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Série-Estudos

versão impressa ISSN 1414-5138versão On-line ISSN 2318-1982

Sér.-Estud. vol.28 no.63 Campo Grande maio/ago 2023  Epub 21-Ago-2023

https://doi.org/10.20435/serieestudos.v28i63.1694 

Artigo

Cidade educativa e currículo na perspectiva decolonial

Educational city and curriculum in the decolonial perspective

Ciudad educativa y currículum en la perspectiva decolonial

Renata Sieiro Fernandes1 
http://orcid.org/0000-0003-2759-143X

1Prefeitura Municipal de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil


Resumo

Este artigo tem como proposta apresentar possíveis articulações entre a ideia da Cidade Educativa e currículos outros sob a perspectiva decolonial. O objetivo aqui é pensar os modos pelos quais a cidade educa e os sujeitos e grupos aprendem, por meio de processos culturais e práticas educativas construídas nas instituições educativas ou potencialmente educativas e fora delas, estabelecendo diálogos e relações com o currículo escolar. Deste modo, articular saberes e fazeres que colaborem para o enfrentamento e possível superação dos pilares da Modernidade/Colonialidade. A estratégia de mapeamento do que existe na cidade em termos de coletivos, equipamentos, instituições formais e não formais que desenvolvam práticas educativas e processos culturais articulados ao gênero, raça e classe, constitui um modo de fazer um levantamento que possa servir como espaços-tempos de luta, resistência e invenção. O referencial de ancoragem conta com autores/as da Educação e da perspectiva decolonial, como Trilla, Palhares, Dussel, Mignolo, Ballestrin, entre outros/as. Espera-se poder articular processos culturais e práticas educativas e que os resultados analisados colaborem para constituir a ideia da Cidade Educativa sob a perspectiva decolonial, que aponte possibilidades de enfrentamento de formas de poder calcadas no machismo, no sexismo e no classismo e modos outros de formação de sujeitos e construção de identidades.

Palavras-chave cidade educativa; decolonialidade; currículo

Summary

This article proposes to present possible articulations between the idea of the Educational City and other curricula from a decolonial perspective. The objective here is to think about how the city educates and the subjects and groups learn, through cultural processes and educational practices built in educational or potentially educational institutions and outside them, establishing dialogues and relationships with the school curriculum. In this way, to articulate knowledge and actions that collaborate to face and possible overcome the pillars of Modernity/Coloniality. The strategy of mapping what exists in the city in terms of collectives, equipment, formal and non-formal institutions that develop educational practices and cultural processes articulated to gender, race, and class, constitutes a way of making a survey that can serve as spaces-times of struggle, resistance, and invention. The anchoring framework has authors from Education and the decolonial perspective, such as Trilla, Palhares, Dussel, Mignolo, Ballestrin, among others. It is expected to be able to articulate cultural processes and educational practices and that the analyzed results collaborate to constitute the idea of the Educative City from a decolonial perspective, which points to possibilities of confronting forms of power based on misogyny, sexism and classism, and other ways of formation of subjects and construction of identities.

Keywords: educational city; decoloniality; curriculum

Resumen

Este artículo se propone presentar posibles articulaciones entre la idea de Ciudad Educadora y otros currículos desde una perspectiva decolonial. El objetivo aquí es pensar las formas en que la ciudad educa y los sujetos y grupos aprenden, a través de procesos culturales y prácticas educativas construidas en las instituciones educativas o potencialmente educativas y fuera de ellas, estableciendo diálogos y relaciones con el currículo escolar. De esta forma, articular saberes y acciones que colaboren para enfrentar y posiblemente superar los pilares de la Modernidad/Colonialidad. La estrategia de mapear lo existente en la ciudad en cuanto a colectivos, equipamientos, instituciones formales y no formales que desarrollan prácticas educativas y procesos culturales articulados al género, raza y clase, constituye una forma de hacer un relevamiento que puede servir como espacios-tiempos de lucha, resistencia e invención. El marco de anclaje cuenta con autores/as de la Educación y de la perspectiva decolonial, como Trilla, Palhares, Dussel, Mignolo, Ballestrin, entre otros/as. Se espera poder articular procesos culturales y prácticas educativas y que los resultados analizados colaboren para constituir la idea de Ciudad Educativa desde una perspectiva decolonial, que apunta posibilidades de confrontar formas de poder basadas en el machismo, el sexismo y el clasismo y otras maneras de formación de sujetos y construcción de identidades.

Palabras clave: ciudad educativa; decolonialidad; currículum

1 INTRODUÇÃO

Pensar, fazer e falar de educação implica assumir um campo teórico e prático que existe desde a Modernidade e que tampouco é sinônimo de escola. Como diz Brandão (2007, p. 13), educação acontece onde não existe essa instituição responsável por promover ensino. A educação implica socialização e trocas culturais e simbólicas dentro de processos grupais, sem preocupações de formalizações, por meio de situações e experiências que educam.

Educar, assim como qualquer ato humano e coletivo, é um ato político, que se dá no meio de uma cultura - cultura se dá a partir de uma rede de relações que se mantém ou se modifica - e de grupos sociais. Acontece por meio de práticas e processos que se vinculam e tomam forma a partir dos projetos societários imaginados e construídos. Neste sentido, tais projetos respondem e correspondem aos aspectos de seu tempo, ligando-se a preocupações e intenções mantenedoras e reformistas ou transformadoras e superadoras do status quo.

Essas práticas e processos educativos acontecem no exercício cotidiano, por meio de instituições, de coletivos, de grupos, em narrativas e discursos, em programas políticos, em tensões e relações de jogos de poder, em virtude de vivermos num contexto classista, racista, sexista, heteronormativo - pilares da Modernidade/Colonialidade2 (BALLESTRIN, 2013) -, que necessita ser combatido e superado nos tempos e espaços (DUSSEL, 2005; MIGNOLO, 2008).

A colonialidade é entendida como uma lógica que opera ainda hoje, nos moldes das opressões, discriminações e violências provocadas pela colonização, sustentada por processos culturais e um projeto societário que reforça o status quo.

A colonialidade não é o mesmo que colonialismo, já que este implica uma condição jurídica e política de um país imperialista sobre outros países e territórios postos em situação de subordinação em âmbito global. A colonialidade refere-se a um padrão de poder estabelecido na situação e no momento de dominação coloniais, gerando desigualdades, e que perdura histórica e culturalmente nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva.

A abordagem decolonial se apresenta como o

[...] pensamento do Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C), constituído no final dos anos 1990. Formado por intelectuais latino-americanos situados em diversas universidades das Américas, o coletivo realizou um movimento epistemológico fundamental para a renovação crítica e utópica das ciências sociais na América Latina no século XXI: a radicalização do argumento pós-colonial no continente por meio da noção de “giro decolonial”. Assumindo uma miríade ampla de influências teóricas, o M/C atualiza a tradição crítica de pensamento latino-americano, oferece releituras históricas e problematiza velhas e novas questões para o continente. Defende a “opção decolonial” - epistêmica, teórica e política - para compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva. (BALLESTRIN, 2013, p. 89).

A educação compromete-se com a diversidade de modos de pensar, ser, existir; em torno desta proposta, faz circular os conhecimentos já produzidos e possibilita criar condições para que novos conhecimentos sejam produzidos em todas as áreas. O que transforma a educação é o acesso e a produção de conhecimento por todos, na diversidade, sem a instauração de modos e pensamentos hegemônicos e homogêneo, com o compromisso e a responsabilidade com todas as formas de vida e, portanto, do planeta.

É por meio dela que se pode fazer o enfrentamento e a superação do racismo, do classismo, do sexismo e criar condições de vida em alinhamento com o planeta. A educação permite nos voltarmos para outras epistemologias deixadas de lado ou soterradas, que harmonizam todas as formas de vida, comprometendo-se tanto com a reflexão crítica quanto com a ação urgente e necessária nas salas de aula, nos espaços da cidade, nos coletivos e onde as pessoas estão.

2 PROCESSOS CULTURAIS E PRÁTICAS EDUCATIVAS

Educar, pensando com Charlot (2000), envolve um triplo processo: humanização, socialização e singularização. Humanização, porque introduz o sujeito no universo dos signos, dos símbolos, da construção de sentidos; socialização, porque permite o acesso à cultura do grupo social a que pertence, demarcada por um tempo histórico. E singularização, porque os indivíduos se constroem como sujeitos, na medida em que se apropriam desse patrimônio, estabelecem relações sociais, constituem sua própria cultura e história, imprimindo sentido aos acontecimentos. Esse processo se dá numa “pluralidade construtiva”, e não numa linearidade dedutiva.

Nas palavras do autor,

[...] um processo é “o que acontece” quando, numa determinada situação, um indivíduo, uma instituição, um sistema se transformam, sem que essa transformação resulte de uma situação causal linear, cujo efeito poderia ser visto a priori. Um processo produz, no tempo, um estado que pode ocorrer, sem que, entretanto, seja necessário, um processo que é possível, mas não inelutável: a qualquer momento, o processo pode parar, bifurcar, se inverter. Compreender um processo, é compreender que uma transformação não é o efeito de um determinismo nem de um imprevisto. (CHARLOT, 1996, p. 51).

Meirieu (1998, p. 70) entende a educação como a apresentação e a introdução de uns em um universo cultural, isto é, “[...] esta é a finalidade da empresa educativa: que aquele que chega ao mundo seja acompanhado no mundo e entre no conhecimento do mundo, que seja introduzido nesse conhecimento por quem veio antes”, e, ao mesmo tempo que pleiteia, interroga-se sobre a possibilidade de renunciar a fazer o outro sem que se renuncie a educá-lo, pois o autor combate a ideia de um educador Frankenstein, que molda, que fabrica alguém dentro de um determinado plano, sem abertura para a aventura do impensado, do não planejado, do imprevisto.

O termo educação envolve um leque amplo de experiências educativas, informativas e formativas nos espaços da cidade (e do campo) que não se resume à experiência escolar, formal. Embora a escola seja uma instituição com muitos anos de existência, participando ativamente dos repertórios culturais de diferentes contextos e deixando marcas indeléveis nas memórias de seus frequentadores, desde muito tempo também aparecem experiências formativas ocorrendo fora das escolas para diferentes públicos.

Educação são práticas e processos formativos que acontecem dentro de uma cultura e apenas didaticamente; podem-se denominar esses processos institucionalizados ou não por: educação formal, educação não formal e educação informal.

Historicamente, a educação informal surge primeiramente, está presente nas relações humanas e coletivas, sem intencionalidade, acontecendo de modo incidental. Por meio dela, aprendemos, subjetivamo-nos, socializamo-nos dentro de uma cultura, de um tempo, de um lugar.

A educação informal é um campo de conhecimento mais amplo que o campo não formal e o formal, pois está presente e embasa as práticas e os processos formativos que acontecem nestes campos. Se usamos a imagem de Rogers (2005), a do iceberg, a educação informal é a base escondida, não visível, em que se sustentam a educação não formal e a formal.

Rogers (2005, p. 68) usa essa imagem ao falar desse contexto educativo, explicando que a parte visível na superfície é a que se refere à educação formal; a outra parte, ainda visível, mas mais próximo à água, mais abrangente que a parte anterior, é a que se refere à educação não formal, e a parte invisível, submersa, de maior amplitude e base para as partes anteriores, é a que se refere à educação informal. Portanto, todas estão interligadas. Essa imagem também evidencia a cronologia de surgimento desses três campos, bem como certa relação de poder, status e importância do formal sobre o informal e o não formal.

Posteriormente à educação informal, surge a educação não formal, pensada e estruturada de modo intencional e sistematizado para todo e qualquer público, ocorrendo fora dos espaços escolares, sob diferentes modos, espalhada pela cidade, de forma institucionalizada ou não.

Para Trilla (1996), a educação não formal é aquela para a qual não há uma legislação nacional que a regule e que incida sobre ela. No caso do Brasil, o órgão responsável por definir o que é formal e o que não é formal, mas que é mantido pelos recursos públicos, é o Ministério da Educação, o mesmo órgão que regula a educação formal. Ela só surge posteriormente, sendo a ponta do iceberg, mas é a que ocupa o lugar de centralidade e de autorreferência.

A educação formal é responsável por promover o ensino dos conteúdos elencados como necessários ou imprescindíveis para a formação desejada dos sujeitos, e a instituição responsável por fazer isso é a escola, por meio de políticas públicas. Logo, tem um currículo, tempos e espaços regulados e determinados, certificação e alto grau de reconhecimento. Entretanto, ela visa à formação prospectiva, com uso especialmente para o futuro. Já a educação não formal acontece por modos abertos e flexíveis, sem um currículo específico, sob muitas metodologias, em interface com outras áreas do conhecimento. Ela é voltada para as necessidades urgentes e atuais dos sujeitos e dos grupos humanos, portanto, o presente. A ela, não cabe o papel do ensino, que é competência da instituição escolar, mas o do aprender.

O intuito das reflexões aqui desenvolvidas é perceber a contribuição - e os limites, as potencialidades, os desafios - de outros modos de se construírem os processos de sociabilidade e aprendizagem, tanto em locais institucionalizados como fora deles, transgredindo o que é instituído ou legitimado - quando for interessante e necessário, especialmente no enfrentamento das problemáticas que perpetuam processos de opressão, discriminação e exploração de pessoas e grupos subalternizados3 (SPIVAK, 2010) - e buscando novas formas de se estabelecer relações com o mundo, com o outro (DUSSEL, 1993) e consigo mesmo e outros modos de ser, estar e saber.

Desta forma, como entende Palhares (2008), tanto crianças quanto jovens, adultos e velhos, de qualquer classe social e econômica, precisam ter direito e acesso a muitas formas de aprendizagem, sociabilidade e socialização, e a escola pode se beneficiar enormemente dessas experiências que acontecem em uma multiplicidade de espaços-tempos.

A importância disso que se apresenta se dá pelo fato de pensar a Educação de modo articulado, tanto no campo formal quanto não formal e informal, focando-se no que há de possibilidades educativas/formativas disponíveis pela cidade, a partir da diversidade das produções culturais dos diferentes grupos sociais que resistem e reinventam a cultura no enfrentamento das problemáticas atuais de gênero, classe e raça, e nos impactos e nas contribuições disso para se pensar currículos outros na escola e fora dela . Disso decorre um investimento formativo de professores/as e alunos/as na conexão entre educação formal e não formal e a perspectiva decolonial.

E uma estratégia para realizar essa aproximação e estabelecer relações entre saberes e fazeres que já acontecem é o exercício de mapear processos culturais e suas possibilidades educativas que acontecem no espaço da cidade (de modo institucionalizado e não), a partir de uma proposição feita por Trilla (1999), bem como de identificar currículos outros sendo postos em prática e buscar articular com as discussões advindas da perspectiva decolonial.

3 APRENDER E A CIDADE

O espaço da cidade, segundo Trilla (1996), é espaço de educação. Para ele, a cidade ou a sociedade é educativa.

A ideia da Cidade Educativa contempla um universo ampliado de processos culturais e práticas educativas que acontecem dentro e fora das instituições escolares e não formais, nesse caso, envolvendo coletivos, equipamentos e instituições sociais, artísticas, culturais, de lazer, políticas, ecológicas etc., além de espaços públicos disponíveis no espectro da cidade, em seus centros urbanos e periféricos, bem como rurais.

O espaço da cidade é um local de acontecimento de práticas e processos educativos e culturais, políticos, poéticos, sociais, de procedimentos de resistência e de criatividade (WALSH, 2009), de relação entre espaços de circulação, de encontro, de vivência, fruição, de tensão, que coloca em contato diferentes formas de pensar, sentir, agir e se colocar dos grupos sociais, fruto de seus repertórios e contextos culturais.

Da mesma forma, apresenta e disponibiliza uma infinidade de equipamentos e instituições organizadas e estruturadas com meios para diferentes fins que funcionam e exigem normas, parâmetros e condutas diferenciadas para os variados espectadores e público. Isso implica formas variadas de inter-relação e interação entre os sujeitos, promoção de sociabilidades e socializações, entre o que está disponibilizado para consumo e para desfrute, entre o que exige participação e produção mais ou menos ativa e dinâmica, em uma infinidade de estímulos e motivações. Desse modo, centros cívicos, zoológicos, bibliotecas, centros culturais e recreativos, museus, praças, parques, shoppings, monumentos, arquitetura, escolas de samba, movimentos populares e de rua, ligados à música, à dança, às artes... Podem ser espaços ou locais de promoção e geração de educação e aprendizagem para/com/por públicos com diferentes e variados marcadores sociais (de gênero, classe, raça, faixa etária, nível de escolaridade etc.).

A cidade é agente educativo em três modos: é um meio e educa os sujeitos e os grupos sociais a partir de sua rede de equipamentos e serviços (denominada por Trilla [1996] de aprender na cidade); é um agente e educa pela diversidade e na diferença a partir das relações sociais que acontecem especialmente pelo embate e pelas contradições advindas das relações de poder, que provocam esforços criativos de resistência e invenção (denominada por Trilla [1996] de aprender da cidade); e é um conteúdo de aprendizagem, proporcionando construir representações simbólicas do que é a dinâmica e a complexidade da cidade e o viver nela de forma participativa, mas também por meio de enfrentamentos (denominada por Trilla [1996] de aprender a cidade).

Os processos educativos acontecem sob a forma de rede usando os equipamentos disponíveis e as potencialidades de experiência que permitam aprender sob três níveis ou dimensões: na cidade, da cidade e a cidade (TRILLA, 1996apudZAINKO, 1997, p. 17)

O primeiro nível é formado por coletivos e instituições especificamente educativas, dos tipos formais e não formais, por equipamentos e recursos, meios e instituições não especificamente educativas, por acontecimentos educativos efêmeros ou ocasionais e por uma ampla gama de espaços, encontros e vivências educativas não planejadas pedagogicamente. O segundo nível consiste naquilo que as cidades ensinam diretamente a seus habitantes, ou seja: elementos de cultura, formas de vida, normas e atitudes sociais, valores e contravalores, tradições, costumes, expectativas etc. E o terceiro nível se refere às formas como a cidade se apresenta, por exemplo: superficial, parcial, desordenada, estática etc.

Pensar, conhecer, vivenciar e experienciar a cidade em suas dimensões é participar de suas construções, movimentos e de inventar-se como sujeito pertencente a uma cultura e a um coletivo que se transforma e se reconstrói cotidianamente e ao longo do tempo.

Currículo é um constructo e um dispositivo social e cultural por meio do qual se constroem projetos societários e ações formativas; portanto, ele responde às necessidades históricas, atualizando ou reafirmando situações ou procurando transformá-las. Logo, entende-se como um campo de força no qual as relações de poder estão presentes e em tensão.

Compreende-se, com os/as autores/as decoloniais, que epistemologias oriundas do colonialismo, as quais privilegiam e visam manter a hegemonia de gênero, classe e raça (isto é, masculino, burguês, branco), ocupam os espaços e tempos, impondo-se como o conhecimento histórico e socialmente válido e validado. Assim, o currículo da educação formal e da não formal incluem (e excluem) certos saberes provenientes de determinados grupos, espaços e tempos.

No desafio de se defender e fazer educação envolvida e engajada na transformação, solidarizando-se com os grupos em condições de opressão, partindo-se de suas problemáticas, de seus saberes outros, currículos necessitam ser construídos e vivenciados, buscando saídas ao instituído, ao que se coloca como hegemônico e homogêneo (ou de outro modo, universal e neutro). Ideias de currículos que se imbuam e assumam politicamente a crítica e a conscientização das relações de poder e exploração de todas as ordens e que incluam o que os sujeitos e os grupos fazem em termos de resistência e invenção (SIMAS, 2013), por serem silenciados, abrindo caminhos para outros modos de existência e vida.

Ou, como traz Passos (2019, p. 197)

O posicionamento destes sujeitos, ao reivindicarem igualdade, reconhecimento e representação, se dá numa afirmação das diferenças (CANDAU; RUSSO, 2010) - sendo elas marcadores de raça, identidade de gênero, orientação sexual, etnias, culturas, entre outras -, tendo como propósito multiplicar vozes e narrativas, a partir de novas linguagens, ao ir contra o processo histórico de negação e apagamento dessas humanidades (compreendidas como “Outras”), seja física ou simbolicamente, nos nossos contextos educacionais latino-americanos.

Entende-se, portanto, que o currículo faz (e se faz como) práticas produtivas de identidade (SILVA, 2010), e modos outros de fazer currículos reverberam e impactam a cultura na direção e a favor da diversidade, da diferença e da perspectiva ecológica do bem viver, democrática e inclusiva. Na perspectiva de acontecer na força do coletivo, no cotidiano e em associação com os movimentos sociais, para agir tanto na esfera macropolítica quanto na micropolítica, nas brechas e nas frestas, como diz Catherine Walsh (2009) e outros/as autores/as decoloniais. Movimentar o mundo, como diz Rufino (2020, p. 61):

Para que a vida se costure como invenção, há de se praticar os ritos. No arrebate da gira mundo, há momentos em que temos de despachar aquilo que nos sobrecarrega. Queimamos nossas fantasias nas fogueiras de ontem para, no clarear do novo dia, bordar novas presenças. [...] aquele que pulsa a vida, veste a carapuça da beleza e da alegria.

Aposta-se, então, em currículos que “despacham(se) a monotonia, a escassez e a perda de vigor” (RUFINO, 2020, p. 62) e a história e tempo únicos, nos diferentes campos e lugares em que a educação aconteça.

Garcia (2015) propõe que os conceitos (formal e não formal) não apareçam em oposição, concorrência ou contraste, mas sim que sejam entendidos e pensados como conceitos autônomos, operando em campos conceituais independentes. E, embora se localizem em espaços e tempos diferentes, por possuírem conexões, dão contribuições na formação dos sujeitos e grupos sob diversos projetos societários.

Desta forma, articulam-se possibilidades de processos culturais e práticas educativas que problematizem e enfrentem a cultura hegemônica, que se sustenta sob uma política racista, classista e sexista, tão necessários desde a colonização e que permanece na lógica da colonialidade (QUIJANO, 2005), como exercício de pensar e fazer a potência da perspectiva decolonial na esfera educacional.

Duas iniciativas culturais e educativas recentemente postas em prática em Campinas, SP, e divulgadas para o público em geral, Rotas Afro e a HQ “Territórios Negros”, servem de exemplo de um início de mapeamento para construir percursos educativos nos espaços da cidade, neste caso, sob a perspectiva afro-brasileira e afro-campineira, reconstruindo a história de opressão, resistência e reinvenção dos povos negros escravizados e oprimidos na última cidade a abolir a escravatura.

4 DUAS INICIATIVAS CULTURAIS E EDUCATIVAS

A primeira iniciativa é a Rotas Afro, que acontece no interior paulista, desde 2019, idealizado e realizado pela turismóloga Júlia Madeira, nas cidades de Piracicaba, SP, e Campinas, SP, tanto para público espontâneo como para grupos escolares, tendo o objetivo de conhecer a história invisibilizada do povo negro e as contribuições na cultura e no desenvolvimento dessas cidades.

De acordo com a matéria de divulgação,

A cidade [de Campinas] foi escolhida por ser a última do país a abolir a escravização durante o século 19. Devido aos movimentos abolicionistas terem começado nas grandes metrópoles, com mais força e rapidez, a ideia é mesmo olhar para as cidades menores e entender como esses períodos se desenrolaram por lá. Junto com Bananal, Piracicaba e Campinas eram as cidades com maior concentração de escravizados na região na última década antes da abolição em 1888. A similaridade histórica e proximidade geográfica foram os pontos que facilitaram na hora de escolher uma segunda localidade para o projeto e desenvolver o roteiro para tal. (HENRIQUE, 2022, s.p.).

O roteiro tem duração prevista de duas horas e meia no ritmo de uma caminhada leve na cidade, pelo Centro e bairro contíguo, Cambuí. O percurso contempla lugares importantes da história campineira, com paradas em monumentos, construções arquitetônicas e locais de desaparecimento da presença negra acompanhadas de narrativas e cantos dos guias de turismo. Alguns dos pontos presentes na rota são: Largo São Benedito, Largo do Rosário, antigo Pelourinho e Praça Santa Cruz.

A cada ponto da parada, os guias Julia e Guilherme Oliveira narram histórias nem sempre conhecidas, começando pelo Largo São Benedito, que, nos anos 1753 e 1774, continha o Cemitério Bento ou dos Cativos recebendo os/as escravizados/as das fazendas de açúcar e de café, até 1848, e uma forca, da qual não há vestígio, atualmente. Posteriormente, no local, foi construída pelos homens negros livres a igreja em devoção ao santo, a partir da Irmandade de São Benedito.

[...] o termo de compromisso da Irmandade de São Benedito existia desde 1835, isto é, desde os tempos em Campinas ainda era a Vila de São Carlos. Ainda que a organização negra tivesse o cunho religioso, o espaço social servia também como forma de confraternização e politização. A partir da irmandade outros órgãos foram criados e um grupo muito combativo logo se destacou atuando na imprensa, nas agremiações para o lazer e cultura sempre em defesa dos interesses dos homens de cor. (XAVIER, 2008, p. 245 apudSILVA, 2013, p. 2).

Em frente à igreja, na praça Anita Garibaldi, há o monumento à Mãe Preta, de seios nus e amamentando uma criança; uma réplica da que se encontra no Largo Paissandu, em São Paulo, SP, feita de bronze, sobre uma plataforma de granito, de autoria do escultor Júlio Guerra, cujo pseudônimo era Ibirapuera. Tal representação desagrada à população negra, pois segue a perspectiva de um homem branco e pertencente à elite econômica, sobre o corpo da mulher negra doméstica e sua doação aos/às filhos/as dos escravizadores.

A aparência de estilo moderno da escultura desagradou militantes, como o jornalista e escritor negro José Benedito Correia Leite. Em sua opinião a escultura não representava a mulher negra bonita, educada e arrumada que foram as amas de leite. O que desagradou Correia Leite foram os exageros comuns ao traço modernista: os pés e as mãos enormes como símbolos da atividade produtiva da Mãe. Basta lembrarmos que A negra da artista Tarsila do Amaral tem a boca e o seio enormes e figuras negras como o homem da tela Café, de Candido Portinari tem seus pés e mãos arranjadamente desproporcionais. (BISPO, 2011, s.p.).

O ponto seguinte é no Largo do Rosário, hoje nomeado Visconde de Indaiatuba - homenageando um político abolicionista e fazendeiro de café -, que surgiu a partir da construção da Igreja do Rosário, inaugurada em 1817. Esta foi demolida em 1956, para possibilitar o alargamento da Avenida Francisco Glicério - antes, Rua do Rosário -, e uma nova igreja dedicada à Nossa Senhora do Rosário foi erguida em um bairro afastado, o Jardim Chapadão. O Largo é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas - juntamente a dois Solares, o do Barão de Indaiatuba e o do Barão Ataliba Nogueira - e nele consta um totem, que conta essas modificações e mostra fotos da época.

O terceiro ponto é em frente à Prefeitura Municipal de Campinas, no Largo das Andorinhas, antigamente denominado Largo do Pelourinho,

[...] porque o tronco onde eram castigados os escravos ficava na ‘Praça da Matriz Velha’, possivelmente no cruzamento das ruas Barão de Jaguara e Benjamin Constant, a uma distância aproximada de 200 metros do Largo. (PREFEITURA DE CAMPINAS, 2021a, s.p.).

Neste lugar, não há nenhuma menção a este fato, havendo um apagamento desse aspecto da história campineira no plano urbanístico.

O último ponto é na Praça Santa Cruz, localizado no bairro Cambuí, hoje uma praça rodeada de prédios de alto padrão e bastante arborizada, onde antigamente era reduto dos barões e baronesas em seus palacetes, dos quais pouco restam.

Provavelmente a segunda praça a se formar na cidade, um pouco mais distante do núcleo central (Largo da Matriz Velha), o Largo de Santa Cruz caracteriza-se, já na primeira metade do século XIX, como um importante espaço público em torno do qual se inicia um pequeno comércio, primeiramente em função dos tropeiros, e posteriormente das indústrias que ali se instalavam. Seu nome se deve a uma capelinha, chamada Capela de Santa Cruz, construída em taipa, por escravos, sendo que, por volta de 1814 surgiram em suas imediações as primeiras residências. [...] Foi no Largo de Santa Cruz que se construiu a primeira forca da cidade, em 1835, o que lhe deu a alcunha de ‘Largo da Forca’. (PREFEITURA DE CAMPINAS, 2021b, s.p.).

Neste lugar, novamente, não há nenhuma menção ou indício da forca, o que indica mais um apagamento da história dos/as negros/as da cidade. A isso se soma o ocultamento histórico do enforcamento e esquartejamento do negro Elesbão, escravo fugido, escondido no Quilombo de Brotas, onde hoje é Itatiba, SP (OLIVEIRA, 2019, s.p).

Foi feita a execução exemplar, por suposto assassinato do seu senhor, em 1831, em virtude de severos maus-tratos aos cativos, neste lugar também conhecido como a Bastilha Negra, pela sordidez, crueldade e extrema violência dos senhores de café no trato com o gentio. Ou, em outra versão, pelo excesso de trabalho e assédio contra uma escravizada (JUNDIAHY ANTIGA, 2016, s.p.).

À sentença de condenação de Elesbão, foi acrescentado pelo juiz os seguintes termos: Adendo a sentença acima, declaro que depois do réu sofrer a pena de morte cortar-se-ão as mãos e a cabeça, esta será remetida para a Vila de Jundiaí, e ali colocada num poste em lugar público e aquela serão colocadas nesta Vila em um poste e também em lugar público. A cabeça de Elesbão seria, então, enviada para Jundiaí com o objetivo claro de exemplaridade de punição a possíveis revoltosos e as mãos, também com objetivo semelhante, ficariam expostas em Campinas, presas aos postes ao lado da forca. (CAVALCANTI, 2012, s.p.).

A Rota Afro funciona como uma educação a céu aberto, mesclando informação e caminhada, com paradas estratégicas e narrações que trazem à tona histórias de povos subalternizados, discriminados, violentados em seus corpos e subjetividades pela condição da negritude, da exploração para o trabalho na agricultura e na vida doméstica, incluindo assédio e violação sexual, no caso das mulheres, em um entrecruzamento de questões raciais, de classe e de gênero.

Retomando Trilla (1996), os três modos de aprender estão presentes aqui: aprender na cidade, pelo que a rede de equipamentos, serviços e experiências proporcionam ao serem oferecidas; aprender da cidade, pelo contraste de vivências e narrativas, pelo embate entre versões oficiais e extraoficiais, clandestinas, relativas e sujeitas às relações de poder presentes e, especialmente, por trazer à memória e pôr em risco um projeto de ocultamento e esquecimento de parte da história da cidade; e aprender a cidade, por ajudar a construir subjetividades outras e a desconstruir narrativas hegemônicas e homogeneizantes.

Desta forma, o ato de aprender contribui enormemente na formação dos sujeitos que se abrem a essa experiência e possibilita um enfrentamento às problemáticas de gênero, classe e raça na atualidade, nos diferentes espaços e tempos, proporcionando uma educação antirracista.

A outra iniciativa é a publicação e distribuição gratuita - impressa e virtual - da HQ “Territórios Negros” (CALIXTO, 2021), resultado da parceria com o Departamento de Turismo da Secretaria de Desenvolvimento Econômico Social e de Turismo, do Museu da Cidade e do movimento negro campineiro, bem como um resultado do mandato da vereadora Guida Calixto (mulher negra, campineira e filiada ao PT)4.

O objetivo da publicação é “[...] homenagear espaços, organizações, manifestações e fatos históricos do povo negro” (CALIXTO, 2021, p. 3), com ilustrações e descrições sintéticas, mas que funcionam como um mapa afrocampineiro de localização e orientação e tem distribuição nas escolas e bibliotecas e em todos os espaços mencionados em seu conteúdo.

Nela aparecem citados: o Largo Santa Cruz, o Largo São Benedito (que “[...] abriga, desde 1866, a Igreja de São Benedito construída pelos negros e projetada por mestre Tito, conhecido como negro Carmo, curandeiro e escravo alforriado” [CALIXTO 2021, p. 4]); os bairros de origem negra, de 1959 a 1968, em virtude da gentrificação: São Bernardo, Vila Rica, Vila Bela, Padre Anchieta, Vila Boa Vista, Vila Cury e Vila Costa e Silva; os movimentos culturais negros: Escola de Samba Vila Rica, Rosa de Prata, Princesa d’Oeste, Garotos de Madureira e Estrela Dalva; os clubes 9 de Julho e Machadinho com seus bailes; grupo de teatro Evolução; a Banda dos Homens de Cor, de 1933; o Movimento Negro Unificado; o Festival Comunitário Negro Zumbi; a Cerimônia de Lavagem da Escadaria da Catedral Metropolitana por duas lideranças tradicionais de matriz africana (Mãe Dango e Mãe Corajacy); os espaços de formação, memória e resistência na periferia da cidade, como: Casa de Cultura Tainã, Urucungos Puítas e Quijengues, Fazenda Roseira/Jongo Dito Ribeiro, Ibaô e o Balaio das Águas, Afoxé Ilê Ogum, Maracatucá, Instituto Baba Toloji, Coletivo Salvaguarda Capoeira, Associação de Religiosos de Matriz Africana, Pastoral Afro da Comunidade São Joaquim Santana, Casa Laudelina de Campos, Coletivo Negro com Práticas Pedagógicas em Africanidades, Liga dos Homens de Cor, Núcleo de Consciência Negra da UNICAMP, Cursinho Popular Herbert de Souza, Centro Cultural Esperança Vermelha, Quilombo Urbano OMG.

Desses, destaco cinco, pelo aspecto religioso, artístico e cultural afro, de gênero e classe. A Lavagem das Escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas acontece todos os anos, desde 1985, no sábado de Aleluia, e aconteceu de modo virtual nos anos inicias da pandemia da covid-19. Nessa data, há um cortejo formado por grupos e coletivos de origem afro e ligados, de alguma forma, às religiões tradicionais de matriz de terreiro. O percurso percorrido até a chegada à praça da Catedral sai da Estação Cultura e segue pela rua de comércio, a Treze de Maio, com flores, água de cheiro, cantos e toques afro, entoados por capoeiristas e grupos ou coletivos de cultura popular e universitários como Maracatucá, Jongo Dito Ribeiro, Caixeiras das Nascentes, samba de bumbo etc. Na chegada à igreja, em frente à praça, reúnem-se muitas pessoas de branco e acontece a lavagem das escadarias, o aspergimento de água de alfazema e a cerimônia religiosa. Segue-se com apresentações, como: Vó Tiana, Bateria Alcalina, Grupo Teatro Savuru, Grupo Urucungos, Puitas e Quijengues, Afoxé Ibaô etc. Essa festa coletiva e aberta, levada à frente por duas mulheres negras, sacerdotisas de candomblé, é um modo de mostrar a cultura afro e seus símbolos, ritos e mitos identitários, para que haja conhecimento ampliado e respeito e valorização pela sociedade mais ampla, em prol de enfrentar o racismo e a intolerância.

Cabe ressaltar que a festa refaz a territorialidade afro, agregando um espaço que foi construído com a mão de obra de escravizados, reinterpretando um lugar consagrado à elite e, assim, recuperando o protagonismo da população cativa, que construiu a cidade em seu auge dos ciclos econômicos. Trata-se da celebração da resistência da cultura afro-brasileira e de sua riqueza, trazendo rituais de purificação e renovação para mais um ano, que, nesse caso, tiveram origem na coragem das sacerdotisas Mameto Oyá Corajacy e Mameto Dangoroméia. (SOARES, 2022, s.p.).

Em uma região periférica da cidade, há o Instituto Baobá de Cultura e Arte (IBAÔ), fundado em 2007 e

[...] alicerçado na prática da capoeira e dos seus fundamentos em diálogo com as diferentes formas de (re) construção e (re) significação das referências afrobrasileiras na comunidade e, portanto, tem a ver com o nosso pertencimento identitário. (IBAÔ, 2014, s.p.).

No espaço, acontecem oficinas culturais, aulas de atabaque, vivências de capoeira e danças tradicionais, encontros, palestras, seminários, manutenção de acervo bibliográfico e de objetos. Ali se somam e fortalecem arte e cultura a partir de um referencial afrorreligioso. O Ibaô também tem o grupo de Afoxé Ibaô Inã ati Omi, que se liga intimamente ao candomblé e se apresenta em vários lugares e eventos, entre eles, na festividade que a instituição organiza e promove, nas ruas do entorno, chamada Balaio das Águas, para homenagear o orixá Iemanjá, no mês de fevereiro. Além do Afoxé, outros grupos ligados à cultura afro, como capoeira, maracatu, jongo, folia de reis, samba de bumbo, coco de umbigada, também se apresentam no chão da rua ou no palanque montado ao lado de barracas com comidas afro-brasileiras e outros produtos ligados a esse universo.

Neste dia, um balaio recebe oferendas e flores e, ao final, em cortejo pelas ruas, acompanhado do Afoxé e do maracatu, sobe até o terreiro de candomblé, onde é entregue para os rituais, e segue no dia seguinte para o mar, em Santos.

No mesmo território, também tem a Casa de Cultura Tainã, e estas duas iniciativas colaboram para a manutenção e a preservação de referências religiosas e culturais relativas à africanidade, bem como fortalecem a resistência tanto da periferia, da população pobre, quanto do povo negro. Nesses dois lugares, quem não é morador do lugar e da periferia tem contato e proximidade direta com a cultura de resistência e invenção na manutenção da tradição de saberes coletivos e ancestrais.

Aprende-se na cidade, da cidade e a cidade, por meio dessas instituições de memória e patrimônio cultural, de iniciativas como as festividades na rua, que reúnem pessoas de diversas regiões da cidade e arredores e de contraposição a um sistema hegemônico, buscando fortalecer o que é invisibilizado, apagado, hostilizado. Aprendem-se modos outros de ser, viver, existir, pensar e agir sobre o mundo, visando transformá-lo no cotidiano e em microações cotidianas.

A Casa Laudelina de Campos Mello, surgida em 1989 como organização não governamental, localizada no centro da cidade, visa lutar pela igualdade e direito de mulheres pretas e trabalhadoras. É a iniciativa que, deliberadamente, articula a problemática que engloba o gênero, a raça e a classe, contra a discriminação e intolerância.

Formado por mulheres oriundas de diversos movimentos sócias e populares (de mulheres, de negros, sindical, de juventude) e também mulheres que ainda não haviam despertado a consciência questionadora herdadas de nossas deusas ancestrais. Em 1991 após a dolorosa perda de nossa amiga e companheira Vó nina, Laudelina de campos Mello, decidimos por homenageá-la colocando em nossa organização o nome desta mulher negra que é para nós um exemplo de articuladora das questões de gênero, raça e classe. (CASA LAUDELINA, 2023, s.p.).

A Casa promove discussões e oficinas sobre a saúde da mulher preta, os direitos e a economia solidária, bem como participa de fóruns que ajudam a construir e sustentar políticas públicas.

E, por fim, o Centro Cultural Esperança Vermelha (CCEV), também no centro da cidade, que é um centro cultural com orientação democrática, popular e socialista, que oferece cursos e encontros de formação política, cultural, artística e atividades de lazer.

Aprende-se, circulando pela periferia e pelo centro antigo, outros modos de se produzir conhecimento e subjetividades na relação com a diferença e com o múltiplo e plural. Aprende-se por meio de manifestações, movimentos, coletivos, instituições do terceiro setor, potencialmente educativas, a partir de seus repertórios de lutas e engajamento necessariamente político, especialmente a partir dos anos 1990, ainda que não possa haver, ainda, a abordagem interseccional, atuando mais em uma pauta do que em outras, embora entenda-se que as três estão estruturalmente articuladas.

5 CONSIDERAÇÕES

A intenção das análises construídas a partir de um início de discussão e mapeamento é que os resultados colaborem para o conhecimento dos processos culturais existentes no espaço da cidade de Campinas, SP. Espera-se conhecer a diversidade de públicos de tais práticas educativas ou potencialmente educativas. Deseja-se constituir a ideia de uma Cidade Educativa, sob a perspectiva decolonial, que aponte possibilidades de enfrentamento de formas de poder calcadas no machismo, no sexismo e no classismo de modo interseccional, com implicações diretas na construção de currículos decoloniais que incluam e se baseiem em pautas identitárias, diferença/alteridade, subjetividade, saber-poder, multiculturalismo.

Além disso, os resultados apresentados ajudam a aproximar e a entrecruzar com a Educação outras áreas de conhecimento, como a Cultura, a Arte e a Política. E a exercitar a perspectiva decolonial, para o enfrentamento teórico e prático de problemáticas advindas da realidade complexa da área educacional. Como afirma Ballestrin (2013) sobre o processo de decolonização pretendido:

Ele pode ser lido como contraponto e resposta à tendência histórica da divisão de trabalho no âmbito das ciências sociais (ALATAS, 2003), na qual o Sul Global fornece experiências, enquanto o Norte Global as teoriza e as aplica (CONNELL, 2012). Nesse sentido, é revelador que ao esforço de teorização no Brasil e na América Latina caibam os rótulos de “pensamento” e não “teoria” social e política. (BALLESTRIN, 2013, p. 109).

Por fim, este artigo pode resultar na inclusão de discussões teóricas e práticas sobre a cidade como meio, agente e conteúdo formativo, ou como patrimônio educativo (FERNANDES; GROPPO; PARK, 2012), reafirmando e reforçando as conexões entre a instituição escola e outros espaços educativos com impacto e contribuições curriculares.

2“Em um contexto de globalização, cultura, identidade (classe/etnia/gênero), migração e diáspora apareceram como categorias fundamentais para observar as lógicas coloniais modernas, sendo os estudos pós-coloniais convergentes com os estudos culturais e multiculturais” (BALLESTRIN, 2013, p. 94).

3Subalterno (termo tomado de Gramsci, o oriental, o negro, o índio, o camponês).

4Recentemente, a parlamentar sofreu tentativa de cassação de seu mandato, impetrado pelo partido PRTB, que alegou quebra de decoro por distribuir um gibi que exalta a cultura negra e usa ilustrações de manifestações contra o governo federal atual do PL. Sobre isso, a vereadora escreveu: “O ato faz parte de uma ofensiva da extrema-direita que em todo o país, inflados pelo bolsonarismo e fascismo, atacam mandatos populares de negras/os, trabalhadoras/es, mulheres, LGBTQIA+ e todas aquelas e aqueles que lutam contra as injustiças e por um país de fato democrático. De nossa parte dizemos não nos calarão. Não cairemos na intimidação. Continuaremos na luta por uma Campinas antirracista, democrática e popular” (LIMA NETO, 2022). A Câmara rejeitou o pedido.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 18 de Julho de 2022; Aceito: 03 de Janeiro de 2023

Renata Sieiro Fernandes: Pós-doutora, doutora e mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pedagoga pela UNICAMP. Membro do grupo Educação, Linguagem e Práticas Culturais (PHALA) da UNICAMP. Orientadora pedagógica na Prefeitura Municipal de Campinas, SP. Colaboradora no Ponto de Cultura e Memória Ibaô (Campinas, SP). E-mail:rsieirof@hotmail.com, ORCID:https://orcid.org/0000-0003-2759-143X

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