SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 issue62Demands around accountability in curriculum and teaching policies: the multilateral organizations and their articulations in times of crisisInternational agreements and their influence on the management and educational planning of Brazil and Paraguay author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Série-Estudos

Print version ISSN 1414-5138On-line version ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.28 no.62 Campo Grande Jan./Apr 2023  Epub May 23, 2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v28i62.1770 

Dossiê: Recomendações dos Organismos Multilaterais para a Educação da América Latina e Caribe em contextos de crise

O Reuni Digital e a conformação de uma agenda para a educação superior brasileira no pós-covid-19

Reuni Digital and the conformation of an agenda for Brazilian higher education in the post-COVID-19 period

Reuni Digital y la conformación de una agenda para la educación superior brasileña en el período post-COVID-19

Lara Carlette Thiengo1 
http://orcid.org/0000-0003-3593-4746

Cezar Luiz De Mari2 
http://orcid.org/0000-0003-0404-0328

1Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Diamantina, Minas Gerais, Brasil

2Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa, Minas Gerais, Brasil


Resumo

O objetivo deste texto é analisar o contexto e o Programa de Expansão do Ensino a Distância nas Universidades Federais (Reuni Digital), lançado em abril de 2021, pelo Ministério da Educação, na gestão de Milton Ribeiro. Tratamos ainda das recomendações do Banco Mundial e da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) para a educação superior - a partir do contexto da pandemia de covid-19 -, tendo como enfoque as propostas de intensificação de “eadedização”. A metodologia tem como fundamento o materialismo histórico-dialético e a abordagem crítico-interpretativa, a partir das análises de documentos das literaturas especializadas, notícias e entrevistas em sites e imprensa. Trabalhamos com o pressuposto de que o Programa RD tem por objetivo reconfigurar as IFES pela platamorfização da educação superior, produzindo a indistinção entre o público e o privado e entre as modalidades de ensino EAD e presencial.

Palavras-chave: organizações internacionais; pandemia; universidade pública; Reuni Digital

Abstract

The objective of this text is to analyze the context and the Expansion Program of Distance Learning in Federal Universities (Reuni Digital), launched in April 2021 by the Ministry of Education, in Milton Ribeiro management. We also deal with the recommendations of the World Bank and United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) for higher education - from the context of the COVID-19 pandemic - with a focus on proposals for the intensification of “eaderization”. The methodology is based on historical-dialectical materialism, and the critical-interpretive approach, based on the analysis of documents from specialized literature, news, and interviews on websites and the press. We work with the assumption that the RD Program aims to reconfigure the IFES by platamorphizing higher education, producing a lack of distinction between the public and the private, and between the modalities of distance learning and face-to-face teaching.

Keywords: international organizations; pandemic; public university; Reuni Digital

Resumen

El objetivo de este texto es analizar el contexto y el Programa de Expansión de la Educación a Distancia en las Universidades Federales (Reuni Digital), lanzado en abril de 2021, por el Ministerio de Educación, bajo la dirección de Milton Ribeiro. También tratamos las recomendaciones del Banco Mundial y la Organización de las Naciones Unidas para la Educación, la Ciencia y la Cultura (UNESCO) para la educación superior - desde el contexto de la pandemia del COVID-19 -, centrándonos en propuestas para la intensificación de la “eaderización”. La metodología se basa en el materialismo histórico-dialéctico y el enfoque crítico-interpretativo, a partir del análisis de documentos de literatura especializada, noticias y entrevistas en sitios web y prensa. Trabajamos con el supuesto de que el Programa de RD pretende reconfigurar las IFES por la plataformización de la educación superior, produciéndose la indistinción entre lo público y lo privado y entre las modalidades de enseñanza a distancia y presencial.

Palabras clave: organizaciones internacionales; pandemia; universidad pública; Reuni Digital

1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é discutir as razões e os fundamentos teórico-metodológicos para o lançamento do Programa de Expansão do Ensino a Distância nas Universidades Federais (Reuni Digital), em abril de 2021, pelo Ministério da Educação, sob a gestão de Milton Ribeiro, durante o governo Jair Messias Bolsonaro (2018-2022). Partimos do pressuposto de que a necessidade (real) do ensino remoto, imposta pela pandemia, aumentou consideravelmente a procura/mudança por vagas na Educação a Distância (EAD), assim como aponta para a tendência de fortalecimento desta modalidade no período pós-pandemia (SAMPAIO, 2021). Neste sentido, as demandas pela plataformização do ensino superior, aprofundadas durante a pandemia, indicam a consolidação de “mercados tecnológicos-educacionais”, como foco dos grandes conglomerados de educação.

Nosso pressuposto investigativo é que o período pandêmico do SARS-CoV-19 acelerou o processo relacionado à expansão da modalidade a distância no ensino superior, cujo processo se desenvolve desde o início da década de 1990, no Brasil. Esse movimento está articulado às premissas neoliberais, ou seja, ao fortalecimento do mercado de educação, ancorado nas orientações das Organizações Internacionais (OIs) que buscam a hegemonia sobre os rumos da educação em nível global. Dentre as OIs, traremos as perspectivas do Banco Mundial e da UNESCO, partindo do entendimento de que essas organizações exercem a função de intelectuais na defesa dos interesses dos países centrais, atuando como “‘organizador(es)’ das políticas dos países ‘em desenvolvimento’” (LEHER, 1998, p. 9).

Sobre o programa RD, trataremos dos documentos produzidos no âmbito do Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), para compreender os vínculos com as orientações mais gerais das OIs e o andamento da sua implementação nas IFES. O RD é tratado em nossas análises como tradução de um conjunto de interesses globais que se conectam com setores e grupos privados da educação brasileira com potencial de produção de efeitos deletérios para a universidade pública.

Um conjunto de elementos desestruturantes, com destaque ao golpe-jurídico-parlamentar contra a então presidenta Dilma Vana Rousseff, em maio de 2016, vem contribuindo para a condução da educação como serviço, e não mais como direito. Ainda que os governos petistas fossem condicionados pelas tendências neoliberais, é certo falar que, com a chegada de Michel Temer à Presidência, em 2016, seguida da gestão Bolsonaro (2018-2022), aprofundaram-se as reformas no âmbito dos direitos sociais, desestruturando os poucos avanços dos governos Lula (2003-2009) e Dilma (2010-2016). O projeto neoliberal já vinha se desenvolvendo desde os anos 1970 e chegou ao Brasil com o Plano de Reforma do Aparelho de Estado, exposto nos Cadernos Mare de Bresser Pereira (1997), implementado a partir de 1995, dentro de uma agenda econômica e social muito mais radical aos interesses dos grupos dominantes.

Não obstante, a conjuntura atual, para além da pandemia, é pautada pelo recrudescimento do neoliberalismo - pelo avanço da extrema direita e do neofascismo. Seguem-se os ataques às universidades públicas e à ciência, a redução de investimentos públicos em Educação (BRASIL, 2016), a terceirização ampliada para quase todos os setores de serviços públicos, desestruturação das leis trabalhistas e da previdência social, a reforma do Novo Ensino Médio (2017), o lançamento da Base Nacional Comum Curricular (MEC, 2017), o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores - Future-se (MEC, 2019) e o Reuni Digital, foco deste artigo.

Dito isso, optamos pelo estudo dos documentos do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (CGEE/MCTI), pelo levantamento da literatura sobre o Reuni Digital, bem como pelo mapeamento e pela análise de documentos do Banco Mundial e da UNESCO. Orientamo-nos pela perspectiva crítico-interpretativa fundamentada no materialismo histórico (TRIVIÑOS, 2001) em busca da compreensão das origens e dos significados dessas políticas e de seus desdobramentos para a educação superior.

2 O QUE DIZEM O BANCO MUNDIAL E A UNESCO SOBRE A EAD

A educação superior tem sido foco de diversas produções do Banco Mundial e da UNESCO, sugerindo sua reestruturação para acompanhar as tendências do mercado, apresentando as tecnologias e suas ferramentas na modalidade EAD como mediações destes processos, ao menos há duas décadas.

De acordo com Mari (2006), os principais documentos de orientação nesse período foram: La educación en los países en desarrollo: peligros y promesas (WORLD BANK, 2000) e Construir sociedades de conocimiento: nuevos desafíos para la educación terciaria (BANCO MUNDIAL, 2003). O primeiro documento está fundamentado na perspectiva de promoção da equidade e da excelência, em que a estratificação ou a diversificação da educação superior é uma alternativa para contemplar dois níveis de educação: um orientado para a investigação a partir de sistemas de alta seletividade e outro para atender às demandas da massificação. Já no documento lançado pelo BM em 2003 é anunciada a estratégia para a educação superior na década de 2000, delineada a partir da demarcação da ideologia da “sociedade do conhecimento” e da “globalização”. Neste documento, a valorização do uso dos recursos tecnológicos ganha ênfase e é apresentada em quatro perspectivas: 1) premissa da inevitabilidade do seu uso como meio para o processo de aprendizagem; 2) promoção de maior igualdade de oportunidade entre os indivíduos e a democratização do acesso ao saber; 3) promoção de maior autonomia dos indivíduos perante seu processo de aprendizagem; e 4) ênfase na utilização dos recursos tecnológicos como forma de promover melhorias no âmbito das instituições de ensino superior.

Acompanham estas orientações: a promoção da diversificação e flexibilização dos modelos de educação superior, também chamada de educação terciária; o estreitamento das relações entre o setor público e o privado; a implementação de novas formas de gestão e administração; a autonomia e responsabilidade institucional; a intensificação das formas de avaliação da “qualidade”; a centralidade nas perspectivas da aprendizagem e inovação e o ensino mediado por tecnologias (Cf. MARI, 2006).

Dentre as edições do Banco Mundial dos anos 1990 até 2015, há um conjunto de documentos que reforçam a utilização da modalidade EAD para a educação em todos os níveis. Destacamos dois destes: The Human Capital Index 2020 UPDATE (BANCO MUNDIAL, 2020a) e Proteger pessoas e economias: respostas de políticas integradas à covid-19 (BANCO MUNDIAL, 2020b). Ambos tratam da educação durante o período da pandemia utilizando-se da retórica superada da perda de capital humano, incorporando-a como parte da crise econômica internacional cujos resultados foram a ampliação das desigualdades. De acordo com MAUES (2021, p. 201), os dois documentos estão fundamentados “[...] no interesse em ‘salvar’ a educação como investimento importante para o crescimento econômico”, em perspectiva com a Teoria do Capital Humano. Uma das alternativas apontadas pelos documentos para dirimir os problemas decorrentes da pandemia para a educação é “[...] aproveitar a oportunidade para tornar a educação mais inclusiva” (MAUES, 2021, p. 201). O ensino remoto é apresentado como forma de evitar a perda de aprendizagem e alavancar a educação terciária (BANCO MUNDIAL, 2020b; MAUES, 2021).

A mesma recomendação aparece no documento editado pela UNESCO (REIMERS, 2021), Educação e covid-19: recuperando-se do choque causado pela pandemia e reconstruindo melhor. Os objetivos do documento apontam para a utilização de tecnologias impulsionadas pela pandemia como um importante fator, de forma que

[...] preparar os alunos para aprender de forma independente e online fornece uma boa base para a aprendizagem ao longo da vida no mundo de hoje, habilidades digitais sólidas são cada vez mais importantes para a autonomia na aprendizagem. (REIMERS, 2021, p. 28).

Também se deve priorizar a capacitação dos professores, oferecendo “[...] conhecimentos e as habilidades necessárias para apoiar os alunos de forma integral e para criar currículos de ensino a distância eficazes” (REIMERS, 2021, p. 32).

O documento cita a experiência de sistemas educacionais que contrataram ou fizeram parcerias com empresas de tecnologia educacional e editoras para “inovar” e apoiar o desenvolvimento dos professores (REIMERS, 2021, p. 34). Como já destacamos em outras pesquisas (THIENGO; BIANCHETTI; MARI, 2018), a utilização recorrente de exemplos dessa natureza pode ser compreendida como uma estratégia discursiva que, ao narrar, dissemina novas ideias, naturaliza relações e “ensina” - o que Barroso (2011) identifica como políticas baseadas em evidências ou boas práticas (best practices).

Na conclusão, o documento da UNESCO enfatiza a necessidade da transformação da educação não apenas durante a pandemia, mas no pós-covid, com

[...] a criação de sistemas híbridos flexíveis que integrem o ensino presencial com a educação a distância, podendo alternar-se na proporção do ensino que ocorre em uma modalidade ou outra, em função da viabilidade de frequentar a escola de forma presencial. (REIMERS, 2021, p. 37-38).

O discurso propõe a modalidade híbrida baseada em avaliação positiva da sua aplicação na pandemia. A continuidade no híbrido no pós-covid se inseriria como estratégia de diminuir as desigualdades:

A educação durante e após a COVID-19 requer uma abordagem coerente, começando com a análise do impacto da pandemia nos alunos, nas comunidades e no sistema educacional. A identificação de estratégias pertinentes definirá o que e como ensinar no futuro. Isso implica a criação de sistemas híbridos flexíveis que integrem o ensino presencial com a educação a distância, podendo alternar-se na proporção do ensino que ocorre em uma modalidade ou outra, em função da viabilidade de frequentar a escola de forma presencial. (REIMERS, 2021, p. 37-38).

Nos trechos dos documentos analisados e também no conjunto de estratégias que foram sendo adotadas no Brasil durante a pandemia (e os desdobramentos que acompanhamos agora), o ensino a distância ou híbrido vai se apresentando como uma realidade quase inevitável. As empresas perceberam que o período da pandemia possibilitou a aceleração de um projeto de ao menos duas décadas demandado pelo projeto capitalista (AGUIAR, 2022). Este laboratório, considerado exitoso, é pretendido para o período pós-pandêmico, qual seja, o ensino híbrido (Cf. FARAGE, 2021).

Tendo como estratégia a incorporação das empresas que produzem materiais didáticos e equipamentos, o documento é bastante explícito quanto à necessidade de ampliação das Parcerias Público-Privadas (PPPs), como se observa no trecho que segue:

Criar alianças entre escolas e outras organizações para aumentar a capacidade das escolas de educar os alunos de uma forma integral, atendendo às necessidades de saúde junto com os objetivos educacionais. As parcerias também podem aumentar a capacidade de ensino das escolas: por exemplo, parcerias com universidades podem dar às escolas acesso a alunos voluntários que são tutores ou assistentes de professores para fornecer apoio acadêmico individualizado aos alunos. (REIMERS, 2021, p. 34).

Permeados por indicações e orientações do Banco Mundial e da UNESCO, subsidiados pela avaliação positiva do setor privado na ampliação do ensino remoto, embalados pelas pressões do mercado educacional, os intelectuais do CGEE/MCTI elaboraram o Programa Reuni Digital para ser inserido nas IFES, como veremos no próximo item.

3 REUNI DIGITAL

Para situarmos o Reuni Digital, é preciso compreender, além da nova condição posta para a educação pela pandemia de covid-19, o processo de expansão, privatização e “eadedização” da educação superior brasileira nas duas últimas décadas.

No que se refere à expansão das universidades públicas, o principal programa foi o Reuni, por meio do Decreto Presidencial n. 6.096, de 24 de abril de 2007 (BRASIL, 2007). Os objetivos do Programa foram: aumentar o número de estudantes de graduação nas universidades federais; aumentar o número de alunos por professor em sala de aula de graduação; diversificar as modalidades dos cursos de graduação, por meio da flexibilização dos currículos, da EAD, da criação dos cursos de curta duração e dos ciclos (básico e profissional); incentivar a criação de um novo sistema de títulos; elevar a taxa de conclusão dos cursos de graduação para 90% e estimular a mobilidade estudantil entre as instituições de ensino.

De acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), entre 2003 e 2013 (INEP, 2020), o setor público da educação superior foi expandido em 120%, sendo que o número de instituições aumentou de 48 para 63, e o número de campus (nas cidades do interior) cresceu 117%, passando de 148 para 312 ao final do referido período.

Conforme aponta Lima (2008, 2011), para cada universidade federal que aderisse ao contrato de gestão com o Ministério da Educação (MEC), o governo “prometia” um acréscimo de recursos limitado a 20% das despesas de custeio e pessoal. Apesar de constatar-se um investimento de aproximadamente R$ 415 milhões, esta pactuação entre instituições de ensino superior (IES) e o MEC envolvia uma série de medidas precarizantes, como dobrar a média aluno/professor, a reestruturação das carreiras docentes, a flexibilização da substituição de professores efetivos por “temporários” e a implementação de EAD. A criação, em 2005, da Universidade Aberta do Brasil (UAB), buscando ampliar a oferta de cursos de formação inicial e continuada de professores(as) para a educação básica, tornou-se um dos marcos mais determinantes na oferta de cursos a distância na educação superior.

No que se refere às políticas de expansão da educação superior privada, é importante frisar que elas foram quantitativamente mais expressivas que nas IES públicas e estão ancoradas no Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) e no Programa Universidade para Todos (ProUni), desenvolvidos a partir de 2003 (CHAVES; AMARAL, 2017; NEVES; BANDEIRA, 2021). Sobre esse processo de expansão do mercado educacional acompanhado pela mundialização econômica, é importante considerar que ocorrem “pressões” do setor privado sobre o orçamento destinado às redes públicas de educação, trazendo uma série de limites ao desenvolvimento da formação e do conhecimento, conforme apontam Mancebo, Vale e Martins (2015, p. 34): “[...] Em primeiro lugar, ocorre mundialmente um crescimento desmedido e praticamente sem controle da oferta privada desse tipo de ensino [...]. O segundo sentido da privatização pode ser localizado na própria rede pública”.

Nesta mesma direção, Ristof (2016) afirma que o FIES e o ProUni sustentaram a crise do setor privado e consolidaram, orientados pelo processo de financeirização, a reconfiguração da educação superior na direção da oligopolização da oferta. Nessa ampliação da educação superior via setor privado, há a instituição de novos formatos com cursos mais baratos (enxutos e rápidos) e, especialmente, na modalidade EAD3.

A consequência mais imediata pode ser observada ao longo dos últimos 10 anos, segundo dados do INEP (2020): as matrículas em instituições públicas e privadas em cursos presenciais diminuiu 13,9%, enquanto nos cursos EaD aumentou 428,2%, principalmente em cursos de licenciatura. É importante notar que o processo ganhou culminância nos últimos anos, a modalidade EAD recebeu mais matrículas do que a modalidade presencial, tanto nas IES públicas quanto nas IES privadas.

Neste contexto, marcado pela oligopolização da educação superior e pela intensificação das plataformas educacionais em EAD, ocorre o lançamento do Reuni Digital. Oficialmente, o programa foi lançado em abril de 2021 e relançado em maio de 2022, pelo MEC, sob a gestão de Milton Ribeiro, em parceria com o CGEE e com a participação do Conselho Nacional de Educação (CNE), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), da Associação Universidades em Rede (UNIREDE) e de representantes de universidades federais.

Na página oficial do Reuni Digital, encontramos os objetivos do Programa: ampliar o acesso e a formação com qualidade aos cursos de nível superior para população; contribuir para a política de inclusão, auxiliando no ingresso e permanência de alunos com vulnerabilidade socioeconômica, deficiência física e segmentos minoritários da população; possibilitar a flexibilização de horários, o que potencializa a redução de evasão do ensino superior; potencializar o aproveitamento e adequação da infraestrutura existente das IES para ofertar novas vagas em cursos de nível superior; oportunizar aos alunos dos cursos presenciais cursarem disciplinas a distância, contribuindo com sua formação no tempo de permanência fixado no projeto pedagógico de seu curso; contribuir, por meio da EAD, na disseminação, no aperfeiçoamento e na criação de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), em especial nas universidades federais.

Almeja-se, inicialmente, o crescimento de 2,7 milhões de vagas nas IFES no período de 15 a 60 meses (projeto-piloto), o que seria acompanhado pelo monitoramento do Sistema de Informações Integrado de Educação Superior (SIIES). Essa proposição está relacionada ao atendimento das metas de acesso à educação superior previstas no Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 (BRASIL, 2014), mais especificamente na meta 12. A meta prevê a elevação da taxa bruta de matrícula para 50%, e da taxa líquida, para atingir a meta de 33% dos estudantes de 18 a 24 anos, até 2024. Com isso, o Reuni Digital prevê que seja assegurada a expansão para pelo menos 40% das novas matrículas no segmento público.

Todavia, é importante frisar, como afirma Seki (2022, s.p.), que o PNE não passa de uma “justificativa formal”, já que, sem a revogação da Emenda Constitucional n. 95, “[...] o PNE está dado como letra morta [...]”. Além disso, vivenciamos um “contexto prolongado de cortes no orçamento federal - em 2022, temos já nove anos consecutivos de cortes na educação superior pública federal”.

Para o desenvolvimento do Programa, o MEC, por meio da Secretaria de Educação Superior (SESU), demandou uma série de estudos sobre a EAD no cenário nacional e também internacional, como demonstramos no quadro que segue:

Quadro 1 Publicações/Reuni Digital 

Publicação Objetivo
Benchmarking internacional de EAD - Volume 1 “fornecer um cenário plural das principais e prestigiadas metodologias de ensino superior a distância no contexto mundial [...] e revelar as políticas, estratégias e ferramentas em EAD de alguns países, de modo a contribuir para a orientação de futuras práticas no Plano de Expansão Brasileiro.” (p. 9)
Reuni Digital - Panorama da EAD no Brasil - Volume 2 Apresentar o Panorama da EAD no Brasil, considerando aspectos normativos e também da prática da Educação a Distância no país, além de dados estatísticos da modalidade.
Reuni Digital - Diagnóstico e desafios para a expansão da EAD no Brasil - Volume 3 Apresentar as características na EAD no Brasil nas últimas décadas e um diagnóstico sobre “desafios e possibilidades” de ações para expandir a modalidade de ensino.
Reuni Digital - Plano de expansão da EAD nas universidades federais - Volume 4 Elaborar/apresentar a missão (ou missões), objetivos, metas e ações articuladas, com a definição de responsabilidades, prazos para a execução, com indicadores e as fontes de recursos e parcerias.
Reuni Digital - Monitoramento do Plano de Expansão da EAD nas universidades federais - Volume 5 Apresentar desdobramentos e resultados do Programa no âmbito das universidades federais até o momento e constituir marcos regulatórios, administrativos, conceituais e de qualidade para monitoramento do Reuni Digital.

Fonte: elaborado pelos autores com base em CGEE/MCTI (2022a, 2022b, 2022c, 2022d).

Frisamos que não temos como objetivo, neste texto, discutir ou analisar de forma mais adensada cada uma das publicações, mas sim visualizar, em uma perspectiva “de conjunto”, o movimento de elaboração do Programa em questão. Nesse sentido, é importante salientar que tais publicações são “encomendadas” a um conjunto de especialistas que, em sua maioria, fazem coro às orientações das OIs.

Os diagnósticos funcionam então como estratégias para produção de consenso sobre a necessidade de expansão da educação via EAD, sendo esta apresentada como uma proposta mais “democrática” e “inclusiva” do que o ensino presencial. Para reforçar ainda mais tais argumentos, as publicações lançam mão das “boas práticas” de outros países, que são apresentadas como experiências exitosas e que podem indicar “um caminho” para a expansão da educação superior no Brasil. No Volume I, por exemplo, foram analisadas três universidades abertas da Europa: a Universidade Aberta de Portugal; a Universidad Nacional de Educación a Distância, da Espanha; a Open University, do Reino Unido; e a Universidade Nacional Aberta Indira Gandhi (IGNOU), da Índia. Ou seja, a mensagem é de que, se deu certo na Europa ou na Índia, deverá ocorrer o mesmo no Brasil. A estratégia discursiva é a mesma aplicada há mais de três décadas, pinçando uma determinada experiência tratada como “exitosa” e generalizando-a como uma possibilidade a ser aplicada em qualquer parte do globo.

Da mesma forma como o apresentado nos casos de sucesso europeu e indiano, no segundo volume, são apresentadas as experiências brasileiras - Universidade Centro de Ensino Superior de Maringá (UNICESUMAR); Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e Centro de Educação a Distância do Rio de Janeiro (CEDERJ) -, a partir das quais o discurso de convencimento se estrutura, buscando subsidiar os intelectuais aderentes à proposta, na elaboração das políticas do Reuni Digital.

Considerando o cenário nacional e internacional e, também, a normatização e a caracterização da EAD no Brasil, o terceiro volume vem apontar as principais dificuldades da EAD no país. Estas dificuldades estariam concentradas em dois grandes eixos: a questão cultural, para criar convencimento sobre essa modalidade junto à comunidade; e a burocratização, considerada um entrave para a aplicação da EAD em larga escala. Para além, são consideradas questões relacionadas à tecnologia, assistência estudantil, gestão e outras.

Podemos dizer que, nestas três publicações, um conjunto de experiências, dados, números e avaliações sobre possibilidades e dificuldades dão fundamentação para que objetivos, metas, reponsabilidades, prazos e monitoramento do Programa sejam organizados nos volumes IV e V.

Especialmente sobre o volume V, é importante salientar que são apresentadas algumas metas para o RD. Destacamos algumas: analisar a possibilidade de criação de uma Universidade Federal Digital, limitando toda a experiência universitária ao processo de “transmissão de conteúdos” e, ao mesmo tempo, tentando equiparar a noção de qualidade no presencial e da EAD; construir documento orientador de princípios e estratégias pedagógicas para uma educação superior aberta e flexível no Brasil, pondo como meta pedagógica um currículo nacional com conteúdo compatível e carga horária que facilite a mobilidade estudantil, de modo a ferir a autonomia dos colegiados na elaboração dos seus currículos.

A proposta de criação de currículos mínimos também seria prioritária, a fim de ampliar as possibilidades da mobilidade em cursos e processos de intercâmbio; construir plano de colaboração em redes e consórcios para criação de comunidades de áreas temáticas de compartilhamento de cursos na modalidade a distância, disciplinas e outras iniciativas acadêmicas nacionais e internacionais (MEC, 2022); promover a virtualização e o compartilhamento de materiais didáticos, de laboratórios e simuladores, o que significa que, tanto professores quanto as estruturas serão substituídas pela “experiência virtual”; estabelecer ações e parcerias para oferta de conectividade, indicando que questões de assistência restringem-se ao acesso à internet; criação de plataformas integradas de EAD em nível nacional, com a implementação de um “portfólio discente” para registro de créditos; regulamentação das horas de trabalho “na universidade presencial” para os docentes envolvidos em cursos a distância, como parte de um “esforço político pela aceitação do EAD e pela adequação a este modelo por parte da comunidade universitária” (MEC, 2022, s.p.); proposição de uma política de “valorização dos Recursos Humanos da EAD” (MEC, 2022, s.p.), incentivando regulamentação do estágio de docência na graduação e pós-graduação na modalidade a distância, estimulando a docência on-line para todos os cursos de licenciatura.

Tendo em vista a perspectiva do RD posta nos documentos para as IFES, Seki (2022) analisa que o deslocamento da formação de parte da classe trabalhadora à modalidade EAD se ancora no nivelamento para a manutenção dos estratos sociais:

[...] quando os filhos da classe trabalhadora entram nas instituições educativas por uma porta, a relação substantiva com os conhecimentos mais elevados produzidos pela humanidade na ciência, na filosofia e na arte saem pelos fundos. (s.p.).

Nesse sentido, acompanhamos o autor na compreensão de que o objetivo (oculto) do projeto é:

[...] realizar a expansão precária das universidades públicas, reduzindo drasticamente a qualidade e a referência social destas instituições; [...] como se fosse uma forma de ensino legítima, com a quebra das carreiras do magistério superior e o modelo de universidade baseado na autonomia, no exercício da crítica e na indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão. Uma vez que o Reuni Digital surgiu em uma conjuntura de estrangulamento orçamentário, precarização da infraestrutura, interesses mercantis no ensino superior e elevação progressiva da importância do ensino a distância para as instituições particulares. (SEKI, 2022, s.p.).

Cabe salientar ainda que a elaboração do Programa está articulada ao “oportunismo” em relação ao momento pandêmico (e pós-pandêmico), durante o qual o ensino remoto foi aplicado indistintamente nas IES públicas e privadas. Apesar da ampliação da carga horária a distância nos cursos presenciais das IFES, de 20% para 40%, ter sido aprovada antes mesmo da pandemia, conforme a Portaria n. 2.117, de 6 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019), tal prática tem sido o instrumento legal de entrada do RD nas IES. Esse processo normalmente toma o caminho dos colegiados superiores e depois desce aos projetos pedagógicos dos cursos.

Mesmo que o projeto-piloto tenha sido lançado somente em 2021, apenas em abril de 2022 teve início a sua implementação, em dez universidades selecionadas, sendo: no Centro-Oeste, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), com os cursos de Tecnologia da Informação, Tecnologia de Ciência dos Dados e Tecnologia em Processos Gerenciais; e a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com o curso Ciências e Tecnologia - Bacharelado Interdisciplinar; no Nordeste: a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), com o curso de Licenciatura em Computação; a Universidade Federal do Piauí (UFPI), com cursos de Tecnólogo em Energias Renováveis e Tecnólogo em Gestão de Dados; e a Universidade Federal do Cariri (UFCA), com cursos de Design de Mídias Digitais e Desenvolvimento para Dispositivos Móveis; Norte: a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), com o curso de Tecnologia em Gestão Ambiental; e a Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), com o curso de Sistemas de Informação; Sudeste: a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), com o curso de Licenciatura em Educação Especial; a Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), com o curso de Gestão Ambiental e Sustentabilidade; e a Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), com o curso de Bacharelado em Ciência e Tecnologia. Juntas, elas vão disponibilizar 14 cursos EAD de curta duração (3 anos), totalizando 5 mil vagas.

A informação do MEC indicou que seriam aportados R$ 25 milhões nesse projeto-piloto, com a criação inicial de 14 cursos em diferentes áreas do conhecimento, com a perspectiva de 5 mil vagas por ano. É importante considerar que parte do investimento se refere à expansão de ferramentas tecnológicas, por isso, há a previsão de modificação dos processos pedagógicos com a inserção de recursos tecnológicos.

Diante do exposto, compreendemos que o ensino mediado pelas tecnologias tende a substituir trabalho vivo por trabalho morto, “[...] aumentando o exército industrial de reserva do setor educacional, e tende a desarmar as organizações combativas das e dos profissionais da educação” (POSSAMAI; SILVA, 2023). Trata-se de uma espécie de “plataformização” da educação, tornando ainda mais precárias as relações de trabalho, sob certos aspectos, pelo isolamento dos profissionais, pelo distanciamento dos ambientes de convivência no trabalho, pela uniformização dos protocolos e procedimentos de ação e pela inserção do trabalhador em relações contratuais fragmentadas, sem segurança, sem planos de cargos e salários, dentre outras. Destacamos a previsão do Reuni Digital de introduzir a figura do monitor na figura da docência, que, além de salários mais baixos, são estratificados como uma subcategoria dentro da docência. Como alerta Sanches (2021), a tendência à desmobilização dos sindicatos e do movimento estudantil será aprofundada considerando o esvaziamento dos espaços presenciais necessários à promoção das lutas coletivas.

Conforme Possamai e Silva (2023), compreendemos que o Reuni Digital explicita o modelo inspirado na gestão empresarial/gerencial (planos inovadores) em consonância com o padrão de acumulação flexível. O Reuni Digital deve ser desenvolvido “[...] sem contratações, sem carreiras estruturadas. É normalizar que o ensino precário da maioria das instituições privadas seja alçado à condição de normalidade também nas IES públicas” (SEKI, 2022, s.p.).

Segundo Seki (2022), Evangelista (2021) e Chaves (2021), o RD fragmenta a carreira docente com a inserção dos tutores no ensino, mediados por contratos como Microempreendedor Individual (MEI) e terceirizados, não tendo a exigência de formação em nível de pós-graduação. Por osmose, ocorrerá a acomodação das condições de precarização das IES sem a ampliação de concursos, acompanhadas da ampliação de acesso na forma híbrida. A precarização da formação e a subordinação de um projeto nacional de ciência e tecnologia estão também subentendidos no projeto do Reuni Digital. Será inevitável a incorporação de produtos tecnológicos das Big Techs que expandirão o seu mercado no setor público “eadedizado” para venda de produtos e de conteúdos formativos.

Nesse mesmo sentido, soma-se a outras propostas que caminham na direção oposta ao fortalecimento do tripé ensino, pesquisa e extensão e evidenciam a flexibilidade de processos sob a justificativa da “autonomia” discente na elaboração de horários.

[...] a reforma curricular nos cursos EaD apoia-se na flexibilização, na aprendizagem centrada no estudante e no desenvolvimento de habilidades e competências, conforme objetivos e metas no âmbito pedagógico. A flexibilização curricular almejada pelo Programa, que facilitaria a mobilidade em cursos e processos de intercâmbio pretende arrazoar a aprendizagem flexível. (POSSAMAI; SILVA, 2023, p. 490).

Tendo a compreensão de que o Projeto Reuni Digital já está inserido e vem se desenvolvendo em algumas IFES, finalizamos o texto com duas citações que nos ajudam a sintetizar os objetivos da “eadedização”:

[...] não há nenhuma dúvida de que estamos frente a uma proposta de mudança substantiva do sentido social das IES públicas, particularmente das Universidades federais. Por meio dos vários fetiches da proposta - o da liberdade de escolha, o do protagonismo juvenil, o da tecnologia redentora, o da internacionalização - difunde-se o que há de mais desonesto na conformação espúria ao espírito capitalista. Pretende-se introjetar ainda mais na alma da Universidade a fisionomia de um espaço de meras trocas, aparentemente, entre interesses individuais. Conquanto descarnado de suas marcas de classe, o RD aponta como saída final para a conquista da “qualidade de ensino” a negociação entre setores públicos e privados, nacionais e internacionais. (EVANGELISTA, 2021, s.p.).

O que se apresenta pelo Reuni Digital não é mais algum tipo de ganho marginal de mercado a partir das estruturas universitárias atuais, mas, sobretudo, está em questão a existência propriamente das instituições de educação superior como modelo de direito público. Estamos diante de uma proposta que coloca em risco a própria noção de universidade como a conhecemos,

O Reuni Digital coloca a perspectiva de que não se trata mais de disputas por espaços orçamentários e vantagens a serem garantidas pelos capitais de ensino, mas de confrontarem todas as especificidades daquilo que consolidamos como os traços distintivos das universidades públicas brasileiras. A disputa é pela sobrevivência do conceito de universidade. (SEKI, 2022, s.p.).

A desestruturação das IFES como modelo de produção e divulgação da ciência está implicada no Reuni Digital a partir do que está definido nos documentos já analisados, materializando o projeto do Banco Mundial e da UNESCO para os países que não estão no eixo dinâmico do capital.

Para encerrar, em se ampliando esta tendência do RD, há possibilidade de revogação do Decreto Presidencial n. 9.057, de 2017 (BRASIL, 2017), que especifica a EAD como uma modalidade, buscando a indistinção com a modalidade presencial, o que normalizaria a educação híbrida na formação superior.

4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Analisar projetos e políticas em curso apresenta-nos sempre o desafio na elaboração das articulações e tentativas de visualização de um “plano mais aberto” dos significados ocultos e explícitos dos documentos e dados que ainda não emergiram. Justamente por isso, as considerações que apresentamos neste item não podem ser chamadas de “finais”.

Ao apresentarmos as orientações mais gerais do Banco Mundial e da UNESCO, com a dinâmica que se apresenta no Brasil, capitaneada pelo MEC da gestão Milton Ribeiro, ou mesmo a própria criação do RD, buscamos analisar como diferentes agentes de decisão vão produzindo argumentos, dados, análises que influenciam de forma efetiva na elaboração das políticas e também na produção de consensos.

No caso desta investigação, vimos que o receituário para a educação superior proveniente dos documentos analisados, ainda que ganhe “novas” roupagens, não ultrapassa as tendências do favorecimento de determinados grupos aos negócios educacionais, com prejuízos certos ao processo formativo. Por isso, são destacados alguns eixos que se repetem em todos eles: a ênfase na perda de capital humano; a defesa do ensino híbrido e da EAD, a ênfase na inovação e defesa da refuncionalização da universidade.

Os discursos que formam as publicações do RD são expressivas à luz das suas consequências, sobretudo tendo a compreensão de que não há “palavra solta” em propostas de políticas educacionais (EVANGELISTA, 2021, s.p.). Em conformidade com a autora supracitada, citamos algumas que exigirão a atenção da comunidade pelos impactos profundos que causarão no processo de desestruturação das IFES: “Trilhas de aprendizagem”; “Universidade Federal Digital”; “Educação mediada por tecnologias”; “Instituições de Aprendizagem Superior (IAS)”; “Geração de competências”; “Currículos flexíveis”; “Massive open online courses”; “Liberdade de escolha”; “Aprendizagem inovadora”; “Internacionalização”; “Cursos de nível superior com qualidade”; Professor/tutor”, dentre outras.

Estas terminologias povoam os documentos da RD, indicando uma mudança profunda no âmbito discursivo, resumindo uma tendência há tempos desejada pelos grupos empresariais ligados à educação, o de tornar “toda a educação para todos”, dissolvendo as diferenças entre público e privado, entre a modalidade EAD e presencial, entre formação, habilidade e competência, entre conhecimento e aprendizagem inovadora. Sendo assim, a probabilidade da incorporação dessas novas tendências nas IFES parece certa, considerando o acondicionamento do setor privado como força hegemônica e alta capilaridade junto às instâncias decisivas como CNE e MEC. A entrada do RD nas IFES está sendo construída pela Portaria do MEC n. 2.117, de 6 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019), ampliando a oferta de cursos de 20% para 40% em EAD, e pela provável remoção do Decreto Presidencial n. 9. 057, de 25 de maio de 2017, eliminando as distinções entre as modalidades EAD e presencial.

De outro lado, são colocados novos desafios aos analistas de políticas públicas e aos movimentos da sociedade civil provocados por esta pauta. Já temos as dimensões do que ocorreu com as políticas de privatização da educação superior e a reforma do Ensino Médio de 2017, em termos de desestruturação do processo formativo e seu distanciamento das matrizes mais avançadas e atuais. O risco do RD é de aprofundamento da precarização do que ainda resta da capacidade científica, formativa e autônoma das instituições de educação públicas. E talvez a mais devastadora mudança em curso seja aquela que incide sobre a soberania nacional, abrindo um generoso espaço para a heteronomia e a subordinação.

3 Cabe destacar a flexibilização das regras de oferta da educação a distância com o Decreto n. 9.057 (BRASIL, 2017), que retirou a obrigação de oferta de cursos presenciais simultaneamente aos cursos a distância e permitiu a criação de polos EAD pelas próprias IES.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Márcia de Medeiros; GUEDES, Aline; LOTT, Ana Cristina; DAMAS, Fernanda Guimarães; CONRADO, Luciane; DAMAS, Maximiliano; CUBA, Rafael; VALIM, Rosa. Lições do empreendedorismo para o alcance de uma educação emancipadora e transformadora: material didático. São Paulo: Instituto Êxito de Empreendedorismo, 2022. [ Links ]

BANCO MUNDIAL. The human capital al index 2020 update: human capital in the time of COVID-19. Washington, DC: IBRD; The World Bank, 2020a. Disponível em: https://reliefweb.int/report/world/human-capital-index-2020-update-human-capital-time-covid19?gclid=Cj0KCQiAgaGgBhC8ARIsAAAyLfFev5VShZPjHIKLxuV634ZkBddQgVbVQ_M3qDo905Q3o97AcQz0PdwaAteQEALw_wcB . Acesso em: 12 nov. 2023. [ Links ]

BANCO MUNDIAL. Proteger as pessoas e as economias: respostas políticas integradas à covid-19. Washington, DC: IBRD; The World Bank, 2020b. Disponível em: https://olc.worldbank.org/system/files/%28Portugu%C3%AAs%29%20ProtectingPeopleandEconomiesIntegratedPolicyResponses-to-COVID-19.pdf. Acesso em: 30 out. 2022. [ Links ]

BANCO MUNDIAL. Construir sociedades del conocimiento: nuevos retos para la educación terciaria. Washington, DC: World Bank, 2003. [ Links ]

BARROSO, João. Da política baseada no conhecimento às práticas baseadas em evidências. Consequências para a regulação do trabalho docente. In: OLIVEIRA, Dalila Andrade; DUARTE, Adriana (Org.). Políticas Públicas e Educação: regulação e conhecimento. Belo Horizonte: Fino Traço Editora Ltda, 2011. p. 91-116. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação [MEC]. Portaria n. 2.117, de 06 de dezembro de 2019. Dispõe sobre a oferta de carga horária na modalidade de Ensino a Distância - EaD em cursos de graduação presenciais ofertados por Instituições de Educação Superior - IES pertencentes ao Sistema Federal de Ensino. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 2019. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-2.117-de-6-de-dezembro-de-2019-232670913. Acesso em: 10 abr. 2023 [ Links ]

BRASIL. Decreto n. 9.057, de 25 de maio de 2017. Regulamenta o art. 80 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Ofical da União: Brasília, DF, 2017. [ Links ]

BRASIL. Emenda Constitucional n. 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República; Casa Civil; Subchefia para Assuntos Jurídicos, 2016. [ Links ]

BRASIL. Lei n. 13.005/2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República; MEC, 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2014/lei/l13005.htmhttps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6096.htm. Acesso em: 10 abr. 2023 [ Links ]

BRASIL. Decreto n. 6.096, de 24 de abril de 2007. Institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - REUNI. Brasília, DF: Presidência da República; Casa Civil; Subchefia para Assuntos Jurídicos, 2007. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6096.htm. Acesso em: 10 abr. 2023 [ Links ]

CHAVES, Vera Lúcia Jacob; AMARAL, Nelson Cardoso (Org.). Políticas de financiamento da educação superior num contexto de crise. Campinas: Mercado de Letras, 2017. [ Links ]

EVANGELISTA, Olinda. Reuni Digital: página infeliz da nossa história. Universidade à Esquerda: Jornal Socialista e Independente [online], Florianópolis, 2021. Disponível em: https:/universidadeaesquerda.com.br/coluna/reuni-digital-pagina-infeliz-da-nossa-historia/. Acesso em: 5 nov. 2022. [ Links ]

FARAGE, Eblin. Para onde caminha a Universidade Pública? Universidade à Esquerda: Jornal Socialista e Independente [online], Florianópolis, 2021. Disponível em: https://universidadeaesquerda.com.br/para-onde-caminha-a-universidade-publica-por-eblin-farage/. Acesso em: 10 out. 2022. [ Links ]

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA [INEP]. Censo da Educação Superior: notas estatísticas de 2019. Brasília, DF: INEP; MEC, 2020. Disponível em: https://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2020/Notas_Estatisticas_Censo_da_Educacao_Superior_2019.pdf. Acesso em: 25 jul. 2021. [ Links ]

LEHER, Roberto. Da ideologia do desenvolvimento à ideologia da globalização: a educação como estratégia do Banco Mundial para “alívio” da pobreza. 1998. 267f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. [ Links ]

LIMA, Kátia Reginal Silva. O Banco Mundial e a educação superior brasileira na primeira década do novo século. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 86-94, jan./jun. 2011. [ Links ]

LIMA, Kátia Reginal Silva. Reformas e políticas de educação superior no Brasil. In: MANCEBO, Deise, SILVA JUNIOR, João dos Reis; OLIVEIRA, João Ferreira de (Org.). Reformas e políticas: educação superior e pós-graduação no Brasil. Campinas: Alínea, 2008. p. 53-72. [ Links ]

MANCEBO, Deise; VALE, Andréa Araujo do; MARTINS, Tânia Barbosa. Políticas de expansão da educação superior no Brasil 1995-2010. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 20, n. 60, jan./mar. 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/QKyJmCvwkGxsJqg7vSCC4xk/?lang=pt#. Acesso em: 30 out. 2023. [ Links ]

MARI, Cezar Luiz de. “Sociedade do Conhecimento” e Educação Superior na década de 1990: Banco Mundial e a produção do desejo irrealizável de Midas. 2006. 265f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. [ Links ]

MAUES, Olgaíses Cabral. A Agenda Global da Educação no contexto da Covid-19. Revista Linhas, Florianópolis, v. 22, n. 49, p. 187-216, 2021. Doi: 10.5965/1984723822492021187 [ Links ]

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO [MEC]. Base Nacional Comum Curricular: educação é a base. Base Nacional Comum Curricular [online], Brasília, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 7 jun. 2022. [ Links ]

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO [MEC]; CENTRO DE GESTÃO E ESTUDOS ESTRATÉGICOS [CGEE]. Benchmarking internacional de EaD. [Reuni Digital volume 1]. Brasília: MEC; Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2022a. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/reunidigital/pdf/REUNIDIGITALVol1_Benchmarking_internacional_EaD.pdf. Acesso em: 05 nov. 2022. [ Links ]

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO [MEC]; CENTRO DE GESTÃO E ESTUDOS ESTRATÉGICOS [CGEE]. Panorama da EaD no Brasil. [Reuni Digital volume 1]. Brasília: MEC; Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2022b. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/reunidigital/pdf/REUNIDIGITALVol2_Panorama_EaD_Brasil.pdf. Acesso em: 5 nov. 2022. [ Links ]

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO [MEC]; CENTRO DE GESTÃO E ESTUDOS ESTRATÉGICOS [CGEE].Diagnóstico e desafios para a expansão da EaD no Brasil. [Reuni Digital volume 3]. Brasília: MEC; Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2022c. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/reunidigital/pdf/REUNIDIGITALVol3_Diagnosticos_e_desafios_expansao_EaD_Brasil.pdf. Acesso em: 5 nov. 2022. [ Links ]

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO [MEC]; CENTRO DE GESTÃO E ESTUDOS ESTRATÉGICOS [CGEE]. Monitoramento do Plano de expansão da EaD nas universidades federais. [Reuni Digital volume 5]. Brasília: MEC; Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2022d. Disponível em: https://www.gov.br/mec/pt-br/reunidigital/pdf/REUNIDIGITALVol5_Monitoramento_Plano_de_expansao_EaD_universidades_federais.pdf. Acesso em: 5 nov. 2022. [ Links ]

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO [MEC]. Future-se. Brasília, DF: MEC, 2019. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/future-se. Acesso em: 7 jun. 2022 [ Links ]

NEVES, Rodrigo Meleu das; BANDEIRA, Denise Lindstrom. Análise das Relações entre os Setores Público e Privado na Educação Superior no Âmbito do Fies.FINEDUCA - Revista de Financiamento da Educação, Porto Alegre, v. 11, p. 1-19, 2021. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/fineduca/article/view/114001. Acesso em: 18 maio 2022. [ Links ]

PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A Reforma do Estado dos Anos 90: lógica e mecanismos de controle. [Cadernos Mare da Reforma do Estado - volume 1]. Brasília, DF: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997. [ Links ]

POSSAMAI, Tamiris; SILVA, Filomena Lucia Gossler Rodrigues da. Programas Future-se e Reuni Digital como ofensivas neoliberais sobre as Instituições Federais de Ensino. Revista Educação e Políticas em Debate, Uberlândia, v. 12, n. 1, 475-95, jan./abr. 2023. DOI: https://doi.org/10.14393/REPOD-v12n1a2023-66635Links ]

REIMERS, Fernando. Educação e COVID-19: recuperando-se do choque causado pela pandemia e reconstruindo melhor”. Paris: UNESCO; Internacional Academy of Education (IAE), 2021. Disponível em : https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000378626_por Acesso em: 30 out. 2022. [ Links ]

RISTOFF, Dilvo. Democratização do campus impacto dos programas de inclusão sobre o perfil da graduação. Cadernos do GEA, Rio de Janeiro, n. 9, jan./jun. 2016. Disponível em: https://biblioteca.flacso.org.br/files/2017/03/Caderno_GEA_N9_Democratiza%C3%A7%C3%A3o-do-campus.pdf. Acesso em: 30 out. 2022. [ Links ]

SAMPAIO, Inayá Maria. A educação a distância e o ensino emergencial em tempos de pandemia: a alternativa do ensino remoto e outras variantes. REPOD - Revista Educação e Políticas em Debate, Uberlândia, v. 10, n. 3, p. 1037-53, set./dez. 2021. [ Links ]

SANCHES, Caio. Projeto do governo para destruir as universidades ou “Reuni Digital. Universidade à Esquerda: Jornal Socialista e Independente [online], Florianópolis, 2021. Disponível em: https://universidadeaesquerda.com.br/projeto-do-governo-para-destruir-as-universidades-ou-reuni-digital/. Acesso em: 5 nov. 2022. [ Links ]

SEKI, Allan Kenji. “O que está em jogo com o ReUni Digital é o próprio significado daquilo que chamamos de universidade brasileira”. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio - Fiocruz, Rio de Janeiro, 2022. [Entrevista concedida a Erika Farias]. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/o-que-esta-em-jogo-com-o-reuni-digital-e-o-proprio-significado-daquilo-que. Acesso em: 5 nov. 2022. [ Links ]

THE WORLD BANK. La educación superior en los países en desarrollo: peligros y promesas. Santiago de Chile: IBRD; World Bank, 2000. [ Links ]

THIENGO, Lara Carlette; BIANCHETTI, Lucídio; MARI, Cezar Luiz De. Rankings acadêmicos e universidades de classe mundial: relações, desdobramentos e tendências. Educação e Soceidade, Campinas, v. 39, n. 145, p. 1041-58, out./dez. 2018. [ Links ]

TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Bases Teórico Metodológicas da Pesquisa Qualitativa em Ciências Sociais. 2. ed. Porto Alegre: Ritter dos Reis, 2001. [ Links ]

Recebido: 23 de Dezembro de 2022; Aceito: 15 de Março de 2023

Lara Carlette Thiengo: Pós-doutoranda em Educação pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Educação pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Professora adjunta da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) - Campus Diamantina. E-mail:laracarlette@gmail.com

Cezar Luiz De Mari: Doutor e mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e graduado em Filosofia, também pela UFSC. Atualmente, é docente associado da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da UFV. Membro da International Gramsci Society (Seção BR-2015/RJ). Líder do Grupo de Pesquisa Educação, Conhecimento e Processos Educativos. E-mail:cezar.demari@ufv.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.