SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número62Pós-graduandos de camadas populares e sua relação com o saber escolar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.28 no.62 Campo Grande jan./abr 2023  Epub 23-Maio-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v28i62.1701 

Artigos

A comunicação estabelecida na aula de Matemática durante a implementação de um cenário para investigação

The communication established in the Mathematics class during a landscape for investigation

La comunicación establecida en la clase de Matemática durante la implementación de un escenario de investigación

Maria Aparecida de Jesus Salgado1 
http://orcid.org/0000-0002-2817-0218

Ana Leticia Losano2 
http://orcid.org/0000-0002-6120-4926

1Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil

2Universidade de Sorocaba (UNISO), Sorocaba, São Paulo, Brasil


Resumo

Em sala de aula, os cenários para investigação centrados em situações financeiras reais têm o potencial para preparar o aluno para tomar decisões relacionadas com o seu futuro e para estabelecer novas formas de comunicação entre o professor e os alunos. Nesse quadro, o artigo socializa resultados de uma pesquisa cujo objetivo era compreender as ações comunicativas de uma professora em suas aulas de Matemática, ao convidar seus alunos a participarem de um cenário para investigação com foco na Educação Financeira. A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa e investigou a prática da professora-pesquisadora em sua sala de aula. Os dados coletados foram produções escritas dos alunos, gravações em áudio e vídeo do desenvolvimento do cenário e diário de campo da professora. A análise priorizou a identificação de diálogos nos quais a professora-pesquisadora e os alunos negociaram conceitos e procedimentos matemáticos. Tais episódios foram analisados identificando a presença de atos comunicativos que sugerem o estabelecimento de uma cooperação investigativa dentro da sala de aula. Os resultados revelam transformações na comunicação durante o cenário para investigação, colocando em destaque os desafios enfrentados pela professora e a importância de dar voz aos alunos para possibilitar a negociação de significados matemáticos e conectá-los com a vida para além dos muros da sala de aula.

Palavras-chave: comunicação em sala de aula; ensino da Matemática; cenários para investigação

Abstract

A landscape of investigation centered in real financial situations has the potential to prepare students to make decisions concerning their future ant opens up opportunities to establish new patterns of communication inside the classroom. Thus, in this article we share the results of a research oriented at understanding the communicative actions established when a teacher invites her students to get involved in a landscape of investigation with a focus on Financial Education. Adopting a qualitative approach, the research can be described as practitioner research in which one teacher investigates her classroom practice. The data collected were audio and video recordings of all the lessons related to the landscape of investigations, the student’s written productions, and the teacher’s field diary. The episodes were selected prioritizing those in which the students and the teacher negotiated mathematical notions and procedures. Such episodes were analyzed by identifying the presence of communicative acts. They suggest the establishment of investigative cooperation within the classroom. The results reveal transformations in communication during the landscape for investigation, highlighting the challenges faced by the teacher and the importance of giving voice to students to enable the negotiation of mathematical meanings and connect them with life beyond the classroom.

Keywords: classroom communication; teaching of Mathematics; landscape for investigation

Resumen

En el aula, los escenarios para investigación centrados em situaciones financieras reales tienen potencial para preparar a los alumnos para tomar decisiones relacionadas con su futuro y para establecer nuevas formas de comunicación entre el docente y los alumnos. Así, este artículo socializa resultados de una investigación cuyo objetivo era comprender las acciones comunicativas de una profesora de Matemática al invitar a sus alumnos a participar de un escenario para investigación con foco en la Educación Financiera. La investigación adoptó un abordaje cualitativo, indagando la práctica docente de la profesora-investigadora. Los datos recolectados fueron producciones escritas de los alumnos, grabaciones de audio y video del desarrollo del escenario y diario de campo de la docente. El análisis priorizó la identificación de diálogos en los cuales ella y sus alumnos negociaron conceptos y procedimientos matemáticos. Tales episodios fueron analizados identificando la presencia de actos comunicativos que sugieren el establecimiento de una cooperación investigativa en el aula. Los resultados revelan transformaciones en la comunicación durante el escenario para investigación, destacando los desafíos enfrentados por la profesora y la importancia de dar voz a los alumnos para posibilitar la negociación de significados matemáticos y poder conectarlos con la vida más allá de los muros del aula.

Palabras clave: comunicación en el aula; enseñanza de la Matemática; escenarios para investigación

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa socializar os principais resultados de uma pesquisa desenvolvida dentro de um programa de mestrado profissional. Ela foi realizada na sala de aula da primeira autora - aqui denominada professora-pesquisadora - e orientada pela segunda autora - aqui denominada professora-orientadora.

Trata-se de uma pesquisa da própria prática, a qual possibilitou que a professorapesquisadora estudasse, de forma intencional, planejada e metódica, uma questão problemática da sua atuação profissional (FIORENTINI; LORENZATO, 2009): a comunicação na sua sala de aula. Dessa forma, o objetivo geral da pesquisa foi compreender as ações comunicativas da professora em suas aulas de matemática, ao convidar seus alunos a participarem de um cenário para investigação com foco na Educação Financeira.

Segundo Skovsmose (2014, p. 45), um cenário para investigação é um ambiente de aprendizagem que fomenta a curiosidade do aluno e amplia as possibilidades de diálogo, propiciando momentos de exploração e reflexão. Um cenário para investigação é todo o contexto construído em torno de uma determinada situação, com a finalidade de envolver o aluno na abordagem de questões abertas e desafiadoras, potencializando o desenvolvimento da sua competência crítica. O cenário implementado nesta pesquisa foi planejado em conjunto com um grupo colaborativo3 e desafiou os alunos a tomarem decisões vinculadas a um planejamento financeiro real.

A temática Educação Financeira tem grande relevância para a formação dos alunos. Além de dominar cálculos envolvidos nesta área da Matemática, o estudante precisa estar preparado para tomar decisões relacionadas com sua vida financeira (REBELLO; HARRES; ROCHA FILHO, 2015). Assim, é de extrema importância ele compreender que as decisões financeiras que toma hoje vão impactar no amanhã. Ademais, propor aos alunos um cenário para investigação com foco na Educação Financeira é uma excelente oportunidade para analisar a comunicação em sala de aula. Utilizar questões que envolvam situações provenientes da realidade diversifica os momentos de diálogo e abre espaço para reflexões pouco frequentes na sala de aula.

A revisão da literatura revelou que, embora a natureza comunicacional dos processos de aprender e ensinar matemática seja colocada em evidência por diversos autores (ALRØ; SKOVSMOSE, 2010; GUERREIRO et al., 2015; MARTINHO, 2013), existe uma lacuna delimitada pela falta de pesquisas que analisem os processos de comunicação nas aulas de Matemática no Ensino Médio e que explorem as suas (possíveis) especificidades (SALGADO; LOSANO, 2022). Os artigos encontrados destacam que o processo de transformar a comunicação na aula de Matemática é complexo (MILANI, 2020; PONTE; PEREIRA; QUARESMA, 2017). Além disso, estudos apontam para a forte interligação entre a natureza das tarefas propostas na aula de Matemática e a comunicação que ali se estabelece (MARTINHO, 2013; SERRAZINA; RIBEIRO, 2012). Por sua vez, trabalhos revelam que os alunos também precisam se comprometer no processo de aprender novas formas de comunicar ideias matemáticas dentro da sala de aula (FERRUZI; ALMEIDA, 2015; PLANAS; IRANZO, 2009; PONTE et al., 2007). Finalmente, a revisão de literatura evidencia uma diversidade de perspectivas teóricas empregadas para estudar esta problemática, assim como a necessidade de escolher categorias e modelos teóricos adequados para estudar a comunicação estabelecida nos distintos momentos de uma aula de Matemática (apresentação de tarefas, discussões grupais, explanações etc.). A seguir, apresenta-se o referencial teórico adotado nesta pesquisa.

2 O MODELO DE COOPERAÇÃO INVESTIGATIVA

De acordo com Alrø e Skovsmose (2010), a qualidade da aprendizagem está diretamente relacionada com a qualidade da comunicação que acontece em sala de aula. Sendo assim, quando professor e aluno são convidados a abandonar as aulas tradicionais de Matemática - aquelas em que o professor é centro das atenções com aulas expositivas - e, juntos, passam a explorar situações que seguem a proposta dos cenários para investigação, a qualidade da comunicação estabelecida se potencializa, tornando o aluno protagonista de sua aprendizagem.

Assim, explorar com os alunos cenários para investigação permite a emergência de novas formas de se comunicar. Alrø e Skovsmose (2010) denominam esse tipo de comunicação como cooperação investigativa. A comunicação é de cooperação porque professor e alunos trabalham juntos (co-operam) e é investigativa porque, com a curiosidade estimulada, surge o interesse do aluno em fazer perguntas para compreender determinado processo ou fenômeno. Segundo esses autores, uma cooperação investigativa pode ser identificada na sala de aula de Matemática quando se verifica a presença dos seguintes atos de comunicação:

  • Estabelecer contato: envolve criar um clima de respeito, amizade e cooperação entre as partes envolvidas. Algumas frases que permitem identificar esse ato são: “Diga...”, “Vamos...”.

  • Perceber: requer mobilizar uma atitude de curiosidade para compreender a forma de interpretar certo problema. Nesse ato, são lançadas questões hipotéticas, tais como: “O que acontece se...?”, “Como vocês fariam ...?”.

  • Reconhecer: significa construir ideias para dar sentido às atividades e aos procedimentos matemáticos. Algumas frases que indicam reconhecimento são: “Então é só...”, “Se eu fizer...” ou “Agora, sim”.

  • Posicionar-se: é quando os participantes do diálogo defendem suas perspectivas e, ao mesmo tempo, estão abertos à crítica de suas justificativas e hipóteses. Identifica-se por frases como: “Certo?”, “Eu penso que...”, “Na minha opinião...”.

  • Pensar alto: envolve manifestar o pensamento em voz alta, possibilitando que o colega ou o professor reconheça a maneira como está pensando.

  • Reformular: vincula-se com a repetição do que já foi dito com palavras diferentes ou mudando o tom de voz, permitindo completar frases ou pensamentos.

  • Desafiar: significa lançar novas possibilidades de investigação ou questionar conhecimentos já estabelecidos. Algumas frases típicas deste ato são: “Você tem alguma outra ideia?”, “E se vocês tentassem...?”.

  • Avaliar: requer validar o processo de investigação, tanto pelos alunos como pelo professor.

Esses atos de comunicação, que compõem o “Modelo de Cooperação Investigativa” (ALRØ; SKOVSMOSE, 2010), não obedecem a uma ordem de hierarquia. Para sinalizar que houve uma cooperação investigativa, eles podem aparecer mais de uma vez. Além disso, não precisam aparecer todos no mesmo diálogo. Na presente pesquisa, o modelo foi adotado para analisar se e como a professora-pesquisadora estabelecia com seus alunos uma cooperação investigativa durante o cenário para investigação.

Contudo, esse modelo precisou ser articulado com outras ferramentas teóricas, uma vez que, durante as aulas, também aconteceram momentos de explanação, socialização e discussão coletiva. Para analisar a comunicação estabelecida nesses momentos específicos, foi analisada a presença de perguntas de focalização, de confirmação e de inquirição. As perguntas de focalização são aquelas que procuram envolver a atenção do aluno para determinada perspectiva, ajudando-o a perceber algo novo. Um exemplo desse tipo de pergunta é “Se olhamos especificamente para este aspecto, o que podemos dizer?”. As perguntas de confirmação são aquelas cuja resposta o professor já conhece e que são respondidas pelo aluno utilizando uma frase curta, por exemplo: “Que número devo escrever aqui?”. As perguntas de inquirição são desafiadoras e convidam o aluno a refletir. Elas podem dar origem a respostas diferentes e inesperadas. Quando este tipo de pergunta se torna corriqueira na sala de aula, os alunos ganham confiança, aprendem a verbalizar suas ideias e passam a direcionar novas perguntas desafiadoras tanto para o professor quanto para seus colegas. São perguntas que estimulam a curiosidade do aluno, como, por exemplo, “O que aconteceria se...?”.

Vale destacar que, quando o professor lança uma pergunta de inquirição, também está desafiando o aluno, conforme sugere o ato de comunicação proposto por Alrø e Skovsmose (2010). Por outro lado, quando a socialização está marcada por perguntas de confirmação, isto indica que a cooperação investigativa proposta pelo modelo dos autores foi interrompida. Assim, ambas as ferramentas teóricas permitiram desenvolver uma análise aprofundada dos diversos momentos ocorridos durante a implementação do cenário para investigação.

3 CONTEXTO DA PESQUISA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A tarefa que deu origem ao cenário para investigação foi planejada para uma turma da 1ª série do Ensino Médio, com 28 alunos, de uma escola pública localizada na cidade de Valinhos - SP.

O primeiro passo para imaginar o cenário para investigação foi identificar uma problemática vinculada à Educação Financeira que pudesse ser de interesse dos alunos. Com esse fim, foi desenvolvida a seguinte tarefa: os alunos receberam um texto no qual eram informados de que seu responsável havia recebido um prêmio da Mega-Sena com valor acumulado e que receberiam parte do prêmio para realizar um sonho pessoal. Em seguida, deveriam descrever, em poucas palavras, como utilizariam o dinheiro. Vários alunos mencionaram que pretendiam guardar o dinheiro para cursar o Ensino Superior e, portanto, essa foi a situação escolhida.

O cenário para investigação construído contemplou duas questões: discutir e refletir sobre o que é a situação financeira pessoal e pensar nas diferentes possibilidades para cursar o Ensino Superior e suas consequências. Foi abordado o perfil da personagem Rebeca, uma jovem que finalizou o Ensino Médio em 2019. Ela havia começado a trabalhar como auxiliar administrativa em 2 de dezembro do mesmo ano, recebendo R$ 1.497,00 como salário líquido. Além dos honorários provenientes do seu trabalho, ela contava com a quantia de R$ 11.000,00 aplicada na poupança, rendendo juros de 0,5% ao mês. Para ajudar nas despesas de sua casa, Rebeca se comprometeu a pagar um pacote de TV, internet e telefone fixo no valor de R$ 209,00. Em fevereiro de 2020, Rebeca foi aprovada no processo seletivo de quatro instituições diferentes para cursar Engenharia Mecânica: Faculdade Anhanguera, Universidade Paulista, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Universidade de São Paulo (USP). Perante esse perfil, os alunos deviam analisar a condição financeira de Rebeca e os gastos envolvidos na realização de seus estudos em cada uma dessas universidades para, em seguida, aconselhar à jovem sobre qual seria a melhor opção para cursar o Ensino Superior.

Ao planejar este cenário, a professora-pesquisadora, a professora-orientadora e membros do grupo colaborativo projetaram, também, possíveis intervenções que a docente poderia fazer para promover um diálogo produtivo e uma cooperação investigativa durante as aulas.

A implementação do cenário aconteceu em oito aulas, distribuídas em cinco dias diferentes. Durante essas aulas, os estudantes somente conseguiram analisar a possibilidade de Rebeca cursar o Ensino Superior em duas instituições: Faculdade Anhanguera e UNICAMP. Esse fato se deu em respeito ao tempo que levaram para se apropriar das informações e refletir sobre suas implicações. Assim, o cenário proposto revelou o quanto foi complexo e desafiador trabalhar com questões envolvendo a reflexão em torno de situações reais.

A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, visando analisar os dados em toda sua riqueza e respeitando a forma com que estes foram registrados ou transcritos (BOGDAN; BIKLEN, 1991). Durante a implementação do cenário, foram coletados os seguintes dados: registros e produções dos alunos, diário de bordo da professora-pesquisadora, audiogravações das discussões realizadas em cada equipe de alunos, audiogravações das intervenções da professora-pesquisadora capturadas a partir de um gravador de voz que ficou em seu poder e videofilmagem das aulas.

A análise dos dados seguiu as seguintes etapas: em primeiro lugar, a professora-pesquisadora selecionou e transcreveu episódios nos quais negociou, com seus alunos, diversos conceitos e procedimentos matemáticos (por exemplo, o cálculo do valor do 13º salário de Rebeca ou o cálculo do montante da conta-poupança); em segundo lugar, tais episódios foram apresentados à professora-orientadora e, juntas, as professoras selecionaram os mais relevantes para responder ao objetivo da pesquisa; em terceiro lugar, a professora-pesquisadora realizou a análise de cada episódio, identificando os atos de comunicação presentes, assim como os tipos de perguntas realizadas por ela. Essa análise foi discutida em profundidade com a professora-orientadora e no grupo colaborativo. Tais discussões permitiram aprofundar as reflexões sobre a comunicação estabelecida em cada episódio e sobre as repercussões das intervenções da docente nas explorações matemáticas dos alunos. Finalmente, as duas professoras constataram as transformações da comunicação durante o cenário para investigação. Assim, foram identificadas cinco fases na comunicação: Iniciando a comunicação, Desafios na socialização, Adentrando-se na comunicação investigativa, Expansão da argumentação e Compartilhar descobertas. A seguir, caracterizamos a comunicação estabelecida em cada fase, ilustrando a análise com um episódio acontecido durante cada uma delas.

4 ANÁLISE DOS DADOS: AS FASES DA COMUNICAÇÃO DURANTE O CENÁRIO PARA INVESTIGAÇÃO

4.1 Iniciando a comunicação

Como o nome o indica, esta fase corresponde ao momento inicial do cenário para investigação. Para exemplificar as características desta fase da comunicação, apresentamos um episódio em que Jonas e Luan4 negociaram significados para a ideia de situação financeira.

Luan: Como assim a situação financeira dela? Se é boa ou se é ruim?

Jonas: É... tá dizendo aqui, ... aqui fala sobre o que é isso aí... [lê em voz alta a questão] “Analisem e façam os cálculos necessários para saber a atual situação financeira de Rebeca. Incluir nessa análise os gastos pessoais que vocês estimam que ela tem.” [...] Pra mim eu acho que... é... ixi! A gente não sabe... o que ela não consegue ainda. Mas também a cada ano ela pode receber... [foi interrompido].

Luan: Então, mas a gente precisa saber o seguinte: precisa saber quanto ela fica em cada mês ou se a situação é boa? Tem alguma diferença? Ô, pra falar da situação financeira dela. Eles querem saber se [a situação financeira] é boa, se ela dá e tal ... ou eles querem saber o resultado que vai ficar a cada mês para ela?

Jonas: É. Eu acho que eles querem saber as duas coisas, se a situação está boa e o resultado.

O episódio se inicia quando Luan estabeleceu contato com o desafio: “Como assim, a situação financeira dela? Se é boa ou se é ruim?”. Jonas também estabeleceu contato e recorreu ao enunciado da tarefa para buscar responder à pergunta do colega. Em seguida, continuou pensando alto - “Pra mim eu acho que... é... ixi! a gente não sabe... o que ela não consegue ainda”. Percebe-se que ele apresentou uma série de ideias desconectadas. Perante esta intervenção, Luan reformulou sua pergunta. Com isso, ele pensou alto, lançando um desafio para si mesmo, ao dizer: “Tem alguma diferença?”. Ele mesmo reorganizou o pensamento e reformulou com maior precisão sua pergunta - “Eles querem saber se é boa, se ela dá e tal... ou eles querem saber o resultado que vai ficar a cada mês para ela?”. Jonas responde ao desafio de Luan, reconhecendo que ambas as reflexões eram requeridas na tarefa.

Esta fase da comunicação se caracterizou por interações entre os alunos orientadas a compreender qual era o tipo de trabalho que esse novo cenário propunha. A inquietação de Luan revela uma tensão entre o trabalho realizado corriqueiramente nas aulas de Matemática - em que o importante é o resultado, neste caso, quanto dinheiro sobrava por mês na conta de Rebeca - e a análise de uma situação dentro de um cenário para investigação - em que a necessidade de construir argumentos e considerar distintas alternativas fica no primeiro plano. Ademais, foi uma fase na qual os alunos se adentraram na cooperação investigativa, distanciando-se dos padrões tradicionalmente estabelecidos na sala de aula.

4.2 Desafios da socialização

A segunda fase da comunicação esteve marcada pelos conflitos vivenciados pela professora-pesquisadora após findar o primeiro dia de implementação do cenário. Ao analisar os registros dos alunos, ela observou que os grupos não haviam conseguido finalizar a tarefa proposta para aquele dia. Assim, nem todos haviam conseguido descrever a disponibilidade financeira de Rebeca e somente um grupo havia conseguido calcular o montante da poupança.

Sabendo que sem conhecer a disponibilidade financeira da personagem não seria possível analisar a viabilidade de Rebeca cursar a faculdade em diferentes instituições e que somente contava com 50 minutos para realizar a discussão, a professora-pesquisadora decidiu iniciar a segunda aula realizando uma socialização com a turma toda. Ela dividiu a lousa em oito colunas - correspondendo uma a cada grupo - e foi solicitando que um integrante de cada grupo escrevesse os seguintes valores: montante da poupança, total de gastos mensais de Rebeca, quantidade de dinheiro que sobrava todo mês e quantidade de dinheiro disponível para cursar a faculdade. Com essa organização, a docente pretendia destacar que, embora alguns resultados variassem de grupo em grupo - por exemplo, o valor destinado aos gastos pessoais - existiam outros que deviam ser iguais para a turma toda - neste caso, o montante da poupança e o valor do 13º salário.

Para ilustrar o tipo de comunicação estabelecida nesta fase, apresentamos um episódio acontecido depois de que Karen escreveu os valores que seu grupo havia calculado.

Professora-pesquisadora: Sobra todo mês R$ 1.000,00. A poupança deu R$ 11.660,00. Como você chegou em R$ 24.000,00? [referindo-se ao valor que Rebeca tinha disponível].

Karen: A gente pegou a sobra de cada mês e multiplicou por 13.

Professora-pesquisadora: Mas quantos meses faz que ela [Rebeca] está trabalhando? [Karen volta para sua carteira] Então, olha [se dirigindo à turma toda] não pode ser esse valor. Concorda? O grupo inteiro não viu esse problema. De repente, eu posso entrar em uma fria, porque eu acho que tenho esse valor e eu não tenho. Já pensou se você faz um financiamento pensando que tem esse valor disponível?

A professora-pesquisadora iniciou o episódio com uma pergunta de focalização, de modo que Karen e o resto do grupo percebesse que o valor do dinheiro que Rebeca tinha disponível para cursar a faculdade não estava correto. Karen respondeu explicando o procedimento seguido que, efetivamente, era problemático (Rebeca somente havia trabalhado dois messes, de forma que o valor que sobrava mensalmente devia ser multiplicado por dois, e não por treze, para, depois, ser somado ao montante da poupança). A seguir, a docente lançou uma pergunta de confirmação: “Quantos meses faz que ela [Rebeca] está trabalhando?”. Sem obter uma resposta de Karen, a professora-pesquisadora continuou destacando a importância de realizar corretamente os cálculos. Considerando que um dos objetivos do cenário era compreender que a Matemática é uma ferramenta que auxilia na compreensão de situações financeiras, a docente queria que os alunos notassem que um cálculo incorreto pode induzir uma tomada de decisão que gera arrependimentos no futuro.

O episódio revela que, nesta fase, a cooperação investigativa foi interrompida. A professora-pesquisadora assumiu o controle da situação e focalizou a comunicação nos resultados obtidos pelos grupos e na identificação de erros nesses resultados. Contudo, é importante ressaltar que esse fato ocorreu por dois importantes fatores. Em primeiro lugar, o tempo disponível e, em segundo lugar, a necessidade de descrever adequadamente a situação financeira de Rebeca para poder prosseguir na análise das diversas instituições.

4.3 Adentrando-se na cooperação investigativa

A terceira fase da comunicação aconteceu quando os alunos analisaram os gastos envolvidos caso Rebeca optasse por estudar na Faculdade Anhanguera. Nesse caso, ela deveria pagar, durante o primeiro semestre, uma mensalidade de R$ 1.231,00, que seria reajustada em 4% a cada semestre. Ademais, a personagem seria beneficiada com descontos devido à nota obtida no ENEM e ao pagamento em dia.

O grupo formado por Giovana, Henry, Mirela e Raul havia calculado o valor da mensalidade em cada semestre multiplicando o valor pago no semestre anterior por 1,04 e dispondo tais valores em linhas uma embaixo da outra. Ademais, em cada linha, haviam calculado o valor total a ser pago nos seis meses - talvez o grupo estivesse interessado em saber quanto Rebeca teria de dispor no semestre inteiro. A disposição das informações e os cálculos realizados não contribuíam para perceber a regularidade no cálculo do reajuste nem para analisar se Rebeca estaria em condições de arcar com os gastos decorrentes de estudar nesta instituição. Por esses motivos, a professora-pesquisadora se aproximou do grupo e realizou a seguinte intervenção:

Professora-pesquisadora: Mas, hoje, quanto está sobrando do salário dela?

Henry: Disponível do salário dela é R$ 812,00. [...] E o disponível do que ela tem na poupança é isso aqui [mostra suas anotações].

Professora-pesquisadora: Então, baseado nisso, mesmo que eu gaste alguma coisa daqui, dá?

Mirela: Dá! Vai ficar bem apertadinho, mas dá!

Henry: Ahhh..., então... enquanto o valor não passar do salário dela, aí não vai precisar tirar da poupança. É só no final do curso, quando estiver mais caaaro. Ahhh... [faz uma expressão feliz de descoberta].

Professora-pesquisadora: Exatamente! Então o “X” da questão é... Quanto será que vai custar a faculdade quando ela terminar? [...] Então lá no 12º semestre, quanto será que vai custar essa faculdade?

A partir de uma pergunta de confirmação, a professora-pesquisadora indagou sobre o valor que sobrava do salário de Rebeca. Henry se posicionou respondendo que tal valor era R$ 812,00. A seguir, a docente também se posicionou e reformulou a pergunta - “Então, baseado nisso, mesmo que eu gaste alguma coisa daqui, dá?”. Então, Mirela reconheceu que era suficiente, visto que a soma do valor da mensalidade com o total de gastos com a faculdade era inferior ao valor que estava sobrando mensalmente. Ela também percebeu que sobraria pouco dinheiro para eventuais despesas extras. Nesse momento, Henry pensou alto: “Ahhh..., então... enquanto o valor não passar do salário dela, aí não vai precisar tirar da poupança. É só no final do curso, quando estiver mais caaaro”. Nessa fala, entendemos que Henry reconheceu que não precisava conhecer o total a ser pago durante todo o semestre; logo, não era necessário multiplicar a mensalidade por seis, bastava conhecer o valor de cada mensalidade e comparar com o valor que sobrava mensalmente do salário de Rebeca. A professora-pesquisadora finalizou avaliando - “Exatamente!” - e se posicionou, lançando uma nova pergunta de focalização, de modo a orientar o grupo a descobrir o valor da mensalidade no último semestre do curso.

Concluídas essas reflexões, o grupo estava prestes a finalizar a análise da instituição, mas ainda faltava organizar melhor as informações para conseguir se apropriar do cálculo exponencial5 e, assim, reajustar a mensalidade em qualquer semestre.

Mirela: Então, aqui a gente está no caminho certo.

Professora-pesquisadora: Está, mas veja bem. Esse caminho certo a gente não está se apropriando do que a gente já sabe que é o cálculo... [aponta para a expressão “cálculo exponencial” que estava escrita na louça].

Henry: Então a gente pode pegar os R$ 1.231,00, fazer vezes 1,04 elevado a 12, que vai dar o valor bruto do último semestre.

Professora-pesquisadora: Então vamos fazer uma tabelinha bonitinha. 1.º semestre, 2.º semestre. Tá bom? Precisa colocar 12 semestres?

Raul: Não.

Professora-pesquisadora: Põe o 1.º, põe o 2.º e já pula para o que você quer. Porque, se você já entendeu qual é o raciocínio... Ok? [se retira do grupo].

Henry: Saiu o exponencial!

Giovana: Eu falei que tinha uma conta mais fácil [Risos].

Mirela iniciou a interação reconhecendo que o procedimento realizado pelo grupo estava correto e a professora-pesquisadora, rapidamente, avaliou a afirmação e lançou um novo desafio, sugerindo que era possível calcular o reajuste utilizando o cálculo exponencial. Assim, ela destacou que, embora o procedimento adotado fosse correto, havia uma maneira mais efetiva para calcular o valor da mensalidade de qualquer semestre, sem necessidade de conhecer o valor pago em cada um dos semestres anteriores. Nesse momento, Henry reconheceu o procedimento matemático necessário: “Então a gente pode pegar os R$ 1.231,00, fazer vezes 1,04 elevado a 12, que vai dar o valor bruto do último semestre”6. Dando continuação, a docente pediu para reorganizar as informações em uma tabela, pois isso ajudaria os alunos a descobrir a regularidade do reajuste. Nessa direção, a professora-pesquisadora lançou uma pergunta de confirmação - “Precisa colocar os 12 semestres?” - a partir da qual Raul reconheceu imediatamente que isso não era necessário, dando a entender que havia percebido que poderia calcular o valor a ser pago em qualquer semestre utilizando a fórmula exponencial. A seguir, Henry avaliou o trabalho - “Saiu o exponencial!” - e Giovana reconheceu que efetivamente havia uma maneira mais fácil para calcular os reajustes semestrais e deixar as informações mais transparentes, sem fazer tantos cálculos. Por fim, o grupo demonstrou ter ficado feliz com os avanços.

Ao analisar esta fase da comunicação, percebe-se que as intervenções da professora-pesquisadora contribuíram para ampliar e aprofundar as discussões dos grupos. Ademais, ela diminuiu o número de intervenções e o tempo de permanência com os alunos. Finalmente, as perguntas lançadas pela docente efetivamente contribuíram para o trabalho, sem impor procedimentos ou noções matemáticos sem conexão com o pensamento dos estudantes. Fica nítido, também, que os próprios alunos haviam se apropriado da situação e estavam cooperando para investigar a situação financeira de Rebeca, caso ela escolhesse estudar na Faculdade Anhanguera.

4.4 Expansão da argumentação

Nesta fase da comunicação, os alunos estavam realizando as análises da instituição UNICAMP e foi possível notar que começaram a expor suas ideias utilizando argumentos pautados em sua própria experiência de vida.

Para ilustrar a fase, trazemos um episódio acontecido no grupo de Elis, Mateus e Vivian. Eles tinham decidido que, no primeiro ano de faculdade, Rebeca utilizaria a poupança para arcar com seus gastos com alimentação, transporte e material escolar. É importante ressaltar que, como nesta instituição o curso era de tempo integral, a personagem deveria abandonar seu trabalho. A professora-pesquisadora observou que o total de gastos mensais era inferior ao previsto e achou conveniente realizar uma intervenção:

Professora-pesquisadora: E o plano de R$ 209,00 quem vai pagar? [referindo-se ao pacote de TV, internet e telefone fixo].

Mateus: É lá da casa dela. Da mãe dela.

Professora-pesquisadora: Tá. É lá da casa dela. E o que ela combinou com a mãe dela?

Mateus: Que ia ajudar, se ela estivesse trabalhando.

Professora-pesquisadora: Estava escrito isso, se ela estivesse trabalhando?

Mateus: Como ela vai trabalhar, ela vai ajudar a mãe dela. Mas como é que a menina vai ajudar a mãe, sendo que nem trabalha, coitada! [...] Não é professora?

Professora-pesquisadora: [risos] Está certo. É uma coisa que o grupo tem que resolver. Está certo. [...] Então, se ela não vai pagar isso, vai cancelar. Tudo bem?

Mateus: Não, não pode cancelar. A mãe vai pagar.

Professora-pesquisadora: Mas como é que a mãe dela vai pagar, se a mãe dela já pediu ajuda pra ela?

Mateus: A minha mãe banca três filhos, sozinha.

Vivian: Ela vai usar 3G.

A professora-pesquisadora iniciou a intervenção com uma pergunta de focalização à qual Mateus respondeu, posicionando-se - “É lá da casa dela. Da mãe dela”. Assim, ele estava reconhecendo que mãe de Rebeca teria de assumir a responsabilidade do pagamento do pacote. Perante esta resposta, a professora-pesquisadora não ficou satisfeita. Ela queria que o grupo verbalizasse as decisões tomadas. Assim, resolveu instigar os alunos com outras perguntas de focalização sobre o combinado entre Rebeca e sua mãe. Nesse momento, Mateus iniciou a sua argumentação. Primeiro disse que Rebeca ajudaria a mãe se ela estivesse trabalhando. Esse entendimento foi captado nas entrelinhas do perfil da personagem, no enunciado da tarefa. Em seguida, complementou: “Mas como é que a menina vai ajudar a mãe, sendo que nem trabalha, coitada! [...] Não é professora?”. Ele pensou alto e reformulou sua resposta com explicações plausíveis, próprias de quem refletiu sobre os acontecimentos. A docente demonstrou sua felicidade em ouvir aquelas palavras e seguiu avaliando corretamente o argumento. Contudo, a professora-pesquisadora ainda se posicionou, insistindo que, se Rebeca não pagasse, o pacote deveria ser cancelado. Essa era uma pergunta de confirmação, a docente esperava que os alunos rapidamente concordassem ou que sugerissem que poderiam pagar o pacote tirando mais dinheiro da poupança. Contudo, não foi isso que aconteceu. Mateus reagiu e se posicionou claramente contra o cancelamento do pacote, ao que a professora-pesquisadora respondeu, lançando outro desafio: “Mas como é que a mãe dela vai pagar, se a mãe dela já pediu ajuda pra ela?”. Novamente, Mateus justificou sua resposta, levando em consideração as experiências de sua vida pessoal - “A minha mãe banca três filhos, sozinha”. Ou seja, ele reconheceu que, se a sua mãe consegue manter três filhos, a mãe de Rebeca também conseguiria. Por fim, Vivian posicionou-se e propôs outra solução para o problema: que Rebeca utilizasse internet 3G.

O episódio revela uma expansão da comunicação, no sentido de incluir argumentações e aprofundar as reflexões sobre o trabalho que estavam realizando. Assim, nesta fase, os alunos não basearam exclusivamente as discussões nas orientações escritas no enunciado da tarefa - como acontece tradicionalmente na aula de matemática. Identificando-se com a personagem de Rebeca, começaram a argumentar realizando comparações com suas próprias experiências de vida. Dessa forma, as interações nesta fase foram marcadas pela presença e pela ousadia de argumentos.

4.5 Compartilhar descobertas

Esta fase corresponde ao momento final do cenário para investigação. Os grupos foram convidados a compartilhar o trabalho com os colegas, e a turma toda se engajou numa discussão a respeito dos pontos positivos e negativos de estudar em cada uma das instituições analisadas.

Os alunos participaram com entusiasmo desta conversa final, enquanto a professora sintetizava as descobertas na louça. Para ilustrar as características desta fase, selecionamos um episódio acontecido quando a turma discutiu os pontos positivos de Rebeca escolher a Faculdade Anhanguera para cursar o Ensino Superior:

Professora-pesquisadora: Ponto positivo para Anhanguera: por que Rebeca poderia estudar lá?

Pedro: Porque ela conseguiria pagar de boa.

Professora-pesquisadora: Não precisa gastar o dinheiro da poupança. Todo mundo concorda ou não?

Turma toda: Sim!

Professora-pesquisadora: Tem mais algum ponto positivo?

José: Continua trabalhando.

Maria: Ainda sobra dinheiro do salário.

Professora-pesquisadora: Mas sobra sempre?

Vários alunos: Sim.

Vários alunos: Não.

Professora-pesquisadora: [...] eu acho que alguns grupos chegaram. Quanto que aumenta, na verdade, a mensalidade da Anhanguera?

Helena: (1,04)11.

Miguel: 53,9%.

Professora-pesquisadora: Ou seja, mais da metade. De R$ 498,00 vai passar para setecentos e pouco. Não é isso?... Será que sempre vai sobrar dinheiro do salário dela?

Paulo: Vai ter o reajuste do salário dela.

Professora-pesquisadora: Mas quanto é o aumento do reajuste do salário?

Paulo: É 3%.

Professora-pesquisadora: Dezenove e alguma coisa, não é?

Paulo: O total é 19,4%.

Professora-pesquisadora: Tudo bem, gente? [não houve resposta, e a discussão seguiu com os pontos negativos].

O episódio se inicia com uma pergunta de inquirição lançada pela professora-pesquisadora, que foi respondida prontamente por Pedro. Na sua resposta, ele reconhece que uma das vantagens de estudar na Faculdade Anhanguera era de que Rebeca poderia custear seus estudos com facilidade. A docente prosseguiu, reformulando a resposta de Pedro e colocando uma pergunta que focalizava as ideias no fato de que não seria necessário que a jovem utilizasse o dinheiro da poupança para arcar com os custos de cursar o Ensino Superior. A turma toda respondeu avaliando positivamente a proposta da professora-pesquisadora - “Sim!”.

O episódio continuou com uma nova pergunta de inquirição por parte da docente que permitiu que José e Maria se posicionassem colocando seus pontos de vista: “Continua trabalhando”, “Ainda sobra dinheiro do salário”. A resposta de Maria chamou atenção da professora-pesquisadora e a fez lançar o desafio: “Mas sobra sempre?”. Essa pergunta deixou a sala dividida, alguns responderam sim e outros não. Por isso, a docente achou conveniente refletir sobre o assunto e formulou uma pergunta de focalização centrada no aumento total da mensalidade a ser paga nesta faculdade ao longo do curso. A pergunta recebeu duas respostas diferentes, mas vinculadas entre si - “(1,04)11” e “53,9%”7. Contudo, a professora-pesquisadora não aproveitou a chance de relacionar ambas e acabou valorizando a resposta dada em termos de porcentagem.

A partir disso, a docente voltou a focalizar a discussão, destacando que a mensalidade aumentaria mais de 50% e indagando se, efetivamente, Rebeca teria condições de pagar a faculdade utilizando somente o seu salário. Ela esperava que os alunos explicitassem seus pontos de vista dizendo, por exemplo, que, dependendo dos gastos pessoais mensais de Rebeca, talvez não sobrasse dinheiro. Contudo, Paulo se posicionou trazendo outro aspecto relevante para a discussão: o reajuste do salário da jovem ao longo do tempo. Diante do posicionamento do aluno, a professora-pesquisadora lançou uma nova pergunta de focalização, que foi respondida por Paulo em termos do ajuste anual do salário de Rebeca - “É 3%.”. Contudo, para realizar uma comparação correta, era necessário relacionar a porcentagem de aumento da mensalidade com a porcentagem de reajuste salarial ao longo dos seis anos de curso. Nessa direção, a docente formulou uma pergunta de confirmação: “Dezenove e alguma coisa, não é?”8. Em seguida, Paulo localizou em seus registros e se posicionou: “Não. O total vai ficar 19,4%”. Com essas intervenções, a professora-pesquisadora quis destacar que o reajuste do valor da mensalidade era muito maior que o valor do reajuste do salário de Rebeca. Entretanto, essa discussão não foi verbalizada.

O episódio demonstra que, nesta fase da comunicação, a professora conseguiu dar voz aos alunos. A lousa ficou repleta de considerações que eles pontuaram como relevantes. Em lugar da timidez que caracterizou a segunda fase, os estudantes demonstraram segurança, vontade e propriedade para se manifestar e compartilhar seus argumentos. A docente também conseguiu ampliar as oportunidades para que os alunos participassem com suas próprias ideias.

5 DISCUSSÃO

O processo de análise deu visibilidade às transformações da comunicação estabelecida durante o cenário para investigação. Nele, percebemos que, na primeira fase da comunicação, os alunos se envolveram com a proposta ao aceitar o convite para participar do cenário e começaram a explorar a situação financeira de Rebeca.

A segunda fase evidenciou o desafio que a professora-pesquisadora vivenciou em compreender e acolher a insegurança dos alunos e, simultaneamente, conseguir discutir, em pouco tempo, procedimentos matemáticos complexos. Nesta fase, a comunicação foi caraterizada por perguntas de focalização e não foi possível estabelecer uma cooperação investigativa.

Já na terceira fase, a comunicação investigativa retornou com maior qualidade, sendo possível negociar significados matemáticos para diversos reajustes. Ademais, a professora-pesquisadora conseguiu fazer intervenções que ajudaram os grupos a avançar com a atividade proposta.

Na quarta fase da comunicação, os alunos identificaram-se com a personagem Rebeca, participaram das discussões, colocando argumentos e formulando hipóteses relativas às decisões financeiras que a jovem teria de tomar e analisaram cuidadosamente os seus impactos.

Na quinta fase, os alunos e a professora-pesquisadora assumiram novas posturas e conseguiram elencar vantagens e desvantagens para as instituições analisadas, com bastante leveza e propriedade.

Entendemos que os desafios que permearam o cenário para investigação acabaram fortalecendo a emergência da cooperação investigativa na sala de aula. Destacamos, ao longo desse processo, a potencialidade de dar voz ao aluno (ALRØ; SKOVSMOSE, 2010). Somente quando o estudante percebe que tem liberdade para opinar e expor suas ideias é possível que o professor consiga acessar às suas perspectivas e, com isso, negociar significados matemáticos. Isto permite, ademais, refletir e conversar com a matemática que vai além da sala de aula, fazendo conexões significativas com situações reais e relevantes para o aluno. Ressaltamos, ademais, a complexidade das ações comunicativas do professor, evidenciando que determinadas ações de focalização podem ser importantes para que os alunos concentrem suas ações e avancem na exploração do cenário (SALGADO, 2021).

6 CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa procurou compreender as ações comunicativas nas aulas de Matemática da primeira autora, ao convidar seus alunos a participarem de um cenário para investigação com foco na Educação Financeira. A análise desenvolvida evidenciou como a qualidade da comunicação evoluiu ao longo da implementação. Claramente, as fases identificadas não poderiam ser generalizadas para outras salas de aula em outras escolas. Contudo, a análise desenvolvida destaca algumas importantes reflexões relativas aos processos de comunicação durante um cenário para investigação.

Em primeiro lugar, os resultados revelam que iniciar e fomentar uma cooperação investigativa é um grande desafio para o professor. Tal como enfatizam Ponte, Pereira e Quaresma (2017), é muito importante que o docente seja capaz de lidar com situações imprevistas. Assim, ele deve estar preparado para tomar decisões e realizar intervenções em poucos segundos, decisões que têm o potencial de mudar o rumo de trabalho dos alunos e o tipo de comunicação estabelecida. Os momentos de discussão com a turma toda foram os mais desafiadores nesse sentido.

Em segundo lugar, a análise constatou que transformar a comunicação na sala de aula também requer um esforço por parte dos alunos. Eles devem assumir o papel de protagonistas, exercitando sua autonomia para tomar decisões sobre o trabalho que irão realizar. Assim, é importante destacar que, nas primeiras experiências de trabalho com cenários para investigação, é possível que os alunos se sintam confusos e tentem recuperar práticas próprias do ensino tradicional da Matemática. O docente deve acompanhar seus alunos no processo de compreender que, em um cenário para investigação, todos trabalham colaborativamente na própria delimitação da situação a ser estudada.

Em terceiro lugar, destacar o grande potencial formativo que possui a realização de análises da comunicação na sala de aula para os professores em exercício. Para a professora-pesquisadora, foi uma oportunidade ímpar para refletir, de modo sistemático, sobre as repercussões das suas ações comunicativas, identificando a necessidade de melhorar sua sensibilidade para realizar intervenções orientadas às necessidades dos alunos.

Acreditamos que a pesquisa contribui para construir uma nova cultura de ensino centrada na elaboração, implementação e análise de atividades significativas para os alunos dentro da sala de aula. Além disso, ela pode ser um importante subsídio para pesquisadores, visto que revela o que acontece “por trás da porta”, quando uma professora de Matemática decide implementar tarefas que fomentam o estabelecimento de novas formas de comunicação na aula de Matemática. Por sua vez, ela pode contribuir para outros professores ou futuros professores que decidam se comprometer em processos de pesquisa da sua própria prática. É importante ressaltar que isto requer, por parte dos professores-pesquisadores, estar abertos a analisar tanto acontecimentos positivos como aspectos que podem ser melhorados e, por parte dos professores-orientadores, uma atitude de acompanhamento e colaboração genuínas.

3 Grupo de Sábado (GdS) é um grupo colaborativo constituído por professores, estudantes e pesquisadores que investigam o ensinar e aprender matemática na FE - Unicamp.

4 Para preservar a identidade dos alunos, todos os nomes mencionados são seudônimos.

5 Considerando que o valor da mensalidade no primeiro semestre era de R$ 1.231,00 e que esse valor sofria um reajuste de 4% a cada semestre, o valor da mensalidade em qualquer semestre pode ser calculado a partir da seguinte função exponencial: .

6 Embora Henry tenha mencionado que elevaria a 12, no decorrer da atividade, o grupo observou que houve um engano, pois o reajuste só aconteceria a partir do segundo semestre. Nesse caso, havia apenas 11 reajustes.

7 De fato, a partir do resultado da operação (1,04)11, é possível descobrir o valor do aumento expresso em porcentagem. Assim, (1,04)11 = 1,5394, que expressa que o aumento é de 0,5394 ou, de maneira equivalente, 53,9%.

8 Se o salário de Rebeca recebe um aumento de 3% anual, então, em seis anos, o aumento salarial será: (1 + 0,03)6 = (1,03)6 = 1,1940. Assim, nesse período, o salário de Rebeca terá um reajuste era de 19,4%.

REFERÊNCIAS

ALRØ, Helle; SKOVSMOSE, Ole. Diálogo e aprendizagem em educação matemática. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. 160 p. [ Links ]

BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Fundamentos da investigação qualitativa em Educação. In: BOGDAN, Robert; BIKLEN, Sari. Investigação Qualitativa em Educação: uma Introdução à Teoria e aos Métodos. Porto: Porto Editora, 1991. p. 15-80. [ Links ]

FERRUZZI, Elaine Cristina; ALMEIDA, Lourdes Maria Werle de. Diálogos em modelagem matemática, Ciência & Educação, Bauru, v. 21, n. 2, p. 377-94, abr./jun. 2015. Doi: https://doi.org/10.1590/1516-731320150020008Links ]

FIORENTINI, Dario; LORENZATO, Sergio. Investigação em educação matemática: percursos teóricos e metodológicos. [Coleção formação de professores]. Campinas: Autores Associados, 2009. [ Links ]

GUERREIRO, António; FERREIRA, Rosa Antónia Tomás; MENEZES, Luíz; MARTINHO, Maria Helena. Comunicação na sala de aula: a perspectiva do ensino exploratório da matemática. Zetetiké, Campinas, v. 23, n. 44, p. 279-95, jul./dez. 2015. Doi: https://doi.org/10.20396/zet.v23i44.8646539. [ Links ]

MARTINHO, Maria Helena. Comunicação nas aulas de matemática: perspectivas de uma professora. Revista Educação Matemática em Foco, Campina Grande, v. 2, n. 1, p. 87-116, jan./jun. 2013. [ Links ]

MILANI, Raquel. Diálogo em Educação Matemática e suas Múltiplas Interpretações. Bolema: Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, v. 34, n. 68, p. 1036-55, 2020. [ Links ]

PLANAS, Núria; IRANZO, Núria. Consideraciones metodológicas para la interpretación de procesos de interacción en el aula de matemáticas. Revista Latinoamericana de Investigación en Matemática Educativa, Cidade do México, v. 12, n. 2, p. 179-213, jul. 2009. [ Links ]

PONTE, João Pedro da et al. A comunicação nas práticas de jovens professores de Matemática. Revista Portuguesa de Educação, Braga, v. 20, n. 2, p. 39-74, jun. 2007. [ Links ]

PONTE, João Pedro da; PEREIRA, Joana Mata, QUARESMA, Marisa. Ações do professor na condução de discussões matemáticas. In: PONTE, João Pedro da. Investigações matemáticas e investigações na prática profissional. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2018. p. 143-91. [ Links ]

REBELLO, Ana Paula; HARRES, João Batista Siqueira; ROCHA FILHO, João Bernardes da. Educação financeira: uma proposta pedagógica para alunos do Ensino Médio Politécnico. Holos, Mossoró, v. 6, ano 31, p. 308-14, nov. 2015. Doi: https://doi.org/10.15628/holos.2015.3645Links ]

SALGADO, Maria Aparecida de Jesus. A comunicação em um cenário para investigação: desafios e aprendizagens docentes. 2021. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2021. [ Links ]

SALGADO, Maria Aparecida de Jesus; LOSANO, Ana Leticia. Comunicação na aula de matemática: revisão da literatura na perspectiva do professor pesquisador. Zetetike: Revista de Educação Matemática, Campinas, v. 30, 2022. Doi: 10.20396/zet.v30i00.8667863 [ Links ]

SERRAZINA, Maria de Lurdes; RIBEIRO, Deolinda. As interações na atividade de resolução de problemas e o desenvolvimento da capacidade de comunicar no ensino básico. Bolema: Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, v. 26, n. 44, p. 1367-393, dez. 2012. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-636X2012000400012Links ]

SKOVSMOSE, Ole. Um convite à educação matemática crítica. Campinas: Papirus, 2014. [ Links ]

Recebido: 13 de Outubro de 2022; Aceito: 26 de Fevereiro de 2023

Maria Aparecida de Jesus Salgado: Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Especialista em Prática Pedagógica em Matemática em Comunidades de Investigação pela Unicamp. Graduada em Licenciatura Pela pela Faculdads Teresa Martin e bacharel em Matemática pela Faculdade Oswaldo Cruz. Participante ativa do Grupo de Sábado (GdS). Professora da rede pública estadual do Governo do Estado de São Paulo, lecionando matemática para Ensino Médio. E-mail:salgado.gomes2015@gmail.com

Ana Leticia Losano: Pós-Doutora em 2013 na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), na Universidade Nacional de Córdoba (UNC) e na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Doutorado em Educação pela UNC. Atualmente, é professora da Universidade de Sorocaba (UNISO), onde ministra diversos cursos de graduação e pós-graduação voltados para professores de Matemática em formação e em serviço. E-mail:ana.losano@prof.uniso.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.