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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dic 2022  Epub 16-Feb-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1735 

Artigos

Jogo-Formação do Eterno Retorno

Game-Formation of the Eternal Return

Juego-Formación del Eterno Retorno

1Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia, Brasil


Resumo

Partindo de fabulações de uma outra de nós, com argumentos que deslizam, apoiados na teoria dos jogos, pelo pós-moderno, notadamente, o pós-estruturalismo e o pós-fundacional, escrevemos este artigo como autoficção. A personagem é Maria, uma outra de nós, que participa de um jogo-formação. Operando em condição performativa de quatro fases em branco, fabulou cenários escolares em um agenciamento de saberes e fazeres para mobilizar singulares contextos de práticas a partir de quatro cartas, a saber: Absurdo, de Camus; Niilismo, de Nietzsche; Literatura Menor, de Deleuze e Guattari; e Ontologia Fraca, de Vattimo. Ciente do eterno retorno do jogo, Maria transitou pelo experimentalismo como opção metodológica, considerando cada carta como um tema, quatro lentes que possibilitaram experimentos com o pensar, para reivindicar e fabular cenários escolares. Ela estava disposta a dar o seu melhor possível, até um dizer sim a cada carta, nas jogadas dilemáticas sobre o papel social da escola, sem atribuir uma única carta como argumento de certeza, mas enxergar a potência de cada uma delas e jogá-las de forma que desejasse jogar de novo.

Palavras-chave: jogo-formação; cenários escolares; eterno retorno

Abstract

Starting from the fables of another of us, with arguments that slide, supported by game theory, through the postmodern, notably, poststructuralism and the post-foundational, we write this article as autofiction. The character is Maria, another one of us, who participates in a game-formation. Operating in a performative condition of four blank phases, he created school scenarios in an assemblage of knowledge and actions to mobilize singular contexts of practices from four letters, namely: Camus’ Absurdity, Nietzsche’s Nihilism, Deleuze and Guattari’s Minor Literature, and Vattimo’s Weak Ontology. Aware of the eternal return of the game, Maria moved through experimentalism as a methodological option, considering each letter as a theme, four lenses that allowed experiments with thinking, to claim and fable school scenarios. She was willing to give her best, even saying yes to each card, in the dilemmatic plays on the social role of the school, without attributing a single card as an argument of certainty, but seeing the potency of each of them and positively playing them so that you want to play again.

Keywords: game-formation; school scenarios; eternal return

Resumen

Partiendo de las fábulas de otra de nosotras, con argumentos que se deslizan, apoyados en la teoría de juegos, por lo posmoderno, en particular, el posestructuralismo y el posfundacionalismo, escribimos este articulo como autoficción. El personaje es María, otra de nosotras, que participa en un juego-formación. Operando en una condición performativa de cuatro fases en blanco, creó escenarios escolares en un ensamblaje de saberes y acciones para movilizar contextos singulares de prácticas a partir de cuatro letras, a saber: El Absurdo, de Camus; el Nihilismo, de Nietzsche; Literatura Menor, de Deleuze y Guattari; y Ontología Débil, de Vattimo. Consciente del eterno retorno del juego, María transitó por la experimentalidad como opción metodológica, considerando cada letra como un tema, cuatro lentes que permitían experimentar con el pensamiento, reivindicar y fabular escenarios escolares. Estaba dispuesta a dar lo mejor de sí misma, incluso diciendo que sí a cada carta, en los juegos dilemáticos sobre el rol social de la escuela, sin atribuir una sola carta como argumento de certeza, sino viendo la potencia de cada una de ellas y jugándolas en una forma positiva para que quieras volver a jugar.

Palabras clave: juego-formación; escenarios escolares; eterno retorno

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta fabulações pedagógicas derivadas dos nossos estudos para o Mestrado em Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/ UFBA), em que pesquisador e orientadora, numa condição formativa, interessam-se por seguir rastros de conhecimentos outros, em experimentos com o pensar, para reivindicar e inventar escolas outras. Com argumentos que deslizam, apoiados na teoria dos jogos, pelo pós-moderno, notadamente, o pós-estruturalismo e o pós-fundacional, escrevemos este artigo como autoficção. Termo usado como gênero literário pela primeira vez em 1997, por Serge Doubrowsky, para classificar o romance de sua autoria, Fils. Pertence à autoficção a obra literária que apresenta passagens da vida ou, até mesmo, características físicas e psicológicas do autor, em um contexto claramente ficcional.

Nesse artigo autoficcional, o cenário inventado é um jogo de cartas: vida e morte é jogo! Os jogos nos exigem, exigimos dos jogos, de modo que, a cada nova fase/escola, uma série de sucessões, previstas ou imprevistas, os jogos-jogados tornam-se também jogos-jogantes. Vida e morte é jogo, se a escola tem vidas e mortes, a escola é jogo, gestado no acontecimento que sempre é um eterno retorno (SERPA, 2011).

Vamos ao jogo?

2 FABULAÇÕES DE UMA OUTRA DE NÓS

Maria, uma outra de nós, ao chegar numa cidade invisível, chamada Ítaca, foi convidada para um jogo-formação na Faculdade de Educação da cidade. Lá se viu ela, em um jogo de cartas, de quatro fases, no qual o desafio era criar cenários escolares para a cidade.

Apresentado o baralho constituído de belas e, a depender de cada jogador, atraentes cartas, o jogo tem início, como é da tradição da vida e dos jogos, com o embaralhar das cartas. Diante de um baralho com as cartas viradas, sem saber qual era cada uma delas, Maria fica em dúvida, não sabe para que lado olhar, para onde ir, quando recebe a primeira orientação: –desvire quatro cartas – disse uma voz grave e misteriosa. Ela percebe então que as cartas que desvirou (figura 1) são figuras do: Absurdo, de Camus; Niilismo, de Nietzsche; Literatura Menor, de Deleuze e Guattari; e a Ontologia Fraca, de Vattimo.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 1 Cartas do jogo-formação 

Essas não eram, necessariamente, as cartas que ela escolheria para aquele jogo, mas não teve muito tempo para esta elucubração, pois, de uma caixa à sua esquerda, saiu um demônio, que profetizou: “Depois de infinitas vezes embaralhando, no jogo da formação, a mesma ordem de cartas começa a se repetir, e você terá que resolver o mesmo dilema, com estas mesmas cartas que está em sua mão”. A hipótese demoníaca causou nela êxtase, quando pensou: Será que esse jogo retornará eternamente? E o demônio (Nietzsche) continuou:

Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar. (NIETZSCHE, 2012, p. 205).

Mesmo que soando como uma maldição pavorosa, Maria pressentiu a presentação da potência da crise. O demônio desapareceu, sem que ela pudesse dizer: “Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!” (NIETZSCHE, 2012, p. 205). Já inspirada pelo eterno retorno suscitado pelo demônio, com as cartas na mão, recebe a segunda orientação da voz misteriosa: “Olhe a sua frente, verá 3 portas (Figura 2), escolha uma delas e adentre por ela, sem esquecer suas cartas”.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 2 Portas do jogo-formação 

Desconfiada, Maria imaginou que, pela porta escola do passado, encontraria um cenário nostálgico e saudosista, um passado ideal; e, hesitante, cogitou que, pela porta escola do futuro, encontraria a certeza da possível existência de uma escola que transformará a sociedade. Sendo assim, entrou na porta escola do presente, deslizando pelo desejo de deixar de odiar o presente (MAFFESOLI, 2012).

3 O START

Maria apertou o play e, naquele cenário em branco, fechou os olhos, tirou os pés do chão, sentiu o cheiro do tempo, o gosto do espaço, dançou a música do agora, sem evocar o além, o depois... Num pensamento imanente, ela se deixou levar pelas quatro cartas do jogo. Já não importava se a formulação do eterno retorno era verdadeira ou falsa, qualquer posição que viesse a tomar, seja de pavor, seja de alegria, não mais a faria abandonar aquele jogo. E, mais uma vez, o demônio (Nietzsche) apareceu e disse:

Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, 2012, p. 205).

Maria sabia que teria de viver aquele jogo infinitas vezes e estava disposta a dar o melhor de si, até um dizer sim a cada carta, nas jogadas dilemáticas sobre o papel social da escola, sem atribuir a uma única carta argumento de certeza, mas enxergar em cada uma sua potência e jogá-las da forma que desejasse jogar de novo. O demônio (Nietzsche) afirmou:

[...] tu viverás de novo de qualquer modo! Aquele a quem o esforço proporciona o mais alto sentimento, que se esforce; aquele a quem o repouso proporciona o mais alto sentimento, que repouse; aquele a quem integrar-se, seguir, obedecer proporciona o mais alto sentimento, que obedeça. Possa ele tornar-se consciente do que lhe proporciona o mais alto sentimento e não recuar diante de nenhum meio! A eternidade está em jogo! (NIETZSCHE, 1881 apud MARTON, 2009, p. 94).

Confusa e percebendo que havia um botão pause, ela o acionou. Ah! Esse botão foi fundamental ao longo do jogo:

Maria, durante aquela pausa, percebendo que isso faria fabular cenários escolares, em um agenciamento de saberes e fazeres para mobilizar singulares contextos de práticas escolares naquele espaço-tempo, traçou a estratégia de usar o experimentalismo como opção metodológica, considerando cada carta como um tema, quatro lentes que possibilitariam experimentos com o pensar.

Assim, o jogo da formação não seria uma volta do mesmo, nem mesmo uma volta ao mesmo, mas a aceitação do presente, percebendo a eternidade de cada instante, pois “somente o presente vivido, aqui e agora, com outros, importa” (MAFFESOLI, 2005, p. 15), e o que retorna é o próprio retorno, isto é, o presente. Nietzsche convida a pensar:

[…] a inversão de todos os valores; não mais o prazer da certeza mas da incerteza; não mais “causa e efeito” mas a criação permanente; não mais vontade de conservação mas de potência; não mais a fórmula humilde “tudo é apenas subjetivo” mas é também nossa obra – orgulhemo-nos disso!” (NIETZSCHE, 1884 apudMARTON, 2009, p. 115, grifo nosso).

Nesta vontade de criação potente, foi surpreendida, pela terceira orientação: – escolha uma carta, apenas uma. Ela é a senha de acesso à fase 1 do jogo. Você permanecerá nesta fase, até encontrar um match com outra de suas cartas. Maria decide começar jogando a carta do absurdo; com ela em mãos, começou colorindo aquele cenário pseudobranco. Provocada pela carta, chamou o que viu de escola do absurdo, era hora de estudar O Mito de Sísifo.

4 PRIMEIRA FASE: A ESCOLA ABSURDA E ALBERT CAMUS

A carta do Absurdo, de Albert Camus (Figura 3), abala narrativas forjadas pelo iluminismo moderno. Tais narrativas, quando dogmatizadas, e não raro acontece, tornam-se crenças em um “iluminar” pleno do mundo, com severas consequências.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 3 Carta do Absurdo, de Albert Camus 

De um lado, diante do não alcance deste objetivo, gera-se um ceticismo passivo, na convicção de que tudo é vão, foi em vão. De outro lado, em busca do sucesso, apela-se pelo empoderamento do humano, que proclama que o mundo melhor será no futuro e trabalha-se para salvar a sociedade rumo ao iluminado caminho do progresso. Acreditando que entre dois polos sempre há um continuum (DEWEY, 1979), em que deslizes em fluxo entre um e outro ocorrem sem, necessariamente, ser a busca/encontro de um equilíbrio, pois este é sempre momentâneo e, portanto, precário, Maria, na tentativa de que este seja um cenário longe do ceticismo passivo e deslocado da crença do empoderamento do sujeito, jogou com o absurdo sem defini-lo, pois ele é, em si, contradição (CAMUS, 2019, p. 44). Sendo assim, estrategicamente, no percorrer desta fase, o que ela fez foi descrevê-lo (o absurdo), como Camus o fez em O Mito de Sísifo. Ela, para passar de fase, faz experimentação da carta, à deriva do que é a escola absurda, “aquela que, sem [se negar], nada faz pelo eterno”, rejeitando rotas de fuga com esperanças transcendentes.

Na lassidão do absurdo, Maria pausou para elucubrar:

Acordar, trânsito, aula, recreio, aula, casa, almoço, tarefa de casa, noite, jantar, sono. “Um dia, porém, o ‘porquê’ se eleva e tudo começa com essa lassidão tingida de espanto. Começa: isso é importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal” (CAMUS, 2019, p. 27-28), mas ela (a lassidão) inaugura ao mesmo tempo, em um plano imanente, o rolar criativo de nossas pedras. Esse movimento criativo se interessa não tanto pelas descobertas absurdas, mas suas consequências (CAMUS, 2019, p. 30).

O absurdo de uma vida, que não encontra sentido, pode chegar a uma falsa esperança de conseguir acabar com o absurdo ao escapar da existência, ou seja, suicidando-se, literalmente ou não. É a partir da inevitável questão do suicídio que Camus se movimenta para fazer da aparente falta de sentido um convite a criação de sentidos outros. Para ele, revoltar-se é uma postura possível diante dos absurdos, isto é dizer sim a uma felicidade possível, revoltando-se com a morte e não com a vida.Encontremo-nos com a alegria do absurdo! (MARQUES; CARVALHO, 2022, p. 4).

Maria se sentiu feliz por ter adentrado a Escola do Presente.

Play! Trata-se de viver! Sem resignar o presente!

Ela quis capturar uma específica ideia de Camus, mas sentiu um incômodo porque Camus, lá nos idos de 1941, quando escreveu O Mito de Sísifo, caracteriza Don Juan, conhecida figura masculina do romance moderno, como um homem absurdo. Ela questionou se apenas um homem pode ter esta performance, e, rasurando Camus para o século XXI, criou a personagem J., a qual pode ser qualquer coisa.

Reivindicou uma escola absurda, com fins próprios. Para caracterizá-la, ilustrou-a jogando com a figura da personagem J., absurda, que se dedica ao presente da vida e às alegrias sem passado ou futuro no amor, seduzindo. Quanto mais amava, mais se consolidava o absurdo. Não era por falta de amor que J. conquistava muitas pessoas. “Mas é justamente porque as ama com a mesma paixão e sempre com todo seu ser, que precisa repetir essa doação e esse aprofundamento. Por isso, cada uma delas espera lhe oferecer o que nunca lhe foi dado” (CAMUS, 2019, p. 85).

Maria convocou o absurdo das seduções de J., que não busca o amor eterno e raro, mas o experimenta, para, dessa forma, fazer uma derivação da escola absurda, sob a melodia do presente, amando a cada dia a escola que (re)existe, que, diante das várias mudanças no cenário social, afasta-se de uma prática moralista, mecânica e salvacionista, como J., a qual encontra o amor na multiplicidade, que não vive de passado, pois não coleciona amores, e “colecionar é ser capaz de viver do passado” (CAMUS, 2019, p. 88), mas também não vive de futuro, esperando o grande amor. J. entrega toda sua grandeza ao tempo, ciente de “sua liberdade com prazo determinado, de sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue sua aventura no tempo de sua vida” (p. 85). Assim, Maria lança no jogo J. e a escola absurda, que, felizes, vivem do provisório, precário, “ensina[m] a viver sem apelo e a satisfazer-se com o que tem” (p. 85).

Para continuar derivando no jogo, ela convocou O Mito de Sísifo, fazendo experimentações da escola absurda, e lançou na fase a astúcia de Sísifo em trair os deuses e enganar a morte. No movimento de uma educação pautada por verdades únicas – que parece superado – e o surgimento de várias verdades, é notória a tentativa de sufocamento das possibilidades que podem vazar de uma escola absurda. Ela se inspirou na astúcia de Sísifo para trair os deuses e aceitar seu destino, para pautar a traição do sagrado e profanar os rumos da lógica progressista educacional com formas outras de inventar o mundo. “Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e ergue as rochas” (p. 141). Ele foi castigado por isso, mas, no castigo, alcançando o pico, Sísifo vê a pedra rolar morro abaixo, sabendo que este esforço será eterno. É nesta ocasião que Camus vê a figura de um “homem absurdo” em seu momento de lucidez.

Sísifo contempla então a pedra despencando em alguns instantes até esse mundo inferior de onde ele terá que tornar a subi-la até os picos. E volta à planície. É durante esse regresso, essa pausa que Sísifo me interessa. [...] Vejo esse homem descendo com os passos pesados e regulares de volta para o tormento cujo fim não conhecerá. Essa hora, que é como uma respiração e que se repete com tanta certeza quanto sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em casa um desses instantes, quando ele abandona os cumes e mergulha pouco nas guaridas dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte que sua rocha. (CAMUS, 2019, p. 139).

Maria tomou este momento para reivindicar uma escola que supera o seu próprio destino e se torna mais forte que sua rocha, evitando rotas de fuga sem esperança transcendente, mas (re)existindo sem o apelo utilitarista de um papel social, com fins próprios, suportando o absurdo, sendo absurda. Mas o que fazer diante de uma escola absurda? Camus nos apresenta a posição filosófica coerente diante do absurdo: a revolta!

[...] o confronto perpétuo do homem com sua própria escuridão. Ela [a revolta] é a exigência de uma transparência impossível [...]. Ela é a presença constante do homem diante de si mesmo. Não é aspiração, porque não tem esperança. Essa revolta é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria acompanhá-la. (CAMUS, 2019, p. 68, grifo nosso).

A escola fabulada por Maria se revolta e reconhece seu absurdo como potência para criar saberes outros no fluxo incontrolável do jogo instituído-instituinte. Uma escola fabulada a partir de atualizações e possibilidades, produto do rolar da pedra, singular em cada momento, que borra as certezas dos fortes fundamentos e produz a diferença. Essa escola com vontade de potência aceita o caráter transitório da dinâmica espaço-temporal. A escola absurda e revoltada é Sísifo, que “ensina a fidelidade superior que nega os deuses e ergue as rochas” (CAMUS, 2019, p. 141), com as contingências inerentes aos processos sociais. Maria percebe que a fase está perto de ser finalizada e aposta que a revolta é a afirmação da vida! Em jogada que se rebela contra a tradição e estruturas fixas, posiciona-se uma escola ativa dentro de cenários absurdos. A escola revoltada aceita o caráter transitório da dinâmica espaço-temporal. A escola absurda e revoltada é Sísifo, que “ensina a fidelidade superior que nega os deuses e ergue as rochas” (p.141), com as contingências inerentes à vida que pulsa. Nisto que repousa sua potência, a “própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem” (p. 141). É possível imaginar Sísifo e a Escola felizes!

5 MATCH 1: CAMUS E NIETZSCHE

Camus afirma que, “se a terra agora é a única verdade, se só temos uns aos outros, é preciso ser fiel a este mundo e não a um outro pós-morte, porque é aqui que vivemos e é, pois, também aqui que devemos buscar a salvação, com nossa adesão total e exaltada a este mundo” (CAMUS, 2010, p. 93). Ao negar valores superiores, Maria sabia que não podia se prender a verdades absolutas para reger a escola e se confortar com a terra prometida. Ela se encontrava no deserto e, “quando se descobre o deserto, é preciso aprender a subsistir nele” (CAMUS, 2003, p. 85-86). Ao derrubar o trono de Deus, Maria reconheceu essa justiça, essa ordem, essa unidade que, em vão, buscava no âmbito de sua condição; passou a criá-las com as próprias mãos e, com isso, justificar a perda de uma autoridade divina (CAMUS, 2010).

Maria conjetura que a fase 1 pode ser encerrada. Se o sentimento de absurdo é condicionado pela ausência de Deus, a próxima carta é a do o Niilismo Ativo, de Nietzsche. Match! (figura 4)!

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 4 Match 1 

6 SEGUNDA FASE: ESCOLA ATIVA E NIETZSCHE

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 5 Carta do Niilismo Ativo, de Nietzsche 

Nem para diante nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo – todo idealismo é mendacidade diante do necessário -, mas amá-lo.

Nietzsche, Ecce Homo, Porque sou tão esperto, §10.

É com Nietzsche que o niilismo se torna pela primeira vez um movimento criativo (CAMUS, 2010), com problematizações acerca do niilismo europeu moderno, que não pode mais “interpretar a história em honra de uma razão divina, como constante testemunho de uma ordenação ética do mundo com intenções finais éticas [...] como a interpretavam há bastante tempo homens devotos” (NIETZSCHE, 2012, p. 226).

E também criativamente, nesta fase do jogo-formação, para compreender as ligações entre Niilismo Ativo e Absurdo, Maria reivindicou uma escola ativa, o qual considera, de modo geral, que há modos passivos de niilismo, ou seja, o humano frustrado diante da vida, desapontado pelas promessas da racionalidade e modernidade com óbice de uma vida absurda.

Maria pausa para pesquisar sobre os quatro tipos de Niilismo descritos por Deleuze (1976) em Nietzsche e a Filosofia, a saber:

  1. Niilismo Negativo: escondido por trás da concepção metafísica cristã de mundo, chama-se de “negativo”, por negar as contingências, não as assumindo como parte da vida, na crença de que uma vida perfeita seria no mundo superior. Como a escola que tem uma fé em verdades absolutas, com a crença de uma educação que salvará a humanidade.

  2. Niilismo Reativo: não nega o niilismo negativo, vai além: mata Deus. O mundo melhor continua sendo projetado no futuro, só que a fé vira razão. Humanidade, sociedade livre, progresso, felicidade para todos, substituição de Deus pelo homem. Iluministas e racionais que trabalham para salvar o mundo, em que a ciência dará todas as respostas, inclusive para a escola.

  3. Niilismo Passivo: pessimismo extremo que não admite mais valores, porque tudo é vão. A morte de Deus e do sentido do mundo. Quando se acredita que “a educação não tem mais jeito”, que nada está certo e não há mais nada a ser feito.

  4. Niilismo Ativo: finalmente, a forma de niilismo que nega a si mesma. A falta de verdades absolutas, o trágico, indecibilidade, provisoriedade, precariedade. A morte de Deus como um caminho aberto para a criação, a transvaloração e a afirmação humana da vontade de potência. Uma dança da escola no caos.

Nietzsche compreendeu a dimensão das consequências do niilismo no espírito de sua época, é com ele que o niilismo se torna consciente. E, para Maria, o importante não era saber se Deus existe ou não. A questão primordial naquele jogo era: o que a morte de Deus pode acarretar? Para Nietzsche, uma condição de vida à qual nunca haviam se submetido antes, em que a morte de Deus é condição necessária para a vida absurda, à qual refere Camus.

Deus está morto, mas Maria precisou velar o corpo dele naquela fase. Foi, a partir do eterno retorno do velório de Deus que reivindicou uma escola ativa, com a morte de uma educação divina, de valores metafísicos, da crença em verdades absolutas. Com a dança na marcha fúnebre desse velório na escola é que Maria foi se tornando o que era. (Re)criar, seguindo a fórmula para a grandeza no homem (que) é amor fati: “nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o necessário – mas amá-lo...” (NIETZSCHE, 2008, p. 49). Maria, com essa jogada, pretende inventar a escola a partir das cinzas de Deus e passar a operar a principal atividade docente: a tradução (CORAZZA, 2019, p. 3).

7 MATCH 2: NIETZSCHE E KAFKA

O trajeto para a próxima fase/escola se estendeu muito quando Maria se perguntou: em quais das cartas que restaram estaria o match para a próxima fase? Percebeu, ainda que primariamente, relações entre o Niilismo Ativo e a “Literatura Menor” de Deleuze e Guattari? Entretanto, quais seriam elas? A escola menor dá algum match com escola ativa?

O caminho que ela trilhou para chegar à fase da escola menor começou com Kafka, que inspira Deleuze e Guattari ao escreverem Kafkapor uma literatura menor. “Mas, como é que se entra na obra de Kafka? [...] entra-se por qualquer lado, nenhum vale mais do que outro, nenhuma entrada tem qualquer privilégio, mesmo se é quase um beco, uma ruela ou em curva e contracurva” (DELEUZE; GUATTARI, 2003, p. 19). No jogo, ela escolheu a entrada do Niilismo Ativo.

Kafka, no seu tempo-espaço, sentiu a morrinha do niilismo moderno, diagnosticada e problematizada por Nietzsche, mas, ao contrário do alemão, Kafka não transvalorava todos os valores, ele os denunciava em novelas e transfigurava as personagens em bichos nas organizações que resolviam racionalmente os problemas da sociedade pela hegemonia da tecnologia imposta pela Revolução Industrial e pelas exigências do Iluminismo. Recorrentemente, os homens se tornam insetos em ambientes burocráticos com seus escritórios, gavetas, carimbos, documentos, como Gregor Samsa, em A Metamorfose, e o agrimensor K., em O Castelo. As personagens têm semelhanças explícitas com o autor: nomeadas com a letra K do seu nome, presentadas em ambientes burocráticos onde o autor viveu, resignado por assumir os negócios do pai no ritmo ordinário da vida moderna. Será que a carapuça serviu para leitores modernos?

Em uma coletânea de aforismos, Kafka escreve a seguinte metáfora:

Ele é um cidadão livre e seguro da Terra, pois está atado a uma corrente suficientemente longa para dar-lhe livre acesso a todos os espaços terrenos e, no entanto, longa apenas para que nada seja capaz de arrancá-lo dos limites da Terra. Mas é, ao mesmo tempo, também um cidadão livre e seguro do céu, uma vez que está igualmente atado a uma corrente celeste calculada de maneira semelhante. Assim, se quer descer à Terra, a coleira do céu o enforca; se quer subir ao céu, enforca-o a coleira da Terra. A despeito de tudo, tem todas as possibilidades e as sente, recu sando-se mesmo a atribuir o que acontece a um erro cometido no primeiro ato de acorrentar. (KAFKA, 2012, p. 67).

Kafka foi um homem absurdo! Para alguns, talvez ele tenha se caracterizado como um niilista incompleto, tendendo a um niilista passivo por descrever a vida carregada de valores modernos, os quais não se coube superar no jogo. E Maria descobriu que a banalidade já é maravilhosa! “[...] O narrador não tem chance de ser um agente esclarecedor ou “iluminista” [...] se as narrativas de Kafka soam ‘metafísicas’, a culpa não é dele, mas da História a que ele está submetido” (CARONE, 2009, p. 40).

Para nós a banalidade já é maravilhosa ! Só anoto. É possível que eu dê assim às coisas uma certa claridade, como fazem os iluminadores sobre um palco mergulhado na penumbra. Mas não é nada disso: na realidade o barco não está na penumbra, está inundado pela claridade do dia. É o que faz com que os homens fechem os olhos e vejam tão pouco. [...] Tudo é combate, luta. Só não merece o amor e a vida aquele que deve conquistá-los todos os dias. (JANNOUCH, 2008, p. 85).

Desse modo, Maria se pronuncia de acordo com Kafka, que, a partir de suas personagens, encontrou brechas para fabular um mundo que pudesse ser diferente daquele que ele não consegue suportar. “Os homens mais espirituais, pressupondo-se que sejam os mais corajosos, também experimentam as mais dolorosas tragédias: mas justamente por isso eles honram a vida porque eles opõem o seu máximo antagonismo” (NIETZSCHE, 2006, p. 73).

Assim como Sísifo, Maria imagina Kafka feliz e passa para próxima fase. Match 2 (Figura 6)!

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 6 Match 2 

8 TERCEIRA FASE: ESCOLA MENOR E DELEUZE E GUATTARI

Maria, nesta fase, resolveu reivindicar uma escola menor, bebendo da fonte, mas com muitas problematizações da noção de educação menor, proferida, no Brasil, por Silvio Gallo. Ela suspeitou que, em grande medida, a educação menor, apesar de se contrapor ao projeto moderno de escola, ao inventar um professor militante que conhecerá sua realidade e intervirá para transformá-la, afasta-se do absurdo. Maria não quis agenciar as suas jogadas para endireitar a sociedade a partir do professor militante, “que de seu próprio deserto, de seu próprio terceiro mundo opera ações de transformação, por mínimas que sejam” (GALLO, 2002, p. 170), buscando um “processo educativo comprometido com transformações no status quo; insistir nessa coisa de investir num processo educativo comprometido com a singularização, comprometido com valores libertários” (p. 172).

Será o professor militante feliz ou quer fazer da felicidade um instrumento? –questionava-se Maria, quando coadunou com Milton Santos: Não sou militante de nada, exceto de ideias.

É possível ter um pensamento político que não seja da ordem da descrição triste: é assim, e você está vendo que não tem graça ! O pessimismo de direita consiste em dizer: veja como os homens são filhos-da-puta. O pessimismo de esquerda diz: veja como o poder é nojento! Podemos escapar destes pessimismos sem cair na promessa revolucionária, no anúncio do entardecer ou da aurora? Eu creio que é isso que está em jogo atualmente. (Foucault em entrevista concedida a Droit [2006, p. 96], grifo nosso).

A partir desses questionamentos, Maria propôs a invenção de outro conceito, o da escola menor. Ela não pretendia, com o conceito, esvaziar a educação menor de Gallo, mas fazer uma rasura, pois “todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido, e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 26), e nessa fase do jogo, já preocupada em não propor um modelo, percebe o termo educação como universalizante. Maria rasurou o conceito de Gallo com o rigor deleuziano, uma “criação singular, e o conceito, como criação propriamente filosófica, [que] é sempre uma singularidade. O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 15).

O conceito é o contorno, a configuração, a constelação de um acontecimento por vir. Os conceitos, neste sentido, pertencem de pleno direito à filosofia, porque é ela que os cria, e não cessa de criá-los. O conceito é evidentemente conhecimento, mas conhecimento de si, e o que ele conhece é o puro acontecimento, que não se confunde com o estado de coisas no qual ele se encarna. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 46, grifo nosso).

Maria partiu de um conceito menor, propriamente dito, aumentou a escala, de educação para uma escola, para que tivesse mais detalhes, um zoom que permitiu experimentar o conceito como experimentação. O conceito como devir. Um devir-menor, como em Nietzsche e Filosofia, em que Deleuze postula o método da dramatização a partir da problemática do trágico em Nietzsche, ao eliminar da palavra “drama” o pathos dialético e cristão que lhe compromete o sentido, ela é método de dramatização (DELEUZE, 2003).

Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria conceitos, entidades. Erigir o novo evento das coisas e dos seres, dar-lhes sempre um novo acontecimento: o espaço, o tempo, a matéria, o pensamento, o possível como acontecimentos… (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 46, grifo nosso).

Por essas razões, Maria escolhe Kafka como porta de entrada para esta fase e joga a carta da Literatura Menor (Figura 7). É a partir do trabalho Kafka: por uma literatura menor que Deleuze e Guattari identificaram nas novelas do judeu tcheco, escritas em alemão, vivendo em um gueto de Praga, uma função menor da linguagem.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 7 Carta da Literatura Menor, de Deleuze e Guattari 

“Menor” é aquela prática que assume sua marginalidade em relação aos papéis representativos e ideológicos da língua e que aceita o exílio no interior das práticas discursivas majoritárias, formulando-se como estrangeiro na própria língua, gaguejando e deixando emergir o sotaque e o estranhamento de quem fala fora do lugar ou de quem aceita e assume o não-lugar como seu deserto, na impossibilidade de uma origem. (SCHOLLAMMER, 2001, p. 63).

As novelas de Franz Kafka foram pensadas por Maria como novelas repedagogizadas por Deleuze e Guattari. “Podemos considerar novela pedagógica aquela que se deixa ler principalmente como portadora de ensinamento” (LARROSA, 2015, p. 123); assim, Maria propôs a experimentação de uma escola menor, uma escola que no jogo pedagogiza novelas. A pedagogização é uma forma de leitura, não só de novelas, mas de qualquer texto, e o que importou para Maria é que o pedagógico da pedagogização de novelas não está tanto nas novelas, mas na forma de lê-las (2015). Jogada feita, Maria parte para a escola menor, na qual os professores são catadores de materiais! (CARVALHO, 2020). Essa escola emerge a partir dos agenciamentos de Maria, uma invenção pedagógica, em que os conteúdos desterritorializados, recontextualizam, traduzem, deslizam, derivam, na fissura do território normativo da linguagem, conteúdos pedagogizados com invenções outras.

[...] poderíamos chegar à conclusão de que o caráter pedagógico de uma novela é um efeito de leitura, dado que todo relato, toda ficção, pode-se ler a partir do pressuposto de que contém ensinamento, ainda que o ensinamento que supostamente se derive de sua leitura não esgote todas as dimensões da obra. (LARROSA, 2015, p. 129).

Dessa forma, a novela, ou melhor, o material catado pelo professor, desterritorializado, quando recontextualizado no campo pedagógico, imprime feições outras, próprias à estética dos menores, e o conteúdo “pedagogizado arrasta consigo a possibilidade de pôr em questão e de modificar a gramática na qual está inserido” (LARROSA, 2015, p. 117). A escola menor não é um modelo, pois modelos de escolas tornam-se maiores, por isso, Maria se posicionou a favor da pedagogização de materiais, numa multiplicidade de traduções que torna inviável a transmissão de sentidos únicos.

9 MATCH 3: FRACO E MENOR

Para chegar à última fase, Maria pretendia dar um match entre dois termos utilizados, muitas vezes, como banais, para apontar desmerecimentos; mas, no jogo do fraco e do menor, reativaria sentidos e significados outros, por meio da radicalização; isto é, “superações” da própria superação.

Se a modernidade se define como a época da superação, da novidade que envelhece e é logo substituída por uma novidade mais nova, num movimento irrefreável que desencoraja qualquer criatividade, ao mesmo tempo que a requer e a impõe como única fonte de vida, se assim é, então não se poderá sair da modernidade pensando-se superá-la. (VATTIMO, 2002, p. 171).

Ou seja, tenta-se escapar da modernidade não pela superação ou transformação seguindo a tendência, mas pela dis-torção, pelo arrefecimento da verdade totalizante, pela potência do fraco e do menor. Sendo assim, a verdade é dissolvida, inclusive a verdade suprema que era Deus. Ele está morto! E nós o matamos!

É com esta conclusão niilista que se sai de fato da modernidade, segundo Nietzsche. Pois a noção de verdade não mais subsiste e o fundamento não mais funciona, dado que não há fundamento algum para crer no fundamento, isto é, no fato de que o pensamento deva “fundar”: não se sairá da modernidade mediante uma superação crítica, que seria um passo ainda de todo interno à própria modernidade. Fica claro, assim, que se deve buscar um caminho diferente. (VATTIMO, 2002, p. 173, grifo nosso).

Com a ancoragem niilista, Maria descobre o fraco como virtude e dá o Match 3 (Figura 8), com a escola menor, que contém a escola ativa e a absurda, todas deslocadas do centro para a variável “x”. Com isso, ela conquistou uma jogada coringa para a próxima fase. Descobre que a morte de Deus é o ápice da modernidade, quando Deus é deslocado do centro e em seu lugar é colocado o homem. Entretanto, o eterno retorno da morte de Deus, ou mesmo o eterno retorno de Deus, anuncia a fim da modernidade e a virtude de pensamentos fracos e menores, sem absolutizar verdades ou tomá-las como fundamento.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 8 Match 3 

10 QUARTA FASE: ESCOLA FRACA E VATTIMO

Para iniciar esta fase, precisou pausar. Afinal, o jogo provavelmente se aproxima de seu provisório fim.

Maria, nessa pausa, descobre entusiasmada que Vattimo (2002), baseando-se em Nietzsche e Heidegger, convida-nos a dissolver a história metafísica – que tem como objetivo, de modo fixo, alcançar para o “sujeito” a superação – e experimentar, na pós-modernidade, a hermenêutica da fraqueza do ser, dissolvições que, pela lente da difference, vêm à tona uma multiplicidade geo-histórica, que passa a pensar o ser por meio de fundamentos fracos.

Maria avançou jogando a carta (Figura 9) em defesa de uma escola fraca, sem os fortes fundamentos engendrados nos discursos sobre o “papel da escola”, marcados pela poderosa essencialidade do ser como emancipador de uma formação formal. Ela jogou defendendo uma escola que experiencie, de acordo com Vattimo, o fim de perspectivas finalizadas e monótonas na escola, abrindo espaço para saberes outros, que antes foram desvalorizados em nome de noções racionais da pureza do ser.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 9 Carta da Ontologia Fraca, de Gianni Vattimo 

Assim, a escola fraca tenta se despedir da modernidade, ao “subtrair-se às suas lógicas de desenvolvimento, e, nomeadamente, antes de tudo, à ideia de “superação” crítica em direção a uma nova fundação” (VATTIMO, 2002, p. 10-11), abrindo-se a “uma experiência estética e retórica” (p. 20).

Para refletir sobre essa pergunta, Maria usa a jogada coringa (Figura 10), a carta de uma estudiosa do campo do currículo: Inez Carvalho. A autora coringa conta, em seu último livro, que, no final da sua tese de doutorado, aparece a seguinte citação de Vattimo, o qual, naquele momento, passou a se tornar basilar em suas tomadas de posições posteriores (CARVALHO, 2020):

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 10 Carta Coringa: Inez Carvalho 

Nesta situação, deve-se falar, na minha opinião, de uma ‘ontologia fraca’ como única possibilidade de sair da metafísica pelo caminho de uma aceitação-convalescença-distorção que não tem nada do ultrapassamento crítico característico da modernidade. Pode ser que nisso resida, para o pensamento pós-moderno, a chance de um novo, fracamente novo, começo. (VATTIMO, 2002, p. 190).

Carvalho percebe o termo fraco como virtude e, nos seus estudos pós-doutorais, na Universidade do Minho, em Braga, cujo relatório final tem o título: A escola fraca da segunda ruptura curricular: um relato sobre um a-com-tecer pós-doutoral, escreve que

o afastamento do fundamento forte tem que ser radical, mas não significa a falta de algo fundante. A chance pretendida por VattJmo de um fracamente novo começo, pois nossos fundantes são contingentes e provisórios. E profundar a diferença entre fundamento e [pro]fundante. (CARVALHO, 2016, p. 35).

Profunda um quadro de intangibilidade entre uma escola fraca e um currículo vazio, para um povo que ainda não existe: um esqueleto que vai sendo preenchido de carnes (CARVALHO, 2020). Significante vazio a ser preenchido de modo contingente; vazio não pela falta de significação, mas pelo continuum de experimentações inventadas pela difference, na incerteza das histórias fracas.

Maria minou esta fase do jogo com as demandas da difference, tensionando a carta coringa que, juntamente a Clívio Pimentel, convida “a profanar as histórias unitárias, as histórias dos vencedores, enfim, questionar as histórias assépticas que põem em funcionamento a teleologia e o finalismo em favor da perpetuação da lógica progressista” (PIMENTEL JUNIOR; CARVALHO, 2014, p. 162) e a deixar de odiar a escola do presente, tal como ela é, fraca; como nas fases anteriores, sem escapismos, seja pela fuga para trás e a “invasão” das informações:

Para os conservadores saudosistas, a escola vem perdendo o brilho, já que não temos mais a escola e os alunos de antigamente. Neste caso, tudo deve voltar a ser como antes: os alunos devem ter o mesmo comportamento dos de antes, voltar a aprender e se comportarem socialmente como os de outrora, já que forneciam um bom exemplo de turma ideal. Podemos constatar uma potência nociva desta rota de fuga através de um conflito fruto do entendimento da tecnologia como desumanizadora. [...] Independente das disputas travadas entre as metáforas na busca de uma melhor caracterização das mudanças sociais oportunizadas pelas TICs, um elemento comum está presente em todas elas: a própria presença das TICs e o caráter irreversível das ressonâncias provocadas pelas mesmas no espaço social, não há volta. (PIMENTEL JUNIOR; CARVALHO, 2017, p. 170-71).

Seja pela fuga para frente e a escola “poderosa”:

Para os sonhadores futuristas, a escola é a instituição responsável pela transformação social a partir da formação dos alunos que serão responsáveis pela futura geração do país. Em alguns casos, essas posturas, calcadas numa perspectiva finalizada da história, se apresentam, também, a partir de anseios fortemente conservadores, o que complexifica ainda mais nosso trabalho de análise dessas diferentes posturas que, muitas vezes, habitam uma mesma discussão. No entanto, de modo geral, essas posturas são atravessadas pela ideia de que é necessário formar indivíduos fortes, extremamente racionais através de conhecimentos que não podem demonstrar qualquer sinal de fraqueza ou incerteza. Os estudos que seguem a linha histórico-crítica do currículo e dos saberes escolares podem auxiliar e reforçar as constatações de que o melhor saber é aquele que, criticamente, possibilita ao indivíduo superar a condição ignorante inicial e progredir em direção a uma formação que dignifica o sujeito para viver em sociedade. Enfim, trata-se de tentativas e controle identitário tanto escolar, como das pessoas que a habitam, por formas de conhecimento tidas como poderosas e independentes de contexto. (PIMENTEL JUNIOR; CARVALHO, 2017, p. 170-173).

Maria concluiu esta última fase do jogo-formação, pois o desafio, depois de muita deriva, estava rebatido, sabia Maria naquele momento que não será possível uma apresentação de um cenário escolar, mas sim uma fabulação inventiva de um cenário escolar assim formulado: cenário de uma escola fraca que inventa dissoluções de realidades e verdades. Uma escola com um currículo vazio. Um processo de aprender e ensinar o novo, fracamente novo. Um cenário com decididos habitantes do espaço de uma escola, de um universal plural de verdades fracas, dissolvendo a realidade pelo caráter poético e menor do currículo. Esse vazio, que se pode chamar de Niilismo Ativo, é também possibilidades de transvalorações.

Se a realidade se presenta dissolvida e se desconfia de verdades absolutas, é preciso mais uma vez ouvir o demônio do eterno retorno: é preciso deixar de odiar o presente, deixar de odiar a escola do passado do presente, sem a fúria do presente por amor ao passado. É preciso aceitar a escola do presente do presente, fraca, tal como ela é. É preciso deixar de odiar a escola do futuro do presente, sem a cólera do presente pela esperança do futuro, sem rotas de fuga, no eterno retorno.

Fases concluídas, Maria ganhou uma chave (Figura 11), a qual, inicialmente não sabia para que servia. Ela procurava uma porta de saída do jogo para abrir, até que encontrou uma caixa. Ao abrir a caixa com a chave, pensando ser um enigma que a levaria para o fim do jogo-formação, Maria foi surpreendida pelo demônio que saiu da caixa.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 11 Chave 

11 GAME OVER: VOLTE AO INÍCIO

O demônio (Deleuze) que voltou a sair da caixa perguntou para ela: “Poderia acreditar que Nietzsche implicava no eterno retorno o Todo, o Mesmo, o Idêntico, o Semelhante e o Igual, ele que foi o maior crítico dessas categorias?” (DELEUZE, 1988, p. 468-469). E continuou nos dizendo: game over (Figura 12)! Este jogo é acontecimento, e o fim do jogo é, também, o início do jogo, pois se coaduna com o devir, concorda com as forças de criação. O fim se torna começo, no jogo imanente do presente, e “que ele seja um instante que passa, força-nos a pensar o devir, mas a pensá-lo precisamente como aquilo que não pode começar e como aquilo que não pode parar de devir” (DELEUZE, 1976, p. 38).

Fonte: Elaborada pelos autores.

Figura 12 Game Over 

O eterno retorno se diz de um mundo cujo próprio fundo é a diferença e em que tudo repousa sobre disparidades, diferenças de diferenças que se repercutem indefinidamente (o mundo da intensidade). Ele mesmo, o eterno retorno, é o Idêntico, o semelhante e o igual. Mas, justamente, ele nada pressupõe daquilo que ele é, naquilo de que se diz. [...]. É preciso que as coisas sejam esquartejadas na diferença e tenham sua identidade dissolvida para que elas venham a ser a presa do eterno retorno e da identidade no eterno retorno. (DELEUZE, 1976, p. 389).

E, assim, Maria continuou sabendo que o que retorna eternamente são as diferenças, implicando nas criações de escolas outras, fracamente novas, absurdas, ativas e menores.

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Recebido: 07 de Setembro de 2022; Aceito: 10 de Outubro de 2022

Vitor Marques: Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Educação pela UFBA. Graduado em Licenciatura em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Membro do Grupo de Pesquisa sobre Formação em Exercício de Professores (FEP/CNPq). E-mail: vitormarques.geo@outlook.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-8643-3699

Maria Inez Carvalho: Pós-doutora em Desenvolvimento Curricular pela Universidade do Minho (UMinho), Portugal. Doutora e mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Licenciada e bacharel em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professora titular na Faculdade de Educação da UFBA. Líder do Grupo de Pesquisa sobre Formação em Exercício de Professores (FEP/UFBA). E-mail: misc@ufba.br, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-8032-072X

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