1 INTRODUÇÃO
A educação profissional (EP) tem diante de si o desafio de mudanças, o que requer um trabalho cada vez mais complexo, envolvendo a sociedade, situação que tem gerado demandas em termos de pesquisas, exigindo debate com postura crítica em relação à sua concepção. Nas últimas décadas, profundas mudanças vivenciadas pela EP ampliaram a discussão sobre o seu propósito para além do treinamento, incorporando a ideia de uma formação capaz de inspirar uma formação humana e crítica baseada nos preceitos da cidadania que envolvem todas as dimensões possíveis.
Para Ciavatta (2012, p. 102), a revogação do Decreto n. 2.208/97 e a aprovação do Decreto n. 5.154/2004
[...] trouxe a abertura e o estímulo à formação integrada, mas não trouxe a garantia de sua implementação. Seu horizonte está na sociedade, na adesão ou recusa de escolas, gestores, professores e alunos (com suas famílias) de avançar para a ruptura com todas as formas duais que permeiam a sociedade brasileira. Mas está, também, em uma sinalização clara e efetiva do Ministério da Educação no papel de orientar e de apoiar os projetos de formação integrada.
Por meio do Decreto n. 5.154/04, foi instituído o EMIEP, ou seja, a integração do ensino médio aos cursos técnicos (BRASIL, 2004). Com este decreto, está sendo possível implementar a base unitária do ensino médio, permitindo formar para o exercício das profissões técnicas, além de promover a formação de sujeitos capazes de compreender criticamente a realidade social, econômica, política, cultural e do mundo do trabalho, para atuar na perspectiva de superar a dualidade construída historicamente entre a formação geral e a técnica. Deve ser oferecido
[...] somente aos egressos do ensino fundamental, e o curso deverá ser planejado para formar o estudante para uma habilitação profissional técnica e o nível médio. Os dois cursos ocorrem na mesma instituição de ensino, inclusive com matrícula única para o estudante. (VIEIRA; VIEIRA, 2019, p. 5).
No entanto, mesmo este decreto assegurando possibilidades para a implementação do EMIEP como educação integrada e politécnica, a vulnerabilidade social ainda presente no dia a dia de muitos brasileiros, provocada pelas desigualdades socioeconômicas, força o ingresso de trabalhadores no mercado de trabalho antes dos 18 anos, impedindo o desenvolvimento de uma educação com vistas à omnilateralidade e politecnia. Associando-se a essa constatação, Ramos (2011, p. 784) destaca que:
Do ponto de vista prático, os educadores brasileiros do ensino médio e da educação profissional, assim como a própria sociedade em geral, não incorporaram como sua a concepção de ensino médio integrado na perspectiva da formação omnilateral e politécnica. Ao contrário, predomina uma visão retrógrada vinculada ao ensino médio profissionalizante e compensatória ou, ainda, a defesa de um ensino médio propedêutico e da profissionalização como processo específico e independente.
Diante dessas considerações, torna-se necessário às instituições de ensino, aos gestores, professores, demais profissionais da educação e estudantes (com suas famílias) compreender os propósitos da legislação vigente que trata da formação profissional na perspectiva da integração. No entanto, somente isso não resolve o problema existente, devendo o EMIEP organizar um processo de formação humana que envolva todas as suas dimensões, incluindo a compreensão dos fundamentos científicos das diversas técnicas que caracterizam o trabalho no mundo contemporâneo.
Para tanto, a educação/formação integral deve ser abordada como um dos elementos sociais que possibilite ultrapassar a realidade da sociedade excludente e dividida, de extrema desigualdade socioeconômica, que se limita a cursos de formação profissional que não apresentam unidade, confirmando a dualidade educacional no Brasil. Trata-se da formação integral, que “[...] sugere superar o ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar” (CIAVATTA, 2012, p. 85). Uma formação que tem o objetivo de “tornar íntegro, inteiro”, o sujeito para atuar na sociedade como cidadão, com a capacidade de pensar criticamente, transformando, assim, a si mesmo e a sociedade onde está inserido. Há de se entender que uma educação integralizada pressupõe que o sujeito assim formado adquira um preparo para o mundo e para o trabalho, não se restringindo apenas para o que o capital lhe oferece, sendo um cidadão capaz de interagir socialmente e preparado para a flexibilidade permanente do mundo globalizado.
Diante dessas considerações, está situado o tema deste estudo, o qual, partindo da existência do EMIEP, enfatiza uma de suas finalidades, que diz respeito à formação humana em todas as suas dimensões. Nesta direção, buscou-se explicitar a problemática: o que caracteriza o EMIEP e por que nele deve estar presente a formação humana em suas dimensões? Tomado esse questionamento, tem-se o propósito de alargar o debate sobre esta forma de ensino, analisando-se o seu significado e explicitando-se os fundamentos que evidenciam a formação humana em suas dimensões. Parte-se da hipótese de que a organização desta forma de ensino “[...] pressupõe que todos tenham acesso aos conhecimentos, à cultura e às mediações necessárias para trabalhar e para produzir a existência e a riqueza social” (RAMOS, 2013, p. 3).
Para tanto, o trabalho encontra-se organizado em quatro seções: inicia-se apresentando o percurso metodológico adotado; na sequência, disserta-se sobre as principais características (significados, conceitos, noções) que constituem o EMIEP. Na terceira seção, é discorrido sobre indicadores que demonstram a formação humana em suas dimensões no desenvolvimento do EMIEP. Por fim, são descritas as considerações finais deste estudo.
2 PERCURSO METODOLÓGICO
Considerando seu escopo, este estudo se identifica como pesquisa exploratória e descritiva e foi produzido a partir de uma abordagem que se assenta predominantemente numa perspectiva qualitativa e dialética, seguindo os movimentos e contradições próprios dos espaços educativos. Minayo (2008) destaca que, na pesquisa qualitativa, durante a investigação científica, é preciso reconhecer a complexidade do objeto de estudo, rever criticamente as teorias sobre o tema, estabelecer conceitos e teorias relevantes, usar técnicas de coleta de dados adequadas e, por fim, analisar todo o material, de forma específica e contextualizada.
Foi feita pesquisa bibliográfica, que fundamentou e orientou o trabalho, realizada a partir de material já publicado, constituído principalmente de livros, artigos de periódicos e, atualmente, com material disponibilizado na Internet. Para Severino (2007), a pesquisa bibliográfica realiza-se pelo:
[...] registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses etc. Utilizam-se dados de categorias teóricas já trabalhadas por outros pesquisadores e devidamente registrados. Os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados. O pesquisador trabalha a partir de contribuições dos autores dos estudos analíticos constantes dos textos. (SEVERINO, 2007, p. 122).
Nesta direção, este estudo tomou obras de autores com incidência em Kuenzer (1989), Gramsci (1989), Kuenzer e Grabowski (2006), Saviani (2006, 2007), Moura (2007), Frigotto (2007, 2012), Cunha (2008), Machado (2008), Ramos (2008, 2011, 2012), Behrens (2010), Nosella (2011), Gariglio e Burnier (2012), Ciavatta (2012, 2014), Moura, Lima Filho e Silva (2015), Vieira e Vieira (2019), Vieira et al. (2019), entre outros, que abordam a temática. Por se tratar de uma investigação que utiliza a pesquisa bibliográfica, está dispensado de parecer do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), conforme Resolução 510/2016.
No processo de revisão bibliográfica, foram definidas as categorias de análise, seguindo orientações de Minayo (2008), que aponta diferentes tipos de análise de conteúdo, ou seja, de expressão, das relações, de avaliação, de enunciação e categorial temática. Neste estudo, foi dado destaque ao último tipo, que se propõe a “[...] descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado” (p. 210), utilizando-a de forma mais interpretativa. Diante desta contribuição de Minayo (2008), foram definidas as seguintes categorias: as principais características (significados, conceitos, noções) que constituem o EMIEP e os indicadores que demonstram a formação humana em suas diversas dimensões no desenvolvimento do EMIEP.
3 PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO EMIEP
Uma das principais referências que fundamenta o EMIEP é o documento base “Educação Profissional Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Médio” (BRASIL, 2007), o qual sustenta concepções, princípios, dimensões e singularidades que elucidam atualmente o EMIEP em diálogo com outros documentos e produções que apresentam vital importância para a construção desta perspectiva de ensino.
Com este documento, a política de ensino médio foi direcionada para o desenvolvimento de um projeto que afaste a dualidade entre a formação específica e a formação geral, ou seja, a essência do mundo do trabalho se desloca para a pessoa, tendo como dimensões indissociáveis o trabalho, a ciência, a cultura e a tecnologia.
Nas palavras de Kuenzer e Grabowski (2006, p. 299-300),
Trabalhar com a concepção mais ampla de educação, de modo a incorporar todas as dimensões educativas que ocorrem no âmbito das relações sociais que objetivam a formação humana nas dimensões social, política e produtiva, implica reconhecer que cada sociedade, em cada modo de produção e regimes de acumulação, dispõe de formas próprias de educação que correspondem às demandas de cada grupo e das funções que lhes cabe desempenhar na divisão social e técnica do trabalho.
Em vista disso, atualmente não é possível conceber uma EP identificada como instrumento de política assistencialista ou ajustamento às demandas do mercado de trabalho, mas sim
[…] como importante estratégia para que os cidadãos tenham efetivo acesso às conquistas científicas e tecnológicas da sociedade [...]. A Educação Profissional requer, além do domínio operacional de um determinado fazer, a compreensão global do processo produtivo, com a apreensão do saber tecnológico, a valorização da cultura do trabalho e a mobilização dos valores necessários à tomada de decisões no mundo do trabalho. (BRASIL, 2012, s.p.).
No EMIEP, o estudante faz um curso único que lhe diploma tanto com o ensino médio quanto com um curso profissionalizante, de forma integrada e com organização curricular única. Nesta direção, uma das questões que surgem relaciona-se ao significado do termo “integrado”. Para Cunha (2008, p. 109), ensino integrado:
[...] expressa uma concepção de formação humana, com base na integração de todas as dimensões da vida no processo educativo, visando à formação omnilateral dos sujeitos. Essas dimensões são o trabalho, a ciência e a cultura. O trabalho compreendido como realização humana inerente ao ser (sentido ontológico) e como prática econômica (sentido histórico associado ao modo de produção); a ciência compreendida como os conhecimentos produzidos pela humanidade que possibilita o contraditório avanço das forças produtivas; e a cultura, que corresponde aos valores éticos e estéticos que orientam as normas de conduta de uma sociedade.
Sob a concepção da articulação educação/trabalho/cultura/ciência, a formação no EMIEP deve estar articulada às dimensões e extensões da vida do estudante, ou seja, à sua formação humana. Para isso, os conceitos devem ser trabalhados a partir das relações com a totalidade, ou seja, com a realidade que se pretende explicar (BRASIL, 2007). “[...] O horizonte que deve nortear a organização do ensino médio é o de propiciar aos alunos o domínio dos fundamentos das técnicas diversificadas utilizadas na produção, e não o mero adestramento em técnicas produtivas” (SAVIANI, 2007, p. 160).
No EMIEP, além do caráter ontológico do trabalho, é necessário levar em conta seu sentido histórico, ou seja, propiciar a compreensão sobre como se estrutura a produção na atualidade, que tipo de relações e profissões isso gera e que habilidades e conhecimentos são necessários para o desempenho de determinada profissão.
Nessa perspectiva, destaca-se o protagonismo da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT), vinculada ao Ministério da Educação, criada por meio da Lei 11.892/08 e constituída pelas instituições por trinta e oito Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), dois Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET-MG e CEFET-RJ), vinte e duas escolas técnicas vinculadas às universidades federais e o Colégio Pedro II.
Nos Institutos Federais, instituições voltadas para a educação, ciência e tecnologia, traz-se a educação, a ciência e a tecnologia como pilares que devem constituir as práticas educativas. Essas dimensões estão presentes no texto do documento base do ensino médio integrado à educação profissional, assim como a cultura e trabalho como princípios educativos, que podem servir de orientação para o trabalho pedagógico que é desenvolvido. (VIEIRA; VIEIRA, 2019, p. 11-12).
Tais instituições abarcam um espaço fundamental na construção dos alicerces que fundamentam as concepções dessas instituições, a saber, a politecnia e a omnilateralidade, que consistem, respectivamente, numa formação capaz de “[...] possibilitar a compreensão dos princípios científico-tecnológicos e históricos da produção moderna” (RAMOS, 2008, p. 3), bem como formar o ser humano na sua integralidade física, mental, cultural, política e científico-tecnológica (CIAVATTA, 2014).
No que tange à educação omnilateral, Frigotto (2012, p. 267) afirma o seguinte:
Omnilateral é um termo que vem do latim e cuja tradução literal significa “todos os lados ou dimensões”. Educação omnilateral significa, assim, a concepção de educação ou formação humana que busca levar em conta todas as dimensões que constituem a especificidade do ser humano e as condições objetivas e subjetivas reais para o seu pleno desenvolvimento histórico. Essas dimensões envolvem sua vida corpórea material e seu desenvolvimento intelectual, cultural, educacional, psicossocial, afetivo, estético e lúdico. Em síntese, educação omnilateral abrange a educação e a emancipação de todos os sentidos humanos, pois os mesmos não são simplesmente dados pela natureza.
De acordo com o autor, a educação omnilateral tem compromisso com o desenvolvimento pleno do ser humano, levando-se em conta todas as dimensões que convergem para este fim. Assim sendo, devem ser considerados os aspectos objetivos e subjetivos, tendo em vista contribuir para o processo de desenvolvimentos de diversos aspectos constituintes do gênero humano, o que significa levar em conta as condições sócio-históricas que permeiam a vida em suas múltiplas determinações. Esta forma de conceber o ser humano e o processo educativo reflete uma dada concepção de mundo e compromisso político, cujo cerne é a contraposição à perspectiva burguesa de sociedade e, consequentemente, de educação.
Quanto à politecnia, Ramos (2008, p. 3) menciona que se trata de “[...] uma educação que possibilita a compreensão dos princípios científico-tecnológicos e históricos da produção moderna, de modo a orientar os estudantes à realização de múltiplas escolhas”. Já Saviani (2006, p. 161) destaca que politecnia significa “[...] domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas utilizadas na produção moderna”. Nesta direção, pode-se afirmar que é “[...] pela formação politécnica que se daria a formação intelectual, física e tecnológica, o que sugere que o conceito de politecnia pode abarcar a ideia de formação humana integral” (MOURA; LIMA FILHO; SILVA, 2015, p. 1061).
Apesar da aproximação entra a proposta do atual EMIEP e a concepção de educação politécnica, é necessário ressaltar que
[...] o ensino médio integrado ao ensino técnico, conquanto seja uma condição social e historicamente necessária para construção do ensino médio unitário e politécnico, não se confunde totalmente com ele porque a conjuntura do real assim não o permite. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2006, p. 56).
Na esteira deste entendimento, Moura (2007, p. 20) destaca que o EMIEP possibilita a integração do ensino médio aos cursos técnicos “[...] numa perspectiva que não se confunde totalmente com a educação tecnológica ou politécnica, mas que aponta em sua direção porque contém os princípios de sua construção”.
Diante desses pressupostos que fundamentam a EP e, nela, o EMIEP, está o professor, o qual desempenha papel central na implementação de atividades que assegurem educação/trabalho/cultura/ciência articulados às dimensões e extensões da vida do estudante, ou seja, à sua formação humana. Para tanto, o professor da EPT deverá ser um profissional que compreenda e desenvolva propostas pedagógicas promotoras da formação dos estudantes/profissionais, as quais construam mais do que conhecimentos técnicos/práticos para a sua atuação profissional, e sim que favoreçam o desenvolvimento de habilidades e saberes que sejam significativos, inovadores, reflexivos, criativos e críticos.
Nesta direção, Behrens (2010, p. 55) destaca que:
[...] a produção do conhecimento com autonomia, com criatividade, com criticidade e espírito investigativo provoca a interpretação do conhecimento e não apenas a sua aceitação. Portanto, na prática pedagógica o professor deve propor um estudo sistemático, uma investigação orientada, para ultrapassar a visão de que o aluno é um objeto e torná-lo sujeito e produtor de seu próprio conhecimento.
Dessa forma, no que diz respeito ao professor e aos demais profissionais da educação que atuam no EMIEP:
Superar o histórico de fragmentação, improviso e insuficiência de formação pedagógica que caracteriza a prática de muitos docentes da educação profissional de hoje implica reconhecer que a docência é muito mais que mera transmissão de conhecimentos empíricos ou processo de ensino de conteúdos fragmentados e esvaziados teoricamente. Para formar a força de trabalho requerida pela dinâmica tecnológica que se dissemina mundialmente, é preciso um outro perfil de docente capaz de desenvolver pedagogias do trabalho independente e criativo, construir a autonomia progressiva dos alunos e participar de projetos interdisciplinares. (MACHADO, 2008, p. 15).
Gariglio e Burnier (2012) desenvolveram um estudo envolvendo professores da EPT sobre os saberes necessários à prática docente nessa modalidade de ensino e constataram: a) necessidade de aprender sobre teorias do conhecimento; b) desenvolvimento de práticas de ensino por projetos; c) como lidar com os jovens na atualidade, principalmente agora em que as tecnologias estão presentes no espaço acadêmico e o professor não sabe lidar com tal situação; d) desenvolvimento da contextualização do ensino no processo educativo; e) construção de currículos; e f) discussão de políticas educacionais voltadas à EPT, entre outros.
Finalizando esta seção, destacamos que, acima de tudo, é fundamental os professores compreenderem que os estudantes são seres humanos globais e não apenas cérebros ou mãos desvinculadas do corpo e da mente, e que a articulação de saberes se torna fundamental para o desenvolvimento da EPT como um todo e, nela, do EMIEP.
4 O EMIEP COMO FORMAÇÃO HUMANA EM TODAS AS DIMENSÕES
Antônio Gramsci, na obra “Os Intelectuais e Organização da Cultura” (1989), aborda a realidade de seu período histórico, especialmente na Europa, e propõe a formação do intelectual orgânico, ou seja, o intelectual formado em sua própria realidade. Para tanto, considera a crise do modelo educacional vigente e visualiza uma nova proposta de escola, ou seja, a escola única.
Aproximando a escola única, vislumbrada por Gramsci, com a proposta do EMIEP, é possível constatar que ambas demonstram preocupações em aliar a formação para o trabalho e o desenvolvimento da intelectualidade. Para Ciavatta (2012, p. 58), o EMIEP
[...] Como formação humana, o que se busca é garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para a leitura do mundo e para a atuação como cidadão pertencente a um país, integrado dignamente a sua sociedade política. Formação que, neste sentido, supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos.
Compreendendo que os estudantes são seres humanos, e não apenas cérebros ou mãos desvinculadas do corpo e da mente, a articulação de saberes torna-se fundamental para a efetivação da concepção formação humana no EMIEP. Neste processo, o trabalho deve ser considerado ponto de partida para produção da existência e objetivação do ser humano: “A dimensão ontológica do trabalho é, assim, o ponto de partida para a produção de conhecimentos e de cultura pelos grupos sociais” (BRASIL, 2007, p. 43).
Para isso, torna-se necessário diálogo entre os sujeitos envolvidos no processo ensino-aprendizagem, com destaque para os professores e estudantes, e que, por meio de ações planejadas, os estudantes se percebam como sujeitos que aprendem (e ensinam) envolvidos pelos processos sociais presentes na sociedade. Essas orientações podem tornar o processo educativo mais sólido e a formação dos estudantes mais consistente e humana em todas as dimensões.
Kuenzer (1989, p. 24) reforça a necessidade desta intencionalidade ao asseverar que na atualidade
[...] já não se sustentam propostas pedagógicas que separam as funções intelectuais das funções técnicas; pelo contrário, o que se exige do homem moderno é uma formação que lhe permita captar, compreender e atuar na dinamicidade do real, enquanto sujeito político e produtivo, que, potencialmente dirigente, tenha conhecimento científico e consciência de seus direitos e deveres para dominar a natureza e transformar as relações sociais.
Trata-se de uma formação que permita que todos os sujeitos tenham acesso a uma formação que considere o trabalho (no sentido ontológico e no sentido histórico) como princípio educativo, que compreenda a relação entre ciência, trabalho, tecnologia e cultura. Essa concepção se contrapõe frontalmente àquela que compreende a educação profissional como formação limitada de um sujeito para operar uma máquina (CIAVATTA, 2012).
Requer não apenas uma formação que articule a competência cientí-fica e técnica com a inserção política e a postura ética, mas também a capacidade de produzir e aplicar os conhecimentos técnicos e cientí-ficos, por meio de critérios de relevância social e ética. É preciso organizar, selecionar, sistematizar, difundir, criticar e relacionar as necessidades sociais e culturais de determinada época e local, com todo o saber acumulado pela humanidade, no passado e no presente. (VIEIRA et al., 2019, p. 283).
Para tanto, a formação humana como dimensão da prática pedagógica que permeia os processos metodológicos, visando ao alcance dos objetivos do EMIEP, pode contribuir para este propósito, na medida em que leva para a comunidade os benefícios de suas pesquisas, articula suas atividades de acordo com os princípios da EPT e com o mundo do trabalho, assim como valoriza a educação como processo de emancipação do cidadão. Como destaca Frigotto (2007, p. 1144), o EMIEP é condição imprescindível à construção de uma “[...] educação não-dualista, que articule cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho como direito de todos e condição da cidadania e democracia efetivas”.
No entanto, esta perspectiva de EMIEP enfrenta dificuldades de ser implementada. Como destaca Moura (2007, p. 19):
As características atuais da sociedade brasileira dificultam a implementação da politecnia ou educação tecnológica em seu sentido original, uma vez que, dentre outros aspectos, a extrema desigualdade socioeconômica obriga grande parte dos filhos da classe trabalhadora a buscar a inserção no mundo do trabalho visando complementar o rendimento familiar, ou até mesmo a autossustentação, muito antes dos 18 anos de idade.
Juntando-se a este posicionamento, Nosella (2011) argumenta que, por se tratar da fase final da educação básica, o EMIEP necessita adquirir um caráter essencialmente formativo, sem almejar a característica predominantemente profissionalizante, de modo que “[...] a atual apologia e expansão da profissionalização precoce é uma declaração da falência e do abandono do ensino médio público, humanista, ‘culturalmente desinteressado’, destinado a preparar dirigentes” (NOSELLA, 2011, p. 1051).
Assim, pode-se afirmar que o EMIEP demanda envolvimento com um projeto coletivo de formação da sociedade. Este projeto deverá: voltar-se para a formação de sujeitos emancipados, capazes de transformar a si mesmos e transformar a realidade em que vivem; conceber a formação humana como síntese da formação básica e formação para o trabalho, que tenha o trabalho como princípio educativo, no sentido de que o trabalho permita, concretamente, a compreensão do significado econômico, social, histórico, político e cultural das ciências e das artes, o qual seja baseado numa epistemologia que considere a unidade de conhecimentos gerais e conhecimentos específicos, bem como numa metodologia que permita a identificação das especificidades desses conhecimentos quanto a sua historicidade, finalidades e potencialidades.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema deste ensaio remete a reflexões necessárias acerca dos desafios postos para o EMIEP no cenário atual, marcado por transformações do mundo do trabalho, em que se encontram projetos em torno da educação do trabalhador. O EMIEP pressupõe conhecimentos gerais e específicos constituídos sob as dimensões indissociáveis que devem existir entre trabalho, ciência, cultura e tecnologia. O currículo integrado deve organizar o conhecimento e desenvolver “[…] o processo ensino-aprendizagem de forma que os conceitos sejam apreendidos como sistema de relações de uma totalidade concreta que se pretende explicar/compreender” (RAMOS, 2012, p. 116). Deve ser instrumento para superar a formação dual, segmentada, utilitária, que historicamente vem caracterizando a educação brasileira. Um currículo que forme para a dimensão do trabalho, em seus sentidos ontológico e histórico, que garanta, também, as dimensões da ciência e da cultura e promova a formação humana integral.
Promover a formação humana integral no EMIEP requer clareza sobre preceitos da integração, exige organização do ensino (da educação básica e profissional), de forma que haja aproximação com o mundo real, compreensão do todo e conexão entre os conteúdos das modalidades formativas. Os conhecimentos trabalhados devem ser compreendidos dentro de um contexto sócio-histórico. A formação básica e a técnica, trabalhadas de forma integrada, devem proporcionar ao estudante a apreensão de conhecimentos e técnicas que lhe possibilitem atuar, social e profissionalmente, de maneira consciente e coerente com sua realidade; ou seja, uma formação humana em todas as dimensões.
Em conclusão, ressaltamos que este estudo não é um fim, mas um caminho para refletirmos sobre o que caracteriza o EMIEP e por que nele devem estar presentes as dimensões que constituem a formação humana. Percebemos que há outras possibilidades de continuidade e aprofundamento deste trabalho, como, por exemplo, a análise, por meio de investigação empírica envolvendo estudantes que frequentam ou que frequentaram esta modalidade e forma de ensino, abordando seus posicionamentos diante da formação que estão tendo ou que tiveram e sobre sua importância como meio capaz de promover e desenvolver a formação humana nas suas diversas dimensões.