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Série-Estudos

versión impresa ISSN 1414-5138versión On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.28 no.63 Campo Grande mayo/aug 2023  Epub 21-Ago-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v28i63.1776 

Artigo

Divisão sexual do trabalho e sua relação com a ciência, tecnologia e educação

Sexual division of labor and its relationship to science, technology and education

División sexual del trabajo y su relación con la ciencia, la tecnología y la educación

Jefferson Carriello do Carmo1 
http://orcid.org/0000-0002-6816-5667

Helena Setsuko Del Mastro Espíndola2 
http://orcid.org/0000-0002-9615-5917

1Universidade de Sorocaba (UNISO), Sorocaba, São Paulo, Brasil

2Faculdade de Tecnologia de Sorocaba (FATEC), Sorocaba, São Paulo, Brasil


Resumo

O objetivo do artigo é identificar a relação entre a ciência, a tecnologia e o trabalho no ambito da Divisão Sexual do Trabalho, com destaque para as implicações dessa relação para os campos do trabalho e da educação. O procedimento metodológico adotado foi bibliográfico, que consistiu em identificar dados e informações embasadas em literatura especializada sobre conceitos teóricos que relatam o tema. Este procedimento, ainda, assumiu uma atitude exploratória de caráter analítico e interpretativo. Por meio desse procedimento, foi possível identificar, nos âmbitos quantitativo e qualitativo, a ascensão das mulheres na carreira dentro da ciência, da tecnologia e do trabalho, mas também a forte masculinização dos cursos de tecnologia, por meio dos princípios primordiais da divisão sexual do trabalho: o da separação entre trabalho e conhecimento de acordo com o sexo e a hierarquização, em que o trabalho realizado majoritariamente pelo homem possui maior valorização social e financeira.

Palavras-chave: trabalho; divisão sexual do trabalho; educação tecnológica

Abstract

The objective of the article is to identify the relationship between science, technology, and work within the scope of the Sexual Division of Labor, highlighting the implications of this relationship for the field of work and education. The methodological procedure adopted was bibliographic, which consisted of identifying data and information based on specialized literature on theoretical concepts that report the theme. This procedure also assumed an exploratory attitude of an analytical and interpretive character. Through this procedure, it was possible to identify, in the quantitative as in the qualitative scope, a number of women on the rise in the career within science, technology, and work, but also the strong masculinization of technology courses, through the primordial principles of the sexual division of the work: the separation between work and knowledge according to sex and the hierarchy, in which the work performed mostly by men has greater social and financial appreciation.

Keywords work; sexual division of labor; technological education

Resumen

El objetivo del artículo es identificar la relación entre ciencia, tecnología y trabajo en el ámbito de la División Sexual del Trabajo, destacando las implicaciones de esta relación para el campo del trabajo y la educación. El procedimiento metodológico adoptado fue el bibliográfico, que consistió en identificar datos e informaciones a partir de literatura especializada sobre conceptos teóricos que relatan el tema. Este procedimiento asumió también una actitud exploratoria de carácter analítico e interpretativo. A través de este procedimiento, fue posible identificar, en el ámbito cuantitativo como cualitativo, un número de mujeres en ascenso en la carrera dentro de la ciencia, la tecnología y el trabajo, pero también la fuerte masculinización de los cursos de tecnología, a través de los principios primordiales de la división sexual del trabajo: el de la separación entre trabajo y saber según sexo y jerarquía, en el que el trabajo realizado mayoritariamente por hombres tiene mayor valor social y económico.

Palabras clave: trabajo; división sexual del trabajo; educación tecnológica

1 INTRODUÇÃO

O objetivo do texto é identificar a relação entre a ciência, a tecnologia e o trabalho com a Divisão Sexual do Trabalho (DST), com destaque para as implicações dessa relação para os campos do trabalho e da educação. O assunto divisão sexual do trabalho e a sua integração com a dimensão sexuada nas análises do trabalho começou a ser estudado de forma mais sistematizada a partir do final dos anos 1960 e início dos anos de 1970, nos países capitalistas desenvolvidos, sob a força do movimento feminista (HIRATA; KERGOAT, 2008).

Uma das principais contribuições teóricas sobre o tema DST é, sem dúvida, de Helena Hirata (2007, 2022), que mais recentemente tem se dedicado à análise dos efeitos do processo de globalização e do emprego crescente de políticas neoliberais nos Estados, dentro dos sistemas de produção e sua organização. A autora tem pesquisas realizadas no Brasil, na França e no Japão e traça comparativos entre esses países nas interfaces gênero, classe e mundo do trabalho. Em suas pesquisas sobre DST, realizadas dentro de uma perspectiva de gênero, muda de maneira radical as condições de produção dos conhecimentos sobre o trabalho, esclarecendo que se deve partir de um conceito mais abrangente de trabalho, a começar por considerar os trabalhos: formal e informal, profissional e doméstico, remunerado e não remunerado. A necessidade de expandir o conceito de trabalho é por ela explicado:

Divisão sexual do trabalho tinha uma ambição maior que denunciar as desigualdades sob o impulso do movimento feminista, tratava-se nem mais nem menos de repensar o ‘trabalho’. O ponto de ancoragem dessa ambição era a ideia de que o trabalho doméstico era um ‘trabalho’ e que, portanto, a definição deste deveria obrigatoriamente incluir aquele. (HIRATA, 2007, p. 596).

Hirata e Kergoat (2007) esclarecem que existem duas formas de pensar e estudar a DST, que partem de distintas razões: uma que constata as desigualdades entre homens e mulheres e considera mais a influência do acúmulo dessas e outra que procura identificar onde se iniciam essas desigualdades, procurando compreender a natureza do sistema do qual se originam, identificando-se as autoras com esta última maneira, de associar a relação social de sexo às análises do trabalho.

No Brasil, Heleieth Saffioti (1976), desde a década de 1960, busca compreender a posição da mulher no capitalismo, bem como mostrar “vias de superação”; constata que o desenvolvimento econômico não acabará com a desigualdade entre homens e mulheres em relação aos postos de trabalho, pois, mesmo em sua forma mais avançada, as mulheres continuam marginalizadas ou incluídas de modo periférico.

2 AS RELAÇÕES SOCIAIS

Kergoat (2010), ao referir-se sobre a “Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais”, esclarece que a relação social é antagônica entre dois grupos sociais, instaurada em torno de uma disputa. Nessa relação, aponta uma interdependência das categorias sociais de sexo, raça e classe, que vai além do plano teórico, existindo também na realidade de movimentos sociais e de mulheres trabalhadoras. A autora analisa, então, dois importantes conceitos: o de consubstancialidade e o de coextensividade, por meio dos quais busca entender, mais profundamente, práticas sociais de homens e mulheres diante da divisão sexual do trabalho nas dimensões de classe, gênero e origem, chamando atenção para a natureza móvel e ambivalente dessas práticas. De acordo com a autora, a consubstancialidade implica uma forma de leitura da realidade social. É o entrecruzamento dinâmico e complexo do conjunto de relações sociais, cada uma imprimindo sua marca nas outras, ajustando-se às outras e construindo-se de maneira recíproca. No seu entendimento, não se trata de fazer um tour de todas as relações sociais envolvidas, mas de enxergar os entrecruzamentos e as interpenetrações que formam um “[...] nó no seio de uma individualidade ou grupo” (KERGOAT, 2010, p. 100).

Em um outro momento, Kergoat (2016), ao discutir sobre “O cuidado e a imbricação das relações sociais: a sociologia e natureza classes, raças e sexos”, sustenta que a consubstancialidade vai além de refletir sobre a dominação, isto é, nela estão presentes as relações de força, de resistência e de luta. Já a coextensividade é uma propriedade essencial da consubstancialidade e refere-se ao dinamismo das relações sociais e à percepção de que se produzem reciprocamente: “[...] a classe ao mesmo tempo cria e divide o gênero e a raça, o gênero cria e divide a classe e raça, a raça cria e divide o gênero e a classe” (KERGOAT, 2016, p. 24). A autora procura ilustrar o antagonismo da relação social, por meio da relação social de sexo, especificamente no mercado de trabalho, ao ressaltar que, concomitante ao progresso da mulher no mercado de trabalho, persiste-se a DST ou observa-se o recrudescimento dela; as segmentações, horizontais e verticais, através de empregos masculinos e femininos, mantêm-se. As desigualdades salariais permanecem e as mulheres continuam a ser as principais responsáveis pela realização dos trabalhos domésticos: “tudo muda, mas tudo permanece igual” (KERGOAT, 2010, p. 94). Tal paradoxo expõe a dificuldade de se considerar o emprego de categorias sociais de maneira isolada nos estudos em questão, não representando necessariamente uma contradição interna nas relações sociais de sexo, pois o capitalismo tem a necessidade de uma mão de obra flexível, para manter seu “equilíbrio”: a desobrigação masculina em realizar os serviços domésticos libera os homens para o mercado, por outro lado, as mulheres que ocupam postos de trabalho com melhor remuneração abrem espaço para que o trabalho doméstico seja realizado por outras mulheres (KERGOAT, 2010). Em continuidade à sua discussão sobre “Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais”, a autora chama atenção para dois níveis de realidade: o das relações intersubjetivas e o das relações sociais. As relações intersubjetivas se estabelecem entre indivíduos concretos, já as relações sociais são abstratas e confrontam grupos sociais em torno de uma disputa. No que tange às relações sociais de sexo, verifica-se que, se houve, ao longo do tempo, alterações nas relações intersubjetivas, o mesmo não se deu no âmbito das relações sociais que continuam a agir e se expressar nas formas convencionais de exploração, dominação e opressão exemplificadas por diferenças salariais, assim como maiores vulnerabilidade e probabilidade de a mulher sofrer violências. São, portanto, as práticas sociais que abrem possibilidades de mudanças no nível das relações sociais, não possuindo as relações intersubjetivas.

A fim de delinear uma solução para o desafio que se apresenta, o de não segregar as relações sociais, Kergoat (2010) elenca imperativos: o primeiro deles, materialista, recorda que as relações sociais não pertencem a uma única instância, por exemplo, as relações de classe não se inserem apenas na instância econômica. As relações sociais de gênero, “raça” e classe são denominadas relações de produção, possuindo cada um desses sistemas instâncias particulares, que exploram, dominam, oprimem e articulam entre si, sendo imprescindível investigar detalhadamente de que maneira se dá a apropriação do trabalho nas disputas (materiais e ideológicas) entre os grupos. O segundo imperativo é histórico: as relações sociais, por serem dinâmicas, devem ser historicizadas; em seguida, é importante definir quais são os aspectos invariantes das relações sociais. Usando como exemplo a DST, nota-se que, embora ela tenha configurações bastante instáveis no tempo e no espaço, há duas constantes: o princípio da separação e o princípio da hierarquia; o primeiro faz alusão à diferenciação entre os trabalhos feminino e masculino, já o segundo faz referência ao maior valor atribuído ao trabalho do homem.

Por fim, a autora acrescenta que a questão emancipatória feminina no campo das relações sociais é bastante complexa, pois, se existe um objetivo comum, este é sempre limitado às suas localizações temporal e espacial. Kergoat (2016) propõe um sujeito político que se sustenta em sua pluralidade intrínseca, que possibilite desenvolver a dialética entre o individual e o coletivo e, no caso das mulheres, ser capaz de associar consciência de gênero, classe e raça.

2.1 A relação histórica entre a mulher e o trabalho

Segundo as análises de Hirata (2002), ao discutir a relação histórica entre a mulher e o trabalho, o surgimento do taylorismo, em meados do século XX, apoiou-se, em grande parte, no trabalho das mulheres, por meio de características tidas como tipicamente femininas, como docilidade, subordinação etc., considerando-as mais responsáveis, meticulosas e experientes em trabalhos mecânicos e repetitivos, além de se submeterem a menores salários que os homens, em jornadas de trabalho opressoras e regulatórias no tempo, o que não seria garantido no caso de trabalhadores homens, tendo em vista o aspecto cultural vigente. Tais construções históricas levaram ao aprofundamento da DST tanto no mercado de trabalho como na sociedade. Já no Brasil foi possível identificar, no início do século XX, que a maioria das mulheres ocupava postos nas indústrias, em geral nos setores de fiação, tecelagem, calçado, vestuário, alimentação e com forte presença no mercado de costura. A mulher era empregada em algumas atividades industriais específicas, baseadas nos conceitos de feminino acima mencionados. Apesar do grande número de mulheres e crianças trabalhando nesse período, os movimentos operários, liderados por homens, reivindicavam a volta das mulheres ao lar. Tal fato também contribuiu para acentuar de maneira significativa a DST, marcada por assimetrias e hierarquizações com consequências que vão até os dias atuais, como a desqualificação, desvalorização e inferiorização da mulher no mundo do trabalho.

2.2 A divisão sexual do trabalho: França e Brasil

Na compreensão de Hirata (2003), quando discute a “Tecnologia, formação profissional e relações de gênero no trabalho”, a comparação internacional é importante na medida em que nos ajuda a entender a pluralidade de configuração no espaço da divisão sexual do trabalho, revelando a influência das instituições, bem como das conjunturas socioculturais locais.

Conforme analisam Hirata e Kergot (2008), ao se identificarem as “Novas configurações da divisão sexual do trabalho”, a conscientização das mulheres, de forma mais abrangente, se desmembra-se essencialmente de duas maneiras: a primeira é o reconhecimento de que realizam um trabalho que lhes é incumbido de tal forma que pareça natural sua atribuição somente às mulheres; a segunda é de que esse trabalho que realizam na esfera doméstica é “invisível” e, portanto, não reconhecido como tal. Posteriormente, este estudo passa a um nível de análise mais abrangente, que é o de conceituar tal relação social, frequente entre os grupos de homens e mulheres, o que deu origem ao que os franceses denominam de “relações sociais de sexo”, observando que, na França, tal teorização é inerente ao conceito de DST.

Kergoat (2009) destaca, em “Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo”, que a forma da divisão social do trabalho advinda das relações sociais de sexo, caracterizada por priorizar os homens na esfera produtiva, bem como as mulheres na esfera reprodutiva, concomitantemente destina os homens às funções socialmente mais valorizadas, como as políticas, religiosas, militares etc. Os princípios que norteiam essa forma específica de divisão social do trabalho, que são o da separação e o da hierarquização, são reconhecidos, no tempo e no espaço, em todas as sociedades; no entanto, isso não significa que a DST seja imutável, o que se mostra insuperável é a desigualdade entre homens e mulheres.

Hirata e Kergoat (2007) esclarecem que o termo Divisão Sexual do Trabalho (DST) é empregado na França com duas diferentes interpretações, a sociográfica, que prioriza a constatação das desigualdades, e outra que, além de apontar as diferenças, procura estabelecer a origem dessas. A acepção sociográfica relaciona-se ao estudo da distribuição distinta entre os sexos no mercado de trabalho, nas ocupações e profissões e como esta varia no tempo e no espaço. Isso possibilita traçar um paralelo dessa distribuição com a divisão desigual entre homens e mulheres no trabalho doméstico.

A sociedade francesa, como mostra Hirata e Kergoat (2008), pratica uma distribuição extremamente desigual do trabalho doméstico, a prática do modelo da “delegação”, em que as mulheres cujas atividades gozam de maior prestígio podem externalizar os trabalhos domésticos, por meio da utilização da mão de obra de mulheres precárias (francesas ou imigrantes). A adoção desse modelo é amparada por um conjunto de políticas públicas destinadas, em grande parte, a facilitar a articulação entre trabalho e vida familiar. Elas acabam por afastar, uma vez mais, os homens das questões domésticas e acentuam as desigualdades de classes entre as mulheres.

A comparação em nível internacional realizada por Hirata e Kergoat (2008) permite perceber que mais significativos que os atores institucionais e as políticas públicas são os pesos das relações, práticas e normas sociais. Na França, a norma social do emprego por tempo integral impõe a prática do modelo “delegação”. No Brasil, tal norma social está também instituída para as mulheres que têm emprego em profissões mais intelectualizadas, restando às que pertencem à classe operária a ocupação de empregos precários, adotando preferencialmente o modelo de conciliação, o qual conta, na esfera doméstica, com uma ampla rede de solidariedade, que inclui familiares, amigos, vizinhos etc.

Hirata e Kergoat (2008), em sua análise comparativa entre Brasil e França, salientam que, diferentemente do que ocorre na França, no Brasil, existe uma grande polarização entre as classes sociais. Outro importante fator de diferenciação é que, no Brasil, parcela considerável das mulheres economicamente ativas está empregada como doméstica; estas mulheres, por sua vez, são, em sua maioria, negras e com baixo grau de escolaridade. Além disso, deve-se considerar que a França possui modelo social mais avançado quando comparado à maior parte dos países, incluindo o Brasil.

No Brasil, a atividade doméstica alcançou status de profissão apenas recentemente, com a emenda n. 72, aprovada em 2013 e regulamentada pela Lei Complementar n. 150/15, de 1º de junho de 2015, que dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico e que assegura aos trabalhadores domésticos registro em carteira e direitos trabalhistas de acordo com nossa legislação (BRASIL, 2015).

Nas camadas mais humildes da população, é comum que as mulheres exerçam atividades informais, os “bicos”, acumulando atividades precárias, intermitentes e mal remuneradas, frequentemente empreendidas no lar, além do trabalho doméstico e responsabilidade com os filhos. O modelo de “conciliação”, que designa quase que exclusivamente à mulher o papel de conciliadora, dá-se, em geral, no âmbito informal.

Quando são consideradas as articulações entre as vidas familiar e profissional, reconhece-se que, tanto no Brasil como na França, houve uma evolução em suas modalidades, convertida em um aumento da atividade assalariada das mulheres; porém, esse desenvolvimento se distinguiu, em grande parte, pelas características dos agentes institucionais: na França, as políticas públicas seguem as políticas públicas europeias de “gender mainstreaming”, ou seja, incorporam a questão do gênero e incrementam ações cujo objetivo é facilitar a conciliação das atividades domésticas e profissionais, especialmente para as mulheres, já no Brasil tais políticas “stricto sensu” não se manifestam de maneira clara.

Na análise de Serra (2005), sobre “La gestión transversal, expectativas y resultados”, o autor esclarece que o “gender mainstreaming” ou a perspectiva transversal de gênero se ampliou ao ser utilizado como mecanismo de implementação de políticas públicas no início dos anos 1990, na Suécia, no marco de articulação da política para promoção da igualdade de gênero, e se globalizou por ocasião da IV Conferência Mundial sobre a mulher, em Beijing, China (1995), sob o tema “Ação para a igualdade, o desenvolvimento e a paz”.

No entendimento de Wohnlich (2013), que analisa a inclusão do “gender mainstreaming” no contexto brasileiro, a transversalidade atua como um regime sistematizado da inserção da perspectiva de gênero, na criação, implementação e avaliação de políticas públicas, e pode ser considerado um instrumento que viabiliza ações conjuntas nas diversas instituições do Estado, a fim de que as políticas públicas alcancem seus objetivos. A criação da Secretaria de Políticas para Mulheres (PNPM) em 2003 pode ser considerada o marco da institucionalização do “gender mainstreaming” no país.

2.3 A divisão sexual do trabalho na ciência, na tecnologia e na educação

A discussão acerca da necessidade do aumento da presença das mulheres na área de Ciência e Tecnologia (C&T), a partir da década de 1980, esteve presente nos fóruns internacionais. Tabak (2002) recorda que foram marcantes as iniciativas da ONU, com o Plano Decenal de Ação, as já citadas conferências mundiais sobre a mulher, em Nairobi e Beijing, onde foi defendida a maior participação feminina na produção de riquezas na sociedade (1985) e foram definidos o conceito de gênero para a agenda internacional e a transversalidade das políticas públicas com a perspectiva de gênero, o “gender maistreaming” (1995), além da participação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que realiza vários encontros e seminários em âmbitos regional e internacional e patrocina estudos e pesquisas sobre o tema em todo o mundo. Tabak (2002) ressalta ainda que Unesco abriu discussão sobre a formação de recursos humanos exigidos no intuito de acelerar o desenvolvimento dos países periféricos na área de C&T. De acordo com essa organização, o desenvolvimento da C&T nos países está atrelado ao aproveitamento de todos seus recursos humanos para compor a massa crítica da comunidade produtiva. Destaca ainda o autor que pesquisas realizadas com o apoio da UNESCO, a partir da década de 1960, mostram que milhões de mulheres não tiveram a chance de colocar em prática seu talento, sua criatividade e competência profissional e, dessa maneira, não puderam participar, por falta de qualificação, do processo de desenvolvimento e crescimento de seus países no campo da C&T; a ciência se sustentou, assim, em bases quase que estritamente masculinas, provocando um grande desperdício de potencial humano, e a construção do conhecimento científico se viu marcada pelo viés androcêntrico.

A Academia de Ciências do Terceiro Mundo (Third World Academy of Science [TWAS]), criada em 1983 e atualmente denominada Academia Mundial de Ciências para o avanço da ciência em países em desenvolvimento, é uma das mais importantes organizações associadas à UNESCO, e sua missão é impulsionar o desenvolvimento da C&T nos países terceiro-mundistas, tendo como membros os melhores cientistas desses países - Índia, Brasil, China, África, Caribe, entre outros.

A UNESCO defende que a ciência e a igualdade de gênero são primordiais para um desenvolvimento sustentável, com progressos desde os sistemas de saúde até o aperfeiçoamento nos sistemas de redução de desastres naturais, que devem contar com a diversidade na pesquisa para que se tenha um grupo expandido de pesquisadores que possam introduzir novas perspectivas:

A igualdade de gênero deve ser considerada um meio fundamental para promover a excelência científica e tecnológica. Na verdade, o potencial inexplorado de meninas e mulheres brilhantes interessadas em ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Science, Technology, Engineering and Mathematics - STEM), mas que optam por não estudar ou seguir carreiras nesses campos devidos a vários obstáculos que enfrentam, representa uma oportunidade perdida, tanto para as próprias mulheres como para a sociedade como um todo. (UNESCO, 2019, s.p.).

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), outro organismo internacional encarregado de acompanhar e encorajar o desenvolvimento, aponta para a urgência de tratar do assunto também pelo viés econômico, tendo em vista que os indicadores de educação articulam-se cada vez mais aos de desenvolvimento nos países (OCDE, 2005 apud OLINTO, 2011, p. 68): “Deixar as mulheres para trás significa não somente desprezar as importantes contribuições que as mulheres trazem para a economia, mas também desperdiçar anos de investimento em educação de meninas e jovens mulheres”.

Marasciulo (2019) destaca uma outra iniciativa da ONU, que foi a de estabelecer o dia 11 de fevereiro como o dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, data celebrada desde 2015, com objetivo de lembrar as realizações das mulheres na ciência e estimular as novas gerações a almejar a carreira científica. O tema de 2019 foi “Investimento em Mulheres e Meninas na Ciência para Crescimento Sustentável Inclusivo”. A data foi definida em fórum sobre saúde feminina e desenvolvimento, organizado pela ONU em parceria com a ONG Royal Academy os Science International Trust (RASIT), que, desde sua criação, há 50 anos, apoiou a formação de aproximadamente 21,5 mil estudantes, dos quais cerca de 50% eram do sexo feminino.

A atual diretora-executiva da RASIT ressalta que há 25 anos a ONU tem alertado a comunidade internacional sobre as consequências da desigualdade de gênero nas ciências. Como resultado de suas ações, esta questão tem se tornado uma prioridade em várias instâncias internacionais. Cabe lembrar que, em 2015, a ONU estabeleceu 17 objetivos (agenda para até 2030), conhecidos como Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) (ONU, 2015), baseados nos oito objetivos de desenvolvimento do milênio (estipulados em 2000). O quinto desses objetivos se refere especificamente à igualdade de gênero: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. A força-tarefa do sistema ONU no Brasil (2016) produziu um glossário de termos que visa mostrar os conceitos acordados internacionalmente e, também, os particularmente relacionados à realidade brasileira. Na expressão “empoderamento das mulheres”, destaca-se a relevância de as mulheres conseguirem gerenciar seu próprio desenvolvimento, com o apoio da sociedade e do Estado, de maneira que a elas se proporcione a oportunidade de alcançarem seu pleno potencial no convívio social e, ainda, de planejarem suas próprias vidas. Enfatiza-se a igualdade em seus diversos níveis, abrangendo o da Ciência e Tecnologia, a sua presença em processos decisórios, acesso ao poder e a importância da implantação de políticas públicas e programas com a perspectiva de gênero.

Para Tabak (2002), o papel da Ciência e da Tecnologia como impulsionadoras do desenvolvimento sustentável assume um caráter de urgência e relevância a partir das últimas décadas do século XX. Nações do Terceiro Mundo como o Brasil, cujo desenvolvimento tecnológico é insuficiente, de pouca tradição científica, com economias fortemente sustentadas na utilização de tecnologia importada, caracterizando, desta maneira, dependência tecnológica e, concomitantemente, questões sociais e econômicas complexas, mostram preocupação em elevar a quantidade de massa crítica, no intuito de ampliar o conhecimento científico, avançar tecnologicamente e procurar saídas alternativas para seus problemas sociais e econômicos. A autora afirma que o Brasil, bem como a maioria dos países, apresenta grande desequilíbrio na proporção entre homens e mulheres distribuídos nas principais áreas de conhecimento humano. Observa-se que, apesar do significativo incremento de mulheres dentro das universidades nas últimas décadas do século XX, as jovens continuam a privilegiar os já “tradicionais” cursos nas áreas de ciências sociais e humanas; além disso, embora se verifiquem grandes mudanças comportamentais ao longo do século, os estereótipos sexuais ainda se fazem presentes na educação. Ressalta ainda a autora que, no Brasil, não se verificam ações intencionais e sistemáticas visando ampliar a presença feminina no quadro de pesquisadores que atuam em áreas que sustentam o desenvolvimento científico e tecnológico.

Existe, também, a importante questão levantada por Tabak (2002), apoiada em Bernal, sobre o “apoio” oferecido pelos países desenvolvidos aos periféricos, no que se refere à ajuda científica:

[...] apresenta problemas semelhantes aos da ajuda econômica. Ambas podem aparentemente promover vantagens imediatas aos cientistas e à economia dos países em desenvolvimento, mas e se esta ajuda tem um lado oposto, o de empobrecer o país, ao invés de ajudá-lo, o de extrair do país não somente seus recursos materiais, mas seus recursos humanos e intelectuais? (BERNAL, 1965 apud TABAK, 2002, p. 21).

Tabak (2002) destaca que Bernal refletiu também que, neste mundo, o da grande ciência, é primordial pensar sobre a utilização da pesquisa científica nos países subdesenvolvidos, pois, além da preocupação com a política científica por ela afetada e das carreiras científicas individuais de seus pesquisadores, existe, acima de tudo, uma questão de princípio, que é a “ciência para o homem” em lugar de “o homem para a ciência”. A autora reafirma a capacidade da ciência em conferir aos povos de países subdesenvolvidos um desenvolvimento material e cultural em um prazo relativamente curto, ideia que nos remete à função social da ciência.

Hoyos (2002), presidenta-executiva de Maloka (um dos principais museus de ciência e tecnologia interativa da América Latina), alerta para a necessária apropriação social da Ciência e Tecnologia nos países subdesenvolvidos, que devem se libertar da crença de ser esta uma exclusividade dos países de primeiro mundo e entender que sua sobrevivência no século XXI depende de um real desenvolvimento científico e tecnológico, construído nas bases de políticas de longo prazo. A autora entende ainda que essa apropriação necessita avançar para além da popularização da ciência, o conceito deve incluir a difusão do conhecimento científico entre a população, bem como propostas para que esta possa desfrutar dos benefícios da C&T. Dessa maneira, a apropriação social da C&T não se estabelece como um processo meramente informativo e demanda a utilização de recursos adequados para a integração da C&T no cotidiano dessas sociedades. Na compreensão da autora, o processo de apropriação social da C&T compreende necessariamente as classes política, empresarial e um grande envolvimento da área educacional, para que, além de possibilitar o desenvolvimento de empresas de alta tecnologia, possa trazer à sociedade benefícios com o uso de tecnologias avançadas como as de informação, saúde e preservação do meio ambiente. A autora acredita que existe uma estreita relação entre o atraso científico e tecnológico nos países subdesenvolvidos, com a situação de desigualdade entre homens e mulheres nesses países:

O subdesenvolvimento científico e tecnológico, especialmente na América Latina, está diretamente relacionado à submissão educacional da mulher nessa região, e à excessiva importância das decisões masculinas, que não refletem necessariamente qualquer capacidade intelectual superior. (HOYOS, 1999 apud TABAK, 2002, p. 34).

Olinto (2011), em seu artigo “A inclusão das mulheres nas carreiras de ciência e tecnologia no Brasil”, reforça a ideia de que a capacidade intelectual científica é equivalente em homens e mulheres, já que pesquisas apontam que o desempenho das meninas em ciência equipara-se ao dos garotos. O relatório da OCDE, correspondente à educação, reafirma o entendimento da igualdade de gênero na performance escolar, os parâmetros que dão suporte a tal entendimento podem ser atestados em diversos países-membros, dentre os quais, o Brasil e a França. O relatório evidencia também a segregação horizontal em relação à escolha da carreira, ainda muito cedo (em jovens de aprox. 15 anos): apesar da grande disposição em prosseguir os estudos, é elevado o número de garotas que abraçam áreas consagradas femininas, como a área da saúde, sendo o Brasil apontado como líder nesta preferência, com índice de 30%. De outro lado, os garotos continuam a optar preferencialmente pelas áreas percebidas como masculinas, como as de engenharia e computação. Um aspecto inquietante a respeito da escolha da carreira é a continuidade, ao longo do tempo, da predominância de escolhas baseadas em carreiras típicas de gênero, sendo observado até mesmo um decréscimo da presença feminina nas carreiras ligadas à informática, enquanto se verifica, concomitantemente, uma feminização acentuada em áreas como as da saúde.

Carvalho (2011), em “Ciência, tecnologia e gênero: abordagens ibero-americanas”, relembra que, historicamente, durante os séculos XVI e XVII, o campo científico esteve sob o domínio masculino quase que exclusivamente; deste modo, o universo por ele construído se alicerçou sob normas e códigos androcêntricos e patriarcais, tendo como características primordiais a racionalidade e a objetividade, que não condiziam com as qualidades supostamente femininas. A autora argumenta ainda que, mesmo após a Revolução Industrial, consolidada no final do século XIX, verifica-se que as mulheres não participaram das descobertas tecnológicas utilizadas para aumento da produtividade e consequente acúmulo de riquezas exigidos pelo capitalismo: as que trabalhavam nas indústrias eram as operárias que apenas manejavam o maquinário. O conhecimento tecnológico por elas produzidos na esfera privada não era considerado científico e, não sendo produtivo sob o ponto de vista capitalista, era desvalorizado. Estabelece-se, assim, a hegemonia masculina na Ciência e Tecnologia. Na sociedade ocidental, a construção social de gênero se fez de maneira binária e dicotômica: enquanto os padrões femininos assimilados foram de delicadeza, afetividade e conhecimento tácito-científico, que servem à esfera privada, os masculinos foram apreendidos com características opostas, como agressividade, força física, racionalidade e objetividade, que se conciliam com a construção do mundo tecnológico e se fazem presentes na esfera pública. Independentemente de como se comportam, é fato que as mulheres vêm ampliando sua participação na área de Ciência e Tecnologia, dentro das universidades e dos centros de pesquisa, sem, contudo, compartilhar, de forma igualitária, suas responsabilidades na esfera privada, com os homens.

A lei brasileira também estimula ser a mulher a figura central no cuidado com os filhos, por meio da desproporção dos períodos de licença-maternidade e maternidade, pressupondo e mantendo a escassa presença masculina nessa empreitada. As mulheres representam 57% do total de matriculados na graduação em nosso país, segundo o Censo da Educação Superior de 2016 (INEP, 2018). Na análise de grupos de pesquisa do CNPq, também de 2016, verifica-se que representam metade dos pesquisadores cadastrados, havendo um crescimento significativo em relação aos números de 1995, em que as mulheres eram 39% do total. A condição de liderança nos grupos de pesquisadores também foi alterada: em 1995, as mulheres correspondiam a 34% do total de líderes; em 2016, este número chegou a 46%.

Cabral (2006), em “Pelas telas, pela janela: o conhecimento dialogicamente situado”, salienta, contudo, que o espaço de poder permanece hegemonicamente masculino no Sistema de Ciência e Tecnologia: os mais altos cargos, como o de reitores, vice-reitores, assessorias do Ministério da Educação, CNPq , CAPES e cargos de decisão em demais instituições e diversas esferas do sistema, continuam a ser ocupados por homens, mesmo em áreas em que a presença feminina supera a masculina, como é o caso das ciências humanas. O poder não se encontra majoritariamente com as mulheres. A autora destaca também que, em áreas como da Física, Engenharia, Ciências da Computação, ou seja, carreiras ligadas à tecnologia, o avanço da igualdade de gênero ainda se depara com vários obstáculos, diferentemente das carreiras ligadas à Medicina e Biologia, em que a feminização ganhou não apenas em número, mas também em espaço e status. Apesar disso, como salienta Olinto (2011), o aspecto vertical da discriminação das mulheres em sua vida profissional existe mesmo em áreas da ciência em que se verifica a predominância delas: a igualdade de gênero decresce à medida que se consideram postos de trabalhos mais elevados. Apesar das mulheres, como já mencionado, representarem a maior parte dos estudantes no nível universitário há mais de duas décadas, com aumento da participação feminina em todos os estágios do ensino superior, não se constata a paridade de gênero nas diversas áreas.

Constatamos, por meio dos últimos dados apresentados pelo CNPq que localizam as mulheres nas grandes áreas de conhecimento, relativos ao ano de 2014, que a presença delas é consideravelmente inferior na grande área da Engenharia e Ciência da Computação, apontada como a área mais masculina da pesquisa brasileira. Embora o total de bolsas seja igualmente distribuído entre os sexos no Brasil, os dados revelam que, nas áreas das Engenharias e das Ciências Exatas, apenas 40% e 35% das bolsas, respectivamente, foram destinadas às mulheres, em contraposição aos 68% das bolsas para as mulheres na grande área da Saúde; tal distribuição de bolsas no exterior é bastante similar. Além dessas diferenças, há uma desigual distribuição nas modalidades de bolsas concedidas; a modalidade PQ (produtividade em pesquisa), em especial, conta com aproximadamente 60% de presença masculina. Tal modalidade possui uma ordem hierárquica, com cinco níveis de diferenciação que valorizam critérios específicos de desempenho, entre eles, a produção do pesquisador, com destaque para trabalhos publicados, orientações e experiência em cargos de liderança acadêmica. Tais dados confirmam as segregações horizontal e vertical na concessão de bolsas.

Segundo Olinto (2011), também podemos caracterizar o perfil de gênero entre as profissões que apoiam a ciência, que são, de acordo com o Recursos Humanos em Ciência e Tecnologia (RHCT), as que fazem parte das chamadas ciências duras (físicos, matemáticos e engenheiros), os cientistas das áreas da vida e saúde e demais profissionais, como professores e técnicos, que também estão associados às ciências duras ou da vida. A autora observa, ainda, que, também neste grupo, as mulheres representam a maioria desde 2007; no entanto, verifica-se grande disparidade de gênero na distribuição por sexo nas profissões das ciências “duras” e da saúde, tanto nos profissionais de nível universitário como nos de nível técnico. O que se constata são os dois extremos: a dominação masculina na área das ciências exatas e alta feminização nas ciências da vida, o que indica um avanço restrito das mulheres brasileiras na área das ciências e que não difere, neste sentido, do cenário internacional.

No que se refere à luta por equidade salarial entre gêneros, as diferenças de remuneração entre mulheres e homens vêm decrescendo. Conforme dados do IBGE (2018), o salário médio das mulheres corresponde a 79,5% do salário masculino. Dentre os motivos apontados para esta desigualdade, está o fato de que considerável parte das mulheres trabalha menos horas semanais, o que retrata sua dupla jornada de trabalho.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo teve como objetivo, em um primeiro momento, identificar algumas teorias que abordam a Divisão Sexual do Trabalho (DST) e de que maneira essas podem ser relacionadas com o tema proposto. Nesse sentido, foi possível identificar, primeiramente, a integração da dimensão sexuada nas análises do trabalho, que começou a ser estudada de forma mais aprofundada a partir do final dos anos 1960 e início dos anos de 1970, nos países capitalistas desenvolvidos, sob a força do movimento feminista. Sobre as relações sociais, foi constatado que o processo de emancipação feminina é complexo e que, embora exista um objetivo comum nesse processo, este é sempre limitado às suas localizações temporal e espacial. Nesse sentido, é possível propor um sujeito político que se sustenta em sua pluralidade intrínseca, que possibilite desenvolver a dialética entre o individual e o coletivo e, no caso das mulheres, de ser capaz de associar consciência de gênero, classe e raça.

Sobre a divisão sexual do trabalho, tanto na França como no Brasil, existem consideráveis articulações entre as vidas familiar e profissional. Tanto no Brasil como na França, há ocorrências no aumento da atividade assalariada das mulheres, com distinção entre os países. Na França, as políticas públicas seguem as políticas públicas europeias de “gender mainstreaming”, ou seja, incorporam a questão do gênero e incrementam ações cujo objetivo é facilitar a conciliação das atividades domésticas e profissionais, especialmente para as mulheres, já no Brasil tais políticas “stricto sensu” não se manifestam de maneira clara.

No tocante à divisão sexual do trabalho no âmbito da ciência, da tecnologia e da educação, foi constatado que as mulheres, em algumas áreas de conhecimento, estão em menor número na grande área da Engenharia e Ciência da Computação. Outro aspecto identificado por meio de dados foi de que, embora as bolsas de estudo sejam, no total, igualmente distribuídas entre os sexos no Brasil, a distribuição é desigual nas áreas das Engenharias e das Ciências Exatas, com maior número de bolsas concedidas aos homens. Sobre a caracterização do perfil de gêneros, essa foi feita entre as profissões que apoiam a ciência fazendo parte das chamadas ciências duras (físicos, matemáticos e engenheiros) e os cientistas das áreas da vida e saúde e demais profissionais dessa área. Verificou-se que, no grupo associado às ciências da vida, as mulheres representam a maioria desde 2007, havendo ainda grande disparidade de gênero na distribuição por sexo nas profissões das ciências “duras” e da saúde, tanto nos profissionais de nível universitário (os chamados “profissionais”) como nos de nível técnico.

Por fim, a diferença salarial entre mulheres e homens vem decrescendo. Um dos motivos da manutenção da desigualdade está no fato de que considerável parte das mulheres trabalha menos horas semanais, o que retrata sua dupla jornada de trabalho. Ainda que nos dados gerais a respeito do crescimento da presença feminina nas universidades tenha surgido uma igualdade de gênero dentro dessas, há muito que se avançar quando verificamos a baixa proporção de mulheres em profissões marcadas pelo domínio masculino, como é o caso dos cursos de tecnologia, em sua maioria. O texto mostrou, ainda, que a permanência de distinções entre os sexos é uma questão global. A ciência não é neutra como se faz crer e está fortemente alicerçada sobre valores masculinos. As diferenças nas escolhas da profissão baseadas em gênero refletem-se no mercado de trabalho e têm como uma das consequências a diferenciação nos rendimentos de mulheres e homens. O aproveitamento de talentos femininos nas áreas da Ciência e Tecnologia também significam mais oportunidades de avanços científicos, tecnológicos, que podem ser de suma importância para o desenvolvimento social dos países considerados periféricos.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 22 de Fevereiro de 2023; Aceito: 11 de Abril de 2023

Jefferson Carriello do Carmo: Pós-Doutora em História Social do trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Doutor em Educação pela UNICAMP. Mestre em Educação pela UNICAMP. Licenciado em Pedagogia pelas Faculdades Integradas Dom Aguirre. Atualmente, é professor titular e pesquisador do Programa Pós-Graduação Mestrado e Doutorado da Universidade de Sorocaba (UNISO). Editor da Revista Quaestio. Coordena o Grupo de Pesquisa Instituições Escolares: História, Trabalho e Políticas de Educação Profissional (HISTPEP/CNPq). Tem experiência na área de Educação e Trabalho, atuando nos seguintes temas: Estado e Política Educacional, Ensino Médio Integrado, Ensino Profissional e Tecnológico, Políticas de Formação, Trabalho Docente e Antonio Gramsci. E-mail:jeffccprof@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-6816-5667

Helena Setsuko Del Mastro Espíndola: Mestre em Educação pela Universidade de Sorocaba (UNISO). Professora da Faculdade de Tecnologia de Sorocaba (FATEC). É membra do Grupo de Pesquisa Instituições Escolares: História, Trabalho e Políticas de Educação Profissional (HISTPEP/CNPq). E-mail:hdespindolas@gmail.com, Orcid:https://orcid.org/0000-0002-9615-5917

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