Câmara dos Vereadores.

Eles envolvem interesses, conflitos e busca por legitimação e controle que interseccionam gênero, raça e classe. Não por acaso, Marielle Franco associa outras lutas no Dia Internacional da Mulher. “A luta de toda forma... pelo fim de toda forma de opressão que se reflete no racismo, na misoginia, na luta contra o patriarcado. E assim a gente segue lutando”. A construção não é somente pelo fim de toda forma de opressão, mas de um projeto de Nação ligado às formas de conhecer, de tal maneira que o currículo reivindicado não é aquele constituído de conhecimentos valorizados, válidos e aceitos, mas daqueles socialmente reconhecidos, legítimos e necessários.

Marielle, como mulher negra, favelada e lésbica, coloca-se como herdeira dessa luta histórica das mulheres, ao mesmo tempo que se responsabiliza por sua continuidade. A disputa em torno da História das mulheres implica o currículo nas discussões sobre as questões de gênero e, assim, tenta responder às perguntas: o que cabe às mulheres? Quais são os lugares possíveis de fala e de posição política das mulheres? Perguntas que exigem pensar nossa realidade a partir de suas marcas de historicidade e que nos convidam a refletir sobre o currículo da História, tanto acadêmico quanto escolar.

A partir das teorias pós-críticas, estamos entendendo que os currículos não se restringem às disciplinas escolares e os saberes nelas constituídos, mas se fazem presentes em diversas culturas e artefatos culturais. Por isso mesmo, eles estão em

[...] bibliotecas, nos museus, nas propostas político-pedagógicas, nas diferentes formações, na pesquisa educacional, na internet, nos jogos, nas brincadeiras, na mídia, no cinema, na música, na cultura, no cotidiano. (PARAÍSO, 2010, p. 37).

Os movimentos sociais são responsáveis também por constituir um currículo específico. Currículo esse que faz emergir determinados conhecimentos que nem sempre dialogam com aqueles tomados como verdade nos currículos oficiais.

Por isso, currículo cultural não escolar será tomado como uma prática discursiva que produz não somente saberes, mas significados e sujeitos. Assim, partimos da compreensão de que os diferentes espaços sociais em que circulamos divulgam e instituem determinadas práticas discursivas, que podem ser lidas como um currículo que fomenta modos de vida e que participa do jogo da produção de verdades. Esses aspectos mostram sua “[...] importância fundamental nas políticas e nas lutas culturais contemporâneas” (PARAÍSO, 2010, p. 43). O discurso do movimento social parece organizar a fala de Marielle. “A luta por vida digna, a luta pelo direito humano, a luta pelo direito das mulheres, precisa ser lembrada e não é de hoje, é de séculos. Inclusive com uma origem de séculos passados aonde nas greves e manifestações, principalmente as russas no período pré-revolucionário, lutaram com firmeza, lutaram por direitos trabalhistas”. A valorização da luta, a implicação do presente com o passado e as formas de luta como as greves e as manifestações são marcas dos movimentos que apostam na articulação que se dá no social a partir de formas de conhecer e de nos entendermos como sujeitos históricos. A concepção de História que está presente é aquela entendida como construção, resultado das ações humanas, o que nos convida a agir sobre a realidade.

Não se trata de uma fala qualquer, mas de uma convocação para que as mulheres sejam entendidas como sujeitas da História, que se filiem “na luta por demarcação das mulheres indígenas, da luta das minhas irmãs mulheres negras que vieram antes de nós, que resistiram tamanho absurdo que foi o período da escravidão”. Os movimentos indígena e negro são acionados como exemplos de resistência que nos ensinam formas de transformação da sociedade. Marielle produz conhecimento. Ela é resultado desse currículo cultural não escolar. Os movimentos feministas, por exemplo, produziram significativas transformações nas formas como vivemos e conhecemos o mundo. Afirmamos isso por compreendermos que muitas das pautas históricas dos feminismos “se tornaram parte integrante da sociedade, como o direito de a mulher frequentar universidades, receber salários iguais e candidatar-se ao que quiser” (DUARTE, 2019, p. 25). O desafio é levar essas formas de conhecer para as escolas, para os professores e as professoras, para os alunos e as alunas, de maneira que possam conhecer e potencializar a produção dessa história e dessas lutas. Isso porque essa história e essa luta dizem de processos formativos, de construção de outros conhecimentos, outras relações entre cultura e valores que podem ser problematizados nos currículos e nas práticas escolares e não escolares.

A produção de conhecimento das perspectivas feministas é um traço marcante que atravessa – de múltiplas formas – a existência dos feminismos ao longo das décadas. Diversos estudos e textos de historiadoras do movimento feminista ocidental branco demonstram tal característica, dentre os quais destacamos os trabalhos de Constância Duarte (2019) e Margaret Rago (2001). Ao construir um apanhado histórico sobre o feminismo branco no Brasil, Duarte (2019) defende que a forma de pensar feminista transformou não apenas as relações entre homens e mulheres em nosso país, mas também reivindicou e produziu novas possibilidades de ser e de saber a partir da luta pela entrada das mulheres brancas nas escolas, universidades e na vida política. Além disso, ao estabelecer um detalhado panorama histórico sobre o surgimento do feminismo no ocidente e sua relação de historicidade com a atualidade, Rago argumenta que “uma das questões centrais do feminismo, antes e agora, tem sido a de propor a construção de identidades femininas sob outras bases e parâmetros conceituais” (RAGO, 2001, p. 59). É possível percebermos que o potencial produtivo e transformador do feminismo é uma marca de suas características fundamentais. A questão é pensar como esses conhecimentos estão impactando as aulas de História? Como eles estão servindo para pensar outro ensino de História que não silencie as mulheres?

Cabe ressaltar que não são apenas os feminismos branco e/ou ocidentais que trazem em suas perspectivas a força produtiva de novos saberes e formas de ser. Diversos outros feminismos (Feminismo Jovem, Transfeminismo, Putafeminismo, Ecofeminismo etc.) têm esta característica, dentre os quais, os Feminismos Negros, como uma potente teoria e epistemologia para pensarmos o feminismo em diálogo com diferentes categorias analíticas além do gênero – como raça, classe e sexualidade. São as autoras feministas que, em grande medida, têm tensionado as ditas versões oficiais da História, debruçando-se em torno da realidade material das mulheres. São elas “que leem a escravidão numa chave de gênero, classe e sexualidade, e que acreditam que a história é uma ferramenta política, porque nos incentiva a enxergar como, no presente, essas práticas se atualizam” (DIAZBENITEZ, 2020, p. 266). Em última análise, as autoras feministas nos convocam a pensar as disputas entre os currículos escolares e não escolares e a importância da produção de brechas que enunciem uma aula de História problematizadora.

Foram esses jogos de disputa entre os currículos escolares e não escolares que chegaram à sala de aula. O enfrentamento entre Marielle Franco e o senhor se transformou num suporte para uma aula de História. Isso nos permite tomar essa aula de História para problematizar sua função política diante das demandas do tempo presente no que diz respeito à fixação de currículos e seus sujeitos, ainda que de forma provisória. Os currículos escolares e não escolares presentes nesse enfrentamento dizem das políticas de identidade e suas reivindicações, o que nos provoca pensar sobre o conhecimento histórico em diferentes espaços de aprendizagem, assim como a socialização dos sentidos de passado e as possibilidades de subversão do currículo oficial do ensino de História. Como os currículos são campos de tensão entre o passado e o futuro?

O objetivo central foi debater sobre os apagamentos históricos na Revolução Russa. No entanto, também fazia parte dos objetivos da aula problematizar, junto aos e às estudantes, os apagamentos históricos produzidos em nosso próprio tempo. Foi nesse ponto que o discurso proferido por Marielle Franco foi introduzido na aula como suporte inicial. A ideia era partir dos debates em torno das construções de memória sobre a vereadora brutalmente assassinada na cidade do Rio de Janeiro, em 2018. A intenção era construir junto aos e às estudantes a problematização em torno do jogo de “saber-poder” (FOUCAULT, 2006) que constrói as diferentes narrativas históricas a partir desses encontros e desencontros entre os currículos escolares e não escolares.

A aula ocorreu no trabalho de codocência entre duas professoras de História, como parte do projeto de Residência Docente4. Elas partiram de perguntas disparadoras que tinham como objetivo deslocar a turma para pensar criticamente a produção da História e da Memória. A quem as pautas defendidas por Marielle incomodavam? Por que a memória de Marielle Franco é importante para a luta contra o machismo e o racismo no Brasil? Para disparar o processo de problematização, levaram um fragmento do discurso em vídeo. No trecho do discurso, que se encontra no início deste artigo, Marielle afirma a potência das mulheres na política, no exercício da democracia e na luta pelos direitos dos periféricos. O movimento seguinte foi o de organizar a aula de História a partir da problematização, tomando como base as perguntas citadas anteriormente como potencialidade para dialogar com os debates feministas na aula de História, de se pensar outros currículos possíveis. A narrativa de uma das professoras ao falar do impacto de tal ação nos convida a pensar os encontros entre os currículos escolares e não escolares a partir da aula.

Durante o diálogo em sala, tivemos o prazer de perceber estudantes de mãos levantadas, muitos queriam falar, queriam demonstrar que estavam entendendo a importância do debate, queriam contribuir, complementar, construir juntos e juntas. Por diversas vezes deslocaram a problematização do tema para pensar seu cotidiano. Como por exemplo quando ouvimos estudantes dizerem: “Se calaram uma mulher que tinha a força e o alcance político da Marielle, imaginem o que não fariam com uma de nós?” ou “Será que a história seria a mesma se ela fosse um homem branco rico ?”. Pensar que as perguntas norteadoras geraram outras perguntas, outros questionamentos nos e nas estudantes me faz crer que neste dia a aula de História cumpriu seu papel de produzir outras possibilidades a partir das suspeitas sobre si e sobre o mundo. No entanto, cabe ressaltar que esta aula de História não se ancorou em uma forma catedrática, embranquecida e eurocentrada de pensar o ensino de História. Pelo contrário, deslocou-se, usando a problematização como principal ferramenta para pensar os diferentes sujeitos na construção da História e da Memória em diálogo com as feministas, bem como foi recortada e embasada por teorias feministas. (Professora. Diário de Campo, 2022).

Há outro elemento em torno desta aula que merece destaque, ou seja, a transformação da relação das meninas negras e de alguns meninos negros com a disciplina de História. Segundo a professora que acompanha a turma desde o início do ano, a aula sobre a História e a Memória da vereadora Marielle Franco foi uma espécie de “divisor de águas” para alguns e algumas estudantes. Isso porque, muitos alunos e muitas alunas (sobretudo negros e negras) que antes não se implicavam com as aulas passaram a se interessar. Retomavam a aula para estabelecerem conexões políticas, econômicas e sociais com o ocorrido. Demonstravam desejo em se entenderem como parte desse processo histórico. Em sua maioria, foram marcados e marcadas pelo fato de que a vereadora tinha um discurso de luta pelos favelados, pelos negros e pelas negras, pelos direitos das mães. Ao notarem isso, os e as estudantes constroem narrativas de aproximação com Marielle Franco, sentindo-se representados e representadas por sua luta, veem em seu discurso necessidades palpáveis de seu cotidiano. A aula de História se tornou um solo fértil para imaginar outros mundos possíveis, como uma ferramenta que abre portas e janelas para a importante arte de projetar-se diferente daquilo que se é hoje. Para tanto, foi importante que compreendessem a História como construção e a aula da História como um espaço de construção de resistências.

Tomando Caroline Pacievitch et al. (2019) como inspiração, defendemos que a resistência precisa ser um dos principais compromissos da aula de História. É a partir do acesso a outras histórias e a outras perspectivas que se estabelece o processo de humanização dos sujeitos. A partir disso constroem-se possibilidades para que cada um e cada uma entenda que aquilo que somos hoje não está dado de maneira imutável “podemos pensar em outros mundos, já que o futuro se apresenta, agora, não como desdobramento do que é hoje, mas das escolhas que podem ser feitas” (PACIEVITCH et al., 2019, p. 1635). Essa é a aposta que ancorou a escolha da reação de Marielle Franco diante da interrupção do seu discurso. O discurso dizia de um outro mundo possível quando foi interrompido. A resposta da vereadora também se coloca como a construção de um outro mundo, aquele em que o debate acontece distante da polêmica, como nos ensina Michel Foucault (2006). Levar o vídeo para sala de aula é uma forma de ensinar os alunos e as alunas o poder do debate com embasamento, fundamentado no conhecimento histórico.

Seguindo as trilhas de Michel Foucault, estamos entendendo a aula de História como espaço do debate, lugar da problematização, e não da polêmica (FOUCAULT, 2006). O filósofo francês opõe a polêmica à problematização, colocando-se como um problematizador, e não um polemista. O polemista “não tem diante dele um parceiro na busca da verdade, mas um adversário, um inimigo que está enganado, que é perigoso e cuja própria existência constitui uma ameaça”. (p. 226). O polemista não reconhece no outro o direito à palavra, seu objetivo é excluir seu adversário. Essa parece ser a lógica que organizou a interrupção do senhor à fala de Marielle Franco. Mais do que interromper, ele comemora a ditadura militar como uma forma de ameaça. Ele parece querer retomar um tempo conhecido como aquele que cala, que silencia e que exclui seus adversários.

Diferentemente do polemista, o problematizador coloca sob suspeita nossas formas de pensar e agir. Ele questiona o presente e, ao fazer isso, ele usa um direito, o de “não ter certeza, perceber uma contradição, ter necessidade de uma informação suplementar, defender diferentes postulados, apontar um erro de raciocínio” (FOUCAULT, 2006, p. 225). O problematizador investe na liberdade do pensamento. “O pensamento é liberdade em relação àquilo que se faz, o movimento pelo qual dele nos separamos, constituímo-lo como objeto e pensamo-lo como problema” (p. 232). Foi com esse sentido que a aula de História foi pensada, num investimento em colocar sob suspeita nossas formas de pensar e agir e tomando o currículo de história como em disputa. O que estava em vigor era um entendimento de aula de História como lugar de problematização capaz de construir resistências e recriações. Seguindo por esta senda, podemos nos perguntar: como estas novas formas são produzidas na aula de História? Pacievitch explica que isso ocorre na produção de “fissuras nas práticas pedagógicas e no pensamento eurocêntrico” (PACIEVITCH et al., 2019, p. 1613), de tal maneira que podemos repensar outras temáticas, assim como problematizar “as relações entre passado e presente e as abordagens de questões sensíveis como elementos através dos quais é possível produzir novas histórias, dar relevo a novas subjetividades e criar expectativas de futuros” (p. 1613).

Entender a aula de História desta forma diz de uma aposta em um Ensino de História que tem como centralidade a produção de sentido para o que foi trabalhado em sala de aula. Não se trata do passado pelo passado ou da repetição irrefletida de datas e nomes. Defendemos que o compromisso da aula de História como espaço de resistência se realiza quando alunos e alunas conseguem atribuir sentidos, no tempo presente, para aquele recorte do passado que estão estudando.

De que maneira esta produção de sentido acontece? Inspirados por Fabiana Almeida (2021) e Sônia Miranda (2013), compreendemos que uma das formas de promover esta produção de sentido se estabelece quando professoras e professores se esforçam em ancorar suas aulas de História no diálogo pendular entre o passado e o presente. A aposta é na provocação dos e das estudantes no sentido de se indagarem sobre o presente, apropriando-se de recortes do passado que os ajudem a levantar hipóteses, colocar em suspeita quem somos a partir do entendimento dos processos históricos. “O Ensino de História cumpre seu papel quando somos capazes de indagar sobre o nosso tempo e decidir que marcas vamos deixar para o futuro” (ALMEIDA, 2021). Para nós, a potência da aula de História reside, exatamente, em sua vivacidade e na possibilidade de problematizarmos o passado, tendo o presente como nosso disparador. Compreender a aula de História como um espaço de resistência em que há a produção de sentidos para os conteúdos trabalhados, a possibilidade de recriar, de problematizar e de imaginar outros devires a partir do fluxo entre presente e passado significa entender que a aula de História se estabelece muito além dos conteúdos de um passado que se queira imutável.

3 O COTIDIANO DOS/AS ALUNOS/AS E O DIÁLOGO COM OS CURRÍCULOS CULTURAIS NÃO ESCOLARES

A aula de História é viva, o que significa dizer que ela é gesto, fala, resmungo, sussurro, demonstração de afeto e de desafeto, debate acalorado, mas que também pode ser silêncio. A vivacidade de uma aula não é exclusividade da aula de História. Ela parece ocorrer nas aulas de qualquer disciplina que incite a participação dos/das alunos/as, que desperte memórias, sentidos, emoções e que cause deslocamentos, problematizações, possibilitando outras formas de pensar e agir, ser e estar no mundo. Uma aula que deixa brechas para as inúmeras apropriações e ressignificações dos e das estudantes a fim de darem sentido para seu cotidiano a partir das problematizações como provocação a nos repensarmos. É a partir dessas provocações, das suspensões, dos questionamentos, que parece possível pensarmos na construção daquilo que o mundo ainda não é, mas pode vir a ser. Um mundo projetado, mas que mantêm seus vínculos com o passado. Esse sentido de aula de História que trabalha com um currículo móvel, aquele que se constrói na sala de aula a partir do diálogo com aquilo que os alunos e as alunas são capazes de pensar, produzir e dizer fortalece a crença da professora num tipo de aula que possibilita outras formas de ser e estar no mundo. A professora nos conta que, por “diversas vezes deslocaram a problematização do tema para pensar seu cotidiano”. A aula de História serviu para que pudessem pensar seus cotidianos de silenciamento e de agressão. “Se calaram uma mulher que tinha a força e o alcance político da Marielle, imaginem o que não fariam com uma de nós?” ou “Será que a história seria a mesma se ela fosse um homem branco rico?”. Questionamentos que se concentram numa questão importante para o ensino de História na sua relação com o currículo: o que significa educar para a compreensão da História? Em certa medida, é isso que os alunos e as alunas estão colocando sob suspeita. Estão compreendendo que a História como disciplina é resultado de construção, que ela é um discurso sobre o passado, e não o passado.

Mais do que questionar, os alunos e as alunas estão trazendo a História que aprenderam na escola, nos livros didáticos e nas aulas para pensar as condições de emergência do embate entre Marielle Franco e o senhor apoiador da ditadura. Quando se perguntam se a história seria a mesma se quem tivesse discursando fosse um homem branco e rico, eles e elas negociam com a História que aprendem. Ainda hoje, os livros didáticos de História estão organizados por uma concepção positivista da historiografia, o que significa dizer que eles prezam por narrativas de grandes acontecimentos, aqueles oficiais, que servem para construir a imagem do herói nacional, quase sempre homem branco, deixando à margem ou mesmo silenciando as vozes das mulheres, por exemplo (ORIÁ, 1996). Ao trazer para sala de aula esse trecho do discurso para iniciar uma aula de História, as professoras estão investindo em outras formas de conhecer, aquela ligada à elaboração de perguntas para o que chamamos de realidade. Elas estão apostando que a aula serve para colocar sob suspeita as nossas formas de organizar o mundo.

Ao trazer para sala de aula um vídeo com o discurso de Marielle Franco para pensar uma aula de História sobre o silenciamento das mulheres, as professoras estão ampliando e alargando suas concepções de currículo. Elas estão trabalhando para além do currículo oficial do ensino de História, estão se inserindo no campo dos Estudos Culturais. Como nos mostra Henry Giroux (1995), os Estudos Culturais ampliaram a noção de pedagogia e de currículo nos convidando a trabalhar e a pesquisar com formas de ensinar e aprender que são externas ao processo de escolarização. O discurso de Marielle Franco ocorreu na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. Ele foi gravado e está disponível no canal do YouTube. Dois espaços não escolares, mas que ensinam. Quando as professoras levam esse vídeo para sala, elas colocam em ação uma nova política cultural, na medida em que se dispõem a lidar de forma problematizadora com esses discursos (tanto o de Marielle quanto a produção do vídeo em si) que não fazem parte do conhecimento tradicional. Assim, elas ampliam a definição de História, tanto com a inserção da história das mulheres quanto com o uso do vídeo e de um discurso como possibilidades de análise de fontes e de construção de uma nova História. Trazer a fala de uma mulher negra é romper com a tradição eurocêntrica e androcêntrica do ensino de História.

Na linha dos Estudos Culturais, a aula de História alarga e modifica as concepções históricas e relacionais de textos culturais, demonstrando que o cotidiano – o de Marielle Franco e o dos alunos e das alunas – está envolvido o tempo todo com imagens linguísticas e, principalmente, produz práticas culturais (GIROUX, 1995). “Pensar que as perguntas norteadoras geraram outras perguntas, outros questionamentos nos e nas estudantes me faz crer que neste dia a aula de História cumpriu seu papel de produzir outras possibilidades a partir das suspeitas sobre si e sobre o mundo” (Professora. Diário de Campo, 2022). A partir do vídeo do discurso, a professora consegue avaliar seu papel como professora e afirmar que a “aula de História cumpriu o seu papel”. Podemos pensar que não foi a aula de História, mas a ação das professoras, nos usos dos artefatos culturais, que cumpriu o seu papel. O vídeo prende a atenção e faz os alunos e as alunas se pensarem, demonstrando o “poderoso papel que a mídia está, de forma crescente, assumindo na produção de imagens e de textos que penetram em cada vez mais áreas da vida cotidiana” (GIROUX, 1995, p. 136). A utilização do vídeo está ancorada num investimento nos sujeitos. Não se trata apenas de uma ação das professoras sobre os alunos e as alunas, mas uma ação sobre si mesmas. Agir sobre ele e elas é uma forma de se constituírem como professoras. Os saberes que compõem o currículo do vídeo educam os sujeitos, são utilizados para esse fim, na medida que são transformados em suporte para aula.

Com isso, queremos dizer que as professoras são resultado dessa ampliação e do alargamento da concepção de currículo proposta pelos Estudos Culturais. Mais do que isso, podemos dizer que elas colocam em ação uma concepção de currículo cultural, uma vez que tomam o vídeo e o discurso de Marielle Franco como objeto de estudo e de problematização para pensar o silenciamento das mulheres na História. É isso que os Estudos Culturais nos ensinam ao trabalhar com a noção de currículo cultural, ou seja, que qualquer artefato cultural pode ser objeto de análise no campo educacional. O vídeo do discurso pode ser entendido como um currículo cultual não escolar, já que ele não foi feito para escola, mas pode ser tomado como uma pedagogia cultural, isto é, como um artefato que é apropriado e usado para ensinar. Esse parece ter sido o objetivo das professoras. O vídeo com o discurso serviu para ensinar formas de se comportar diante do silenciamento, procedimentos de investigação da História, mas também atitudes consideradas adequadas e desejáveis para alunos e alunas.

Sendo assim, há uma aproximação entre o conteúdo trabalhado e o cotidiano dos e das estudantes. Não por acaso eles e elas prestaram atenção, participaram da aula e construíram transformação na relação com a disciplina e com o cotidiano. Isso parece dizer da representatividade que sentiram a partir da aula de História em que negros e negras faveladas são pensados e pensadas como sujeitos históricos e a partir da qual é possível traçar projeções de futuro, apesar das dimensões do colonialismo, da dor, da escravidão e do racismo. Uma aula de História construída a partir de um deslocamento curricular, da construção de brechas no currículo de História que oportunizam novas narrativas.

Marlucy Paraíso, ao pesquisar os currículos culturais, mostra-nos os “modos pelos quais nossas identidades e subjetividades vêm sendo constituídas no interior das diferentes práticas culturais, especialmente daquelas que dizem respeito à ação da mídia na constituição das pessoas [...]” (2001, p. 145). Esse é um ponto que nos parece importante de destacar na ação das professoras. Podemos supor que, mais do que o conteúdo de História, o que importava como objetivo da aula era ação sobre as pessoas, num entendimento de que o conhecimento produz sujeitos. Que sujeitos eu quero produzir a partir de qual conhecimento? Trazer o vídeo de uma mulher negra, favelada, lésbica para a aula de História é dar protagonismo a um sujeito histórico pouco presente nas aulas de História. Elas rompem com um ensino de História tradicional. Elas fazem dialogar um currículo não escolar, presente no discurso de Marielle Franco, com o currículo escolar, o silenciamento das mulheres na História. A professora destaca esse fato quando ressalta que a “aula de História não se ancorou em uma forma catedrática, embraquecida e eurocentrada de pensar o ensino de História. Pelo contrário, deslocou-se, usando a problematização como principal ferramenta para pensar os diferentes sujeitos na construção da História e da Memória em diálogo com as feministas, bem como foi recortada e embasada por teorias feministas” (Professora. Diário de Campo, 2022). A problematização é assumida como metodologia.

Problematizar diz da perspectiva de questionar a realidade para assim compreendê-la como organizada pelos conflitos, contradições e diversidade, ou seja, trata-se de uma perspectiva de formação dos sujeitos a partir de uma forma de conhecer e intervir na realidade. Problematização e problematizar são duas expressões presentes no campo do Ensino de História. Ernesta Zamboni (1993), num texto dedicado a pensar as relações entre Ensino de História e a construção da identidade, afirma que “problematizar” os fatos históricos é um dos princípios do Ensino de História, entendido como uma forma de estimular a construção do saber, a participação e a construção de uma visão crítica da realidade, contribuindo para situar os alunos e as alunas historicamente, propiciando seu crescimento social e afetivo, além do sentido de pertencimento. Selva Guimarães Fonseca (2006) também defende a problematização como um dos objetivos do Ensino de História, na medida em que “possibilita a problematização e a reflexão sobre a realidade que o cerca. [...] As interrogações sobre o local em que vivem podem levar à busca de sentido, à compreensão do próximo e do distante, no espaço e no tempo” (FONSECA, 2006, p. 3).

É ainda importante deixar claro que a defesa da problematização como uma metodologia de formação diz da aproximação à perspectiva teórico-metodológica desenvolvida nos escritos de Michel Foucault. O trabalho de Foucault com a História, ou com um tipo de fazer a História, convida-nos a pensar nas potencialidades e nos desafios do conceito de História para o Ensino de História e para a Educação, já que ele nos propõe outro tipo de fazer a História, sobretudo a partir do presente. Trazendo para o contexto educacional brasileiro, essa proposta parece romper com um certo conteudismo que vigora no Ensino de História, para nos conduzir a um sentido de ensinar baseado no presente, levando professores e professoras a se perguntarem sobre os motivos de determinados saberes estarem presentes nos currículos e qual a relação deles com o presente dos alunos e das alunas. Nesse sentido, ele parece alargar os sentidos da pesquisa histórica, abrindo novas possibilidades e metodologias de investigação, que podem contribuir para o currículo, para o Ensino de História e a ampliação de temáticas e sujeitos nas salas de aula. Para Michel Foucault, problematizar está diretamente ligado à história do pensamento. “Pensamento não é o que habita uma certa conduta e dá a ela seu significado”; ao contrário disso, o pensamento “é o que permite a alguém dar um passo atrás em relação a essa maneira de agir e reagir, a apresentá-la como um objeto de pensamento e questioná-la em relação a seu significado, suas condições e suas metas” (FOUCAULT, 2006, p. 231-232). O que Foucault nos convida a realizar tomando a problematização como abordagem de pesquisa é exatamente o que as professoras fizeram com e a partir do vídeo, ou seja, questionar significados, condições de existência daquilo que pensamos e como agimos; enfim, é um convite para nos colocar sob suspeita, tratando o objeto do pensamento como um “problema”.

Há aqui também uma aproximação entre os currículos culturais não escolares e o currículo escolar. Os currículos culturais não escolares são aqueles presentes exatamente no cotidiano desses/as alunos/as, que se constituem nos diversos artefatos culturais imbricados à vida. Historicamente, os movimentos sociais e os feminismos têm denunciado as ausências de determinados conhecimentos que não são tomados como conhecimento válido para um currículo. Mas esses movimentos não só denunciam, eles demandam também que os currículos oficiais e aqueles que acontecem “no chão das escolas” repensem as formas como se constituem. Essa demanda tem ganhado força, como, por exemplo, com os enredos das escolas de samba, que também têm um currículo. Algumas vezes isso acontece de modo atravessado, outras vezes o grito é forte e contundente, como, por exemplo, quando a Mangueira escolheu dizer de uma história que a História não conta no enredo de 2019 (OLIVEIRA; FERRARI; CHAR, 2021).

Os currículos escolares não são ilhas isoladas longe da cultura que acontece no tempo presente, pelo contrário; como território em disputa, eles são também constituídos, atravessados e tensionados pelos currículos culturais não escolares que se constituem em muitos outros espaços por meio de diversas ações e movimentos. Entendemos que essas demandas como mostramos nos sambas-enredos partem da história que vêm sendo tornada visível pelos movimentos sociais, tais como o movimento negro (OLIVEIRA; FERRARI; CHAR, 2021).

Assim, podemos perguntar: o que pode acontecer quando os currículos escolares se encontram com os currículos culturais não escolares? Sendo o funcionamento curricular da ordem do incontrolável, podemos dizer que é impossível prever o que pode acontecer na exatidão, mas podemos fazer algumas apostas. Apostamos, assim, num currículo como resistência, como insurgência aos saberes e poderes estabelecidos, pois toda forma e formato de conhecer é colocado em suspensão. Não mais aquela História tomada como verdade é reiterada, mas emerge aqui um conhecimento outro, um saber que inclusive demanda outras subjetividades. Isso porque, se as formas como nos constituímos como sujeitos se dão em relação com as verdades estabelecidas, ao fazer emergir outros conhecimentos no currículo, que são tomados como verdades, estamos também apostando em sujeitos outros. O currículo não escolar também chega à escola pela ação das professoras, o que nos coloca a questão da formação como fundamental. Ao trazer para aula o vídeo com o discurso de Marielle, elas colocam em ação um entendimento de ensino de História e de currículo como construção, como implicado na constituição dos sujeitos, de maneira que elas respondem à pergunta que sustenta a aula e a função da disciplina, ou seja, que alunos e alunas eu quero construir com que tipo de conhecimento? Elas vão construindo um currículo escolar a partir dos artefatos que selecionam, dos temas que escolhem e das relações que projetam. Elas constroem sujeitos outros.

Sujeitos outros que conhecem e fazem alianças como o movimento feminista, movimento negro, movimento gay, para pensar seu lugar na história e na vida. Que se comprometem com a defesa e afirmação da vida e da diferença. Qual a importância desses movimentos com as mudanças que se fazem nos currículos escolares e nos currículos oficiais? A professora e pesquisadora feminista Margareth Rago (2001), em entrevista, afirma ser de extrema importância insistirmos na construção de currículos escolares que dialoguem com as dimensões feministas e os estudos de gênero. Também fazemos coro a esta defesa e salientamos, inspirados por Rago, a necessidade de pensarmos o currículo a partir de atravessamentos com o campo dos estudos feministas, para, desta forma, evitarmos a formação de jovens “preconceituosos, intolerantes, racistas e sexistas que perpetuariam modos de relação com o outro e consigo mesmo, vale lembrar, pautados pelo egocentrismo, pela inferiorização do outro, pela estigmatização, humilhação e exclusão dos diferentes” (FRANÇA; FELIPE, 2017, p. 555).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Queremos retomar a epígrafe que abre esse artigo. Queremos voltar nela porque concordamos com Caroline Pacievitch quando ela afirma a razão de existência do ensino de História. “Essa é a mais justa razão de uma aula de História: tornar o mundo o que ele ainda não é!” (PACIEVITCH et al., 2019, p. 1612). Essa é a nossa aposta no ensino de História e, mais do que isso, é a nossa crença na educação como um processo que ultrapassa os espaços escolares e tem compromisso com um projeto de sujeito e um projeto de Nação. Afirmar que a função da disciplina é transformar o mundo o que ele ainda não é, isso nos obriga a pensar no “como fazer isso?”, pois foi a busca por essa resposta que nos conduziu a problematizações presentes neste artigo. A ação docente das duas professoras está organizada na tentativa de responder a esse “como”, ou seja, elas investem na criação de um outro mundo. E fazem isso investindo nos encontros entre o currículo não escolar e o escolar. Elas selecionam uma temática importante para a criação de um outro mundo, aquele em que as mulheres não serão mais silenciadas, que as relações de gênero serão problematizadas como organizadores sociais que nos constituem como sujeitos históricos. Elas propõem uma temática pouco explorada no ensino de História e, ao fazerem isso, elas constroem um currículo escolar. Para isso, elas vão buscar, no cotidiano e nos currículos não escolares, suportes para pensar a História a partir do presente. Não é o conteúdo pelo conteúdo que interessa, mas uma leitura da realidade numa perspectiva histórica que convida os e as alunas a se pensarem como herdeiros e herdeiras dessa história e a projetarem um mundo diferente desse que é apresentado. Não se trata apenas de trazer a história das Mulheres para o centro, mas de colocar em investigação as formas de relacionamento entre os gêneros para, assim, pensarem um outro mundo em que violência não esteja presente. Tornar o mundo o que ele ainda não é só nos parece possível na medida em que os currículos sejam tomados como espaço de construção contínua, ligados a um projeto de constituição dos sujeitos e de projeto de Nação.

2Marielle Franco era socióloga de formação. Mulher negra, lésbica e favelada, foi eleita vereadora na cidade do Rio de Janeiro pelo PSOL, em 2017, com uma votação expressiva. Tinha como principais pautas as questões feministas e negras ligadas aos direitos humanos. Em março de 2018, foi brutalmente assassinada junto ao seu motorista Anderson Gomes, no bairro do Estácio de Sá, região central da cidade.

3Conforme discurso realizado na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, proferido por Marielle Franco, em 08/03/2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G5sjJvK_Txs&t=342s. Acesso em: 5 set. 2022.

4O programa de Residência Docente é vinculado à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e segue as orientações da Resolução 138/2018, do Conselho Setorial de Graduação desta Universidade. Destina-se a licenciados/as, formados/as em até 3 anos da data de matrícula no programa de Residência Docente. Trata-se de um programa de formação docente continuada, inspirado em programas de residência médica; tem carga horária de 60 horas semanais, com o objetivo de proporcionar um mergulho profundo nos diversos universos escolares.

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Recebido: 06 de Setembro de 2022; Aceito: 04 de Outubro de 2022

Samara Souza: Mestranda em Educação e licenciada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Residente docente pela UFJF. Membro e pesquisadora do grupo de estudos e pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (GESED). E-mail: silveirasamara001@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-7176-7626

Anderson Ferrari: Pós-doutor em Educação e Cultura Visual pela Universidade de Barcelona, Espanha. Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor da Faculdade de Educação na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF. Coordenador do grupo de estudos e pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade GESED. E-mail: anderson.ferrari@ufjf.br, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-5681-0753

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