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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dic 2022  Epub 16-Feb-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1635 

Artigos

Políticas curriculares de Educação Infantil: é possível falar de diferenças?

Early Childhood Education curriculum policies: is it possible to talk about differences?

Políticas curriculares en Educación de la Primera Infancia: ¿es posible hablar de diferencias?

1Universidade Federal de Rondonópolis (UFR), Rondonópolis, Mato Grosso, Brasil


Resumo

Discutir currículo na Educação Infantil implica, acima de tudo, pensar o que é ser criança, o que significa esse tempo da vida em uma sociedade marcada por desigualdades sociais. É refletir sobre quais bases teóricas estão pautadas as orientações curriculares para a Educação Infantil e se estas levam em conta a diversidade dos grupos infantis. O presente estudo toma como referência as teorias pós-críticas de currículo, as políticas púbicas e curriculares para a Educação Infantil e a sociologia da infância. A partir de uma abordagem metodológica qualitativa, busca analisar as diferenças que se expressam por meio da classe social, do pertencimento étnico-racial, de gênero, cultura, entre outros, que estão devidamente referenciadas e contempladas nas orientações curriculares para a Educação Infantil, especialmente nos documentos: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil; e Base Nacional Comum Curricular. Os resultados indicam que uma proposta de educação emancipatória para a primeira infância se mostra ameaçada quando as políticas uniformizam cada vez mais as orientações curriculares e caminham em uma perspectiva de exclusão da diversidade, do silenciamento das diferenças, o que representa um retrocesso às conquistas sociais e aos direitos das crianças.

Palavras-chave: Educação Infantil; currículo; diferenças

Abstract

Discussing curriculum in Early Childhood Education implies, above all, thinking about what it means to be a child, what this time of life means in a society marked by social inequalities. It is to reflect on which theoretical bases are the curricular guidelines for Early Childhood Education based on and whether these consider the diversity of children’s groups. The study took as reference the post-critical theories of curriculum, public and curricular policies for Early Childhood Education and childhood sociology. From a qualitative methodological approach, it sought to analyze how the differences that are expressed through social class, ethnic-racial belonging, gender, culture, among others, are duly referenced and contemplated in the curriculum guidelines for Early Childhood Education, especially in the documents: National Curriculum Guidelines for Early Childhood Education and Common National Curriculum Base. The results indicate that a proposal for emancipatory early childhood education is threatened when policies increasingly standardize curricular guidelines and move towards a perspective of exclusion from diversity silencing differences, which represents a setback to social and children’s rights.

Keywords: Early Childhood Education; curriculum; differences

Resumen

Hablar del currículo en Educación Infantil implica, sobre todo, pensar en qué significa ser niño, qué significa esta época de la vida en una sociedad marcada por las desigualdades sociales. Se trata de reflexionar sobre qué bases teóricas se pautan los lineamientos curriculares de Educación Infantil y si estostienen en cuenta la diversidad de grupos de niños. El estudio tomó como referencia las teorías poscríticas del currículo, las políticas públicas y curriculares para la Educación Infantil y la sociología de la infancia. Desde un enfoque metodológico cualitativo, se buscó analizar cómo las diferencias que se expresan a través de clase social, pertenencia étnico-racial, género, cultura, entre otros, son debidamente referenciadas y contempladas en los lineamientos curriculares de Educación Infantil, especialmente en los documentos: Directrices del Plan de Estudios Nacional para la Educación de la Primera Infancia y Base del Plan de Estudios Nacional Común. Los resultados indican que una propuesta de educación infantil emancipadora se ve amenazada cuando las políticas estandarizan cada vez más los lineamientos curriculares y avanzan hacia una perspectiva de exclusión de la diversidad, silenciando las diferencias, lo que representa un retroceso para los derechos sociales y de la niñez.

Palabras clave: Educación Infantil; currículo; diferencias

1 INTRODUÇÃO

Discutir currículo na Educação Infantil implica, acima de tudo, pensar o que é ser criança, o que significa esse tempo da vida em uma sociedade marcada por desigualdades sociais. É refletir sob quais bases teóricas estão pautadas as orientações curriculares para a educação de crianças pequenas e se elas levam em conta a pluralidade da infância e as particularidades das crianças, como agentes sociais e culturais, portadoras de direitos.

Os debates atuais acerca do trabalho pedagógico e educativo na Educação Infantil evidenciam a importância das discussões sobre o currículo e as propostas pedagógicas para a construção da identidade da Educação Infantil. Neste processo, os últimos anos foram marcados pelo movimento de construção e implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Básica, coordenado pelo Ministério da Educação no Brasil. Inicialmente, não estava prevista a inserção da Educação Infantil na Base, mas, a partir de alterações na LDB, em 2 013, a legislação estabeleceu que a Educação Infantil tem uma Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2013).

No que diz respeito à Educação Infantil, o próprio tema do currículo já levanta dúvidas e gera polêmicas, pois prevalece no meio educacional uma concepção de currículo como sequência de conteúdos disciplinares a serem transmitidos em um determinado nível ou etapa de ensino, deslocado dos interesses e das identidades que caracterizam os sujeitos. Portanto, não é estranho que a elaboração de uma Base Nacional Comum Curricular para a educação das crianças pequenas, de 0 a 5 anos, tenha levantado questionamentos e polêmicas num país continental como o Brasil, marcado por desigualdades sociais e diferenças culturais.

Deste modo, o texto busca discutir como as diferenças expressadas pelas crianças - por meio do seu pertencimento de classe, raça, gênero, língua, religião, características físicas, saberes, entre outros - estão presentes nas orientações curriculares para a Educação Infantil. Levando-se em conta como questionamento, até que ponto esses marcadores de diferenças mencionados estão ou não devidamente referenciados e contemplados na BNCC? Em que medida as diferenças sociais e culturais das crianças são consideradas nas orientações curriculares?

Por meio da sociologia da infância, o estudo busca discutir a infância como categoria social. A constituição da sociologia da infância como campo de conhecimento permitiu “pensar a criança como sujeito e ator social do seu processo de socialização, e também construtora de sua infância, como atores plenos e não como objetos passivos deste processo e de qualquer outro” (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2010, p. 42). Assim, a consideração das crianças como atores sociais de direito “implica o reconhecimento da capacidade simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas” (SARMENTO; PINTO, 1997, p. 20). Ou seja, com suas culturas infantis, “as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudança culturais” (CORSARO, 2011, p. 32).

As reflexões apresentadas partem de estudos sobre currículo e das políticas públicas para a Educação Infantil, no intuito de problematizar o documento Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017a). Para orientar as análises, tomamos por referência o documento Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) (BRASIL, 2010), elaborado anteriormente à BNCC, a partir de amplo debate com a sociedade civil, pesquisadores da área, professores(as) e profissionais da educação. As DCNEI reúnem princípios, fundamentos e procedimentos “para orientar as políticas públicas na elaboração, planejamento, execução e avaliação de propostas pedagógicas e curriculares” (2010). Portanto, constituiu-se na referência maior na elaboração de propostas curriculares e pedagógicas para a Educação Infantil.

O texto está organizado em três seções: a primeira, “Currículo, crianças e diferenças”, discute as teorias de currículo, os conhecimentos e a diversidade cultural. A segunda seção, “Educação Infantil, políticas curriculares e propostas pedagógicas”, apresenta o percurso de constituição da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica e as políticas curriculares. Por fim, a terceira e última seção, “Orientações Curriculares para a Educação Infantil: é possível falar de diferenças com uma base nacional?”, discute as orientações curriculares para a Educação Infantil a partir de dois documentos, DCNEI e BNCC, e analisa as divergências de propostas contidas neles.

2 CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

A partir da perspectiva de que o “currículo” abrange tudo que acontece no espaço escolar, incluindo o conteúdo cultural que as escolas difundem, podemos considerar que ele exprime a ideologia, as relações de poder e a cultura de cada unidade escolar. Assim, o currículo nunca é neutro, pode reproduzir as desigualdades e injustiças sociais ou contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

Santos (2007) nos lembra de que o conhecimento moderno é abissal e confere à ciência o monopólio da distinção entre o verdadeiro e o falso, entre as formas científicas e não científicas de verdade, o que leva à invisibilidade de formas de conhecimento que não se encaixam nessa validade da forma legítima de conhecer: os conhecimentos leigos, plebeus, camponeses, afro-brasileiros ou indígenas são situados no outro lado da verdade, na inverdade. A partir dessa concepção, considera-se que determinados segmentos da sociedade não produzem conhecimentos válidos, mas apenas reproduzem crenças, opiniões, entendimentos intuitivos ou subjetivos que são incomensuráveis e incompreensíveis, por não obedecerem aos cânones científicos da verdade.

As discussões que fundamentam qualquer teoria do currículo deveriam levar em conta quais conhecimentos serão selecionados como legítimos. Assim, a questão central é: quais conhecimentos serão transmitidos, ensinados ou socializados com as crianças? Para responder a essa questão, “as diferentes teorias podem recorrer a discussões sobre a natureza humana, sobre a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza de conhecimento, da cultura e da sociedade” (SILVA, 2010, p. 14).

Nesse sentido, observa-se que o processo de seleção dos conteúdos que devem ser transmitidos parte do princípio do poder e do controle que a sociedade exerce sobre os sujeitos. A seleção de conhecimentos está relacionada ao processo seletivo do que as escolas devem ensinar, o que as crianças e os jovens devem saber ou o que eles e elas devem se tornar. Desta forma, privilegiar esse ou aquele conteúdo significa definir que tipo de conhecimento é considerado importante, para qual perfil de pessoa e para qual sociedade.

Considerando as inquietações acerca de currículo, identidade e as diversas formas de saber-poder presente no âmbito educacional, devemos considerar que a educação formal, resguardada a diversidade cultural, tem como finalidade um campo de forças entre diferentes interesses políticos, econômicos e ideológicos que objetivam responder às demandas da sociedade, em cada período histórico.

As disputas em torno dos conhecimentos foram se instalando com o acesso dos coletivos, pensados como povo comum, sem racionalidade, dominados por saberes do senso comum, nas escolas. Os(As) professores(as) das escolas públicas, cada vez mais identificados com as crianças em saberes, cultura, classe, raça, moradores do campo ou periferia, passaram a articular direitos tensos: o direito à herança intelectual, cultural, estética e ética com o direito aos saberes, valores, conhecimentos, linguagens, formas de pensar próprios de cada grupo social (ARROYO, 2013). Deste modo,

[...] a diversidade de experiências sociais, culturais de forma de ler e pensar o real e de pensar-se chega às escolas com essa diversidade e presença que não pode ser desperdiçada. Se por décadas foi tentado ocultar a diversidade dos sujeitos, hoje os mestres percebem que não é mais possível. Que é urgente torná-los visíveis e reconhecê-los sujeitos críveis. As tentativas históricas de ocultá-los e desacreditar tanto aos mestres quanto aos alunos, sobretudo dos setores populares, encontram resistências das crianças, dos adolescentes e jovens, das famílias e comunidades e dos próprios trabalhadores em educação. (p. 148).

Considerar o currículo como núcleo do processo educacional na sociedade contemporânea é dar a ele um relevante papel na formação das crianças e jovens; é, acima de tudo, privilegiar a igualdade entre os pares e garantir o respeito às diferenças, além de favorecer as relações no contexto escolar, que se torna o espaço de construção das identidades dos sujeitos e do convívio com as diferenças. Nessa lógica, as teorias pós-críticas de currículo apresentam como categorias de análise: o saber-poder, o multiculturalismo e as identidades dos sujeitos, em oposição às teorias tradicionais que sinalizam para a definição de objetivos e técnicas de avaliação (SILVA, 2010).

Ao discutir o currículo como um território em disputa, Arroyo (2013) destaca a infância brasileira também como um território em disputa. Para ele, nas políticas educacionais, a infância ainda não é plenamente reconhecida como um tempo de direitos, por esse motivo encontramos dificuldades para avançar nas discussões sobre a educação da infância. A questão que se coloca é como pensar em uma política de educação para a infância? Uma política de formação de professores(as) para atuar na educação da infância no sistema educacional brasileiro?

Os debates, polêmicas e controvérsias em torno da elaboração da BNCC mostram as questões que estão em disputa no campo da Educação Infantil. Os documentos “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil” (BRASIL, 2010) e “Base Nacional Comum Curricular” (BRASIL, 2017a) evidenciam os consensos e as tensões em torno das orientações curriculares e pedagógicas para a Educação Infantil, bem como para a formação de professores(as) para atuar com as crianças pequenas.

3 POLÍTICAS CURRICULARES E PROPOSTAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

As pesquisas na área da Educação Infantil e as lutas dos movimentos sociais em articulação com poder político do país possibilitaram o avanço na construção de um conjunto de leis, visando garantir a especificidade da Educação Infantil, enfatizando-a como direito de todas as crianças, considerando a importância da educação para o processo formativo das crianças.

A partir da década de 1980, discussões mais intensas sobre direitos sociais e políticas públicas no contexto brasileiro possibilitaram importantes avanços em relação às políticas educacionais. A Educação Infantil ganhou destaque nas discussões em vista das novas definições legais, especialmente na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), no Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990 (BRASIL 1990), e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei n. 9.394/96 (BRASIL, 1996).

A Constituição Federal de 1988 representou um avanço no que se refere aos direitos da infância. A Lei considera as crianças como sujeitos de direitos, proclama a necessidade da oferta de Educação Infantil e assegura o direito ao atendimento gratuito aos meninos e às meninas, desde o nascimento até os seis anos, em creches e pré-escolas (BRASIL, 1988). Deste modo, o Estado tem a obrigação de ofertar o acesso à Educação Infantil de qualidade a todas as crianças. Para tanto, é determinado, na Constituição Federal de 1988, que é de responsabilidade dos municípios ofertarem as vagas de Educação Infantil. Mas as demais instâncias, como governo estadual e federal, têm a responsabilidade de apoiar financeiramente estas instituições, buscando, assim, uma melhor qualidade para a educação e o desenvolvimento integral das crianças.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) explicita cada um dos direitos da criança e do adolescente, bem como os princípios que devem nortear as políticas de atendimento. Conforme o Art. 54 do ECA (BRASIL, 1990), a educação é um direito de todas as crianças e adolescentes, e todos os envolvidos, tanto a família como o poder público, são responsáveis por garantir esse direito, independentemente das condições de vida dos sujeitos.

Com a aprovação da LDB, em 1996, a Educação Infantil passou a ser a primeira etapa da Educação Básica, e o direito das crianças pequenas - de 0 a 5 anos - à educação foi afirmado. Conforme a LDB, a Educação Infantil tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social (BRASIL, 1996). Com isso, a Educação Infantil passa ser reconhecida legalmente e adquire um caráter educacional e o compromisso com a formação integral da criança. A Lei também esclarece que o atendimento nesta etapa será realizado nas creches, para crianças de zero a três anos de idade, e nas pré-escolas, para crianças de quatro e cinco anos de idade. É ressaltado, também, que os(as) professores(as), para atuarem na Educação Infantil, necessitam ser habilitados em nível médio ou superior, preferencialmente (1996).

Assim, somente nos últimos anos do século XX, as crianças de 0 a 6 anos passaram a ser reconhecidas como cidadãs de direitos, entre eles, o direito à educação em creches e pré-escolas. Mas, “cada vez que é dada atenção e um novo ator social entra em cena, um controle o regerá” (FARIA, 2005, p. 1015). Desse modo, a Educação Infantil, como primeira etapa da Educação Básica, ao mesmo tempo que recebe maior atenção das políticas públicas, é, cada vez mais, regulada pelo poder hegemônico instituído.

Neste sentido, em 1998, foi publicado pelo MEC o documento “Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI)” (BRASIL, 1998), a fim de orientar a elaboração de propostas pedagógicas nas instituições de Educação Infantil. Cabe destacar que esse documento foi elaborado em três volumes, com objetivos e conteúdos para a Educação Infantil nas seguintes áreas do conhecimento: movimento; música; artes visuais; linguagem oral e escrita; natureza e sociedade; e matemática. Além disso, o documento apresenta conceitos como: criança, educar e cuidar, interação social e o perfil do(a) pr ofissional que atua na educação infantil. O Referencial Curricular foi importante para a época, entretanto, a ênfase dada às práticas, a partir das áreas de conhecimento, foi um grande equívoco: trazer para a Educação Infantil os princípios do Ensino Fundamental, sem respeitar as especificidades da educação das crianças pequenas.

Em 1999, foram elaboradas as primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, definidas pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, com o objetivo de orientar as instituições de Educação Infantil na organização, no desenvolvimento e na avaliação de suas propostas pedagógicas (BRASIL, 1999). Em 2009, no movimento que promoveu a revisão das diretrizes de toda a Educação Básica, foi aprovada a Resolução n. 5, de 17 de dezembro de 2009, que fixou as novas DCNEI (BRASIL, 2009a). Nas DCNEI, estão sinalizados aspectos da gestão e organização da Educação Infantil e, também, os aspectos que deverão ser observados na elaboração das propostas pedagógicas e curriculares em instituições de Educação Infantil. Conforme as DCNEI:

O campo da Educação Infantil vive um intenso processo de revisão de concepções sobre educação de crianças em espaços coletivos, e de seleção e fortalecimento de práticas pedagógicas mediadoras de aprendizagens e desenvolvimento das crianças. Em especial, têm se mostrado prioritárias as discussões sobre como orientar o trabalho junto às crianças de até três anos em creches e como assegurar práticas junto às crianças de quatro e cinco anos que prevejam formas de garantir a continuidade no processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças, sem antecipação de conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental. (BRASIL, 2010, p. 7).

Deste modo, as atuais DCNEI apresentam diversas modificações em relação à concepção de Educação Infantil, aos princípios, à proposta pedagógica, à organização do tempo e espaço, entre outros fatores considerados importantes na primeira etapa da Educação Básica. Portanto, fica cada vez mais evidenciada a necessidade de as práticas pedagógicas de professores(as) de Educação Infantil considerarem a especificidade desta etapa educacional, conforme as orientações das DCNEI, sem reproduzir práticas e propostas pedagógicas do Ensino Fundamental.

Considerando que todas as crianças têm direito à educação, que as instituições de Educação Infantil têm caráter educacional e não simplesmente assistencia-lista, como foram definidas por muito tempo, observamos a importância de garantir uma educação de qualidade para as crianças pequenas, o que envolve espaço físico adequado e profissionais qualificados(as) para realizar o trabalho pedagógico. Deste modo, as práticas na Educação Infantil necessitam prever a indissociabilidade entre o educar e cuidar, bem como considerar “as interações e a brincadeira” como eixo do trabalho pedagógico, como orientam as DCNEI (BRASIL, 2010).

O documento “Práticas Cotidianas na Educação Infantil: bases para reflexão sobre as orientações curriculares” (MEC, 2009), que é resultado do projeto de cooperação técnica entre o MEC e a UFRGS, fruto de pesquisa realizada com dados de instituições de Educação Infantil de vários municípios brasileiros, com o objetivo de subsidiar a elaboração das orientações curriculares para a Educação Infantil e oferecer uma ampla discussão para propor referenciais curriculares para a Educação Infantil, destaca que:

A brincadeira é a cultura da infância, produzida por aqueles que dela participam e acionada pelas próprias atividades lúdicas. As crianças aprendem a constituir sua cultura lúdica brincando. Toda cultura é processo vivo de relações, interações e transformações. [...] A compreensão do mundo da criança pequena se faz por meio de relações que estabelece com as pessoas, os objetos, as situações que vivencia, pelo uso de diferentes linguagens expressivas (o movimento, o gesto, a voz, o traço, a mancha colorida). Nesse sentido, entendemos que as crianças, através das brincadeiras, transformam, estabelecem múltiplas relações com seus pares, com crianças de outras idades e com adultos, criando, inventando, descobrindo novas brincadeiras, novos significados, sendo produtoras de cultura. (MEC, 2009, p. 72).

Nesta perspectiva, “o brincar pertence à criança, é a sua dinâmica de vida, a sua forma de participar, interferir e se relacionar com a cultura” (MO RETTI; SILVA, 2011, p. 35). A brincadeira é a linguagem natural das crianças, é sua forma de dizer e saber sobre o mundo. A criança, por meio das brincadeiras, estabelece múltiplas relações com seus pares e com adultos, transforma e cria brincadeiras, produz outros sentidos e significados para os objetos à sua volta, produz cultura.

Na atual conjuntura político-educacional brasileira, no que diz respeito à Educação Infantil, anunciam-se medidas que representam retrocessos, e muitos direitos das crianças e das famílias vão se perdendo. Com a aprovação do Ensino Fundamental de nove anos, pela Lei n. 11.114, de 2005 (BRASIL, 2005), as crianças de 6 anos foram transferidas da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, sem que nem mesmo as condições para isso tivessem sido construídas, no que diz respeito à formação de professores(as), ao espaço físico, às propostas pedagógicas, entre outros. Em seguida, implantou-se a obrigatoriedade do ingresso das crianças na Educação Infantil por meio da Emen da Constitucional (EC) n. 59/2009 (BRASIL, 2009b), que estabelece a antecipação da entrada das crianças na escola com 4 anos de idade, não podendo significar que a pré-escola seja a antecipação do Ensino Fundamental. Segundo o Art. 6º das DCNEI (BRASIL, 2010): “É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na Educação Básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade”, até 31 de março. Essa implementação tem como intuito a reestruturação da Educação Básica, pois, conforme as novas normativas, fica evidenciado o ajuste à LDB (BRASIL, 1996) à Emenda Constitucional n. 59, que torna obrigatória a oferta gratuita de Educação Básica a partir dos 4 anos de idade.

O Plano Nacional de Educação 2014-2024 (BRASIL, 2014), em sua Meta 1, promoveu uma cisão na unidade da Educação Infantil, ao fragmentar e hierarquizar a educação das crianças de 0 a 5 anos, embora a Conferência Nacional de Educação (CONAE, 2010) tenha enfatizado a importância de manter a unidade na educação da criança de 0 a 5 anos (SILVA; DRUMOND, 2012). Entretanto, no contexto atual, é visível que essa distinção entre creche e pré-escolas está acentuando-se, na medida em que a obrigatoriedade da universalização da pré-escola começou a ser implementada nos municípios. As crianças de 4 anos são incorporadas à educação obrigatória, e as de quatro meses a 3 anos permanecem em espaços educacionais formais e informais, pressionando a demanda por creches.

Nesse âmbito, observa-se que a proposta inicial de educação das crianças de 0 a 6 anos, elaborada pelo MEC em 1993 (BRASIL, 1994), vem sendo desmontada com o processo de escolarização da pré-escola, cada vez mais próxima do Ensino Fundamental a partir da implantação de políticas de avaliação, de currículos unificados, de propostas de alfabetização e da Base Curricular Nacional para a Educação Infantil. A pré-escola, fundamentalmente, não pode mais se ater apenas à sua dimensão de cuidado-educação, agora é preciso antecipar a alfabetização e preparar as crianças para o Ensino Fundamental.

Deste modo, a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, integrada aos sistemas de ensino, foi incluída na Base Nacional Comum Curricular, um processo realizado com muitos embates, discussões e discordâncias. A BNCC (BRASIL, 2017a, s.p.), em sua última e homologada versão, ap onta que as práticas pedagógicas na Educação Infantil devem assegurar “seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento, para que as crianças tenham condições de aprender e se desenvolver”, sendo eles: “conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se”. Considerando os direitos de aprendizagem e de desenvolvimento, a BNCC estabelece cinco campos de experiências, nos quais as crianças podem aprender e se desenvolver: “O eu, o outro e o nós; corpo, gestos e movimentos; traços, sons, cores e formas; escuta, fala, linguagem e pensamento; espaços, tempos, quantidades, relações e transformações”. Em cada campo de experiências, são definidos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento organizados em três grupos por faixa etária, são eles: “bebês” (0 a 1 ano e seis meses de idade), “ crianças bem pequenas” (1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses de idade) e “crianças pequenas” (4 a 5 anos e 11 meses de idade). Nesse sentido, a Educação Infantil na BNCC constitui-se como instrumento que propõe fazer conhecer o direito das crianças de aprender em cada momento da vida, por meio de experiências, além de assegurar a qualidade e a equidade da Educação Infantil.

Considerando que a BNCC é atual, a compreensão do que ela propõe exige estudo e reflexão, bem como colocar em prática as DCNEI, uma vez que estes são documentos orientadores na elaboração de propostas curriculares e pedagógicas para a Educação Infantil. Porém, embora apresentem pontos comuns, já que a BNCC retoma alguns conceitos apresentados nas DCNEI, estes documentos comportam divergências acentuadas em suas concepções de Educação Infantil. E é para essa questão que voltamos o olhar a partir deste ponto.

4 ORIENTAÇÕES CURRICULARES PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL: É POSSÍVEL FALAR DE DIFERENÇAS COM UMA BASE NACIONAL?

Em relação aos documentos legais, as DCNEI representam o acúmulo de conhecimentos produzidos pela área da Educação Infantil nos últimos anos. As orientações das Diretrizes são fundamentais para a estruturação e orientação de propostas pedagógicas curriculares nas unidades de Educação Infantil, com a participação da comunidade. De acordo com as DCNEI, as propostas pedagógicas de Educação Infantil devem respeitar princípios “éticos, políticos e estéticos”. Neste documento, o currículo é compreendido como um “conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico” (BRASIL, 2010, p. 12).

Nesta perspectiva, na Educação Infantil, as crianças vivenciam experiências significativas e expressam seus saberes ao mesmo tempo que conhecem outras formas de linguagem e conhecimentos. Além disso, as DCNEI destacam como eixos norteadores do trabalho pedagógico “as interações e a brincadeira”. A criança é definida como sujeito histórico e de direitos que “nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura” (BRASIL, 2010, p. 12).

Na Educação Infantil italiana, o planejamento pedagógico é construído a partir da abordagem do “currículo emergente” (RINALDI, 1999), em que os(as) professores(as) planejam um currículo adaptável às ideias que surgem das explorações e descobertas das crianças, em que os objetivos educacionais não são definidos previamente, mas construídos no processo, em um contexto de aprendizagem coletiva que envolve os três protagonistas da Educação Infantil: educadores, crianças e pais. A ênfase dessa proposta pedagógica está em ver as crianças como sujeitos únicos, com direitos, em vez de simplesmente com necessidades. De acordo com Rinaldi,

[...] o marco de nossas experiências, baseado na prática, teoria e pesquisas, é a imagem das crianças como ricas, fortes e poderosas. A ênfase é colocada em vê-las como sujeitos únicos com direitos, em vez de simplesmente com necessidades. Elas têm potencial, plasticidade, desejo de crescer, curiosidade, capacidade de maravilhar-se e o desejo de relacionarem-se com outras pessoas e de comunicarem-se. (RINALDI, 1999, p. 114).

As DCNEI (BRASIL 2010) enfatizam as diferenças que as crianças anunciam, o que dá visibilidade à identidade aos grupos infantis, conforme se observa em vários trechos do próprio-documento: “o reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação” (p. 21); respeitar “a autonomia dos povos indígenas na escolha dos modos de educação de suas crianças de 0 a 5 anos de idade” (p. 23); garantir educação às crianças “filhas de agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras, povos da floresta” (p. 24).

Se, por um lado, as DCNEI dão visibilidade aos direitos das crianças, às diferenças e à identidade dos grupos infantis; ao respeitar suas origens familiares, culturais e sociais, a BNCC trata dos conhecimentos e saberes que devem ser trabalhados com as crianças, nas creches e pré-escolas, sem referência alguma à diversidade cultural e social das crianças e suas famílias, desconsiderando a pluralidade da infância brasileira.

Atualmente, as DCNEI, assim como a BNCC, são referências na elaboração de propostas pedagógicas nas unidades de Educação Infantil. Para entender a Base, não podemos deixar de olhar para sua estrutura na última e definitiva versão (BRASIL, 2017b). No processo de construção da Base, entre 2015 e 2017, os conteúdos foram organizados por áreas de conhecimento para o Ensino Fundamental e para a Educação Infantil em campos de experiência. De acordo com a BNCC (BRASIL, 2017a, p. 38),

[...] os campos de experiências constituem um arranjo curricular que acolhe as situações e as experiências concretas da vida cotidiana das crianças e seus saberes, entrelaçando-os aos conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural.

Portanto,

[...] um currículo para crianças pequenas exige estar inserido na cultura, na vida das crianças, das famílias, das práticas sociais e culturais, ou seja, é um currículo situado que encaminha para a experiência não na perspectiva do seu resultado, mas naquela que contenha referências para novas experiências, para a busca do sentido e do significado, que considera a dinâmica da sensibilidade do corpo, a observação, a constituição de relações de pertencimento, a imaginação, a ludicidade, a alegria, a beleza, o raciocínio, o cuidado consigo e com o mundo. (BARBOSA; RICHTER, 2015, p. 196).

Neste sentido, conforme aponta Kuhlmann Júnior (2007, p. 57), na Educação Infantil, “[...] ainda não é o momento de sistematizar o mundo para apresentá-lo à criança: trata-se de vivê-lo, de proporcionar-lhe experiências ricas e diversificadas [...]”, pois “são as crianças, em suas brincadeiras e investigações, que nos apontam os caminhos, as questões, os temas e os conhecimentos de distintas ordens” (BARBOSA; RICHTER, 2015, p. 195), e não os conteúdos ou planos elaborados previamente. Assim, o(a) professor(a),

[...] com seu olhar de quem está com a criança, mas também com os saberes e conhecimentos, realiza a complexa tarefa educacional de possibilitar encontros, de favorecer interações lúdicas, constituir tempos e espaços para a experiência das crianças. (p. 195).

Deste modo, um currículo organizado por campos de experiência traz também outras referências para discutir a formação de professores(as) e as práticas na Educação Infantil.

A Educação Infantil, enquanto uma conquista política ainda recente, permanece como campo de luta e resistência. Por isso, destacamos a necessidade de refletirmos sobre o currículo na educação da infância e o processo de construção de conhecimentos, para forjar um processo educativo que considere as trocas entre as crianças e entre crianças e adultos. Na Educação Infantil, não podemos cometer o equívoco de priorizar os conteúdos e nem aceitar imposições de modelos curriculares organizados por disciplinas, precisamos construir um processo educativo que tenha na criança a sua centralidade.

Neste sentido, uma análise da construção do documento BNCC - Educação Infantil, particularmente com relação às mudanças na estrutura dos campos de experiências apresentados nas quatro versões da Base, revela as disputas em torno do currículo da Educação Infantil, que ora busca priorizar a infância e a ludicidade nas práticas educativas, ora preconiza a escolarização precoce das crianças pequenas, com o início da alfabetização já na pré-escola.

Deste modo, a primeira versão da BNCC (BRAS IL, 2015, s.p.) apresentou os seguintes campos de experiências: “O eu, o outro e o nós; corpo, gestos e movimentos; traço s, sons, cores e imagens; escuta, fala, pensamento e imaginação; espaço, tempo, quantidades, relações e transformações”. Essa estrutura foi mantida na segunda versão da Base (BRASIL, 2016, s.p.), com alteração em um dos campos de experiências: de “traços, sons, cores e imagens” para “traços, sons, formas e imagens”. Este documento deveria ser encaminhado para a apreciação do Conselho Nacional de Educação em 2016, mas, “com o golpe jurídico-parlamentar que destituiu a presidenta Dilma Roussef e a consequente restruturação do governo, apenas em 2017 o Conselho recebeu o documento Base Nacional Comum Curricular, ou seja, uma terceira versão” (CAMPOS; DURLI, 2020, p. 255).

Assim, a terceira versão da BNCC (BRASIL, 2017b) evidenciou a intervenção do MEC e os novos rumos das políticas educacionais. Esta versão manteve os seis direitos específicos da Educação Infantil e, também, os campos de experiências com alterações na denominação de dois deles: de “traços, sons, formas e imagens” para “traços, sons, cores e formas”, e, de “escuta, fala, pensamento e imaginação”, para “oralidade e escrita”. Estas mudanças podem ser creditadas ao Movimento pela Base (MPB), que, desde a primeira versão, já ressaltava: “é importante incorporar elementos do desenvolvimento da linguagem oral e escrita desde a Educação Infantil, criando as bases para o trabalho de alfabetização no ensino fundamental” (MPB, 2015 apud CAMPOS; DURLI, 2020, p. 255).

Outra questão que merece destaque na BNCC, a partir da segunda versão, é a divisão das crianças por faixa etária (crianças de 0 a 1 ano e seis meses; crianças de 1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses; crianças de 4 anos a 5 anos e 11 meses), pa ra trabalhar os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento. Com esta divisão, por um lado, as práticas pedagógicas com os bebês ganharam visibilidade, com orientações pedagógicas específicas para as crianças de 4 meses a 1 ano e meio; por outro, para as crianças de 4 e 5 anos, são indicadas práticas que visam à antecipação da alfabetização.

Considerando, objetivamente, a realidade da Educação Infantil nos diversos municípios brasileiros, marcada pela falta de políticas efetivas para garantir espaço físico adequado, materiais e formação continuada para professores(as), sabemos que são reproduzidas práticas tradicionais de alfabetização, com o ensino da leitura e escrita desde a pré-escola. As crianças pequenas serão precocemente transformadas em alunos, com o predomínio de atividade com lápis e papel, em detrimento de práticas que envolvem o corpo, o movimento, a imaginação, as interações e as brincadeiras. As concepções de Educação Infantil que defendem as interações entre as crianças e as brincadeiras como eixos estruturantes das práticas pedagógicas não têm a mesma força, poder político e econômico que as abordagens que apoiam a escolarização precoce das crianças pequenas, inclusive com o uso de livros didáticos ou material apostilado.

Embora as crianças consigam manifestar resistências nas relações cotidianas com os adultos, elas não têm o poder de negociar suas perspectivas, elas estão sempre

[...] à mercê dos adultos e das forças que querem alfabetizá-las rapidamente, das forças que querem iniciá-las precocemente à lógica do capital, da linguagem hegemônica, do poder, das hierarquias de cor e raça, da heteronormatividade, e tudo isso em nome do ‘comum’ e do universal. (ABRAMOWICZ; TEBET, 2017, p. 198).

Deste modo,

[...] ao concordarmos e confluirmos para um suposto consenso da aceitação de uma base comum para a Educação Infantil, há uma perda para quem toma a diferença como mote pedagógico/educativo, pois a forma ou “invólucro” no qual se assenta a base, que é o comum e o universal, impõem desde logo um conteúdo que deve ser “homogêneo”, único, comum e universal, pois a diferença não se encapsula, uma vez que sempre difere. (p. 195).

A Base foi pensada em nome da igualdade entre as crianças, entre os conhecimentos e saberes pedagógicos nas creches e pré-escolas de todo o território brasileiro. A proposta é homogeneizar os conhecimentos, igualar os saberes, em detrimento do respeito à diversidade, às particularidades e às diferenças dos grupos infantis, das crianças de várias regiões do país, de diferentes classes sociais, culturas e modos de vida. Assim, em nome de uma suposta igualdade, as diferenças são apagadas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As conclusões deste estudo indicam que uma proposta de educação emanci-padora para a primeira infância se mostra ameaçada, com políticas que procuram uniformizar cada vez mais os currículos, que caminham na direção da negação das diferenças, do silenciamento da diversidade, o que representa um retrocesso às conquistas sociais e aos direitos das crianças.

Nas escolas, os(as) professores(as) se deparam com milhares de crianças excluídas socialmente e compreendem que será necessário mais do que uma crítica ao modo como o currículo, o conhecimento, a cultura social e escolar explica a reprodução das desigualdades sociais. Será necessário avançar para o reconhecimento das crianças, jovens e adultos como sujeitos de saberes, de conhecimentos, de culturas, de modos de pensar e de intervir. Será preciso, portanto, alargar a concepção de conhecimento e de sujeitos produtores de cultura.

As pesquisas relativas à infância e a Educação Infantil têm enfatizado a perspectiva da aproximação do ponto de vista da criança quando falamos dela ou propomos algo para elas, evitando práticas e concepções adultocêntricas. Assim, as propostas curriculares deveriam tomar a criança como ponto de partida, e não o Ensino Fundamental ou um tempo futuro. É preciso pensar um currículo para a Educação Infantil a partir do profundo respeito pelas crianças e sua forma de compreender o mundo.

As diversidades anunciadas pelas crianças, destacadas nas DCNEI, não foram contempladas na BNCC, pois prevalece na Base a proposta de igualdade entre as crianças e entre os saberes, independentemente de suas referências culturais, sociais, familiares, local de moradia, raça, gênero, entre outras. As crianças têm direito a conviver e aprender com as diferenças, mas a diversidade e a particularidade se tornaram invisíveis na Base, como se elas fossem todas iguais. Os direitos das crianças não são respeitados quando suas diferenças são ignoradas, elas são roubadas do que possuem de mais valioso: a própria infância.

Portanto, cabe reforçar o argumento de que a BNCC uniformiza as orientações curriculares, exclui as diferenças e a diversidade na infância, o que representa um retrocesso às conquistas sociais e aos direitos das crianças, pois compromete uma proposta de educação emancipadora e descolonizadora para a primeira infância.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 23 de Novembro de 2021; Aceito: 24 de Agosto de 2022

Viviane Drumond: Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestrado em Educação e graduação em Pedagogia pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR). Desenvolve pesquisas e estudos sobre a Educação Infantil nas relações com os estudos sobre: formação de professores, estágio supervisionado no curso de Pedagogia, políticas públicas, gênero e infância. E-mail: drumondviviane@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3212-1213

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