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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.28 no.63 Campo Grande mayo/aug 2023  Epub 21-Ago-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v28i63.1720 

Artigo

“Por que você não pode ser normal?”: gênero, infâncias e currículos culturais na animação Float (2019)1

“Why can’t you be normal?”: childhoods and cultural curricula in the animation Float (2019)

“¿Por qué no puedes ser normal?”: infancias y currículos culturales en la animación Float(2019)

Kauane Moraes Bernardo2 
http://orcid.org/0000-0001-8105-1093

João Paulo Baliscei2 
http://orcid.org/0000-0001-8752-244X

2Universidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, Paraná, Brasil


Resumo

Por meio da animação “Float” (2019), um curta-metragem produzido pela Pixar e distribuído pela Disney, somos motivados/as a pensar sobre os fatores que tentam padronizar comportamentos. O curta, então, atua como um currículo cultural não escolar que remete à ideia de “normalidade”, a qual tem sido relacionada ao masculino, à branquitude, à jovialidade, à heterossexualidade, à cisgeneridade e à religião cristã, dentre outros marcadores identitários. Como as crianças que não se enquadram nessas condições acerca de “normalidade” são tratadas pelos/as demais? Para respondermos a esta pergunta, objetivamos analisar representações circuladas em artefatos da cultura visual, que contemplem temáticas afetas às diferenças e às infâncias. Para tanto, elaboramos uma pesquisa a partir dos Estudos de Gênero e Estudos da Cultura Visual, organizada em três momentos. O primeiro, uma apresentação de aspectos teóricos dando ênfase ao currículo cultural; o segundo, uma contextualização histórica sobre como as opressões de gênero têm atuado na produção de corpos, desde as infâncias; e o terceiro, uma análise do curta-metragem “Float” (2019).

Palavras-chave: infância; gênero; cultura visual

Abstract

Through the animation “Float” (2019), a short film produced by Pixar and distributed by Disney, we are motivated to think about the factors that try to standardize behaviors. The short film, then, acts as a non-school cultural curriculum that refers to the idea of “normality”, which has been related to masculinity, whiteness, joviality, heterosexuality, cisgenderism, and the Christian religion, among other identity markers. How are children who do not fit into these conditions about “normality” treated by others? To answer this question, we aim to analyze representations circulated in artifacts of visual culture, which include themes related to differences and childhood. To this end, we developed a research based on Gender Studies and Visual Culture Studies, organized in three moments. The first, a presentation of theoretical aspects emphasizing the cultural curriculum; the second, a historical contextualization on how gender oppressions have acted in the production of bodies, since childhood; and the third, an analysis of the short film “Float” (2019).

Keywords: childhood; genre; visual culture

Resumen

La animación “Float” (2019), cortometraje producido por Pixar y distribuido por Disney, nos motiva a reflexionar sobre los factores que intentan estandarizar conductas. El cortometraje, entonces, actúa como un currículo cultural no escolar que remite a la idea de “normalidad”, la cual ha sido relacionada con la masculinidad, la blanquitud, la jovialidad, la heterosexualidad, el cisgenerismo y la religión cristiana, entre otros marcadores identitarios. ¿Cómo son tratados por los demás los niños que no encajan en estas condiciones de “normalidad”? Para responder a esta pregunta, nuestro objetivo es analizar las representaciones que circulan en los artefactos de la cultura visual, que incluyen temas relacionados con las diferencias y la infancia. Para ello, desarrollamos una investigación basada en los Estudios de Género y los Estudios de Cultura Visual, organizada en tres momentos. El primero, una presentación de aspectos teóricos con énfasis en el currículo cultural; la segunda, una contextualización histórica sobre cómo han actuado las opresiones de género en la producción de los cuerpos, desde la niñez; y el tercero, un análisis del cortometraje “Float” (2019).

Palabra clave: infancia; género; cultura visual

1 INTRODUÇÃO

Menino de 8 anos que gostava de lavar louça morre espancado pelo pai no Rio. (UOL, 2014).

Se observarmos as tradições que perduraram e que ainda perduram em volta da espera do nascimento de uma criança, podemos perceber que, antes mesmo de ela chegar ao mundo, já são estabelecidas muitas expectativas sobre seu corpo, seus comportamentos e seu futuro, e isso, muitas vezes, enquadra-se no que é culturalmente tido como “normal” em questões de gênero e identidade sexual. Tentam ajustar os indivíduos em determinados padrões, por meio de aprendizados ora promovidos por currículos escolares e explícitos, ora promovidos por outros, sutis e não necessariamente escolares. Os/As que não tentam ou não são bem sucedidos/as em seguir esse “currículo de aprendizagem” de como exercer seu gênero são empurrados/as para às margens da sociedade, vivendo com medo de casos como esse indicado na epígrafe. Ele remete a um pai que assassina cruelmente seu filho porque, para ele, os comportamentos do jovem se aproximavam do que é tido como feminino.

O “chá de bebê”, a montagem do enxoval, a escolha do nome e outras tradições criadas e modificadas em âmbito cultural tendem a elaborar um currículo cultural de definição do gênero da criança a partir da identificação de seu sexo biológico e a presumir que ela se enquadrará em determinados padrões de masculinidades ou feminilidades. Para isso, esses currículos culturais generificados recorrem a determinadas cores, acessórios, brincadeiras, presentes, roupas, elogios, texturas etc. Atribuem-se marcas aos corpos, desde a infância e mesmo antes do nascimento, os quais só são o que são quando estão inseridos em determinada cultura, como investiga Guacira Lopes Louro (2003, p. 2), em “Corpos que escapam”.

Ao longo dos séculos, os sujeitos vêm sendo examinados, classificados, ordenados, nomeados e definidos por seus corpos, ou melhor, pelas marcas que são atribuídas a seus corpos. [...] A aparência é, pois, algo que se apresenta ou que se representa. Vê-se o que se mostra, o que aparece; e ao que se vê se atribui significados. Pele, pêlos, seios, olhos são significados culturalmente. Muitos são os significados atribuídos ao formato dos olhos ou da boca; à cor da pele; à presença da vagina ou do pênis; ao tamanho das mãos e à redondeza das ancas. Significados que não são sempre os mesmos - os grupos e as culturas divergem sobre as formas adequadas e legítimas de interpretar ou de ler tais características.

Observando o entorno da vida infantil, podemos perceber fatores determinantes e taxativos que padronizam comportamentos de bebês e crianças a partir de referenciais restritos de masculinidades e feminilidades. Exemplificamos essa prática recorrendo a personagens de desenhos animados conhecidos que são voltados ao público infantil e que operam como currículos culturais na intenção de lhes ensinar algo. As princesas da Disney, por exemplo, são consideradas símbolos de feminilidade e demonstram, de certa forma, como as meninas devem se portar e se caracterizar, determinando cores, habilidades, movimentos, trejeitos, matrimônios. Os super-heróis, semelhantemente, demonstram, por meio de suas conquistas, músculos e ações corajosas e destemidas, como devem ser exercidas as masculinidades, assim como os comportamentos que os meninos não devem assumir para que não sejam lidos como femininos. Neste artigo em específico, cujo objetivo é analisar representações circuladas em artefatos da cultura visual, que contemplem temáticas afetas às diferenças e às infâncias, denominamos essas ações discursivas como Projeto de Feminilização das Meninas e Projeto de Masculinização dos Meninos. Em atendimento ao tema proposto pelo dossiê - “Currículos culturais não escolares: processos de subjetivação, verdades e relações de poder” -, tomamos como objeto de análise a animação “Float” (2019), um curta-metragem produzido pela Pixar e distribuído pela Disney. O título deste artigo, inclusive, é composto pela única frase do curta-metragem. “Por que você não pode ser normal?”, reclama um pai, diante de seu filho, ao perceber que ele detém a capacidade de flutuar e, por isso, não pode agir conforme a normalidade expressada pelas demais crianças.

O curta-metragem, nesse sentido, atua como um currículo cultural que remete, a partir de metáforas sobre “criança-flutuante”, à ideia de “normalidade” e “não normalidade”. Teoricamente, a pesquisa tem respaldo nos Estudos de Gênero e Estudos da Cultura Visual, e fora organizada em três momentos, sendo o primeiro uma apresentação de aspectos teóricos dos campos; o segundo, uma contextualização histórica sobre como as opressões de gênero têm atuado na produção de corpos, desde as infâncias; e o terceiro, uma análise do curta-metragem “Float” (2019).

2 OS ESTUDOS DA CULTURA VISUAL E DISCUSSÕES SOBRE CURRÍCULOS CULTURAIS GENERIFICADOS

De acordo com Luciana Borre em “As Imagens que invadem as salas de aula: reflexões sobre Cultura Visual” (2010), os Estudos Culturais surgem em uma emergência de luta por posições sociais das expressões então marginais - os grupos aos quais não são espontaneamente fornecidos espaços de privilégios. Então, os Estudos da Cultura Visual, sendo um nicho dos Estudos Culturais, preocupam-se, especificamente, com as imagens criadas por e sobre esses grupos tratados como “minoritários”. Assim como neste artigo, no qual tratamos sobre questões acerca da padronização das pessoas por meio de uma visão enquadrada do que é ou não “normal” e damos atenção aos/às que escapam desses padrões de normalidade, os Estudos da Cultura Visual se preocupam com as imagens que são fornecidas e produzidas para e por esses grupos, reagindo a elas e problematizando os significados e estereótipos que costumam decorrer dessas representações.

Os Estudos da Cultura Visual se preocupam com as imagens, já que elas fazem parte do cotidiano dos indivíduos, afetando-os em âmbitos identitários, profissionais, emocionais, políticos, religiosos e de gênero e sexualidade, por exemplo. Como destaca Fernando Hernández em “Catadores da Cultura Visual: proposta para uma nova narrativa educacional” (2007), nos contextos das sociedades do século XXI, as imagens aparecem de diferentes formas, em diferentes lugares e em grandes quantidades. O autor nomeia como narrativas os significados que, de tão repetidos pelas imagens, acabam sendo naturalizados pelos sujeitos, e os Estudos da Cultura Visual tentam, por meio de metodologias de análise de imagens, estudar, interpretar e problematizar os modos nocivos e estereotipados a partir dos quais elas têm sido utilizadas. Essa concepção se harmoniza com a de Henry Giroux em “El ratonzito feroz: Disney o el fin de la inocencia” (1999), pioneiro em analisar os aspectos educativos nas imagens e narrativas circuladas por artefatos da cultura popular. A partir do conceito de pedagogia cultural, o autor tem se debruçado sobre produções de desenhos animados a fim de problematizar os modos como elas, atreladas à diversão, ensinam, por exemplo, sobre ser homem, mulher, branco/a e negro/a. Aproxima-se, também, à defesa que Tomaz Tadeu da Silva (2006) tem feito acerca das noções de currículo para além dos âmbitos escolares. Em “Currículo como fetiche”, o autor argumenta que, a partir de uma concepção pós-estruturalista, enfatiza-se o currículo como prática cultural e de significação. Em suas palavras, “[...] vão ficando registrados no currículo os traços das disputas por predomínio cultural, das negociações em torno das representações dos diferentes grupos e das diferentes tradições culturais” (SILVA, 2006, p. 22).

A partir desses autores, neste artigo, enfatizamos currículos culturais não escolares - como filmes, animações, brinquedos, propagandas e a moda - e escrevemos sobre como as opressões desses artefatos têm atuado na produção de corpos, sobretudo, os infantis. João Paulo Baliscei e Susana Rangel Vieira da Cunha, em “‘Faça como um homem’: Cultura visual e o Projeto de Masculinização dos Meninos” (2021), chamam atenção para a violência física, acionada por adultos/as, na tentativa de serem bem-sucedidos/as na generificação das crianças.

Em um conteúdo disponibilizado no perfil na rede virtual Tik Tok3, @depoisquepariduas, Isabelli Gonçalves4 trata sobre educação parental, oferecendo conselhos e dicas para pais e mães na criação de seus filhos e filhas, além de discutir sobre as agressões físicas e psicológicas, cometidas contra crianças na intenção de educá-las. Vários dos comentários feitos por usuários/as que acompanham o perfil sintetizam opiniões sobre a punição física contra crianças (como castigos, surras e palmadas) e operam como relatos pessoais de como essa punição cria uma relação confusa, pautada em amor e ódio e na falta de diálogo, ocasionando problemas psicológicos nas vítimas e, muitas vezes, fazendo com que elas fujam, literal ou figurativamente, de suas famílias. Relembramo-nos das diretrizes da Lei n. 13.010, de 26 de junho de 2014, conhecida como Lei da Palmada ou Lei do Menino Bernardo5, que, de acordo com seu artigo 18-A, estabelece à criança e ao/à adolescente os direitos de:

[...] ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los. (BRASIL, 2014).

Se casos de violência já são recorrentes quando tratamos de crianças que não necessariamente extrapolam as condições de “normalidade” estabelecidas pelos currículos culturais e escolares, percebemos que isso pode se agravar quando se trata de crianças que fogem às normas de raça, gênero e sexualidade, ou mesmo apenas personificam trejeitos que, para seus/suas agressores/as, fogem dos que são exigidos pela heterossexualidade.

Devido a essas condições, vemos constantemente casos como o apresentado na epígrafe deste artigo, que se refere ao menino carioca Alex (2006-2014), o qual fora morto pelo pai em 2014, aos 8 anos, em decorrência de uma série de espancamentos advindos do incômodo que o comportamento afeminado do filho causara ao pai. Alex gostava de lavar louça, dançar e não queria cortar seus cabelos longos. Caso semelhante ocorreu em 2020, no Estado de São Paulo, com uma menina de 13 anos, cujo nome não fora divulgado (CORREIO BRAZILIENSE, 2020). Após se assumir lésbica, ela foi violentada pelo pai com cumplicidade do avô. Lembramo-nos, por fim, do jovem paulista de 17 anos Itaberli Lozano (1999-2016), assassinado a facadas e carbonizado pela mãe, após ter se mudado de moradia por conta de discussões e agressões recorrentes, advindas da oposição que ela fazia à homossexualidade do filho (G1 RIBEIRÃO PRETO E FRANCA, 2019).

Para além dessas, outras muitas notícias poderiam ser mencionadas aqui, e isso nos faz questionar se as diretrizes das leis brasileiras presentes, por exemplo, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)6 (BRASIL, 1999), na Constituição Federal7 (BRASIL, 1988) e na própria Lei da Palmada (BRASIL, 2014) - as quais visam “garantir” proteção às crianças e aos/às adolescentes do país - estão sendo respeitadas e cumpridas e, principalmente, se elas abrangem toda a população ou se alguns corpos têm sido protegidos e outros negligenciados.

Para além do que fora destacado em outras pesquisas nas quais evidenciamos o Projeto de Masculinização dos Meninos (BALISCEI; CUNHA, 2021), aqui ressaltamos as violências que assolam os corpos das meninas, numa espécie de Projeto de Feminilização delas. Esse projeto demonstra não só como os meninos devem tratar as meninas e como elas devem se comportar para serem “desejadas” por eles, mas também indica os lugares que elas e eles devem ocupar (separadamente) na sociedade. Ao nos referirmos ao Projeto de Feminilização das Meninas, sublinhamos os currículos culturais e escolares que buscam, direta ou indiretamente, ensinar-lhes papéis e atuações restritas como sendo esperadas das mulheres na sociedade. Nos currículos escolares, esse aprendizado se mostra ativo, por exemplo, nas atribuições que são feitas às meninas nas aulas de Educação Física e nas expectativas que são lançadas sobre elas para que sejam silenciosas, comportadas e cuidadosas com seus materiais e com a própria aparência. Em “Forjar un hombre, moldear una mujer”, Marina Subirats (2013) demonstra isso por meio de estudos produzidos na Espanha, os quais quantificam, em tabelas, os números de violências exercidas entre os/as próprios/as estudantes nos espaços escolares.

De acordo com esses dados, a violência que mais se repete é a de meninos contra outros meninos. Verificamos que, do montante de agressões físicas registradas pela autora em observações realizadas em espaços escolares, 59,9% delas acontecem de meninos contra meninos, 24% de meninas contra meninas, 12,7% de meninos contra meninas, e apenas 9,8% de meninas contra meninos. Conforme os dados, as violências cometidas pelas crianças apresentam pequenas modificações quando se trata de agressões gestuais ou jogos violentos. Contudo, em ambas as situações, a violência de meninos contra meninos se destaca nos primeiros lugares na colocação estatística. A pesquisa ainda organiza dados sobre agressões sexuais, como, por exemplo, situações em que as crianças fazem gestos obscenos ou tocam os órgãos genitais, umas das outras, provocativamente. Nesses casos, novamente, a porcentagem de atentados de meninos contra meninos é de 41,4% - maior, inclusive, do que as violências de meninos contra meninas, que é de 36,5%. Outras formas de violência apresentadas pelo estudo se dão pela remoção das roupas da vítima e por atos exibicionistas e, em ambos os casos, as ações de meninos contra meninos continuam no topo das porcentagens.

Nos currículos culturais, esse aprendizado é exercido paralelamente à produção e execução de tradições, tais como furar as orelhas das meninas recém-nascidas ou mesmo incentivá-las, ao longo da vida, a se maquiarem, modificarem suas unhas, alisarem seus cabelos e eliminarem os pelos em regiões específicas do corpo. Todas essas seriam, portanto, práticas decorrentes do Projeto de Feminilização. Em “‘As Incríveis’: educação, cultura visual, sexualidades e caracterização das personagens mulheres de ‘Os Incríveis’ (2004; 2018)”, Jéssica Fiorini Romero e João Paulo Baliscei (2021) denunciam discrepâncias nas representações que os currículos culturais promovem acerca de homens e mulheres realizando atividades domésticas. Em uma das animações analisadas, quando o protagonista homem e super-herói é responsabilizado pela execução das tarefas domésticas, aplica-se um efeito de humor nas cenas que retratam um homem adulto se atrapalhando ao tentar assumir o papel que sua esposa, antes, desempenhara com maestria, como se ela, “por natureza”, fosse uma dona de casa multitarefas.

Quando o Projeto de Feminilização das Meninas se cruza com o Projeto de Masculinização dos Meninos, como demonstra a pesquisa supracitada, observamos crianças sendo ensinadas a partir de papéis de gênero bastante rígidos, os quais determinam quem, na vida adulta, vai trabalhar fora de casa e quem vai trabalhar dentro; quem deve cuidar do dinheiro e quem deve cuidar dos/das filhos/as; como o homem deve tratar a mulher e como a mulher deve se comportar para que seja desejada pelo homem; quem pode ter mais parceiras sexuais e quem deve se manter virgem até o casamento.

Para além dessas “diretrizes” de como ser feminina, as meninas ainda são ensinadas a fazerem com que os meninos se sintam (mais) masculinos, então, elas precisam massagear o ego deles, fazendo com que se sintam “necessários” e “úteis” - por exemplo, pedindo-lhes ajuda com tarefas que exigem força, mesmo quando não necessário. Elas são ensinadas, também, a notar as demonstrações de masculinidade dos meninos e elogiá-las; a deixar que eles assumam o papel de protagonismo em muitos aspectos da relação, como o de provedor financeiro, que sai de casa para trabalhar.

Esses projetos operam a partir de discursos sutis, os quais se assemelham àqueles promovidos por cartazes e propagandas publicitárias do século XX, que apresentam as mulheres como submissas, domésticas e sensuais, e que permanecem ativos no imaginário de parte significativa da sociedade e, também, nos currículos culturais decorrentes desse pensamento. Na Figura 1, por exemplo, reunimos uma série de frames de um vídeo postado na rede social TikTok, em que a autora encena dois momentos do seu cotidiano. No primeiro, a mulher é filmada de cima - causando certa impressão de inferioridade - e assume uma feição que expressa delicadeza e vulnerabilidade ao pedir ajuda para um homem, seu companheiro, para abrir uma lata de conserva. Já no segundo momento, quando a mulher está sozinha, a câmera assume um enquadramento de baixo para cima - causando a impressão de superioridade. Além disso, ela incorpora feições diferentes, demonstrando força e esforço físico, e é mostrada levantando móveis pesados enquanto realiza outras tarefas. A segunda parte do vídeo, portanto, causa a impressão de que a personagem não necessitaria da ajuda de um homem para abrir uma simples lata e que fez o pedido só para agradá-lo e para aparentar a feminilidade que lhe era esperada.

Fonte: Eu sozinha vs eu com meu namorado. Disponível em: https://www.tiktok.com/@mirelapizani?lang=pt-BR. Acesso em: 28 out. 2021.

Figura 1 “Faça-o sentir-se masculino” 

Encontramos, na Figura 1, traços de um antigo (porém ainda vigente) discurso de que os homens seriam fisicamente mais fortes do que as mulheres e de que, em relações afetivas heterossexuais, a mulher deveria se enquadrar nesse padrão, mesmo que destoe dele. Discursos como esse são propagados não só no Projeto de Masculinização dos Meninos, mas também no Projeto de Feminilização das Meninas, quando a elas é ensinado como se comportar diante de um homem e como fazer-lhe se sentir. De acordo com esse currículo cultural generificado, se o homem deve se demonstrar e se sentir masculino em todos os momentos, cabe à mulher, ainda, fazê-lo se sentir assim, ajudando-lhe nessa percepção. Assim, é comum nos depararmos com narrativas da cultura visual e, também, na vida real, com mulheres tentando, ao máximo, inflar o ego de seus namorados, maridos, colegas de trabalho e familiares, elogiando-os por suas ações masculinas e, principalmente, fazendo com que eles se sintam “necessários” - já que, a eles, é destinado todo um currículo cultural, ensinando-lhes sobre a necessidade de “salvar a(s) donzelas(s)”, como indicamos na Figura 2.

Fonte: Super-Homem e Lois Lane, Homem Aranha e Mary Jane, Príncipe Florian e Branca de Neve. Montagem e edição nossas.

Figura 2 Salvando a donzela 

A imposição da heterossexualidade e dos papéis de gênero bastante restritos que essas imagens fazem circular desde a infância, para nós, atua como currículo cultural generificado e promove aprendizados que se harmonizam aos Projetos de Masculinização dos Meninos e de Feminilização das Meninas. Ainda que, de modo geral, as imagens produzidas sobre e para as crianças invistam em um sentido semelhante no que diz respeito aos papéis rígidos que elas precisam desempenhar socialmente de acordo com o gênero que lhes fora atribuído, há outras que prestam resistências e alternativas a esses aprendizados. Nos últimos anos, sobretudo, temos assistido à produção e popularização de currículos culturais que, desde a literatura, o cinema e a indústria de brinquedos, por exemplo, reclamam por concepções mais abrangentes e diversas no que tange à generificação das crianças. Dentre essas produções, neste artigo, enfatizamos o curta-metragem “Float” (2019), o qual trata das particularidades de uma criança que, diferente das demais, é capaz de flutuar.

3 ANÁLISES SOBRE “FLOAT” (2019) E OS CURRÍCULOS DE NORMATIVIDADE

No ano de 2019, a Walt Disney Studios Motion Pictures lançou uma série de curtas-metragens de animação denominada “SparkShorts”, da qual “Float” (2019) - animação analisada nesta pesquisa - faz parte. A animação em questão foi dirigida e escrita pelo mexicano Bobby Rubio, pai de uma criança autista, e produzida pela Pixar Animation Studios. O título “Float” pode ser traduzido para o português como “Flutuar” e se refere à habilidade de uma criança considerada diferente das demais, já que essa diferença se dá, justamente, pelo fato de ela flutuar.

Motivados/as pelos Estudos de Gênero e pelo conceito de currículo cultural, observamos que, durante o desenrolar da história, algumas das situações que atravessam a vida da personagem podem ser consideradas como metáfora para as tentativas de padronização de gêneros, às quais os sujeitos são expostos desde antes do nascimento. A partir disso, propomos vislumbrar a animação com um olhar problematizador, que nos é apresentado pelo sistema de análise de imagens PROVOQUE (BALISCEI, 2020), no intuito de questionar e pensar sobre esses estereótipos. Trata-se de uma abreviação para Problematizando Visualidades e Questionando Estereótipos, e de uma organização em cinco etapas que conferem enunciados e ações específicas para exercícios de análise de imagens. Incentivados/as pelos Estudos da Cultura Visual, elaboramos nossas próprias análises que, de modo algum, esgotam os significados que podem ser lançados sobre esse artefato.

Na Figura 3, primeira analisada, compartilhamos alguns frames referentes às reações dos pais e das mães das demais crianças que reagem com estranhamento ao voo da personagem principal. Neles, podemos notar as diferentes tentativas de proteção que os/as adultos/as tomam com seus respectivos/as filhos/as, afastando-os/as e escondendo-os/as da diferença representada pela personagem.

Fonte: Frames do 0’53’’, 0’56’’, 3’11’’ e 3’19’’, extraídos de “Float” (2019). Acesso em: 22 jul.2022.

Figura 3 Reação dos pais e das mães à diferença 

Nesse conjunto de imagens, observando as reações das personagens, percebemos que muitas das crianças demonstram curiosidade ao observarem o voo do menino protagonista. Elas lhe apontam o dedo, esticam os braços em sua direção, arregalam e fixam os olhos sobre ele e ficam de “queixo caído”, surpreendidas pela ação e habilidade de voar. Com exceção de uma criança - que, ao se assustar com o sobrevoo, corre para sua mãe em busca de proteção -, as demais parecem se interessar por aquilo que a criança protagonista é capaz de fazer. Todavia, diferentemente das crianças curiosas, os pais e as mães representados/as na animação tendem a reagir mal diante do menino voador. Inclusive, por vezes, assumem uma postura agressiva, tentando agir em “defesa” de seus/suas filhos/as, protegendo-os/as contra a diferença que lhes é apresentada.

Podemos observar isso na expressão facial das personagens adultas que se mostram não só surpresas e assustadas perante algo inusitado, mas também bravas e sisudas, em sinal de pouca abertura à diferença. Na primeira imagem da Figura 3, por exemplo, um pai rotaciona seu corpo na intenção de levar sua filha o mais distante possível do menino voador, enquanto a mãe empurra-os para longe da criança flutuante. Na segunda imagem, outra mãe leva sua filha para dentro da casa, rapidamente, em busca não só de segurança, mas de impedir que a criança veja e interaja com o menino voador. Na terceira, um outro pai abraça sua filha, que até então brincava em um balanço, impedindo-a de se relacionar com a personagem principal, que sobrevoava sobre o parquinho. Na quarta e última imagem, vemos uma criança assustada, a única que, espontaneamente, demonstrou medo e aversão ao menino voador. Na cena, ela foge para trás de sua mãe, a qual exibe, sem constrangimento, uma expressão facial e corporal de resistência. Nos segundos posteriores a essa cena, ainda, a mulher repreende o pai do menino voador em sinal da desaprovação que ela manifesta não só pelo ato de voar, mas pela permissividade que o pai aparentava conceder à criança.

A isso, relacionamos as escritas de Paul Preciado (2013), que apresenta uma problemática semelhante quando pergunta, no título de seu artigo, “Quem defende a criança queer?”. Em sua pesquisa, o autor afirma que os/as “defensores/as da criança e da família” que repudiam as expressões não heterossexuais pautam seus argumentos sob a imagem de uma criança que eles/as mesmos/as construíram, já que delas é tirado o direito de falar por si e de assumir um estilo vida diferente daquele pensado para elas. O autor - quem, na época da publicação, identificava-se como uma mulher lésbica cisgênero - afirma que, durante a infância, não teve uma boa relação com sua família, o que fez com que ele fugisse desse espaço social.

Fugi desse pai e dessa mãe que Frigide Barjot [uma ativista política cuja defesa exclui e ataca as famílias LGBTTQIA+] exige para mim, minha sobrevivência dependia disso. Assim, ainda que tenha tido um pai e uma mãe a ideologia da diferença sexual e da heteronormatividade os confiscaram de mim. (PRECIADO, 2013, p. 99).

O autor explica que uma criança, por sua condição infantil, não consegue se rebelar politicamente contra esses discursos impostos sobre seus corpos pelos/as adultos/as. Segundo ele, a criança “[...] é sempre um corpo a que não se reconhece o direito de governar” (PRECIADO, 2013, p. 97), e, ainda, levanta questionamentos como: a quem fica o papel de defender as crianças diferentes da norma? Quem defende o direito do garoto que gosta de usar rosa e da garota que sonha em se casar com a amiga? Há quem se preocupe com o direito de as crianças crescerem em um mundo sem violência, incluindo a sexual e a de gênero?

Sendo assim, chegamos ao questionamento sobre quem, de fato, defende os direitos daqueles/as que se mostram diferentes dos padrões estabelecidos socialmente. Nas cenas de “Float” (2019) reunidas na Figura 3, conforme analisamos, os pais e as mães, adultos/as, em vez de receberem o menino voador e cuidarem dele, em respeito à sua condição de criança, não só desaprovaram sua diferença, como ensinaram seus filhos e suas filhas - implícita ou explicitamente - a reagirem a ela com desprezo e violência. Supomos que, diante da reação dos pais e das mães que se afastaram do menino protagonista, posicionando-o numa condição à margem, as demais crianças, na presença de um outro sujeito voador, tratarão o menino com repulsa e frieza. Ainda sobre isso, sublinhamos que, dentre todos/as os/as adultos/as representados/as na animação, nenhum/a deles/as se aproximou do protagonista voador, apresentando o ato de voar como algo possível e positivo aos seus filhos ou filhas - o que nos leva a pensar, inclusive, sobre as ações e decisões tomadas pelo próprio pai do menino voador.

Na Figura 4, reunimos cenas que denotam soluções assumidas pelo pai do menino protagonista, na tentativa de ocultar a diferença de seu filho e mantê-lo no chão, sem voar. Quando sai com a criança em público, o pai usa alguns acessórios para impedi-la de voar, tais como uma guia e uma mochila cheia de pedras.

Fonte: Frames do 2’33’’, 2’36’’ e 2’40’’, extraídos de “Float” (2019). Acesso em: 21 jul. 2022.

Figura 4 Imposição sobre a diferença 

Na figura acima, observamos frames de uma cena da animação, referentes ao passeio relatado. Neles, para que a família que vinha na direção das personagens principais não percebesse a criança voando, o pai prontamente a segura e a leva para o outro lado da rua, escondendo-a e a si próprio atrás de um carro. Ao notar que a família já havia se afastado dos dois, o pai, então, acrescenta mais pedras à mochila que o filho carrega às costas, no intuito de que o peso lhe impeça de voar. As pedras, nesse caso, assumem importante significado simbólico, pois acarretam peso à criança, tanto no sentido literal da palavra quanto abstrato, ocasionando-lhe medos, impedimentos e dificuldades.

Pensando nessa mudança de relação, a partir da qual pais e mães calibram os modos como reagem às diferenças de seus filhos e suas filhas - assim como nos é mostrado na animação, quando observamos o trato do pai com seu filho voador -, atentamo-nos aos referenciais que são oferecidos à criança flutuante pelo seu pai não flutuante. Diante das mudanças de comportamento do pai, que ocorrem conforme há dificuldade de aceitação da diferença que seu filho apresenta, percebemos que se modifica também sua relação com a criança.

Por considerarmos que esta diferença pode ser tratada como uma metáfora para a não heterossexualidade, examinamos os papéis masculinos assumidos pelo pai, alternadamente, durante a animação. Sobre isso, recorremos mais uma vez a Baliscei e Cunha (2021), que investigam os papéis masculinos atrelados à paternidade. O autor e a autora apresentam alguns casos brasileiros de violências públicas contra crianças, efetuadas por homens adultos que, de certa forma, desempenham paternidade. Citam alguns conceitos e proibições socialmente estabelecidas de como um homem deve se comportar para se afastar da feminilidade: homem não leva desaforo para casa, não deve fugir de uma briga, deve sempre revidar agressões, não deve ser feito de bobo, não pode ser “passado para trás”, deve sempre ganhar competições, não pode aceitar ser expulso, precisa recorrer à violência para se expressar, não deve aceitar regras, não pode demonstrar seus sentimentos nem docilizar seu corpo e suas atitudes. E é a partir dessas percepções que o autor e a autora levantam questões sobre qual efeito esse Projeto de Masculinização dos Meninos tem desempenhado sobre o exercício da paternidade.

‘Ser homem’, a partir dessas diretrizes, provoca, então, efeitos no desempenho de outras identidades que um homem pode assumir ao longo de sua vida, como ‘ser pai’. Como um homem pode não demonstrar afeto sendo pai? Quais implicações que esse projeto de masculinização tem para o exercício da paternidade? (BALISCEI; CUNHA, 2021, p. 380).

Observando as personagens de “Float” (2019), mais especificamente a personagem do pai, notamos que ele assume diferentes posturas quanto à masculinidade e à paternidade. Primeiro, no início da animação, ele se difere de muitas das exigências que, socialmente, costumam ser feitas aos homens. Por exemplo, no início da animação, como indicamos nas quatro primeiras cenas da Figura 5, o pai demonstra afeição, brinca com seu filho, interage com flores do jardim em um espaço doméstico e até demonstra certa felicidade quando seu filho flutua pela primeira vez. Essas ações, para nós, assemelham-se a uma concepção de masculinidade mais saudável, a partir da qual o sujeito não é impedido de acessar e demonstrar certos sentimentos apenas tendo em vista a sua identidade de gênero. Contudo, o comportamento do pai se altera quando outras personagens adultas - as pessoas que circulam perto da criança flutuante - começam a julgá-los. Julgam o menino protagonista por estranhar o fato de ele flutuar; e julgam também o pai, responsável pela educação da criança, constrangendo-o a prestar-lhe certos “ajustes” na intenção de coibir o voo. Após isso, nas próximas cenas da animação, podemos assistir a um pai não só menos afetuoso com o filho, mas também a um homem que assume ações e trejeitos menos delicados e vaidosos, como indicamos na última sequência de quatro cenas da Figura 5.

Fonte: Frames do 0’11’’, 0’17’’, 0’21’’, 0’38’’, 0’50’’, 1’48’’, 2’04’’ e 2’23’’, extraídos de “Float” (2019). Acesso em: 28 ago. 2021.

Figura 5 Pai e filho brincam 

A sequência de 8 cenas demonstra evidentes mudanças na performance de masculinidade e de paternidade do adulto. Com o passar do tempo, ele se relaciona de modos mais ríspidos com o seu filho, em consequência daquilo que os/as demais adultos/as o pressionaram a fazer, e expressa significativas mudanças também para com o seu corpo. Conforme demonstram as imagens, o pai adquire expressões tristes e desanimadas e assume uma postura indicativa de cansaço. Seus cabelos, antes curtos e penteados, passam a ser representados longos, desajeitados e com aspectos insalubres; além disso, a paleta de cores da animação se modifica, e os tons vibrantes e contrastantes são substituídos por outros, mais sombrios e opacos.

A sequência de cenas da Figura 5 demonstra, também, que, aos poucos, o pai toma atitudes para impedir a criança de voar. Pensando em um provável motivo para a mudança nos comportamentos do pai, delimitamos que, para além do estresse causado pela não aceitação da diferença de seu filho, o adulto também pode estar, por meio de suas ações, tentando ensinar o que um homem pode ou não fazer, como um homem deve ou não se comportar e quais os trejeitos que o menino pode experimentar em casa e quais ele deve assumir na frente de outras pessoas. Sobre isso, Chimamanda Ngozi Adichie (2017), em “Para educar crianças feministas”, exemplifica várias situações e falas que demonstram essas tentativas de ensinamentos para a padronização de gêneros já desde a infância. Em um desses casos, ela relata que uma conhecida sua, mãe de um menino, ao levar seu filho a um espaço de recreação infantil, percebeu como os meninos eram menos incentivados a seguir regras e mais incentivados a ocupar os espaços do que as meninas. Elas, inclusive, segundo o relato feito pela autora, eram repreendidas quando faziam isso. A autora também escreve sobre como os estereótipos de gênero são dissimulados no cotidiano, de modo que é comum segui-los, mesmo não os querendo ou os percebendo.

Outra conhecida, uma americana, me contou uma vez que levou o filho de um ano a um espaço de recreação infantil em que várias mães levavam seus bebês, e percebeu que as mães das meninas eram muito controladoras, sempre dizendo “não pegue isso” ou “pare e seja boazinha”, e que os meninos eram incentivados a explorar mais, não eram tão reprimidos e as mães quase nunca diziam “seja bonzinho”. Sua teoria é que pais e mães inconscientemente começam muito cedo a ensinar às meninas como devem ser, que elas têm mais regras e menos espaço, e os meninos têm mais espaço e menos regras. (ADICHIE, 2017, p. 27).

Diante desse estudo, em que se sinaliza certa permissividade aos meninos no que diz respeito à obediência de regras, as quais, por sua vez, são cobradas com rigor às meninas, podemos nos questionar: por que essa perspectiva de que os meninos devem explorar o mundo e conquistar espaços se altera quando tratamos de uma criança dissidente, como o menino-flutuante na animação? Como podemos observar na trama de “Float” (2019), o menino, impedido de voar, é, dali por diante e a todo momento, segurado pelo pai para que ele não se distancie daquilo que é estipulado à normalidade. Nossa interpretação é a de que, quando se trata de uma criança que foge dos padrões estabelecidos pela sociedade, como aqueles exigidos a partir do sexo biológico - para ele, os padrões de masculinidade -, ela sofre uma rejeição até que seja “ensinada” - e, muitas vezes, forçada - a ajustar seu comportamento à norma vigente. A isso, acrescentamos que as adequações cobradas às crianças não se referem apenas às questões de gênero e sexualidade, mas também atravessam as identidades e diferenças étnico-raciais, de classe, de religião, de configurações familiares e de padrões de beleza que remetem à magreza, por exemplo.

Sobre isso, Megg Rayara Gomes de Oliveira (2020), em “O diabo em forma de gente: (r)existências de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação”, conta sobre sua experiência como estudante, quando ainda era identificada como um menino cisgênero e afeminado.

Foi durante o antigo 2º grau, hoje ensino médio, que essa situação ficou mais complicada e as cobranças para que eu mantivesse meus cabelos sempre penteados (ou domados, controlados, nas palavras de alguns), unhas bem curtas e adotasse atitudes mais viris passaram a ser mais frequentes fazendo com que eu evitasse a companhia da maioria das pessoas. As poucas pessoas com quem eu me relacionava fora da escola também controlavam meu corpo, meu gestual e impunham modelos de masculinidade que eu não conseguia decifrar. Continuava andando por caminhos pouco movimentados, dando longas voltas para chegar à escola, me esgueirando pelas beiradas. A margem se cristalizava a cada dia. (OLIVEIRA, 2020, p. 32).

Podemos notar a semelhança entre as cenas da animação e a escrita da autora, principalmente no trecho acima, quando ela relata sobre como os/as adultos/as tentavam, a todo modo, enquadrá-la nos padrões sociais. Por consequência do não enquadramento da autora e do flutuar, no caso da personagem, ambos viveram se esgueirando às margens da sociedade, na tentativa de modificar suas diferenças ou, ao menos, escondê-las. Essa relação de encobrimento demanda um esforço físico e psicológico que, muitas vezes, acaba deixando esse indivíduo para além de silenciado, doente. Seguindo essa linha de raciocínio, destacamos também os frames da Figura 6, os quais se relacionam com o momento em que a criança escapa da guarda do pai e segue flutuando, livre e feliz, independentemente da reação das demais personagens.

Fonte: Frames do 2’44’’, 2’49’’, 3’05’’ e 3’10’’, extraídos de “Float” (2019). Acesso em: 28 ago. 2021.

Figura 6 Fugindo das normas 

Nos frames selecionados, podemos observar a animação e o entusiasmo da criança ao se deparar, durante o passeio, com um parque destinado à recreação infantil. Devido a uma distração do pai, que observava as demais crianças no parquinho com uma expressão triste, como se invejasse e desejasse a “normalidade” desempenhada por elas, o menino-flutuante “escapa” duplamente. Primeiro, escapa da supervisão e do controle físico que o pai lhe confere, e segundo, escapa das normas que instituem, se não a proibição, pelo menos a inadequação do ato de flutuar. O protagonista, então, vai ao encontro dos brinquedos acessados pelas outras crianças, o que causa diversas reações por parte dos/das adultos/as que transitam pelo espaço - todas elas de repúdio, como especificado anteriormente.

Para além do repúdio demonstrado pelas personagens adultas, o protagonista também tem de lidar com a reação de desaprovação vinda do próprio pai. Diante do parquinho e detrás de uma grade de arames, a criança flutuante não parece ser a única personagem o que vê. O pai, junto dela, observa o mesmo espaço e demonstra, semelhantemente, uma atitude de desejo. Nesse caso, todavia, o objeto foco do desejo não é o parquinho, mas sim os sujeitos infantis que transitam por ele. Para nós, a expressão dessa personagem adulta é análoga da vontade de que seu filho se comportasse como as demais crianças para, assim, enquadrar-se ao grupo e participar da interação, com discrição.

Em um momento de distração, quando o pai não flutuante percebe a fuga do filho, a reação imediata do adulto é correr ao seu encontro, tentando, de várias formas, trazê-lo de volta ao chão e afastá-lo das demais personagens, em um movimento de protegê-lo delas e de protegê-las dele, como demonstrado na Figura 7.

Fonte: Frames do 3 ‘37’’, 3’33’’, 3’40’’ e 3’42’’, extraídos de “Float” (2019). Acesso em: 28 ago. 2021.

Figura 7 Por que você não pode ser normal? 

Nessa cena, o pai consegue capturar o filho flutuante e, devido à relutância da criança em esconder a sua diferença, o adulto assume um comportamento agressivo com o filho, arrastando-o contra a sua vontade. Enquanto isso, as demais personagens, crianças e adultas, observam à cena passivamente. Optam, assim, por não interferir e menos ainda interromper a violência à qual a criança é submetida. Talvez, para evitar se colocarem em uma situação de vulnerabilidade; talvez, porque aprovem a atitude do adulto e concordem com a repressão da diferença implícita no ato de flutuar. A criança que flutuava feliz, então, debate-se para escapar do controle do pai, o qual, por sua vez, arrasta o filho pelo ar, levando-o para fora do parquinho e das demais personagens não flutuantes. Quando o pai cansa de lutar contra os protestos do filho e contra suas reações físicas, adota, uma última estratégia - talvez mais por desespero do que por planejamento. O pai, então, agarra o filho pelos ombros, rotaciona seu corpo para poder encará-lo, de frente, e grita a única fala dita durante toda a animação: “Por que você não pode ser normal?”.

4 CONCLUSÕES

A pesquisa se faz relevante devido à discussão sobre a representação infantil no âmbito da cultura visual e a concepção dessa como currículo cultural. A partir desse conceito, podemos entender que as produções circuladas pela cultura popular - tais como cartazes publicitários, brinquedos, moda, memes, selfies, embalagens de produtos, desenhos animados e filmes - são engendradas a partir de símbolos que disputam significados acerca de quem representa e quem é representado/a. Como currículos culturais, essas produções tendem a promover ajustes, aprendizados e ensinamentos acerca de padrões sociais que versam sobre assuntos diversos, tais como “normalidade”, corpos, gêneros, identidades sexuais, comportamentos e religiões. Ao pensar nas problemáticas da vida infantil, convidamos à reflexão sobre os tratamentos que recebemos e continuamos (ou não) propiciando às crianças, e sobre os avanços que desenvolvemos e quais ainda precisamos desenvolver para o alcance de mais igualdade e respeito.

Se as crianças que se mostram diferentes daquilo estabelecido pelos currículos escolares e culturais como “normal” continuarem a receber tratamentos semelhantes aos do protagonista de “Float” (2019) ou às outras crianças, mencionadas como vítimas em manchetes de jornais, é de se esperar que aprendam sobre essas diretrizes ou que, pelo menos, tenham de lidar com os prejuízos de terem sido confrontadas por elas. Acreditamos que notícias, como a da epígrafe deste artigo, e pesquisas que demonstram a liderança do Brasil no ranking de assassinatos de mulheres, de pessoas negras e de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queers, intersexuais, assexuais e outras (LGBTTQIA+) nos ajudam a ter uma perspectiva de resposta para esses questionamentos.

Pontuamos, por fim, que nesse exercício de análise visual não intencionamos fixar uma única interpretação sobre o curta-metragem. Pouco ou nada nos interessa saber se, originalmente, o protagonista de “Float” (2019) fora pensado para retratar crianças LGBTTQIA+. Inclusive, conforme informações disponibilizadas pelo site da empresa TISMOO8 em uma de suas matérias9 e pelo estudo “O transtorno do espectro autista (TEA) em obras literárias e videográficas” elaborado por Carla Maria de Schipper e Dieisiane Aparecida de Andrade (2021), sabemos que a animação foi pensada a partir de experiências de Bobby Rubio junto ao seu filho com aspecto autista - o que chama atenção para as percepções de “normalidade” a partir de um campo outro que não as questões de gênero e sexualidade. Incentivados/as pelos Estudos da Cultura Visual e pelas discussões em torno dos aprendizados promovidos pelos currículos culturais endereçados às crianças, elaboramos nossas próprias análises acerca desse artefato, relacionando às alternativas que buscamos aos Projetos de Masculinização dos Meninos e de Feminilização das Meninas.

1Este artigo integra uma pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), intitulada “‘Me deixe voar’: a animação Float (2019) e discussões sobre Gênero, Cultura Visual e Infâncias” (em andamento). Processo: 1444/2021.

3Disponível em: https://www.tiktok.com/@depoisquepariduas? Acesso em: 4 jan. 2022.

4Pós-graduada em Neurociência, Educação e Desenvolvimento Infantil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

5A Lei recebe esse nome no intuito de homenagear o menino gaúcho Bernardo Boldrini (2002-2014), quem, com 11 anos, fora assassinado pelo pai e pela madrasta. Mesmo após a aprovação e vigência da referida lei, são recorrentes os casos de violência familiar física e psicológica contra crianças e adolescentes, como podemos perceber por meio de notícias circuladas na contemporaneidade.

6Documento que descreve os direitos e deveres dos/das responsáveis pelas crianças e pelos/as adolescentes, visando à saúde, liberdade, dignidade, segurança e educação desses grupos. No ECA, está previsto que a lei seja aplicada a todas as crianças e todos/as os/as adolescentes, sem discriminações, considerando “crianças” pessoas com até 12 anos de idade completos; e “adolescentes”, pessoas de 12 a 18 anos.

7Define os direitos e deveres dos/das cidadãos/ãs, incluindo as crianças e os/as adolescentes. Sobre esses grupos, especificamente, o documento aponta que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com prioridade absoluta, os direitos das crianças e dos/das adolescentes, a exemplo daqueles que dizem respeito à vida, à saúde, à alimentação e à educação.

8Empresa de biotecnologia de relevância global, comprometida em melhorar a qualidade de vida de pacientes e famílias afetadas por transtornos neurológicos, como o transtorno do espectro do autismo (TEA) e outros de origem genética relacionados ao TEA, tais como a síndrome de Rett, CDKL5, síndrome de Timothy, síndrome do X-Frágil, síndrome de Angelman, síndrome de Phelan-McDermid, entre outras.

9Matéria completa disponível em: https://tismoo.us/comunidade/cultura/um-curta-da-pixar-baseado-em-autismo-float/. Acesso em: 30 ago. 2021.

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Recebido: 30 de Agosto de 2022; Aceito: 27 de Dezembro de 2022

Kauane Moraes Bernardo: Acadêmica do curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Integrante da equipe organizadora do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens (ARTEI). Realiza pesquisas sobre Educação, Cultura Visual e Identidade. E-mail:ra117676@uem.br, Orcid:https://orcid.org/0000-0001-8105-1093

João Paulo Baliscei: Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Maringá (UEM) com estudos na Facultad de Bellas Artes/ Universitat de Barcelona, Espanha. Mestre em Educação pela UEM. Especialista em Arte-Educação e Educação Especial pelo Instituto de Estudos Avançados e Pós-Graduação da UEM. Graduado em Artes Visuais pelo Centro Universitário de Maringá (CESUMAR). Professor do curso de Artes Visuais da UEM. Coordenador do Curso de Artes Visuais na UEM. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens (ARTEI) na UEM. E-mail:vjbaliste@gmail.com, Orcid:http://orcid.org/0000-0001-8752-244X

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