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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.27 no.61 Campo Grande set./dic 2022  Epub 16-Feb-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v27i61.1672 

Artigos

O exercício da docência para ensinar matemática: o “mesmo do mesmo” e o “imperativo da falta”

The exercise of teaching in mathematics education: the “same old same old” and the “imperative of deficit”

El ejercicio didáctico para enseñar matemáticas: lo “mismo de lo mismo” y el “imperativo de carencia”

Daiane Scopel Boff1 
http://orcid.org/0000-0002-2860-686X

Marta Cristina Cezar Pozzobon2 
http://orcid.org/0000-0003-3069-5627

Cláudio José de Oliveira3 
http://orcid.org/0000-0002-9403-0897

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil

2Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil

3Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil


Resumo

Este artigo trata da(s) docência(s) de professores que ensinam Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental. A reflexão apresentada emerge de uma pesquisa que investigou: o que dizem os professores que ensinam Matemática em tempos de pandemia sobre a docência nos anos finais do Ensino Fundamental? e de que forma esses ditos provocam outros modos de pensar a docência? O material de pesquisa foi gerado por meio de questionário on-line pensado para entender o exercício docente em tempos pandêmicos e não pandêmicos. A analítica empreendida mostra que as docências em tempos de pandemia, sobretudo no ensino remoto, tendem a reproduzir o mesmo modo ritualizado do ensino presencial e a potencializar o que nomeamos de “imperativo da falta”: falta de interesse, de participação, de compreensão da linguagem matemática, de acesso à Internet. A partir disso, destaca-se a importância do tempo para o exercício do pensamento e para a produção de experiências que toquem e transformem a vida, de modo que o ser-fazer da docência seja compreendido também como uma potência humanizadora.

Palavras-chave: professores que ensinam Matemática; Ensino Fundamental; pandemia

Abstract

This article deals with the teaching practice(s) of teachers who teach Mathematics in the final years of Elementary School. The reflection presented emerges from research that investigated: what teachers who teach Mathematics say in times of pandemics about teaching in the final years of Elementary School? and how do these sayings provoke other ways of thinking about teaching? The research material was generated through an online questionnaire designed to understand the teaching practice in pandemic and non-pandemic times. The analysis undertaken shows that teaching in times of pandemics, especially in remote education, tends to reproduce the same ritualized mode of classroom teaching and to enhance what we call the “imperative of deficit”: deficit of interest, of participation, of understanding of mathematical language and of Internet access. From this, the importance of time for the exercise of thought and for the production of experiences that touch and transform life is highlighted, so that the being-doing of teaching is also understood as a humanizing power.

Keywords: teachers who teach Mathematics; Elementary School; pandemic

Resumen

Este artículo reflete sobre la(s) docencias(s) de los profesores que enseñan Matemáticas en los últimos años de la Enseñanza Fundamental. El estudio que se presenta surge de una investigación que buscó posibles respuestas para las preguntas: ¿qué dicen los docentes que enseñan Matemáticas en tiempos de pandemia sobre la enseñanza en los últimos años de la Enseñanza Fundamental? Y ¿cómo estos dichos provocan otras formas de pensar la enseñanza? El material de investigación se generó a través de un cuestionario en línea diseñado para comprender la práctica docente en tiempos de pandemia y no pandemia. El análisis realizado muestra que la enseñanza en tiempos de pandemia, especialmente en la enseñanza a distancia, tiende a reproducir la misma forma ritualizada de la enseñanza presencial y a potenciar lo que llamamos el “imperativo de falta”: falta de interés, de participación, de comprensión de lenguaje matemático, de acceso a Internet. A partir de ahí, se destaca la importancia del tiempo para el ejercicio del pensamiento y para la producción de experiencias que toquen y transformen la vida, de modo que el ser-hacer del enseñar sea entendido también como potencia humanizadora.

Palabras clave: profesores que enseñan Matemática; Enseñanza Fundamental; pandemia

1 INTRODUÇÃO

Este texto se inscreve em uma pesquisa maior desenvolvida pelo Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências, Pedagogias e Diferenças (GIPEDI), vinculado ao CNPq, que analisa as docências contemporâneas produzidas entre professores e futuros professores por meio de experiências coformativas4, a partir da crise da covid-19. O nosso interesse reside em problematizar a docência para ensinar Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental, principalmente no período de pandemia e pós-pandemia.

É dado mundial que há quase dois anos vivenciamos uma crise sanitária, social, econômica, política e educacional, alavancada, principalmente, pela pandemia provocada pelo vírus causador da covid-19. O contexto da pandemia reforçou muitas discussões já enfrentadas anteriormente, tanto em relação à instituição escolar e ao ensino público como em relação aos processos de ensino e de aprendizagem de Matemática, mediados pelos meios tecnológicos e digitais que permeiam a docência. Como ponderam Monteiro e Senicato (2020),

O desafio posto é pensar sobre como esse acontecimento que emerge com a pandemia, nos deslocando social e espacialmente, pode ser potente para promover uma participação política capaz de gerar novas formas de governo da vida. Trata-se de buscar novos sentidos de existência, modos outros de ensinar e aprender matemática. (2020, p. 319).

Vivenciamos, neste tempo, acontecimentos que nos desafiaram a conviver, a ensinar e a aprender de modos diferentes, o que “[...] levou muitos de nós a tentar reproduzir o ambiente de sala de aula num contexto virtual” (p. 319), principalmente pela insegurança, pelo medo diante do que pareceu ser desconhecido e pela ausência de tempo para discussões e decisões no coletivo. Tais acontecimentos nos impelem a pensar na e sobre a docência, nas questões relacionadas ao ensino para a produção das subjetividades e a considerar outras possibilidades de existência no mundo de forma adulta (BIESTA, 2020).

Considerando isso, questionamos se as nossas aulas de Matemática têm provocado os alunos a assumirem o mundo como adultos. Tal questão, por si só, parece ser um desafio que nos ajudaria a olhar de forma mais ampla para o compromisso político dos professores, que vai além das aulas, em uma tradição que se ancora no ensino de algoritmos e de verdades absolutas e que se desloca para a vida em sociedade, para os usos matemáticos, os encontros e os cuidados com os outros.

Neste texto, então, buscamos discutir a(s) docência(s) em Matemática, a partir das questões: o que dizem os professores que ensinam Matemática em tempos de pandemia sobre a docência nos anos finais do Ensino Fundamental? De que forma esses ditos provocam outros modos de pensar a docência? Diante desses questionamentos, propomo-nos a descrever, a problematizar e a analisar os ditos de professores que ensinam Matemática no Ensino Fundamental em tempos de pandemia, no município de São Leopoldo, no Vale do Rio dos Sinos5, Rio Grande do Sul, considerando as narrativas6 produzidas a partir de um questionário on-line que versou, principalmente, sobre o exercício docente em tempos pandêmicos e não pandêmicos.

Tomamos como inspiração analítica teorizações do campo da Educação e da Educação Matemática e, com elas, problematizamos a docência e os modos de ensinar Matemática visibilizados nos materiais de pesquisa. A docência, então, é entendida como “[...] uma prática que expressa uma forma de ser e de agir de um sujeito quando em exercício da prática docente, isto é, quando ocupando a posição de professor, na sua função de condutor de condutas” (BAHIA; FABRIS, 2021, p. 200). Por isso, necessita de um professor com intencionalidade docente e de um grupo de alunos que se coloque na posição de aprendentes (FABRIS; DAL’IGNA, 2017). Com Biesta (2020, p. 25), entendemos que “[...] o ensino se preocupa em abrir possibilidades existenciais para os estudantes, ou seja, possibilidades em e através das quais os estudantes possam explorar o que pode significar existir como sujeito no e com o mundo”.

Com esses direcionamentos, apresentamos, inicialmente, neste texto, os caminhos teórico-metodológicos escolhidos, discutindo a(s) docência(s) para ensinar Matemática, a materialidade e os modos de análise. Depois, mostramos as narrativas dos professores e os grupos de sentidos7 que a materialidade nos permitiu organizar e tensionar. A análise realizada possibilita-nos dizer que as docências de professores que ensinam Matemática em tempos de pandemia, em especial, no ensino remoto, tendem a reproduzir o mesmo modo de docência ritualizado do ensino presencial, o que tem reforçado os desafios dos cenários educacionais. Ainda, esse exercício de análise visibiliza o que chamamos de “imperativo da falta”: falta de interesse, de entendimento da linguagem matemática, de participação, de acesso à internet, o que parece produzir dificuldades tanto para ensinar como para aprender Matemática. Por fim, propomos, neste texto, algumas considerações, na perspectiva de pensar a(s) docência(s) para ensinar Matemática de outros modos.

2 CAMINHOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Ao tratar da docência para ensinar Matemática, nós a tomamos como um ofício que se constitui na interação social e que envolve o pensar, o fazer intencional, o dialogar. Compondo a docência, está a escola que habitamos, as pessoas com as quais pensamos, a comunidade da qual fazemos parte. Além disso, em tempos de pandemia, acrescentamos à docência outros desafios, como a necessidade de operar com tecnologias, muitas vezes, desconhecidas, e com as mudanças na interação entre professores, alunos e comunidade escolar. Tudo isso faz com que a docência se constitua como presença, como uma forma de existir no mundo e com ele.

Como apresentam Fabris e Dal’Igna (2017, p. 56), a “[...] docência pressupõe sujeitos em condições diferenciadas de ensino e aprendizagem”. Embora entendamos que, em muitas situações, o aluno pode ensinar e o professor pode aprender, olhamos para o ensino como uma função assegurada ao docente, de forma que o exercício de ensinar matemática aconteça no movimento, na diferença, no devir da ação docente e discente. Ao encontro disso, vislumbramos um exercício docente que construa “[...] modos de ensinar que desnaturalizem as dicotomias (teoria-prática; realidade-transcendência; concreto-abstrato; pensamento-ação) que circulam recorrentemente na formação do professor de Matemática” (BOFF, 2020, p. 71).

Imerso nessas discussões, este texto é um desdobramento de uma agenda de investigação desenvolvida junto ao Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Pedagogias, Docências e Diferenças (GIPEDI/CNPq). A pesquisa maior, da qual esta é derivada, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), sob o n. CAAE 45485321.6.0000.5344 e parecer n. 4.651.488, e investiga as docências contemporâneas produzidas por meio de experiências coformativas entre professores e futuros professores, a partir da crise da covid-19. O material analítico foi produzido com 109 professores que exercem a docência na Rede Municipal de Ensino em uma cidade do Vale do Rio dos Sinos.

No recorte realizado, selecionamos, dentre as falas de gestores e professores de diferentes áreas e etapas da Educação Básica, os ditos dos sete professores que ensinaram Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental em tempos de pandemia, problematizando e analisando de que modo tais ditos nos ajudam a pensar as docências, em especial, para além da pandemia. Para identificar os participantes da pesquisa, mantendo o acordo de confidencialidade, optamos por nomeá-los com o código PAFEF, que significa Professor dos Anos Finais do Ensino Fundamental. O número que acompanha este código foi organizado pelo próprio questionário on-line, de acordo com a ordem das respostas.

Tomamos os materiais produzidos como coisas ditas, que se situam em um tempo e um espaço, e os consideramos como imersos em acontecimentos ou, melhor dizendo, os materiais produzidos foram descritos e analisados na sua positividade (FOUCAULT, 2016), considerando as recorrências, os deslocamentos e os silenciamentos que as falas dos professores possibilitaram identificar. Além disso, as falas foram tomadas como narrativas que, como ferramentas conceituais-metodológicas,

[...] não permitem dizer uma ou a verdade sobre as coisas e os fatos, mas pode-se considerá-las como a instância central que, somada a outras, traz informações fundamentais acerca do vivido e possibilita uma interpretação (mesmo que provisória e parcial) dos motivos que fundamentam [...]. (ANDRADE, 2014, p. 177, grifo do autor).

Ao operarmos com teorizações do campo da Educação e da Educação Matemática, mais especificamente, da formação de professores e da docência com a Matemática, em uma perspectiva hipercrítica8, realizamos uma análise que busca, inicialmente, descrever as docências de professores que ensinam Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental para depois tensionar os elementos que as narrativas puderam evidenciar. Tomamos também as discussões de Larrosa (2004), uma vez que consideramos as narrativas como um gênero discursivo, em que o sentido do que somos depende das histórias que contamos; portanto, das construções narrativas que fazemos. “Cada um de nós se encontra já imerso em estruturas narrativas que lhe preexistem e que organizam de um modo particular a experiência, que impõem um significado à experiência” (LARROSA, 2004, p. 19, tradução nossa)9.

Com esses direcionamentos, organizamos em planilha eletrônica as narrativas dos professores e as lemos, sinalizando o que aparecia sobre o exercício da docência com a Matemática, considerando o tempo pandêmico. Esse primeiro movimento nos permitiu apontar ditos recorrentes e alguns silenciamentos, em especial, relacionados ao pensar/tensionar o próprio exercício docente. Com os ditos recorrentes, organizamos grupos de sentido que nos permitiram criar “[...] uma rede de aproximações e descontinuidades que constituem sentidos muitas vezes novos, muitas vezes de estranhamento” (SARAIVA, 2009, p. 29) em relação à docência com a Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental. Estamos entendendo grupos de sentido, segundo Bahia e Fabris (2022), como uma forma de organizar, por meio de sentidos semelhantes e recorrentes, silêncios ou, ainda, sentidos dissonantes, os materiais empíricos produzidos na pesquisa.

Neste texto, utilizamos narrativas de dois grupos de sentido construídos, um deles tematizando sobre o ensino de Matemática no modo presencial e no modo remoto, em que tratamos sobre o “mesmo do mesmo”; e o outro, dando visibilidade às “faltas” dos alunos e às dificuldades operadas no tempo pandêmico.

3 AS NARRATIVAS DE PROFESSORES SOBRE A(S) DOCÊNCIA(S) PARA ENSINAR MATEMÁTICA

A situação dramática provocada pela Covid-19 obrigou-nos a dar respostas imediatas, urgentes, sem a necessária preparação e reflexão. O recurso indiscriminado aos meios digitais foi a solução possível para manter certa “continuidade educativa”, a fim de não cortar todos os laços com os alunos e proteger a saúde pública. Todavia, esse não pode ser o futuro. (NÓVOA; ALVIM, 2021, p. 16).

O exercício da docência para ensinar Matemática realizado sem a interação presencial entre professores e alunos, bem como a ausência de condições mínimas de acesso aos meios tecnológicos, produzidas pelo agravamento da crise econômica e pelo aumento das desigualdades de acesso à educação e à permanência na escola, leva-nos a problematizar, neste texto, alguns dos ditos de professores que deram continuidade às práticas escolares em tempos de pandemia. O que tem sido dito sobre a docência nos anos finais do Ensino Fundamental por professores que ensinam Matemática? De que modo tais ditos podem nos provocar a pensar a docência para além da pandemia? Assim como nos impele a epígrafe que abre esta seção, desejamos pensar e preparar outros cenários educativos que não sejam os que muitos professores foram desafiados a vivenciar por conta da necessidade de manter as atividades de ensino.

Em tempos pandêmicos, quando fomos desafiados a manter a proximidade com os alunos, mesmo que social e espacialmente distantes, apresentamos dois conjuntos de enunciações sobre a docência: um que trata, especificamente, da transposição do presencial para o remoto, problematizada a partir da expressão “o mesmo do mesmo”; e outro que remete às dificuldades vivenciadas e alocadas nos alunos e, mais reduzidamente, nos professores, inscritas no que chamamos de “imperativo da falta”.

No Quadro 1, destacamos a transposição do ensino presencial para o remoto, em que os professores comparam os seus modos de exercer a docência nas aulas presenciais e nas aulas virtuais, principalmente nos momentos síncronos.

Quadro 1 Transposição do presencial para o remoto 

Em aulas presenciais: utilizo aula expositiva para apresentar os conteúdos; aula para resolução de exercícios; aula para correção das atividades e aula para a realização das avaliações; [...]. Em aulas virtuais: aulas síncronas para a abordagem dos conteúdos teóricos e correção dos exercícios (aulas de dúvidas) e aulas assíncronas para exercícios. (PAFEF35).
[Inicio a aula] sempre tirando as dúvidas dos estudantes sobre as atividades. No presencial, fazíamos a correção das atividades e eu tirava as dúvidas principais. No virtual, eu não corrijo as atividades, porque tem aluno que tem que arrumar a resolução e que ainda não a fez; mas tiro as dúvidas quando os estudantes perguntam algo da atividade, usando exemplos parecidos com os das atividades. Falo sobre os erros mais comuns que encontrei durante a correção e, dependendo da aula, explico a matéria, pois tem que ter esse momento de explanação do conteúdo. (PAFEF15)
[No virtual] Começo me apresentando, perguntando como os alunos estão, se já têm alguma dúvida específica das atividades. (PAFEF36).

Fonte: Elaborado pelos autores (2021).

As narrativas apresentadas mostram que parece existir um modo específico de conduzir a aula de Matemática, tanto no ensino presencial como no virtual. Tais falas sinalizam para a existência de uma sequência didática que compõe a rotina para ensinar Matemática, uma condução docente quase ritualizada e que, embora possa partir das dúvidas dos estudantes sobre tópicos trabalhados em aulas anteriores, efetiva-se por meio da apresentação do conteúdo pelo professor, da realização e correção de atividades e da verificação da aprendizagem.

Essa sequência, aparentemente fixa para a aula de Matemática e referendada tanto no exercício docente presencial anterior à pandemia como no modelo virtual, constitui um modo de ensino remoto que temos nomeado de “o mesmo do mesmo”. Tal modo, incorporado nas formas de conduzir a aula de Matemática, mas também de pensar a escola e a educação, inscreve-se em uma tradição que ressoa desde a pedagogia cristã, conforme podemos ler em Saviani:

A organização das classes dava-se pela reunião de alunos aproximadamente da mesma idade e com o mesmo nível de instrução aos quais se ministrava um programa previamente fixado composto por um conjunto de conhecimentos proporcionais ao nível dos alunos, sendo cada classe gerida por um professor. Os exercícios escolares tinham o objetivo de mobilizar, no processo de aprendizagem, as faculdades dos alunos. Baseando-se na escolástica, o modus parisienses10 tinha como pilares a lectio, isto é, a preleção dos assuntos que deviam ser estudados, o que podia ser feito literalmente por meio de leituras; a disputatio, que se destinava ao exame das questiones suscitadas pela lectio; e as repetitiones, nas quais os alunos, geralmente em pequenos grupos, repetiam as lições explanadas pelo professor diante dele ou de um aluno mais adiantado. (2008, p. 58).

O que vemos em movimento, nas falas dos professores, ao conduzirem o ensino de Matemática neste tempo pandêmico, é a transposição do presencial para o remoto de um mesmo modo de ensinar Matemática, cuja lógica “[...] prevê explicação do conteúdo pelo professor [...], realização de exercícios pelos estudantes, correção dos exercícios pelo professor e verificação do aprendizado” (BOFF, 2020, p. 45). Esse modo de ensinar também é proveniente, como nos alerta Gauthier et al. (2006), de uma “tradição pedagógica” acerca dos saberes escolares, que se (re)produz por meio do que cada docente aprendeu sobre a escola, o ensino, a docência, muitas vezes, antes mesmo de decidir seguir a carreira profissional.

Como forma de gestar outros pensamentos na docência em Educação Matemática, talvez, como diz D’Ambrósio (2005), o nosso desafio seja ultrapassar as armadilhas do ser/fazer “o mesmo do mesmo” e não repetir fielmente o que foi pensado para a escola e para o ensino nos séculos passados. Isso não implica interditar certas estratégias herdadas da tradição pedagógica para ensinar Matemática, uma vez que, na nossa compreensão, explicar o conteúdo, fazer exercícios, retomar, repetir procedimentos também é importante para aprender Matemática, mas não somente. A inserção de outros elementos à aula, derivados, em geral, de planejamentos individuais e coletivos, de reflexões sobre a docência e os processos que nela se engendram e de políticas públicas educacionais, parece-nos ser um caminho frutuoso para tensionar/reposicionar a aula de Matemática e se preparar para as possíveis mudanças nos cenários educacionais.

As narrativas apresentadas no Quadro 2 destacam alguns elementos que também consideramos importantes para as aulas de Matemática e que, de modo especial, direcionam o olhar do professor para o estudante neste tempo pandêmico.

Quadro 2 Outros elementos para as aulas de Matemática 

Busco sempre ouvi-los [os estudantes] e, a partir disso, iniciar a aula. (PAFEF9).
[É importante] Buscar a formação cidadã dos estudantes e promover a transformação do meio social para o bem comum. (PAFEF12).
Eu procuro trabalhar o conteúdo essencial para o próximo ano e de maneira que trabalhe com o dia a dia, algo mais concreto. Uso muitos jogos e vídeos. (PAFEF15).
[Inicio a aula] Com um cumprimento aos alunos, alguns comentários referentes ao momento, [pedindo] se estão bem, por exemplo, se estão acompanhando [...]. (PAFEF23)
Começo [a aula] conversando com os alunos, pois acho necessária essa troca com os alunos, para que eles se sintam acolhidos. (PAFEF27).

Fonte: Elaborado pelos autores (2021).

Nas falas selecionadas, os professores parecem incluir outros elementos para as aulas de Matemática, em especial, a partir da escuta, na perspectiva da acolhida. Também há uma preocupação com a formação dos estudantes, considerando o “bem comum”. Isso mostra que, embora a pandemia tenha exigido a tomada de decisões de modo aligeirado por parte dos professores, modificando as ferramentas utilizadas nas aulas (especialmente as tecnológicas) - muitas vezes desconhecidas por alguns -, houve a preocupação em manter/ ressignificar certa aproximação com os alunos.

Isso reforça o entendimento de que a conectividade pode estabelecer novas formas de ação do professor e, ainda, outra relação com o conhecimento profissional docente (NÓVOA, 2017). Isso porque integrar o digital ao trabalho docente é mais do que incorporar uma tecnologia à aula, pois, nessa ação, reverberam-se “novos modos de ser, de agir e de pensar” (NÓVOA; ALVIM, 2021, p. 12). Por outro lado, ao problematizarmos a interação presencial entre professores e alunos, considerando a narrativa de um dos professores que diz que, no ensino remoto, há a “Inviabilidade de contato físico, o que considero de fundamental importância na interação professor aluno” (PAFEF23), questionamos: “[...] pode haver ‘encontro’ no espaço virtual?” (NÓVOA; ALVIM, 2021, p. 12). Tal questão parece colocar sob tensão o exercício da docência para ensinar Matemática. A resposta dada por alguns autores para esse questionamento aponta:

Certamente que sim, desde que se valorize a dimensão comum, a construção conjunta das aprendizagens. O digital não é apenas mais uma “tecnologia”; instaura uma nova relação com o conhecimento e, por isso mesmo, uma nova relação pedagógica, redefinindo o lugar e o trabalho dos professores. (p. 12).

Nessa perspectiva, concordamos com Schlemmer, Di Felice e Serra quando dizem que vivenciamos um contexto emergente, de “digitalização do mundo”, ou seja, de “[...] uma nova cultura relacional, ecológica, ligada a indicadores e critérios de sustentabilidade, o que nos permite falar de uma Educação OnLIFE, numa realidade hiperconectada” (2020, p. 12). Nesse contexto, faz sentido pensar nos desafios planetários de estarmos conectados e em rede, em que

[...] não [se] conectam apenas humanos, mas também as biodiversidades e as inteligências dos dados, provocando a emersão de uma ecologia inteligente, da qual os humanos são um dos membros, nem o centro e nem a periferia, mas co-produtores. (p. 15).

Isso nos provoca a pensar na docência e nos professores que ensinam Matemática, no trabalho docente e na responsabilidade de integrar a tecnologia às aulas de Matemática, buscando um reposicionamento diante dos desafios da pandemia e da pós-pandemia. Nóvoa e Alvim (2021) sugerem a necessidade de construção de estratégias que modifiquem as relações pedagógicas, dimensionando o papel do professor e dos alunos, estabelecendo novos modos de exercer a docência e de se relacionar com o conhecimento profissional.

Destacamos que, a partir de um diagnóstico do presente, os professores tiveram de buscar outras formas, mesmo que com pouco tempo de planejamento e reflexão, para atender às demandas educacionais ocasionadas pela pandemia. Com a urgência para a organização das aulas remotas, com a introdução em massa de modos síncrono e assíncrono para a execução das aulas, com o uso do Google Meeting, do Classroom, do WhatsApp e de outros recursos, bem como com a “quebra” de uma suposta rotina de trabalho, realizou-se, muitas vezes, uma transposição aligeirada do ensino presencial para o remoto. Por isso, “Diante da abrupta mudança, acreditou-se ser possível transpor o modelo de aula presencial para uma plataforma virtual, mas logo se percebeu a impossibilidade dessa transposição” (MONTEIRO; SENICATO, 2020, p. 323).

A partir dessas discussões, no segundo grupo, apresentamos narrativas que mostram as dificuldades apontadas pelos professores e que parecem se potencializar com a transposição direta do presencial para o remoto. A maioria dos ditos está direcionado ao aluno, às suas “faltas”, àquilo que o ensino precisa “preencher”, transitando nas dificuldades cognitivas, afetivas, econômicas, de interesse, de linguagem matemática, de acesso à internet e às aulas, no período do ensino remoto. Essas narrativas se inscrevem no que nomeamos de “imperativo da falta”, uma vez que universalizam e (re)posicionam os processos de ensino e de aprendizagem em Matemática.

Quadro 3 O “imperativo da falta”: a dificuldade está no aluno 

[...] muitas vezes, a maioria das crianças apresenta dificuldades não só cognitivas, mas também afetivas e muitas são extremamente carentes. No trabalho remoto essas diferenças aumentam, pois muitos não interagem, seja com atividades impressas, seja por meio da plataforma ou WhatsApp. Percebo que os alunos estão cada vez menos interessados em aprender. (PAFEF9).
Nas aulas virtuais há pouco acesso dos alunos, as atividades realizadas são muito vagas e a participação nas aulas síncronas é realizada por uma minoria. [...] Mesmo tendo a disponibilidade de internet por parte da administração pública, muitos alunos não acessam as aulas. (PAFEF23).
A maioria dos alunos têm dificuldade em ler e interpretar imagem, ler e interpretar em linguagem matemática. [...] É um desafio atingir os estudantes e estimulá-los a realizar as atividades, perante tantas dificuldades. (PAFEF36).
Sempre gostei de trabalhar com tecnologia, mesmo antes da pandemia. Mas agora está bem difícil de trabalhar porque os alunos não realizam as atividades, não têm acesso à internet, não têm interesse em realizar as atividades. [...]. Mas é difícil de dar conta de tudo, tanto no planejamento quanto na correção. (PAFEF15).

Fonte: Elaborado pelos autores (2021).

As falas apresentadas tratam das dificuldades dos alunos em relação ao entendimento da linguagem matemática, ancoradas nas questões cognitivas e afetivas e, em especial, dos interesses em aprender. Tais falas parecem se aproximar de ideias que tratam a Matemática em um sentido único, diferente das práticas matemáticas vivenciadas pelos alunos. Talvez, a

[...] formalização da linguagem matemática, estruturada na lógica dedutiva, fecha outras interpretações, pois quer operar com as evidências de um sentido único, com uma linguagem ideal que evite se defrontar com as ambiguidades da linguagem natural. (SILVEIRA, 2011, p. 777).

Esse direcionamento pode levar à produção de algumas verdades em relação à existência de uma Matemática única e universal, organizada “[...] dentro de uma formação discursiva pautada numa racionalidade de tradição filosófica transcendental e essencialista” (MONTEIRO; MENDES, 2019, p. 4).

Essas ideias podem estar relacionadas com a falta de interesse dos alunos, apontada recorrentemente pelos professores, quando dizem que eles estão “cada vez menos interessados”, “não realizam as atividades”, “muitos alunos não acessam as aulas”, principalmente as salas do Google Meeting. Diante disso, os professores têm colocado a si o desafio de atingir e estimular os alunos para a participação e a realização das tarefas escolares. Isso parece implicar considerar outros movimentos docentes, outros modos de ensinar Matemática que possam estar mais alinhados às práticas educacionais que promovem a participação dos alunos, o que pode aproximar a docência da noção de ensino proposta por Biesta (2020). Tal noção discute a necessidade de um “[...] ensino voltado para o ser-sujeito de nossos alunos, ensino que de alguma forma estranha procura despertar no aluno o desejo de querer existir no mundo como sujeito [...]” (BIESTA, 2020, p. 185).

Aqui, o enunciado usado como referência e naturalizado como verdade parece ser o de que o aluno não aprende Matemática por falta, que transita entre a falta de entendimento, de interesse, de participação, de acesso à internet, de realizar as atividades, como veiculado nas narrativas apresentadas. Enunciado parecido foi discutido por Neves (2015, p. 150) ao tensionar que os alunos não aprendem Matemática por “falta de base”, discutindo a hierarquização do conhecimento e do currículo matemático escolar. O autor explica que o enunciado coloca o problema no indivíduo, “[...] que é considerado o responsável por não saber matemática” (p. 157), deixando de questionar a escola e os modos de ensinar Matemática.

Inscrito no imperativo da falta, é apresentado outro grupo de narrativas, que, embora apareçam com menos ênfase, tratam das dificuldades dos professores, dos modos de ensinar Matemática, e consideram o pouco tempo para planejar aulas diferentes das ditas tradicionais e a dificuldade de ensinar os conteúdos matemáticos exclusivamente “por escrito”, como mostra o quadro a seguir.

Quadro 4 A dificuldade dos professores 

Os conteúdos mais abstratos e necessários para dar continuidade ficam difíceis de trabalhar. Tem pouco tempo para o planejamento, para fazer vários planos para a mesma aula, pois tem o aluno que acessa a plataforma, o aluno que não acessa e as inclusões, e corrigir tudo isso, sendo que sempre ficam atividades para trás. (PAFEF15).
[...] programar aulas diferentes do tradicional. (PAFEF27).
[...] utilizar recursos mais interativos. (PAFEF35).
Conseguir explicar o conteúdo de matemática exclusivamente por escrito. (PAFEF36).

Fonte: Elaborado pelos autores (2021).

Essas reflexões mostram que a pandemia trouxe, além das dificuldades já mapeadas anteriormente, novas dificuldades para o exercício da docência, provocando-nos a pensar e a potencializar a intencionalidade nas práticas de ensino de Matemática, mesmo que isso implique certo desconforto, pois o “[...] impacto frente à necessidade de inventarmos algo novo, a exigência de nos reorganizarmos com outras dinâmicas exige coragem, coragem para pensar, para se arriscar. É preciso riscar e arriscar a pensar de modo outro” (MONTEIRO; SENICATO, 2020, p. 328). Além disso, a compreensão de que a integração das tecnologias digitais ao ensino de Matemática, por si só, não produz reverberações nos “[...] novos modos de ser, de agir e de pensar”, faz-nos entender a necessidade de reposicionar o ensino e a função dos professores, “[...] para comporem uma pedagogia do encontro” (NÓVOA; ALVIM, 2021, p. 12).

Mesmo antes da pandemia, a docência para ensinar Matemática estava comprometida com a transmissão de uma verdade universal, com práticas voltadas, muitas vezes, à resolução de “listas de exercícios sempre tão ‘iguais’. Afial, ao fazer repetidamente a resolução desses exercícios semelhantes o estudante estaria supostamente aprendendo” (MONTEIRO; SENICATO, 2020, p. 327). Como dissemos, não julgamos as estratégias usadas por alguns professores para ensinar Matemática, porém tensionamos a utilização majoritária dessas mesmas práticas, o “mesmo do mesmo”, ponderando sobre o desafio de entender a docência como um exercício de pensamento, de partilha, de discussão no coletivo, em que a preocupação seja o bem comum, como nos ensina Boufleuer (2020, p. 16): “[...] um cuidado do mundo, o que significa [...] fazer do mundo um tema do pensamento, uma questão com a qual nos ocupemos”.

Na próxima seção, apresentamos um exercício de pensamento que é um convite para pensarmos a(s) docência(s) para ensinar Matemática de outros modos.

4 PENSAR A(S) DOCÊNCIA(S) PARA ENSINAR MATEMÁTICA DE OUTROS MODOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Na perspectiva de pensarmos juntos sobre a( s) docência(s) para ensinar Matemática de outros modos, consideramos que o ofício de ensinar pode constituir-se como artesania11, na perspectiva de Sennett (2019) e na relação entre os modos de fazer e os modos de pensar discutidos por Larrosa (2003). Para isso, apontamos co mo necessário ter-se tempo para o exercício do pensamento e para a produção de experiências que toquem e transformem a vida. Tempo esse que as comunidades escolares, em geral, não tiveram na pandemia, uma vez que precisaram retomar as atividades de ensino no modo remoto, por conta das determinações dos órgãos oficiais, inclusive do Ministério da Educação (MEC), que “[...] determinaram que as atividades presenciais deveriam ser transpostas, por meio de ferramentas digitais, para um modelo de educação remota enquanto durasse a crise sanitária” (SARAIVA; TRAVERSINI; LOCKMANN, 2020, p. 3).

Retomando as questões investigativas - a saber, o que dizem os professores que ensinam Matemática em tempos de pandemia sobre a docência nos anos finais do Ensino Fundamental? E de que forma esses ditos provocam outros modos de pensar a docência? -, delineamos um dos pontos centrais encontrados nas narrativas dos professores: a transposição das atividades presenciais de ensino para o ensino remoto.

Isso nos leva a pensar que a docência nos tempos pandêmicos pode ter se produzido não pela linearidade e pela hierarquização das formas de ensinar, mas pela surpresa, pela emergência de retomar as ações de ensino e de dominar as ferramentas tecnológicas para ensinar Matemática, sem um tempo adequado para a experiência formativa. Com a rotina diária imposta aos professores, considerando a oferta massiva de tutoriais, lives e palestras e o excessivo registro das atividades, pouco restou a fazer, além do cumprimento das exigências impostas pelo sistema e pelas políticas educacionais. Esse cenário de excessos, visibilizados pelas várias tarefas burocráticas e formações continuadas - muitas vezes, desconectadas dos alunos ‘reais’ das escolas públicas –, dentre outros problemas que foram potencializados com a pandemia, acabou por ampliar “[...] as diferenças sociais, econômicas e culturais de nosso país” (MONTEIRO; SENICATO, 2020, p. 318).

Ao considerarmos as narrativas dos professores sobre a docência para ensinar Matemática, inferimos, a partir de Larrosa (2018), que tal ofício passou por algumas expropriações, que procuraram “[...] converter os professores em profissionais intercambiáveis, reduzidos a ser uma função de uma máquina escolar que pretende ser eficaz e, acima de tudo, controlada e controlável” (p. 41). Dizemos isso para indicar que nesses tempos de pandemia, de ensino remoto, de aulas on-line, de ensino híbrido, a docência tem sido colonizada por outros termos e modos de exercício, que levam os professores a se reinventar, sem que fosse dado tempo e voz para suas manifestações. Como discute Larrosa (2018, p. 42), “[...] não é que tenhamos perdido os gestos (e as maneiras), mas sim que tenham sido ignorados e menosprezados; não é que tenhamos perdido a língua, mas sim que nos ensinaram a falar em uma que não é a nossa”. Considerando isso, pensamos ser importante ainda questionar: “Como nos manter em conexão com os alunos? Que matemática devemos ensinar? Como ensinar sem ‘lousa e giz’?” (MONTEIRO; SENICATO, 2020, p. 325).

Para Monteiro e Senicato (2020), a reinvenção do ensino e do professor pressupõe o exercício de pensar em como fazer diferente para além da pandemia, considerando as especificidades da escola e dos alunos. “Trata-se de considerar a docência como uma experiência de sensibilidade e de pensamento que se compõe no coletivo, diferente da imagem daquele que apenas professa uma verdade” (MONTEIRO; SENICATO, 2020, p. 329). Também Nóvoa e Alvim (2021) discutem o papel importantíssimo dos professores na criação de novos ambientes escolares no período pós-pandemia e consideram que “[...] é necessário que nos tornemos conscientes daquilo que sabemos e que sejamos capazes de um trabalho de sistematização, de escrita e de partilha” (p. 9). Para isso, propõem um trabalho de partilha, em uma perspectiva coletiva, na qual os professores são responsáveis pela promoção de uma pedagogia do encontro, que envolve o “[...] aprender a pensar, sabendo que nunca poderemos fazer sozinhos. É para isso que precisamos dos professores [...]” (NÓVOA; ALVIM, 2021, p. 12, grifos do autor).

Ao encontro disso, Bahia e Fabris (2021, p. 210) tomam a experiência coformativa como uma “[...] prática que demanda envolvimento dos sujeitos em formação, tanto dos que estão desenvolvendo a formação, quanto daqueles que já estão atuando na profissão”. Ademais, sugerem que essa experiência se desenvolva no coletivo de professores, em uma perspectiva da ética da partilha.

Com isso, junto a Boufleuer (2020), entendemos que pensar a docência a partir de uma dimensão do ser-fazer significa ancorá-la em uma condição humana que envolve “Questões fundamentais de nossa vida - educação, política, trabalho, entre outras” (p. 17). O autor nos convida, ainda, a considerar “[...] um ‘ser-fazer’ docente com potencialidade humanizadora”, de forma a estabelecer um modo de ensino que evidencie um compromisso com o mundo e com os alunos, de maneira que eles aprendam fazendo parte da relação intersubjetiva que se sustenta na didática comunicativa,

[...] no esforço argumentativo e na disposição para o diálogo” (p. 26), uma vez que o aprendizado é construído por meio de uma “[...] perspectiva própria, no horizonte de seu universo de referências, de suas experiências, de seus pensamentos. (p. 27).

Dessa forma, o ser-fazer docente inscreve a docência também como testemunho da própria aprendizagem.

Os argumentos apresentados pelo autor nos impelem a pensar e a tensionar as docências em Matemática em tempos de pandemia e pós-pandemia, no sentido de impulsionar a defesa de uma escola que proponha a participação consciente e crítica em espaços públicos comuns e laicos, a partir da promoção do ensino, como propõe Biesta (2020). Pensamos que um dos caminhos seja a “[...] invenção de uma docência em matemática em meio à vida, uma docência que se dá em processo, no próprio conduzir-se, no próprio escrever-se, no próprio viver uma vida em meio à docência” (AURICH, 2017, p. 12). Com isso, poderemos pensar a(s) docência(s) a partir do movimento, da invenção, da reinvenção, dos encontros consigo e com os outros, oportunizando-se processos artesanais para produzir os fios que compõem e integram o exercício da docência com o ensino de Matemática, as tramas e uma rede de encontros.

Na continuidade, ampliamos o convite para outros e novos encontros: como (re)pensar a(s) docência(s) com o ensino de Matemática na perspectiva de tramarmos fios e redes para este e outros tempos?

4Entendemos que as experiências coformativas constroem-se a partir de um envolvimento colaborativo e ético, entre professores e futuros professores, e emergem da relação universidade e escola, sendo mais do que o somatório de competências individuais (BAHIA; FABRIS, 2021).

5O Vale do Rio dos Sinos pertence à região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

6O termo narrativa está sendo usado no sentido de ato enunciativo, ato de fala, e não como área de pesquisa já consolidada, embora, ao usarmos tal referência, nós nos inserimos minimamente nos significados, nas memórias e nos conhecimentos que a área carrega.

7“[...] forma de organizar o material [que] pode ser utilizada em diferentes perspectivas e concepções de pesquisa, uma vez que o objetivo é reunir nesses grupos as recorrências do material que respondam às perguntas e, também, marcar os silenciamentos e outras caracterizações que a pesquisa indicar” (BAHIA; FABRIS; 2022, p. 124).

8Consideramos a hipercrítica como uma crítica radical que tensiona todas as enunciações e desconfia delas. Parte da historicização dos processos, e não, necessariamente, da sua oposição. Esse conceito é desenvolvido por Veiga-Neto no livro Crítica pós-estruturalista e educação (1995), a partir das teorizações de Michel Foucault.

9“Cada uno de nosotros se encuentra ya inmerso em estructuras narrativas que le preexisten y que organizan de un modo particular la experiencia, que imponen un significado a la experiencia”.

10Conforme Saviani (2008), modus parisienses era um modo de ensino da Universidade de Paris (1509), que “[...] comportava, como aspectos básicos, a distribuição dos alunos em classes, realização, pelos alunos, de exercícios escolares e mecanismos de incentivo ao trabalho escolar” (p. 52).

11Discussões sobre artesania e docência podem ser encontradas em: Bahia e Fabris (2021); Fabris, Bahia e Neves (2018); Fabris (2015).

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Recebido: 22 de Março de 2022; Aceito: 31 de Agosto de 2022

Daiane Scopel Boff: Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), na linha de pesquisa Formação de Professores, Currículo e Práticas Pedagógicas. Professora de Matemática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), Campus Caxias do Sul. Professora permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Integrante do Grupo de Pesquisa em Docências na Educação Básica (GPEDEB) no IFRS. Integrante do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Docências, Pedagogias e Diferenças (GIPEDI) na UNISINOS. E-mail: daiane.boff@caxias.ifrs.edu.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2860-686X

Marta Cristina Cezar Pozzobon: Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professora adjunta na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), docente dos cursos de Licenciatura em Matemática e do Mestrado em Educação Matemática. Pesquisadora integrante do Grupo de Estudos sobre Educação Matemática com ênfase nos Anos Iniciais (GEEMAI) na UFPel. Integrante do Grupo de Estudos em Educação Matemática (GEEM/CNPq) na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ). Integrante do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Pedagogias, Docências e Diferenças (GIPEDICNPq) na UNISINOS. E-mail: marta.pozzobon@hotmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3069-5627

Cláudio José de Oliveira: Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Integrante do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Pedagogias, Docências e Diferenças (GIPEDI/CNPq) na UNISINOS. Integrante do grupo Linguagem Cultura e Educação (LINCE/CNPq) na Universidade em Santa Cruz do Sul (UNISC). Professor pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) e do Departamento de Ciências, Humanidades e Educação (CHEUNISC), da UNISC. E-mail: coliveir@unisc.br, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9403-0897

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