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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.28 no.62 Campo Grande jan./abr 2023  Epub 23-Maio-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v28i62.1526 

Artigos

Pós-graduandos de camadas populares e sua relação com o saber escolar

Postgraduate students of working classes and their relationship with school knowledge

Estudiantes de posgrado de las clases bajas y su relación con el conocimiento escolar

1Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo, Brasil


Resumo

Para compreender as razões do sucesso e do fracasso escolares em meios populares, o sociólogo francês Bernard Charlot dedicou-se a analisar as relações que os estudantes estabelecem com a escola e com o saber, originando a noção de relação com o saber. Este artigo apresenta resultados de um estudo que objetivou conhecer a relação com o saber desenvolvida por estudantes de pós-graduação oriundos de camadas populares, notadamente no que diz respeito aos saberes relacionados à escola, e compreender de que forma essa relação foi desenvolvida ao longo de suas trajetórias escolares, incluindo a experiência na graduação e na pós-graduação. Foram realizadas entrevistas com cinco pós-graduandos de camadas populares de cada uma das grandes áreas de conhecimento. Os resultados indicam que o desenvolvimento da relação com o saber escolar foi possibilitado pelo acesso à educação de qualidade e por condições favoráveis ao estudo em algum momento das trajetórias dos estudantes.

Palavras-chave: relação com o saber; pós-graduação; camadas populares

Abstract

To understand the reasons for school success and failure in working classes, Bernard Charlot analyzed the relationships that students establish with the school and with knowledge, giving rise to the notion of relationship with knowledge. This article presents the results of a study that investigated the relationship with the knowledge of postgraduate students from working classes. In order to understand how this relationship was developed throughout their schooling trajectories, including undergraduate and graduate experiences. Interviews were conducted with five graduate students. The results indicate that the development of this relationship with knowledge was made possible by access to quality education and favorable conditions for study in certain moments of the students trajectories.

Keywords relation with knowledge; post-university graduate; working classes

Resumen

Para comprender las razones del éxito y del fracaso escolar en los medios populares, Bernard Charlot se dedicó a analizar las relaciones que los estudiantes establecen con la escuela y con los conocimientos, dando lugar a la noción de relación con el conocimiento. Este artículo presenta los resultados de una investigación que tenido como objetivo comprender la relación con el conocimiento de estudiantes de posgrado de clases bajas. Con el fin de comprender cómo se desarrolló esta relación a lo largo de sus trayectorias escolares, incluyendo la experiencia de pregrado y postgrado. Se realizaron entrevistas a cinco estudiantes de posgrado. Los resultados indican que el desarrollo de esta relación con el conocimiento fue posible gracias al acceso a una educación de calidad y por condiciones favorables al estudio en algún momento de sus trayectorias.

Palabras clave: relación con el conocimiento; posgraduación; clases bajas

1 INTRODUÇÃO

Embora seja possível verificar uma expansão na oferta do número de vagas no ensino superior no Brasil, a taxa de escolarização líquida da população brasileira de 18 a 24 anos continua muito baixa: 21,7%, segundo o Censo da Educação Superior de 2018 (INEP, 2019). Outrossim, 75,4% das matrículas estão no setor privado, enquanto apenas 24,6% estão no setor público (INEP, 2019). Ao analisar essa expansão, Barros (2015) cita o Programa Universidade para Todos (ProUni), o Programa de Financiamento Estudantil (FIES), o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), o aumento da oferta de cursos superiores a distância e as ações afirmativas como exemplos de políticas que têm sido relevantes para ampliar o acesso ao ensino superior, mas insuficientes para resolver o problema da democratização de acesso a este nível de ensino, mantendo-se um quadro de restrição que dificulta o ingresso de estudantes das camadas populares, sobretudo em universidades públicas.

Não obstante, muitos estudantes com essa origem social conseguem romper com o destino estatisticamente mais provável de interromper os estudos ao concluir o ensino médio e ingressam em universidades públicas. Alguns deles, inclusive, prolongam suas trajetórias escolares para além da graduação, como são os casos de que trataremos aqui.

Tentando compreender as razões do sucesso e do fracasso escolares, o sociólogo francês Bernard Charlot realizou investigações sobre as relações e os sentidos que os alunos estabelecem com a escola e com o saber. Em livro no qual são apresentados resultados de uma pesquisa feita com estudantes da periferia de Paris, pela equipe da qual Charlot fazia parte, os autores afirmam que o indivíduo não é apenas o reflexo de um grupo social, mas ele é

[...] síntese humana singular construída em uma história. Essa singularidade não é inteligível se não a pensamos por referência ao mundo no qual ela se constitui, mundo que é compartilhado com outros indivíduos e estruturado por relações sociais. (CHARLOT; BAUTIER; ROCHEX, 1993 p. 19). 2

Para eles, “[...] trata-se de compreender como se constrói uma relação com o saber que, ao mesmo tempo, tenha a marca da origem social e não seja determinada por essa origem” (CHARLOT, 2001, p. 16). Em busca dessa compreensão, foi desenvolvida a noção de relação com o saber, definida pela primeira vez em 1982 como “[...] conjunto de imagens, de expectativas e de juízos que concernem ao mesmo tempo ao sentido e à função social do saber e da escola, à disciplina ensinada, à situação de aprendizado e a nós mesmos” (CHARLOT, 2000, p. 80). Desde então, com a expansão e diversificação dos estudos, essa definição foi reelaborada: “[...] a relação com o saber é uma relação de sentido e, portanto de valor, entre um indivíduo (ou um grupo) e os processos ou produtos do saber” (CHARLOT, 1996, p. 49). Já em 2000, o autor definia esta noção da seguinte forma: “A relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e com ele mesmo, de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender” (CHARLOT, 2000, p. 80).

Embora reconheça a importância da noção de relação com o saber para a compreensão dos processos de sucesso e fracasso escolares, o psicólogo francês Jean-Yves Rochex (2006), integrante da equipe que a propôs, tece uma análise crítica sobre ela. O autor salienta a necessidade de se elaborar conjuntamente fortes concepções de sujeito e de objeto de estudo, para que este conceito, de fato, tenha valor no sentido de solucionar as questões de caráter singular e social envolvidas nos processos escolares, destacando ainda a importância de não relegar a segundo plano as condições concretas de escolarização, “[...] nas quais se combinam os processos de produção/reprodução das desigualdades sociais de acesso ao saber e ao êxito escolar” (ROCHEX, 2006, p. 642). Avançando na compreensão da noção de relação com o saber, o pesquisador afirma que: “[...] a relação com o saber deve então ser pensada e estudada, numa abordagem relacional, como o produto de uma história e do confronto entre modos de socialização e universo de práticas de natureza necessariamente diferente” (ROCHEX, 2006, p. 644).

Considerando pertinentes tais críticas, tomamos aqui como referência a definição de relação com o saber apresentada por Charlot, em 1982, e mencionada anteriormente, quando o autor focaliza o sentido e a função social do saber e da escola, das disciplinas ensinadas e das situações de aprendizado (CHARLOT, 2000).

Nessa direção e apoiando-nos em Rochex (2006), ponderamos que a progressiva ampliação das definições da noção de relação com o saber e a multiplicidade de fenômenos e aprendizagens diversas que ela passou a abarcar não nos parecem contemplar de forma mais específica os aspectos que abordaremos neste trabalho. Assim, ao adotarmos como referência a primeira noção de relação com o saber de Charlot (2000), passaremos a denominá-la aqui de relação com o saber escolar.

Se, como mencionado, para os estudantes das camadas populares, ingressar em uma universidade pública revela-se algo pouco provável, dar continuidade a esses estudos cursando pós-graduação pode ser um desafio ainda maior. Desta forma, seria a relação com o saber desenvolvida por estes estudantes um fator significativo nas suas trajetórias escolares e no fato de cursarem pós-graduação? Ao refletir sobre essa questão, a pesquisa realizada teve o objetivo de conhecer a relação com o saber desenvolvida por estudantes de pós-graduação oriundos de camadas populares, notadamente no que diz respeito aos saberes relacionados à escola, ou seja, buscamos conhecer a sua relação com o saber escolar. Além disso, procuramos compreender de que forma essa relação foi desenvolvida ao longo de suas trajetórias escolares, incluindo a experiência na graduação e na pós-graduação. Para o alcance dos objetivos propostos, realizamos entrevistas em profundidade com cinco estudantes provenientes de meios populares que cursavam pós-graduação em uma importante universidade pública, nas áreas de Ciências Humanas, Ciências da Saúde, Ciências Biológicas, Ciências Sociais Aplicadas e Ciências Exatas e da Terra. Para a caracterização da origem social, foram utilizados os seguintes critérios: pós-graduandos com rendas familiares baixas e filhos de pais com níveis inferiores de escolaridade e que exercessem ou tivessem exercido ocupações manuais. A realização das entrevistas teve como base os trabalhos de Bosi (1979, 1993), Brandão (2000), bem como as contribuições teórico-metodológicas de Gonçalves Filho (2003), e versou-se sobre a experiência escolar dos estudantes, aí inclusa a experiência na graduação e na pós-graduação.

2 OS ESTUDANTES EM SUA BUSCA PELO CONHECIMENTO

Antônio, 31 anos, era estudante de um programa de doutorado na área de Ciências Exatas e da Terra. Proveniente do sertão de Alagoas, seus pais eram agricultores que estudaram até a 3ª série do ensino fundamental. Já na quarta série, ele era o único aluno a demandar escola em seu povoado e, para prosseguir nos estudos, precisou enfrentar muitas adversidades, iniciando já nesta época o que ele próprio denominou como sua “saga para estudar”. Precisando viajar todos os dias em condições precárias e também ajudar no trabalho na roça da família, Antônio afirma que, mesmo assim, gostava de estudar. Durante o ensino médio, o estudante passou a trabalhar para poder arcar com os custos de uma escola particular. Embora afirme que sempre fora um aluno “mediano”, relatou-nos que, na sétima série, foi o escolhido para representar os colegas em uma gincana, que sempre tirava nota máxima em Matemática e que nunca teve dificuldade em nenhuma disciplina. Findo o ensino médio, em busca de oportunidades de trabalho, mudou-se para o interior de São Paulo, onde sua irmã já residia. Morando em um barraco, após meses desempregado, conseguiu emprego em um hotel, onde, segundo ele, sua vida começou a mudar. Após uma jornada de oito horas de trabalho noturno, ele esperava duas horas até que a biblioteca municipal abrisse. Trabalhando na recepção do hotel, o fato de estar sempre lendo chamou atenção dos hóspedes, que o incentivaram a ingressar na universidade pública existente na cidade, o que ele conseguiu estudando sozinho, por meio de livros usados. Já na universidade, para suprir as lacunas deixadas pela baixa qualidade do ensino médio que cursara, Antônio afirmou que “engolia os livros” e que essa dedicação aos estudos rendeu-lhe um ótimo desempenho logo no início do curso, quando tirou a nota máxima em uma prova e uma das melhores notas em outra, na qual a maioria dos alunos obteve notas baixas. O fato de ter sido agraciado, ao final da graduação, com um prêmio que é oferecido ao melhor aluno foi destacado pelo estudante como um importante momento em sua vida escolar e lhe estimulou a prosseguir nos estudos e cursar a pós-graduação. Se, a princípio, o ingresso na graduação e, posteriormente, na pós foi motivado pelo desejo de Antônio de melhorar suas condições econômicas, esse aspecto isoladamente parece não ser suficiente para explicar seu empenho em dar continuidade ao seu processo de escolarização. A satisfação de poder aprender cada vez mais, propiciada pela sua presença dentro da universidade, é evidenciada em uma de suas falas: “Ter a oportunidade. A oportunidade de ficar o dia inteiro pesquisando, lendo, conversando... essa liberdade é, para mim, foi, é sensacional!”.

Marcos, 28 anos, era estudante de um programa de doutorado na área de Ciências Humanas. Seu pai cursou até a oitava série do ensino fundamental e trabalhava, à época, como ferreiro. Sua mãe havia acabado de concluir o ensino médio, por meio da Educação de Jovens e Adultos, e trabalhava como auxiliar de enfermagem. O estudante nos conta que já ingressou na escola alfabetizado e gostava de frequentar a biblioteca, incluindo-se no grupo que ele chama de “nerdizinhos”. Essa diferenciação em relação à dedicação aos estudos e ao bom desempenho escolar acabou sendo rentabilizada pelo estudante, a partir do último ano do ensino fundamental, quando ele passou a ser remunerado para fazer trabalhos escolares para os colegas. Para ele, isso era vantajoso não só pela pequena renda que obtinha, mas também porque acabava estudando mais, o que colaborou, inclusive, para a sua aprovação no vestibular. O estudante explica que o ingresso na universidade transformou completamente suas perspectivas de vida, tendo em vista que, até aquele momento, ansiava por conseguir emprego em uma locadora de vídeo e, em seu mais ousado sonho, cursar faculdade privada. Instigado a falar sobre o que contribuiu para que cursasse pós-graduação, Marcos destacou a influência de sua orientadora da iniciação científica, que, percebendo o gosto dele pelo estudo e pela pesquisa, apoiou-o e o incentivou a prestar o processo seletivo para o mestrado.

Larissa, 32 anos, era estudante de um programa de mestrado na área de Ciências da Saúde. Sua mãe estudara até a sétima série e trabalhara como empregada doméstica, faxineira e costureira. Seu pai, falecido, concluíra o ensino fundamental e trabalhara em uma indústria de tecidos e como pedreiro. Larissa frequentou escolas públicas e relatou que sempre gostou muito de estudar. Um dos acontecimentos representativos de seu gosto pelo estudo foi quando, com a ajuda da tia, conseguiu vaga em uma escola da região central da cidade onde residia. Lá ela afirmou ter sentido muita diferença em relação ao ensino oferecido e relatou ter tido bastante dificuldade em Inglês, já que nunca havia tido aulas desta disciplina. Na ocasião, teve a iniciativa de adquirir livros usados e estudar por conta própria, recuperando o baixo desempenho inicial. Larissa remeteu-se frequentemente ao quanto gostava de estudar, estando sempre entre os melhores alunos e auxiliando seus colegas de classe, tarefa que salientou realizar com satisfação. A estudante destacou também o carinho especial que tinha pelos professores, dentre os quais, a professora de Biologia e seu professor do curso técnico, com quem acabou se casando. Ao terminar o ensino médio, Larissa sabia que teria de trabalhar e, devido à religião da família, também teria de interromper os estudos. Entretanto, a estudante afastou-se da organização religiosa, conseguiu emprego em uma escola de informática e matriculou-se em um curso técnico de farmácia. Como não tinha condições financeiras para pagar a mensalidade de uma faculdade particular, decidiu preparar-se para ingressar em uma universidade pública, realizando um cursinho; mas, apesar de terem faltado poucos pontos, ela não foi aprovada no vestibular. Ao ponderar sobre este fato, Larissa lamenta e afirma que, se pudesse ter se dedicado somente aos estudos, provavelmente teria tido êxito no exame. Mas, mantendo seu desejo de cursar ensino superior, ela se candidatou a uma vaga de emprego em uma universidade privada, que oferecia bolsas de estudo aos funcionários, e lá realizou sua graduação. Larissa nos conta que sempre estudou bastante e que, em época de prova, chegava em casa à noite e estudava mais, o que fez com que tivesse um desempenho muito bom durante o ensino superior. Sempre trabalhando e estudando, ela afirmou que seu desejo de fazer pós-graduação surgiu após ter ingressado na universidade, mas a oportunidade para concretizar esse desejo ocorreu no contato com uma docente da universidade ligada ao hospital em que a estudante começou a trabalhar. Para ela, o ingresso no mestrado foi a realização de um sonho que, por contingências da vida, ainda não havia podido realizar.

Patrícia, 25 anos, era estudante de um programa de mestrado na área de Ciências Biológicas. Sua mãe estudara até a oitava série do ensino fundamental e trabalhava como supervisora dos funcionários da limpeza de uma faculdade. Seu pai estudara até a sétima série do ensino fundamental e fazia serviços de mecânico e motorista de caminhão. Durante toda sua trajetória escolar, Patrícia estudou em escolas públicas, sempre apresentando bom desempenho. Quando cursava a oitava série, foi convidada por sua professora de Ciências, a participar de um programa de divulgação científica, fato que parece ter sido de grande importância em sua trajetória, despertando seu desejo de se tornar pesquisadora. Patrícia começou a trabalhar logo após terminar o ensino fundamental, na secretaria da escola em que havia estudado. Ao concluir o ensino médio, Patrícia prestou vestibular duas vezes, sem, contudo, obter sucesso na aprovação. Ao parar de trabalhar e dedicar-se apenas aos estudos, a estudante foi aprovada em vários exames vestibulares. Ao ingressar na universidade, ela passou por dificuldades devido ao volume e à exigência das atividades acadêmicas, como aulas, provas, trabalhos, estágios, trabalho no laboratório. Entretanto, seguiu obtendo bons resultados, como a seleção de sua pesquisa para um congresso internacional, onde fez a apresentação em inglês mesmo sem nunca ter estudado de modo extracurricular esse idioma. Além disso, a estudante conquistou o primeiro lugar no processo seletivo para o mestrado, o que lhe rendeu uma bolsa de estudos. O interesse em estar sempre lendo sobre seu tema de pesquisa fez com que conhecesse o trabalho de uma pesquisadora estrangeira e tivesse a oportunidade de realizar um estágio no exterior. Esse mesmo interesse levou a estudante a manter contato com uma pesquisadora de outra faculdade, onde cogitava realizar o doutorado.

Gabriela, 27 anos, era estudante em um programa de mestrado na área de Ciências Sociais Aplicadas. Sua mãe concluiu o ensino médio e trabalhava no setor administrativo da Polícia Civil. Seu pai concluiu o curso de técnico de contabilidade, mas trabalhava como motorista de caminhão. Gabriela sempre foi muito dedicada aos estudos, destacando-se desde cedo pelo seu bom desempenho acadêmico; e, diversamente dos demais estudantes entrevistados, seu percurso escolar foi bastante linear. Ao final do ensino fundamental, Gabriela já pensava em fazer faculdade e ficava entristecida com a situação da escola em que estudava, que, em sua visão, não lhe oferecia ensino que lhe possibilitaria o ingresso em uma universidade pública. Tendo a expectativa de preparar-se para o exame do vestibular, ela submeteu-se a um concurso para obter uma bolsa de estudos em uma escola particular voltada à preparação para esse exame e obteve desconto de 80% no valor das mensalidades3.

Ao final do ensino médio, ela foi aprovada em uma universidade pública. Durante a graduação, Gabriela participou de grupos de estudo e fez iniciação científica. Embora tenha começado sua iniciação sem ter bolsa de estudos, seu bom desempenho rendeu-lhe financiamento para sua pesquisa, incluindo a realização de um estágio em Moçambique e a participação em um congresso na Alemanha. A iniciação científica e o decorrente gosto pela pesquisa incitaram em Gabriela o desejo de cursar pós-graduação. Assim, logo que surgiu o mestrado em sua área de interesse, ela se inscreveu e foi aprovada no processo seletivo, pretendendo dar continuidade e cursar também o doutorado.

3 A RELAÇÃO COM O SABER ESCOLAR

Tendo como referência a pergunta utilizada nos inventários de saber de Charlot (2002) e que transcrevemos aqui - “Desde que nasci aprendi muitas coisas na minha família, na rua, na escola e em outros lugares. Dentre as coisas que aprendi, quais são as mais importantes? E agora, o que estou esperando?” (p. 19) -, fizemos um questionamento semelhante aos estudantes entrevistados: “De tudo o que você aprendeu em sua trajetória escolar, incluindo sua experiência na graduação e na pós, quais são as coisas que você considera mais importantes?”. Semelhantemente aos resultados encontrados por Bicalho e Souza (2014), Reis (2012) e Charlot (1999), em que a maioria dos participantes da pesquisa citou como aprendizagens mais valorizadas as relacionais e afetivas, nossos entrevistados reportaram-se a modos de ser e de agir e de conhecer o mundo.

Antônio, por exemplo, ressalta que suas progressivas conquistas acadêmicas fizeram com que ele reafirmasse a crença na importância do esforço e da dedicação aos estudos, que redundaram na superação de suas próprias expectativas quanto ao seu desempenho acadêmico e o auxiliaram a construir e a fortalecer sua autoconfiança, possibilitando que ele pudesse traçar planos cada vez “mais ambiciosos”. Os resultados positivos de Antônio no primeiro ano da graduação, por exemplo, mudaram a sua autopercepção e tornaramse primordiais para que ele pudesse enfrentar os desafios que se seguiram. A presença de condições objetivas propícias, dentro da universidade, juntamente à sua dedicação aos estudos, fez com que ele se tornasse um ótimo aluno. Entretanto, o estudante reconhece que, apesar da importância do esforço, ele não é por si só suficiente para a continuidade dos estudos. Antônio afirma que, para o sucesso escolar, concorrem vários outros fatores e que, para alguns estudantes, como ele próprio, o caminho é muito mais árduo devido à desigualdade que marca a sociedade brasileira.

O estudante Marcos teceu considerações bastante críticas em resposta à pergunta que fizemos sobre o que de mais relevante ele aprendeu em sua trajetória escolar. Para ele, a baixa qualidade da educação ofertada por escolas como a que ele próprio frequentou seria uma das principais dificuldades para o ingresso de estudantes de camadas populares em universidades públicas. Ele também afirmou que disciplinas como Filosofia e Sociologia deveriam ser mais estudadas. Como aprendizado importante de sua trajetória escolar e continuando sua análise crítica, ele afirmou que, ao ingressar na universidade, sua grande descoberta foi que as pessoas que estão dentro dessa instituição parecem não saber que é a sociedade quem financia suas atividades e mantém a universidade isolada.

O aprendizado evocado por Antônio e por Marcos parece estar relacionado não só à importância que atribuem à dedicação aos estudos, mas também às adversidades que enfrentaram para continuar seus processos de escolarização. Essa ponderação também apareceu na fala de Larissa.

Já para Patrícia, além da formação acadêmica que a graduação proporcionou, o aprendizado que ela considera ter sido mais importante foi a sua formação como cidadã: “Foi aqui [na universidade] que mentalmente eu me formei. Como cidadã, sabe? [...] Porque a Patrícia que entrou na graduação e a Patrícia que saiu da graduação é outra, completamente diferente”.

É também nesse sentido que Gabriela faz sua reflexão sobre o que aprendeu de mais importante em toda sua trajetória escolar, destacando, a esse respeito, sua percepção acerca da relevância da educação e da influência do professor na vida dos alunos: “O quanto isso influencia na formação dos alunos e, consequentemente, depois, quando eles vão para o mercado de trabalho, como influencia a atuação deles no mundo”.

Muito embora não tenham citado conteúdos específicos de disciplinas escolares, esses estudantes fazem referência à transformação que a ação escolar exerceu sobre suas vidas, assim como os sujeitos da pesquisa realizada por Bicalho e Souza (2014). A esse respeito, as autoras argumentam que as aprendizagens científicas e profissionais às quais os estudantes tiveram acesso também estão relacionadas ao seu desenvolvimento pessoal, ao terem suas perspectivas de vida e visões de mundo completamente modificadas pela experiência universitária.

Ademais, não podemos deixar de citar que o hábito de leitura foi recordado e destacado nos relatos de quase todos os estudantes entrevistados. Não obstante o cultivo desse hábito tenha se iniciado, no caso de Antônio, por meio da irmã e também do seu interesse pela literatura de cordel, comum em sua região de origem, foi na escola que aconteceu o aprendizado dessa habilidade, constituindo, assim, um saber escolar. E foi esse saber que Antônio acredita ter sido o responsável por seu ingresso na universidade. Nas histórias de Marcos e Patrícia, a visão da leitura como um saber escolar importante em suas trajetórias torna-se ainda mais clara. No caso de Marcos, havia a influência do estímulo dos professores para o uso da biblioteca já nos primeiros anos do ensino fundamental, bem como do posterior trabalho com literatura que a escola desenvolvia, por meio da indicação de obras e da demanda de trabalhos a serem entregues a esse respeito. E, para Patrícia, seu hábito de leitura, considerado por ela como algo muito bom, foi um incentivo vindo de sua professora de Português, já que o ato de ler não era um costume em sua família.

A leitura parece ter sido, assim, um saber escolar que agiu como um poderoso instrumento na busca por conhecimento nas trajetórias dos estudantes entrevistados. Esse fato está em consonância com o que afirmam Draelants e Balatore (2014) sobre a leitura ser uma atividade cultural de grande rentabilidade acadêmica, tendo em vista que a socialização escolar “[...] passa sempre em primeiro lugar, pela palavra escrita, razão pela qual a leitura continua a desempenhar um papel fundamental no sucesso do aluno” (DRAELANTS; BALATORE, 2014, p. 125).

Em pesquisa em que analisou a relação com o saber na experiência escolar de estudantes do ensino médio, Reis (2012) faz outra consideração também relevante para a nossa investigação. A autora afirma que a relação com o saber é construída a partir de oportunidades com as quais os sujeitos defrontam-se em suas vidas, como desafios, encontros, atividades, e que na escola esse processo não é homogêneo, dependendo da “[...] qualidade dos encontros com os saberes vivenciados, da relevância das atividades propostas e dos desafios propiciados a partir da mediação de um outro” (REIS, 2012, p. 241).

Neste sentido, relativamente ao saber escolar, esse “outro” na escola, geralmente, refere-se a um professor. Desta maneira, a relação com o saber escolar parece estar intimamente relacionada à relação existente entre o aluno e seus professores. No caso de nossa pesquisa, os próprios estudantes fazem essa ponderação. Antônio, por exemplo, destaca o papel da professora que o orientou na escrita de sua monografia, alegando ser uma pessoa que o auxiliou em vários aspectos, sobretudo no fortalecimento de sua autoestima. E ele esclarece ainda que essa relação foi tão importante que se prolongou para além da graduação.

Do mesmo modo, Marcos mencionou professores que foram profissionais competentes no que diz respeito ao ensino de conteúdos escolares que o auxiliaram no seu desempenho no vestibular, como no caso do professor de Biologia; ou exerceram influência no surgimento de seu interesse por questões relacionadas à política e no desenvolvimento de sua afinidade com a área de Humanas, como aconteceu em relação ao professor de Geografia. A figura do professor ganha contornos ainda mais significativos quando ele se refere à sua orientadora, que acompanhou toda a sua trajetória universitária. É a ela, inclusive, que ele atribui a maior parte de sua motivação para cursar a pós-graduação: “Rosa [orientadora], 75% Rosa! Tem que ser dito: é mérito dela. Eu estava meio que me descobrindo na graduação ainda e ela já pensando no mestrado”.

Patrícia também traz em suas recordações a figura de duas professoras importantes. Sua professora de Português é lembrada por dois motivos diferentes: por ter sido compreensiva em relação aos problemas pelos quais a estudante passava em casa, não dormindo bem à noite e por vezes dormindo em sala de aula, o que a maioria dos professores não aceitava, gerando conflitos. Em sua visão, essa professora foi essencial para que ela conseguisse passar por essa difícil fase da vida. Além disso, foi essa a professora que fez com que Patrícia adquirisse o hábito da leitura, tão importante e incomum em sua casa. A relação com essa professora estendeu seus limites para fora da escola e para além daquele tempo, sendo que ela esteve presente, em meio a muita comoção, na apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso de Patrícia, reafirmando uma amizade que perdurava até a época da pesquisa. A segunda professora a que ela faz referência é sua professora de Ciências, que foi quem a convidou para participar do programa de divulgação científica, que, como vimos, teve grande importância em sua trajetória escolar. Ela afirma ainda que teve vários bons professores, entre eles, outro também de Ciências, que influenciou em sua afinidade com essa disciplina. Gabriela citou outras duas professoras, uma de Matemática e outra de Química, lembradas como pessoas com as quais ela podia dialogar e que também elogiavam o seu bom desempenho, incentivando a dedicação e a continuidade dos estudos. De forma mais significativa, a orientadora da sua iniciação científica é relembrada como uma professora de maior relevância: “Porque foi uma pessoa que sempre me incentivou a buscar todas as oportunidades que eu tive e me deu algumas oportunidades de viajar para o exterior para fazer pesquisa, para participar de congresso”.

O caso de Larissa é, sem dúvida, o mais emblemático neste sentido. Ela relata que sempre teve muita admiração pelas suas professoras durante toda a trajetória escolar, nutrindo por elas um carinho muito especial e um encantamento diante das suas falas, descrevendo-se ainda como “apaixonada pelas professoras”. Larissa se lembra também da professora da terceira série que lhe “deu muita força” quando ela passou por um momento pessoal difícil. Seu professor do curso técnico, entretanto, chamou a sua atenção de forma ainda mais especial. Admiradora dos esforços que aquele professor havia empreendido na sua própria escolarização, já que ele também era de origem popular, ela nos conta que surgiu uma afinidade que progrediu para uma amizade, a qual, posteriormente, acabou se transformando em um relacionamento afetivo, que evoluiu até se casarem. E, atualmente, o ex-professor, hoje marido, continua sendo um grande incentivador dos estudos de Larissa.

Além dessas lembranças, o desejo de ser professor foi expresso por quatro dos cinco estudantes entrevistados. Antônio atualmente é professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo e disse ter “se encontrado” nesta profissão. Marcos também considera a possibilidade de se tornar professor universitário, afirmando ter gostado muito da experiência como monitor de uma disciplina na graduação, experiência que repetiu por três semestres. Já no caso de Larissa e Gabriela, esse desejo tomou forma de um encantamento e de um sonho, no primeiro caso, e de uma esperança e crença na educação, no segundo. Larissa afirma que sempre gostou de ensinar e que acredita que sempre teve “dom” para isso, desejando exercer essa atividade desde muito cedo. Gabriela, por outro lado, passou a ter esse desejo quando começou a refletir sobre a importância da educação na transformação social, na “mudança do mundo”4.

Questionados sobre o que teria os mobilizado a continuar estudando apesar das adversidades, obtivemos respostas das mais variadas. Embora tenha hesitado para responder à pergunta, Antônio explica que, desde pequeno, por ter sido sempre introspectivo, estava frequentemente sonhando com uma realidade diferente daquela por ele vivenciada. Já Marcos atribui o seu desejo de continuar estudando ao gosto que ele tinha por algumas disciplinas, como Geografia e Biologia, bem como aos trabalhos que ele fazia para os colegas, os quais ele acreditava que, de alguma forma, ajudaram-no a continuar aprendendo. Também refletindo acerca da motivação para dar continuidade aos estudos, Larissa explica que, embora tivesse consciência de que o mais comum para o seu grupo social seria estudar no máximo até concluir o ensino médio, ela se recusava a assumir isso para sua vida. “Eu acho que me dava um desespero de parar, de parar de estudar”. Para Patrícia e Gabriela, a questão sobre a dificuldade de dar continuidade aos estudos passou a fazer mais sentido a partir do ingresso na universidade, fato que trouxe para a primeira o sentimento de orgulho de si mesma, por ter conseguido ser aprovada em muitos vestibulares depois de várias tentativas frustradas. E, no caso de Gabriela, poder dar continuidade a seus estudos significou, para ela, a possibilidade de ter uma vida financeira mais confortável do que a que seus pais puderam lhe proporcionar.

Em relação à motivação para o prolongamento dos estudos até o ingresso na pós-graduação, pareceu-nos flagrante a satisfação que o acesso ao conhecimento proporcionou a esses estudantes. O significado que o ingresso na pós-graduação de uma universidade pública adquiriu para esses estudantes parece ter sido o da progressiva construção de uma realidade bastante diferente daquela que os circundava em seu meio social de origem. E teve tamanha intensidade e foi de tal modo valorizado, que mereceu, da parte de Antônio, Marcos e Larissa, respectivamente, a alcunha de “virada da minha vida”, “divisor de águas” e “sonho”. A realização de um sonho também foi o significado evocado por Gabriela, e motivo de grande orgulho, para Patrícia. Embora permeadas por obstáculos, as vivências desses estudantes também deixaram entrever as possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento que o prolongamento de suas trajetórias escolares até a pós-graduação lhes proporcionou.

Como vimos, em várias pesquisas sobre a relação com o saber, como as de Charlot, Bautier e Rochex (1992), Charlot (1999), Charlot (2001), Reis (2012), Bicalho e Souza (2014), ao serem confrontados com a questão sobre tudo o que aprenderam em suas trajetórias, os estudantes, em geral, não costumam evocar conteúdos específicos relacionados a disciplinas escolares. No presente estudo, como vimos, obtivemos resultados semelhantes, com os estudantes destacando, de forma geral, a transformação que o saber escolar operou em suas vidas.

Nos relatos dos estudantes, a referência mais relacionada aos conteúdos especificamente escolares que encontramos foi sobre as disciplinas das quais os alunos gostavam. Não obstante as diferenças encontradas nas predileções de cada estudante, via de regra, eles atribuem o seu gosto ou “desgosto” por alguma disciplina à relação que mantinham com o professor dessa matéria.

A existência de interações mais significativas entre professores e alunos, construídas por meio de diálogos que facilitassem a compreensão dos assuntos, também foi um destaque na pesquisa feita por Charlot e Reis (2014), o que, segundo os autores, aponta para a perspectiva do “desejo de saber”.

Com base na teoria histórico-cultural, podemos afirmar que a relação com o saber escolar está intimamente relacionada à qualidade do trabalho pedagógico (VIGOTSKI, 2003). Evidência disso foi o destaque que Antônio, Marcos e Patrícia deram à importância da leitura e, por extensão, da escrita, em suas trajetórias. Isso nos faz refletir sobre o fato de que esse foi um conhecimento adquirido no âmbito da instituição escolar e que possibilitou a eles não só boas práticas de leitura e escrita, mas também operou transformações em seu desenvolvimento subjetivo.

Como vimos, os estudantes entrevistados fazem referência à transformação que a ação escolar exerceu sobre suas vidas. Essa importância atribuída à escola pelos estudantes também encontra apoio na teoria histórico-cultural, que afirma que, em nossa sociedade letrada, a escola e os saberes que nela são compartilhados têm um importante papel no desenvolvimento psíquico dos sujeitos (OLIVEIRA, 1996).

Como afirmam Charlot (2000) e outros autores, dentre os quais Lahire (1997), por exemplo, a relação entre origem social e sucesso ou fracasso escolar não é de determinação, bem como a relação entre origem social e relação com o saber escolar não é de determinação unívoca, linear e direta. Fazer tal afirmação não implica, entretanto, ignorar ou amenizar as condições sociais que influenciam o desenvolvimento dessa relação, mas sim estudar esse fenômeno não somente do ponto de vista macrossocial, mas também do ponto de vista microssociológico. Desta forma, como nos diz Charlot (2016), há a necessidade de se considerar a questão da história singular do indivíduo para enfrentar o fato de que alguns têm sucesso escolar apesar da origem social. De acordo com o autor, para fazer relações entre essa história singular e a questão da origem social, faz-se necessária uma reflexão acerca da formação do ser humano. Debruçando-se mais recentemente sobre essa problemática, ele afirma que o ser humano é construído graças à educação e que esta envolve um triplo processo: de humanização (tornar-se humano), de socialização (entrar num grupo social e cultural) e de singularização e subjetivação (ter uma história pessoal). Assim, não é possível separar totalmente a questão social da identidade do sujeito (CHARLOT, 2016).

Considerando, então, a história singular de cada participante de nosso estudo, pudemos perceber vários aspectos e fatos que nos parecem evidenciar a existência de uma forte relação com o saber escolar já durante a educação básica, relação esta que ganhou contornos ainda mais visíveis após o ingresso na universidade, onde todos apresentaram bons resultados, fizeram iniciação científica e continuaram demonstrando um desejo ainda maior de aprender, o que nos parece ter sido fruto das oportunidades que lhes foram dadas dentro desta instituição, como, por exemplo, a de poder dedicar-se integralmente aos estudos. A partir dos relatos dos estudantes, consideramos que o fortalecimento, o enriquecimento e a solidificação da relação com o saber escolar foram possibilitados pelo acesso à educação de qualidade e por condições favoráveis ao estudo em algum momento de suas trajetórias escolares.

A nosso ver, a importância da relação com o saber escolar desses estudantes radica-se na transformação que este saber operou em suas vidas, quer seja do ponto de vista da construção de uma realidade econômica diferente daquela de seu meio social de origem, quer seja no que diz respeito às mudanças na percepção de si mesmo e da sociedade, ponto de partida para ocupar um novo lugar social.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao decidir investigar a relação com o saber escolar de estudantes das camadas populares na pós-graduação, questionávamo-nos como ela seria e de que formas ela se manifestaria nas trajetórias escolares desses estudantes, cuja continuidade mostra-se comumente ameaçada pelas dificuldades inerentes às suas condições sociais.

Realizando um levantamento dos estudos acerca da noção de relação com o saber, fomos gradativamente percebendo o quão fluida e de difícil definição era essa noção, bem como foi possível verificar sua progressiva ampliação e a multiplicidade de fatores que ela passou a abarcar. Atentando para essa problemática e na tentativa de definir melhor nosso objeto de pesquisa, optamos por ter como referência a definição na qual Charlot privilegia o sentido e a função social do saber e da escola, das disciplinas ensinadas e das situações de aprendizado. Propusemos chamar esse conjunto de aspectos de relação com o saber escolar. Nas trajetórias descritas no presente trabalho, pudemos observar algumas características que sinalizaram para a existência de uma forte relação com o saber escolar por parte dos estudantes entrevistados.

O apreço e a busca pelo conhecimento foram aspectos que ficaram evidentes nas histórias de todos os estudantes e que ganharam uma dimensão ainda mais nítida após o ingresso na universidade. A lembrança suscitada pelos estudantes de alguns professores marcantes também nos pareceu representativa do papel diferencial que este profissional pode ter na relação com o saber escolar dos alunos e da oportunidade que este contato pode significar em suas vidas. Alguns estudantes destacaram ainda a aquisição do hábito da leitura como um fator importante em suas trajetórias escolares prolongadas, o que os auxiliou na busca pelos saberes escolares.

Esperamos, com este trabalho, ter contribuído para aumentar o conhecimento sobre a relação com o saber de estudantes das camadas populares, mais precisamente sobre o que qualificamos aqui como relação com o saber escolar.

Acreditamos que esta relação se constitua como um reduto de esperança, não na escola como redentora e normalizadora das desigualdades sociais, visão ingênua já sobejamente refutada pelos estudos da sociologia, mas na interpretação desta instituição como um espaço de luta, cuja ação possa ser capaz de, por meio de boas práticas de ensino, auxiliar no desenvolvimento dos estudantes de meios populares.

2 Tradução livre do original em francês.

3 Importante mencionar que, ao trazermos a visão da estudante acerca de sua escola, não estamos aqui compreendendo a escola privada como sinônimo de qualidade de ensino. Entendemos que a oposição entre escola pública e particular não é adequada no sentido de definição de qualidade educacional. Compreendemos que há processos de hierarquização que marcam escolas tanto na rede privada quanto na rede pública. Com alguns autores, como, por exemplo, Whitaker e Fiamengue (2001), entendemos ainda que há um mito em torno da suposta qualidade de toda e qualquer instituição privada de ensino da educação básica.

4 Patrícia não mencionou nada a respeito do desejo de se tornar professora, embora tenha relatado grande satisfação em realizar palestras e conduzir grupos de estudo no programa de divulgação científica, do qual participou algumas vezes, como voluntária, após concluir a graduação.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 05 de Fevereiro de 2021; Aceito: 26 de Outubro de 2022

Débora Piotto: Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, professora associada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto / USP. E-mail:dcpiotto@usp.br

Renata de Oliveira Alves: Mestra em Educação pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo, professora da rede municipal de ensino de Ribeirão Preto. E-mail:renata.oliveiraalves@hotmail.com

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